Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. v.19 n.2 Rio de Janeiro dez. 2007
ARTIGOS
Grupos de reflexão com adolescentes: elementos para uma escuta psicanalítica na escola
Reflection groups with adolescents: elements for a psychoanalytical listening at school
Luciana Gageiro CoutinhoI; Ana Paula Rongel RochaII
IDoutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Pesquisadora do NIPIAC (Bolsa Pesquisador-Associado FAPERJ); Psicanalista e Membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro
IIMestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Pesquisadora do NIPIAC e Psicanalista.
RESUMO
Este artigo origina-se de uma pesquisa desenvolvida no NIPIAC (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio sobre a Infância e Adolescência Contemporâneas) do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ, cujo objetivo é pensar os grupos de reflexão como uma forma de intervenção clínica, pautada por pressupostos da psicanálise, junto aos adolescentes. Propomos que os grupos de reflexão ampliam as possibilidades da escuta psicanalítica dirigida aos adolescentes, que pode se fazer presente de maneira mais direta no contexto institucional ou social no qual se inserem (escolas, instituições de acolhimento, projetos sociais, etc). Para isso, destacamos alguns conceitos e premissas da psicanálise que nos servem de referências para fundamentar nosso trabalho clínico e teórico. Em seguida, apresentamos uma experiência desenvolvida com um grupo de adolescentes durante o primeiro semestre de 2006 numa escola pública do município de Duque de Caxias, Rio de Janeiro.
Palavras-chave: clínica da adolescência, psicanálise ampliada, grupos de reflexão
ABSTRACT
This article originates from a study carried out at the Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio sobre a Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC), which is part of the Post-Graduate Program in Psychology at the Federal University of Rio de Janeiro. The study set out to investigate reflection groups as a kind of clinical intervention with adolescents, based on psychoanalytical assumptions. We sustain that reflection groups provide broader possibilities for psychoanalytical listening involving adolescents and can take place more directly within the institutional or social contexts in which the adolescents are already involved (schools, youth institutions, social projects, etc.). We highlight some concepts and assumptions from psychoanalysis which serve as the basis for our clinical and theoretical work. We then present a study developed with a group of adolescents during the first half of 2006 at a public school in Duque de Caxias, a town in the state of Rio de Janeiro, Brazil.
Keywords: treatment for adolescents, expanded psychoanalysis, reflection groups
INTRODUÇÃO
Este trabalho origina-se do projeto de pesquisa-intervenção Grupos de Reflexão com Adolescentes1, desenvolvido no NIPIAC (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio sobre a Infância e Adolescência Contemporâneas) do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ. Tem como objetivo propor algumas contribuições da psicanálise para os grupos de reflexão como uma modalidade de intervenção clínica junto aos adolescentes, visando um outro contexto que não o da clínica individual tradicional, realizando-se no âmbito institucional ou social no qual se inserem (escolas, instituições de acolhimento, projetos sociais, etc). Acreditamos que este trabalho é possível na medida em que o psicanalista possa carregar com ele um lugar, uma função que lhe permita escutar e intervir de uma forma diferenciada, considerando a transferência ou as transferências e a criação de espaços de fala e de reconhecimento. Além disso, pensamos que esta proposta pode ser bastante produtiva no atendimento a adolescentes, por tratar-se de uma clínica radicalmente atravessada pelo social, pelo político e pelas instituições, levando em conta as especificidades das operações próprias ao trabalho psíquico da adolescência.
O projeto Grupos de Reflexão com Adolescentes visa criar espaços de fala e de experiências compartilhadas para adolescentes através da realização de grupos de discussão em torno de questões e tensões que para eles se colocam, tendo em vista a nova relação com o social que se impõe na adolescência. A pesquisa vem sendo realizada desde o primeiro semestre de 2006 em uma escola pública situada no município de Duque de Caxias no estado do Rio de Janeiro. No presente trabalho, partiremos de algumas premissas teóricas nas quais se ancora o trabalho dos grupos de reflexão, destacando determinados conceitos em psicanálise que utilizamos, para, em seguida, apresentarmos a experiência desenvolvida em Caxias e alguns de seus resultados parciais.
