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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.95 São Paulo jul./dez. 2018

 

PSICANÁLISE HOJE: CLÍNICA E FORMAÇÃO

 

Objeto subjetivo e a clínica das psicoses1

 

Subjective object and the psychoses clinic

 

Objeto subjetivo y la clínica de las psicosis

 

Objet subjectif et la clinique des psychoses

 

 

Fernanda Cristina Dias

Psicóloga e especialista em Psicopatologia e Saúde Pública pela Universidade de São Paulo. Foi aluna do Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiano (IBPW) e atualmente é aluna especial do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (Mestrado) da Universidade de São Paulo, sob a orientação do professor dr. Leopoldo Fulgencio. São Paulo. contato@fernandacristinadias.com

 

 


RESUMO

O presente trabalho apresenta o papel fundamental das instituições de saúde mental, nos casos de psicose, quando se permitem funcionar como objeto subjetivo nos momentos em que os pacientes necessitam regredir à dependência. Segundo a proposição teórico-clínica do psicanalista inglês D. W. Winnicott, entende-se que o paciente psicótico tem a necessidade de depender de um ambiente suficientemente bom para poder integrar-se em uma unidade identitária e assim dar continuidade ao processo de desenvolvimento emocional. Como apoio à linha teórica adotada foi utilizado o caso clínico, atendido por Winnicott, da paciente e psicanalista Margaret Little e sua internação momentânea em um hospital psiquiátrico.

Palavras-chave: instituições, saúde mental, teoria do desenvolvimento emocional, Winnicott, Margaret Little


ABSTRACT

The current work presents the key role that mental health institutions would play in cases of psychosis, when they work as a subjective object at times when patients need regression to dependence. According to the theoretical-clinical proposition of the English psychoanalyst D. W. Winnicott, the psychotic patient should depend on a good enough environment to be able to integrate himself into a single identity unit and then continue his maturational process. The theoretical guideline was based on the clinical procedures handled by Winnicott on the patient and psychoanalyst Margaret Little and her temporary hospitalization in a psychiatric hospital.

Keywords: institutions, mental health, maturational process theory, Winnicott, Margaret Little


RESUMEN

El trabajo presenta el rol fundamental de las instituciones de salud mental, en los casos de psicosis, cuando se les permite funcionar como objeto subjetivo en los momentos en que los pacientes necesitan regresar a la dependencia. Según la propuesta teórico-clínica del psicoanalista inglés D. W. Winnicott, se entiende que el paciente psicótico tiene la necesidad de depender de un ambiente suficientemente bueno para poder integrarse en una unidad identitaria y así dar continuidad al proceso de maduración personal. Como guía teórica fue utilizado el caso clínico atendido por Winnicott de la paciente y psicoanalista Margaret Little y su internación momentánea en un hospital psiquiátrico.

Palabras clave: instituciones, salud mental, teoría de la maduración personal, Winnicott, Margaret Little


RÉSUMÉ

Cet article présente le rôle fondamental des institutions de santé mentale dans les cas de psychose, lorsqu'elles sont autorisées à fonctionner comme un objet subjectif à des moments où les patients ont besoin de régresser à la dépendance. Selon la proposition théorico-clinique du psychanalyste anglais D. W. Winnicott, on comprend que le patient psychotique a besoin de dépendre d'un environnement suffisamment bon pour pouvoir s'intégrer dans une unité d'identité et ainsi poursuivre le processus de maturation. Comme ligne théorique, nous avons utilisé le cas clinique suivi par Winnicott de la patiente et psychanalyste Margaret Little et son internement temporaire dans un hôpital psychiatrique.

Mots-clés: institutions, santé mentale, théorie des processus de maturation, Winnicott, Margaret Little


 

 

O caso Margaret Little

Margaret Little (1901-1994), psiquiatra e psicanalista inglesa, publicou em 1990 um livro autobiográfico intitulado Psychotic anxieties and contain ment. A personal record of an analysis with Winnicott,2 a respeito de sua própria experiência como paciente, relatando três distintos processos analíticos: inicialmente com um analista junguiano, o qual ela denominou Dr. X (de 1936 a 1938); na sequência, com a psicanalista inglesa Ella Freeman Sharpe (de 1940 a 1947); e finalmente com D. W. Winnicott (de 1949 a 1955 e em 1957). Esse livro dedica-se mais à descrição pormenorizada de sua experiência com Winnicott como forma de elucidar as diferenças teórico-clínicas do setting analítico winnicottiano em casos que envolvem ansiedades psicóticas vantajosamente em relação ao setting analítico junguiano e ao da psicanálise clássica, inócuos quanto ao objetivo de acolher os núcleos psicóticos de Little devido às restrições da técnica e do papel do analista no manejo desses tipos de casos.

Segundo Naffah Neto (2008), em um artigo que discute as diferenças na técnica psicanalítica para casos de pacientes borderline trazendo como exemplo o caso de Margaret Little, as análises anteriores se valeram dos aspectos bem adaptados à realidade (falso self),3 não conseguindo se utilizar de uma escuta atenta aos momentos de despersonalização e angústias psicóticas que Little por vezes expressava devido a sua personalidade cindida.

O conceito de falso self na teoria winnicottiana advém do conceito de verdadeiro self. Segundo Winnicott, "no estágio inicial o self verdadeiro é a posição teórica de onde vem o gesto espontâneo e a ideia pessoal. O gesto espontâneo é o self verdadeiro em ação. Somente o self verdadeiro pode ser criativo e se sentir real" (Winnicott, 1965/1983b, p. 135, grifos nossos). Desta forma, a mãe que permite a seu bebê se expressar livremente e que sustenta a ilusão de onipotência, dá ao bebê o sentimento de criar o seu próprio mundo, segundo suas necessidades pessoais. Por exemplo, o bebê faminto que é amamentado por uma mãe suficientemente boa que apresenta o seio ao perceber as necessidades de seu filho. Esse gesto da mãe permite que ele tenha a ilusão de ter criado o seio no momento em que precisava.