OS GRUPOS DE REFLEXÃO NA PESQUISA-INTERVENÇÃO COM ADOLESCENTES: ALGUMAS QUESTÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS
Os grupos de reflexão situam-se dentro do modelo de pesquisa-intervenção desenvolvido pelos pesquisadores do NIPIAC (Rabello de Castro, 2004), no qual se pretende ao mesmo tempo investigar e viabilizar a construção de um espaço de fala e intercâmbio entre jovens sobre as questões que os afligem no que diz respeito à construção de suas identidades pessoais e coletivas, às suas inserções presentes e futuras na sociedade da qual fazem parte, incluindo nessa discussão as dificuldades de relação e os impasses que eles experimentam com as instituições que a representam, a saber, a família, a escola, a justiça, etc. O modelo de pesquisa-intervenção no qual se baseia o trabalho nos grupos de reflexão tem inspiração teórica, por um lado, nas metodologias participativas e na pesquisa-ação oriundas das ciências sociais e, por outro, numa abordagem clínica sustentada pelos pressupostos da psicanálise, utilizados fora de seu dispositivo de intervenção tradicional.
O desenvolvimento teórico-metodológico da presente pesquisa-intervenção sobre grupos de reflexão com adolescentes ancora-se fundamentalmente nas contribuições da psicanálise, reconhecendo-os enquanto espaços de fala e construção de novos sentidos, sustentados pela transferência e pelas identificações horizontais e verticais entre os que deles fazem parte. Consideramos que em psicanálise não há clínica sem pesquisa, nem há pesquisa sem clínica, porque acreditamos em um saber que é sempre construído a partir do encontro entre um analista e um sujeito (Elia, 2000). Assim, o manejo da transferência sob a ética da psicanálise (Kehl, 2002) permite que as questões emergentes no grupo não sejam obturadas ou julgadas a partir de um saber prévio, mas possam ser desdobradas, arejadas e, muitas vezes, respondidas pelo próprio grupo através de um saber compartilhado construído ao longo do trabalho. O trabalho com a palavra e, mais especificamente, com uma fala endereçada abre uma nova via de intervenção e de investigação para a psicanálise diferente do seu dispositivo clínico tradicional individual e privado.
Isso tem sido bastante pensado e trabalhado na atualidade por psicanalistas do mundo todo, seja sob a denominação de "psicanálise ampliada" (Elia & Santos, 2005), ou, como foi proposto por Jacques-Alain Miller, "prática entre (ou com) muitos" (Lima & Altoé, 2005). O que tem sido sustentado é que basta que um ou uns ocupe(m) a função analista, dirigindo-se a outro ou outros, tomados como sujeitos do inconsciente, para que a psicanálise possa operar nos mais diversos espaços e contextos. Assim, dirigindo-nos ao sujeito do inconsciente, levando em conta a transferência dirigida ao analista enquanto Outro e dela se servindo, acreditamos que a psicanálise possa operar nos grupos de reflexão realizados em instituições e diversos espaços de convivência social.
TRANSFERÊNCIA
Dentre as contribuições clínicas da psicanálise, pensamos que o trabalho com a transferência ganha, nos grupos de reflexão, um lugar privilegiado e fundamental. Entendemos o conceito de transferência, no âmbito deste trabalho, menos enquanto repetição de um laço a uma pessoa e mais como um laço ao significante que, dirigido ao Outro/analista2, carrega uma significação, um saber inconsciente, tal como acontece com o sintoma. Assim, como diz Miller (1987), a transferência é a atualização da realidade do inconsciente, do Outro que constitui o sujeito enquanto rede de significantes que orientam o seu desejo.
Como já observava Freud, trata-se da instauração de um lugar (dimensão do simbólico), lugar de "autoridade" como definiu na sua conferência sobre transferência (Freud, 1916-17/1972), que hoje podemos associar ao lugar do sujeito suposto saber formulado por Lacan (1964-65/1996). Lacan ancora a definição de transferência na função do sujeito suposto saber, que surge como uma conseqüência estrutural do dispositivo da análise: situação em que alguém se submete à regra fundamental da psicanálise, ou seja, à associação livre. A função sujeito suposto saber emerge quando, obedecendo aos princípios próprios da linguagem, o que é falado retorna ao sujeito com uma nova significação, significação cuja prerrogativa é do ouvinte. Assim, ao falar para o Outro, o que é dito adquire um outro sentido. A transferência surge então como fruto desse endereçamento, e é deste lugar que o analista pode atuar para mover significações cristalizadas (sintoma) e assim operar.
A intervenção nos grupos de reflexão pressupõe que o psicanalista possa sustentar essa função, ao garantir um lugar de fala e reconhecimento das questões que afligem os adolescentes. No entanto, ao contrário de se identificar com o sujeito suposto saber, fornecendo as respostas e os significados, promovendo com isso um saber fechado ao qual os adolescentes devam se submeter e em torno do qual devam se identificar o que faria com que o trabalho fosse puramente imaginário , o psicanalista deve apenas garantir um lugar de alteridade, onde as falas possam ser endereçadas e apropriadas e os sujeitos possam se situar diante desse Outro, produzindo um saber em nome próprio.
O ADOLESCENTE E O OUTRO
A psicanálise também se faz presente nesta pesquisa-intervenção enquanto referencial teórico para pensar sobre o processo psíquico da adolescência e suas implicações específicas com relação ao social, o que também remete à função desempenhada pelos grupos nesse processo. Entendemos que a adolescência envolve um novo encontro com o Outro da cultura que exige um trabalho subjetivo por parte do jovem de reconhecimento do seu lugar e das suas possibilidades de ação no universo social do qual faz parte.
Vale a pena então nos determos um pouco na questão do Outro na adolescência, questão que é fundamental para a psicanálise com adolescentes e se atualiza na transferência sempre que os ouvimos. Como observa Alberti (2005), o trabalho da adolescência se inscreve na elaboração do binômio alienação-separação frente ao Outro, que coincide com a elaboração da falta no Outro, ou seja, da condição de separação inevitável à subjetivação humana. Tal trabalho, por outro lado, implica suportar o fato humano de que somos necessariamente alienados ao Outro (simbólico), mas podemos tirar conseqüências absolutamente singulares desta alienação e assim nos servir dela. Isto se refletirá obviamente na transferência do adolescente ao analista, que oscila entre ocupar o lugar de um Outro a quem ele está alienado (ex. professor, pai, mãe), o que é muitas vezes demandado explicitamente, e um Outro frente com quem ele pode e deve se posicionar de maneira singular, apropriando-se daquilo que justamente o constitui.
Winnicott (1962/2001) já observara a oscilação dos adolescentes entre a posição de dependência e a de desafio frente aos adultos, chamando a atenção para a delicada tarefa delegada aos últimos e à sociedade como um todo: a tarefa de poder suportar este endereçamento paradoxal. Endereçamento que, por si só, convoca-os a não se esquivar deste "confronto", o que, como ressalta Winnicott, é bem diferente de tentar ser compreensivo e de buscar a cura para os males da adolescência. Daí sua afirmativa aparentemente ingênua, e às vezes até mesmo um pouco incômoda no meio psicanalítico, de que a adolescência não tem remédio, a não ser o tempo e a experiência de passar por ela (Winnicott, 1962/2001). Entendemos que tais observações de Winnicott apontam justamente para o trânsito entre alienação e separação do Outro, segundo uma compreensão lacaniana, como parte fundamental do trabalho psíquico da adolescência (Costa, 2004). Trânsito este que, numa abordagem winnicottiana, envolve o exercício da dimensão de transicionalidade, ou seja, do encontro com objetos da cultura intermediários que possam ser apropriados e utilizados de forma singular por cada sujeito.
Nos grupos de reflexão, pelas condições que o próprio dispositivo colocaao ser aplicado em contextos institucionais, é interessante observar o investimento transferencial dirigido aos coordenadores justamente como a expressão deste encontro inovador com o Outro que se dá na adolescência, Outro a quem dirigem questões sobre si e sobre o mundo. "O que vocês acharam de nós?" (Patrícia, 14 anos), pergunta um adolescente logo no primeiro encontro de um dos grupos de reflexão realizados na escola. Assim, retomamos a definição lacaniana da transferência dirigida ao analista no lugar do suposto saber enquanto promessa de significação, transferência do sem sentido à busca de significação (Miller, 1987). Sentido este que só pode ser dado pelo próprio sujeito que o demanda, seja individualmente, seja em grupo.
GRUPOS
Neste re-encontro com o Outro na adolescência, é consenso entre os psicanalistas que trabalham com adolescentes a importância do espaço de grupo como espaço de fala, de reconhecimento e de suporte para novas identificações (Broide & Broide, 2004; Outeiral, 2003; Magalhães, 2002; Galvão, 1999). Espaço, portanto, privilegiado para a emergência do inconsciente, já que é através da fala que este se manifesta. No entanto, inspirados nas teorias de Bion e Pichon-Rivière, a maioria dos autores que trabalham com grupo tende a considerá-lo uma unidade, uma totalidade a partir da qual emerge um inconsciente grupal (Broide & Broide, 2004; Outeiral, 2003). Nessa perspectiva, o grupo promove um fechamento em torno de um sintoma, de uma fantasia, alimentada pelas identificações horizontais entre seus integrantes, de forma que o que surge dentro do grupo se constitui em formações do inconsciente grupal que devem ser interpretadas e decifradas pelo analista. Essa visão de grupo promove uma equivalência entre trabalho de grupo e trabalho de análise, embora nem sempre seja a análise o que se pretenda nessa prática, mas apenas a decifração de algumas demandas e acting-outs de alguns adolescentes (Outeiral, 2003).
Nossa proposta, porém, toma o grupo como um dispositivo facilitador de um trabalho que não se esgota no próprio grupo e que possibilita igualmente um trabalho subjetivo que também é individual e singular. Dessa forma, nossa pesquisa recorre à psicanálise no sentido de que esta faça operar aberturas e fechamentos, circulação de sentidos e endereçamentos, permitindo assim a realização de uma intervenção clínica, sem que isso signifique o trabalho de uma análise propriamente dita.
Nesse sentido, a formação de grupos vem facilitar a busca dos adolescentes por uma nova inscrição social, criando espaços de fala próprios e suportes identificatórios transitórios necessários à elaboração das perdas das identificações infantis e à construção de um lugar no mundo adulto. Portanto, o grupo corresponde a um importante cenário onde se realizarão as operações concernentes ao trabalho psíquico da adolescência, com destaque para um novo encontro com o Outro.
Uma das tarefas mais importantes que se colocam ao adolescente diz respeito a como responder à demanda do Outro social. Este impõe ao sujeito adolescente uma moratória, como diz Calligaris (2000), que indica um período de espera que atrasa sua autorização para a entrada no mundo adulto. Período enigmático porque existe uma demanda que é feita pelo social que não seja mais criança, que se situe na partilha dos sexos, etc , mas que marca uma falta de lugar social, de reconhecimento. Tal como acrescenta Lesourd (2004), isso se deve ao fato de que nossa sociedade moderna deixou de nomear os lugares em que os adolescentes devem ser admitidos pelo social, função que o rito de passagem cumpria, de modo que a tarefa de se inscrever no discurso social passou a ser uma tarefa a ser realizada individualmente e não coletivamente. Essa falta de mediação societária capaz de interpretar a convocação a que se vê submetido o sujeito diante das mudanças de ordem pulsional, narcísica e de status frente ao Outro é que provoca o adolescer no interior da subjetividade de cada um, adolescer como uma operação psíquica que deve se realizar internamente (Ruffino, 1995). Além de reafirmar o valor do trabalho com grupos de adolescentes, tal constatação aponta para o fato de que a adolescência é, fundamentalmente, uma interação entre um sujeito e um momento social. Assim, o trabalho psíquico exigido do adolescente não depende apenas do sujeito, mas do que a sociedade pode ofertar a ele na forma de significantes e modos de gozo, ou seja, das condições de reconhecimento e acolhimento de que a sociedade dispõe. Dentro da perspectiva de espera propagada pelo discurso social, permeada pelo discurso moralista e naturalizante sobre os perigos da adolescência, a violência e os agires, o grupo possibilita ao adolescente um lugar de reconhecimento e intercâmbio destas questões junto aos pares.
OS GRUPOS DE REFLEXÃO EM CAXIAS
A partir de agora, apresentaremos uma experiência desenvolvida no Instituto Roberto Silveira, uma escola pública situada no município de Duque de Caxias, Rio de Janeiro, com um grupo de 12 jovens, em sua maioria meninas, alunos da 8ª série. Este trabalho foi realizado durante o primeiro semestre de 2006, totalizando dez encontros. O grupo era coordenado por duas pesquisadoras do NIPIAC, autoras do presente artigo. Na ocasião, pretendemos trabalhar com estes jovens as questões referentes ao re-encontro com o Outro da cultura na adolescência o que foi definido no projeto apresentado à escola como "a construção de si no espaço público" entendendo que tal operação, fundamental na adolescência, pode ser facilitada pelos laços sociais fraternos e horizontais. Com isto, visamos criar um espaço em que estes jovens pudessem expressar sua opinião, imaginar sua inserção na comunidade e na cidade em que vivem, compartilhando o que pensam e o que sentem com outros jovens marcados por experiências culturais semelhantes3.
Ao longo desses encontros, alguns dos pontos principais que emergiram foram o sentimento de exclusão e de restrição de possibilidades de circulação e participação no mundo público. Em um trabalho inicial de apresentação, foi produzido pelos jovens um painel intitulado Periferia no qual eles colaram imagens extraídas de revistas de jovens em bando com armas, uma foto de um soldado também armado e com escudo, outra de Saddam Hussein. O painel era cercado de insígnias provenientes do funk, como um sinal feito com a mão e uma gíria: vida loka. Ao falarem sobre o trabalho, foi interessante observar como, de início, os adolescentes apresentaram-se para as coordenadoras do grupo como "jovens de periferia", "lugar de violência", e, em seguida, puderam se dar conta do quanto eles próprios encontram-se muitas vezes aprisionados a este lugar de exclusão, reiterando o discurso social vigente. Esta virada se deu na medida em que disseram que sua vida cotidiana não era bem assim, sendo então interrogados pelas coordenadoras sobre o modo pelo qual eles estavam se apresentando a elas.
Este endereçamento transferencial, que denota um lugar no campo do Outro, ou seja, no campo simbólico da cultura, foi devolvido a eles sob a forma de uma interrogação: "É assim que vocês acham que nós vemos vocês?". Ao que um deles responde: "É o que todos falam, o que dá na televisão, que aqui só tem violência" (André, 16 anos)4. A partir desta resposta, pudemos refletir com o grupo sobre o modo como eles acham que são vistos e sobre até que ponto eles estão fixados (alienados) a esta posição. Alienação ao Outro midiático? É interessante acrescentar aqui também mais uma comunicação transferencial que aponta nesse sentido. Ao longo dos encontros, as coordenadoras foram interpeladas pela insistência de mais de uma das jovens em dizer que as tinham visto na TV. De todo modo, mesmo sem explicitar todas estas nuances, pensamos que esta alienação pôde ser, de alguma forma, reconhecida pelos jovens, permitindo uma mudança de posição subjetiva em alguma medida e repercutindo para cada um de forma singular.
No decorrer dos encontros, a questão da exclusão foi recorrente de diversas formas, sendo problematizada principalmente através do tema do preconceito: preconceito em relação ao pobre, ao morador da Baixada Fluminense, ao estudante de escola pública, etc. Assim, este tema pode ser explorado e trabalhado incessantemente, de modo a favorecer uma reflexão sobre a inserção deles na comunidade e na cidade em que vivem, tentando com isso lhes possibilitar um novo olhar sobre eles próprios e sobre o modo como ocupam o mundo em que vivem. Vale marcar aqui que acreditamos que o trabalho subjetivo em torno deste tema da exclusão é imprescindível para uma política de inclusão social, que se confunde com um trabalho de subjetivação política, para além da oferta de condições materiais e oportunidades reais de acesso aos bens sociais.
Nos jovens de Caxias, a exclusão e o preconceito foram fortemente marcados, principalmente em relação às condições da mulher no contexto social em questão, talvez pelo fato de o grupo ser composto, em sua maioria, por meninas. Temas como a mulher que se deixa aprisionar pelo marido e pelo casamento, as meninas que namoram e não estudam, a "burrice" (significante utilizado por elas) das mulheres foram marcantes. Tais questões foram entendidas e trabalhadas, à luz do referencial psicanalítico, enquanto questões relativas ao trabalho psíquico da adolescência como uma ressignificação do tornar-se mulher, o que implica, de uma maneira mais ampla, a busca de um lugar no Outro da cultura.
Ao trabalharmos em torno do significante burrice que emergiu no grupo a propósito da elaboração da estória de uma jovem, proposta como tarefa pelas coordenadoras, houve um estranhamento inicial em relação à própria fala. No encontro seguinte à produção da estória, após a leitura da mesma, as adolescentes não reconheceram a estória lida como sendo aquela criada por elas na semana anterior. A maioria revelou ainda um profundo incômodo com o resultado da produção, dizendo que não gostou da estória, que era horrível a conclusão de que as mulheres são burras, que só pensam em casar, largam os estudos, são dependentes dos maridos, etc. A direção das intervenções feitas pelas coordenadoras visou que elas pudessem se apropriar deste discurso produzido por elas, além de questionar o porquê do incômodo diante dele, o que gerou angústia, irritação e dispersão no grupo. Novamente, o significante burrice ecoou nas intervenções feitas: será que a burrice também anda por aqui?
Tal questão se fez igualmente presente na transferência com as coordenadoras, também mulheres. A uma de nós, foi perguntado: "Você é casada?". "Não deve ser, não é burra" (Andréa, 14 anos). Ou ainda: "Vocês estão irritadas com a gente?" (Marta, 14 anos). Pensamos que de fato estávamos irritadas diante do tumulto e da displicência que surgiu no grupo durante a realização daquela tarefa, a produção de uma estória que acabou sendo a estória das "mulheres burras". Assim, o fantasma da "burrice" pareceu de fato comparecer no campo transferencial, que assim pôde ser manejado no sentido de passar para o território da palavra compartilhada.
Outro tipo de intervenção feita pela via da palavra na experiência aqui relatada foi quando, ao propor aos jovens a construção de uma estória, pedimos a eles que trabalhassem a partir de algumas palavras que recortamos e levamos para o grupo, algumas delas extraídas das próprias falas deles e outras introduzidas por nós. Assim, pretendemos pontuar algumas das questões emergentes mais fundamentais e, ao mesmo tempo, alterar a cadeia simbólica por eles trazida através de outros significantes que lhes permitissem redefinições e redescrições.
Mas o preconceito também apareceu dentro do próprio grupo. Já que trabalhávamos com alunos de uma mesma turma de 8ª série, o grupo fragmentava-se em microgrupos relativamente estáveis, que provinham das relações cotidianas entre eles no espaço das aulas. Assim, a primeira atividade proposta (o painel) foi feita separadamente em dois grupos. Entretanto, ao longo desta atividade, surgiu o tema da dificuldade em trabalhar em grupo, a idéia de que o trabalho nunca é feito pelo grupo inteiro, as discordâncias, o fato de "ter que aturar" as diferenças e as chatices uns dos outros, etc. No contexto de outra atividade, durante a discussão de um vídeo, foi falado que o preconceito está por toda parte, até mesmo entre os jovens e dentro da escola. Assim, surgiu uma rivalidade explícita entre dois grupos de meninas (cada um representativo de um dos grupos de trabalho), umas definidas como as "foguentas", já que só pensam em namorar, e outras apresentadas como meninas sérias, que freqüentam a Igreja e estudam. Interrogamos o grupo sobre o porquê da existência de tantos preconceitos e a resposta obtida foi: "porque não existe diálogo, as pessoas não sabem dialogar" (Andréa, 14 anos).
A emergência da questão do preconceito no interior do grupo nos serviu como mote para trabalhar a cristalização de determinadas identificações, devolvendo isto a eles e interrogando-os a respeito disso. Na ocasião da proposição da tarefa seguinte à discussão entre os dois subgrupos, questionamos se o trabalho seria realizado em um, dois ou três grupos, fazendo alusão à discussão sobre o preconceito: "vamos continuar no mesmo preconceito aqui também?". Eles dizem que "isso já passou, já está resolvido..." (Mônica, 14 anos). Mantemos a interrogação e então se decide fazer o trabalho em um grupo só. O trabalho transcorre com dificuldades, há uma falta de motivação generalizada, sendo neste contexto que surge o tema da "burrice". Acreditamos que algo a respeito da rivalidade atuada entre os dois subgrupos pôde ser recolocado na medida em que o grupo todo teve que se deparar com o desconforto e a divisão em relação ao significante "burrice" como representante da condição feminina. Nada garante que a "burrice" tenha perdido a força enquanto norteador de posições e antagonismos dentro do grupo, mas, no último encontro, tivemos notícias de alguma ressonância a partir da marcação feita por nós: "Antes a gente não falava com elas e elas não falavam com a gente. Agora já sabemos qual é a delas e elas sabem qual é a nossa" (Ana, 14 anos).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir desta experiência em Caxias, constatamos que os grupos de reflexão com adolescentes podem favorecer a circulação de sentidos e os deslizamentos significantes, com alguma repercussão possível nos modos de gozo dos sujeitos que deles participam, atrelados às identificações e aos "lugares" ocupados por eles no campo da cultura. Isso porque "O sujeito do inconsciente não é, em si mesmo, pobre ou rico, branco ou negro, tampouco [...] O sujeito (seja ele quem for, pertença ele à classe que pertencer) procura sempre fixar-se em uma posição de gozo por relação à realidade, ao seu sintoma, à sua condição" (Elia, 2000: 26-27). Trata-se, portanto, de evidenciar o gozo extraído de determinadas posições identificatórias gozo esse que muitas vezes é reforçado pelo discurso social , possibilitando assim uma mudança de posição do sujeito.
Atuando nesta direção, acreditamos que o trabalho do psicanalista nos grupos de reflexão envolve intervenções criativas e inovadoras no sentido do manejo da transferência, bem como das pontuações e usos da palavra. Assim, é possível intervir no campo discursivo, sem nos ausentar nem desconsiderar o lugar que ocupamos nele, lugar de escuta e de causa de desejo, do qual se opera no sentido de uma produção e não apenas da revelação.
No momento atual, a presente pesquisa-intervenção nos grupos de reflexão com adolescentes busca recursos para sua continuidade e expansão, aguardando resposta quanto à possibilidade de um auxílio junto aos órgãos de fomento. Desta forma, visamos poder dar continuidade à investigação a respeito de novas formas de intervenção junto a adolescentes em diferentes contextos sociais e institucionais.
Entretanto, além da investigação clínica contida na proposta dos grupos de reflexão, pensamos que o material referente a esta pesquisa se presta a futuras investigações a respeito da participação do cultural, do social e do político no trabalho psíquico da adolescência. Enfim, talvez possamos dizer que o trabalho com adolescentes nos grupos de reflexão situa-se na fronteira entre o clínico e o político, permitindo que o discurso da psicanálise possa ser um dos instrumentos a contribuir para a superação dos impasses sociais que se colocam para a maioria dos jovens brasileiros.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Alberti, S. (2004). O adolescente e o Outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. [ Links ]
Broide, E. & Broide, J. (2004). Violência e juventude nas periferias: uma intervenção clínica. Em Comissão de Aperiódicos da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Org.). Adolescência: um problema de fronteiras (pp.70-79). Porto Alegre: APPOA. [ Links ]
Calligaris, C. (2000). Adolescência. São Paulo: Publifolha. [ Links ]
Costa, A. (2004). A transicionalidade na adolescência. Em Costa, A.; Backes, C.; Rilho, V. & Oliveira, L. F. L. (Orgs). Adolescência e experiências de borda (pp.165-196). Porto Alegre: UFRGS editora. [ Links ]
Elia, L. (2000). Psicanálise: clínica e pesquisa. Em Alberti, S. & Elia, L. Clínica e pesquisa em psicanálise (pp.10-17). Rio de Janeiro: Marca D'água. [ Links ]
Elia, L. & Santos, K. L. (2005). Bem-dizer uma experiência. Em Lima, M. M.& Altoé, S. Psicanálise, clínica e instituição (pp.107-128). Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos. [ Links ]
Freud, S. (1916-17). Conferências introdutórias à psicanálise. Conferência XXVII Transferência. Obras completas, ESB, v. XVI. Rio de Janeiro: Imago, 1972. [ Links ]
Galvão, A. C. (1999). O adolescente e a educação: relato de um diálogo entre psicanálise e educação. Em Anais do Congresso O adolescente e a modernidade (pp.126-132). Rio de Janeiro: Escola Lacaniana de Psicanálise. [ Links ]
Kehl, M. R. (2002). Sobre ética e psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia das Letras. [ Links ]
Lacan, J. (1964-65). Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. [ Links ]
Lesourd, S. (2004). A construção adolescente do laço social. Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Lima, M. M. & Altoé, S. (2005). Psicanálise, clínica e instituição. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos. [ Links ]
Magalhães, M. (2002). Adolescência: um cotidiano sob o olhar da psicanálise. Em Gryner, S. (org.). Lugar de palavra (pp.140-146). Rio de Janeiro: NAV (Núcleo de Atenção à Violência). [ Links ]
Miller, J. A. (1987). Percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. [ Links ]
Outeiral, J. (2003). O mal-estar na escola. Rio de Janeiro: Revinter. [ Links ]
Rabello de Castro, L. (2004). A aventura urbana. Rio de Janeiro: Faperj/Nau Editora. [ Links ]
Ruffino, R. (1995). Adolescência: notas em torno de um impasse. Adolescência, ano V, 11, 41-47. [ Links ]
Winnicott, D. (1962). Adolescência: transpondo a zona das calmarias. Em Família e desenvolvimento individual (pp. 115-127). São Paulo: Martins Fontes, 2001. [ Links ]
NOTAS
1 Ao projeto, que agrega vários pesquisadores do NIPIAC, vincula-se a pesquisa Novas Formas de Intervenção Clínica na Adolescência, desenvolvida por Luciana Gageiro Coutinho através de financiamento da FAPERJ.
2 Vale ressaltar que Outro na concepção de Lacan designa um lugar simbólico onde o sujeito se inscreve e que o determina, interna ou externamente. É o lugar do significante, da Lei, da linguagem e do inconsciente que é, para Lacan, estruturado como uma linguagem. O sujeito então é fruto dessa relação com o Outro que marca suas relações com o meio e com o desejo. Esse lugar simbólico é ocupado de diversas maneiras ao longo da história do sujeito, seja pelos pais (Outro primordial), pela cultura (Outro social), pelo encontro com o sexo e com o que este comporta de impossível (Outro sexo). Esses diversos encontros com o Outro convocam o sujeito a responder com os recursos inconscientes de que dispõe, ou seja, com seu desejo. Se o desejo não funciona ou se o sujeito resiste ao seu inconsciente, ou seja, não elabora a castração, é possível que o Outro adquira uma face totalizante, promovendo uma submissão imaginária, um assujeitamento.
3 Vide em anexo o roteiro de atividades para os oito encontros que foram inicialmente planejados, mas que acabaram se expandindo para dez, em função do andamento do trabalho no grupo e na escola.
4 Os nomes dos adolescentes são fictícios, sendo preservados a idade e o sexo.
Recebido em 15 de maio de 2007
Aceito para publicação em 1º de novembro de 2007
Roteiro de Grupo de Reflexão com jovens de 8ª série do Instituto Roberto da Silveira
As atividades propostas aqui dizem respeito à realização de um grupo de reflexão com 15 a 20 jovens da oitava série do Instituto Roberto da Silveira, aos quais a possibilidade de participação será ofertada de maneira livre inicialmente, sendo posteriormente acordado com o grupo um compromisso de freqüência durante oito encontros semanais. Cada encontro terá a duração de uma hora e será realizado dentro da grade horária referente ao turno da manhã, conforme acordado e agendado com a escola. O grupo será coordenado por duas pesquisadoras do NIPIAC.
Primeiro encontro:
Apresentação da proposta de trabalho, inserida numa pesquisa que visa conhecer melhor os jovens, saber o que eles pensam, como vêem a si mesmos e o mundo, como se situam na cidade. Falar brevemente das atividades a serem realizadas ali, fechar o horário com eles, presença, tempo de duração dos grupos, etc.
Apresentação dos integrantes do grupo. Apresentação de cada membro do grupo: onde mora, com quem mora, o que gosta de fazer. Reflexão sobre questões relativas à identidade/identificações, já começando a indagar sobre como eles se vêem na cidade: quem são eles? Por onde andam? Qual é o lugar deles na cidade? Como é para eles a circulação na cidade?
Segundo encontro:
Atividade: dividir os jovens em dois ou três grupos para a confecção de alguns painéis sobre O jovem na cidade, com colagens, desenhos, montagens em um papel pardo grande.
Instigá-los a colocar ali: como eles acham que os jovens ocupam a cidade? Onde estão os jovens? Com quem eles se relacionam? Quem são seus companheiros na cidade?
Terceiro encontro:
Discussão sobre os painéis. Relações entre o que foi expresso plasticamente e a realidade dos jovens participantes do grupo.
Quarto encontro:
Exibição de um vídeo da série Cidade dos homens, da Globofilmes. Episódio "Uólace e João Victor". O episódio trata de dois jovens: um que mora na favela e vai às ruas com os amigos para conseguir algum trocado enquanto a mãe trabalha durante a semana; outro de classe média que mora com a mãe e também sai com os amigos. Ambos param em frente a uma loja de calçados e gostam do mesmo tênis.
Roteiro para discussão: o que eles acharam dos personagens? O que acham das posturas e ações dos personagens? Os jovens são diferentes? Em quê? Isso faz diferença na maneira como cada um se coloca na cidade? E na relação com os outros? Há diferença no modo como eles percebem sua participação no mundo e na construção de suas vidas?
Quinto encontro:
Tarefa: elaborar em grupo a história de um jovem como eles. Cada grupo deve escrever uma história, que vai ser utilizada para discussão no próximo encontro. Itens que devem estar contidos na história: quem é? (nome, idade, família, nasceu onde); como é a vida dele ou dela? (O que faz, o que gosta, amizades, aonde vai...); como ele/ela vê o mundo em volta dele/dela? (Quais as idéias e os pensamentos deles/delas); o que ele/ela sonha para a vida dele/dela?; como ele/ela vai realizar o sonho dele/dela?; o que ele/ela pode fazer por si e pelos outros?; como acham que termina a história deste(a) jovem?
Sexto encontro:
Continuação da atividade anterior.
Sétimo encontro:
Cada grupo conta a história que produziu. Reflexão sobre as histórias e articulação com a situação de vida deles próprios.
Oitavo encontro:
Fechamento: reflexão sobre o trabalho como um todo. Como os jovens viram os encontros, sua participação, o que destes encontros foi proveitoso para si e para os outros. Discussão sobre o que fazer com o material confeccionado nos encontros ao longo do período de trabalho e sobre a possibilidade de expor as produções na escola para os alunos e professores.