Uma das funções do falso si-mesmo é proteger o verdadeiro si-mesmo e fazê-lo começar a existir nas relações com o mundo. À medida que o bebê vai-se individualizando como pessoa, separando-se de sua mãe de maneira gradual, o falso si-mesmo auxilia neste processo de mediação eu versus não-eu, garantindo certa adaptação do bebê ao que é externo sem perder totalmente sua individualidade ou capacidade de ser ele mesmo e de sentir-se real. Quando essa transição não ocorre de modo satisfatório, há a formação de um falso si-mesmo patológico que age de forma defensiva e submetida ao ambiente, atuando de maneira cindida e não integrada ao si-mesmo total, o próprio eu. Nestes casos, o falso si-mesmo sustenta uma vivência precária do existir, utilizando-se dos recursos mentais como única forma de captar o que vem do ambiente; ou seja, a única possibilidade de existir é encobrindo uma não existência.

No caso de Margaret Little, foi, portanto, na análise iniciada com Winnicott que pôde finalmente encontrar um lugar de sustentação para suas "não-formas". Conforme as sessões foram se sucedendo, Winnicott foi percebendo, segundo Little, sua necessidade de permanecer em um "estado inalterado" por um tempo até que a sessão pudesse finalmente ser iniciada atendendo suas necessidades primitivas de cuidado, o verdadeiro si-mesmo, realizando adaptações no manejo clínico para proporcionar as primeiras experiências de tranquilidade na presença real de um ambiente suficientemente bom, não invasivo, de forma que seu verdadeiro si-mesmo pôde emergir e ser integrado em sua personalidade total.

As adaptações realizadas por Winnicott bem como sua postura como analista foram determinantes para a relação de confiabilidade que estava sendo iniciada. É importante mencionar que durante os primeiros momentos de análise Little destruiu acidentalmente um vaso de flores do consultório de Winnicott, reposto imediatamente por ele no dia seguinte com um exemplar idêntico, permitindo que essa experiência pudesse significar que a relação que Winnicott estava disposto a estabelecer com Little poderia conter qualquer ato destrutivo vindo dela, mesmo que, segundo ele, tivesse havido a destruição de algo de que gostava.

Little relata também episódios de intensa depressão que a tornavam incapacitada para trabalhar, o que fez com que Winnicott realizasse atendimentos domiciliares nesse período.

Não conseguia ir me encontrar com D. W. para as minhas sessões. Ele foi à minha casa - cinco, seis e às vezes sete dias por semana, durante cerca de três meses. Cada sessão durava noventa minutos. Em quase todas, eu simplesmente ficava deitada chorando, amparada por ele. D. W. não me pressionou, ouviu minhas queixas, demonstrou que reconhecia o meu sofrimento e podia suportá-lo. (Little, 1992, p. 14)

Ao longo do relato de Little, a psicanalista aponta o quanto o termo "holding" empregado por Winnicott como uma tarefa importante a ser realizada pela mãe e experimentada novamente no processo analítico era um conceito metafórico e literal em sua prática clínica, porque, ao mesmo tempo em que sustentava a situação na sessão, também fornecia apoio físico, quando necessário, segurando suas mãos em momentos de muita angústia.

No relato de Little, chama a atenção sua declaração de que Winnicott costumava delegar o holding de um paciente dependente temporariamente a outra pessoa quando precisava se ausentar ou tirar férias, mas sempre se mantendo em contato com o paciente, para propiciar a experiência de permanência.

Durante o processo analítico com Winnicott foi muito importante que Little pudesse ser reconhecida por ele como alguém que estava muito doente e atormentada e que ao mesmo tempo apresentava vários aspectos muito saudáveis, que lhe permitiam um contato adaptado à realidade compartilhada por meio de sua profissão, principalmente. Essa percepção de Winnicott sobre seu estado borderline foi decisiva para que ela pudesse ser vista como realmente era, encontrando assim espaço para enlouquecer e ser acolhida enquanto tal, bem como para vestir o manto do falso si-mesmo e atender às exigências que a vida lhe impunha.

É nesse sentido que a participação do ambiente estendido na clínica de Winnicott assume o protagonismo no atendimento de pacientes borderline e psicóticos: o reconhecimento de que há algo que precisa ser experimentado em termos de cuidado para que as partes saudáveis do indivíduo possam ser integradas às partes menos saudáveis e para que haja a existência de uma pessoa total.

No caso de Little é grande a contribuição de seu relato a respeito da experiência de cinco semanas de internação em um hospital psiquiátrico por recomendação de Winnicott como medida de proteção - Winnicott se ausentaria por motivo de férias e tinha receio de que Little cometesse suicídio durante sua ausência. Desta forma, providenciou sua internação, garantindo que durante sua estada no hospital não seria submetida à eletroconvulsoterapia e que constantemente entraria em contato para saber como ela estava.

Mesmo com todo o cuidado à distância tomado por Winnicott, por meio do relato de Little, fica claro o quanto o ambiente hospitalar pode ser invasivo no momento de crise psicótica do paciente, quando se presta mais a conter do que a sustentar a situação:

Então, numa manhã, pedi para ficar sozinha e não ser perturbada. Eles prometeram atender meu pedido. Mas entraram em meu quarto nada menos do que oito pessoas, uma após a outra. Quando a oitava, uma empregada da enfermaria, estava no chão ao lado da minha cama, dei uma palmada no seu traseiro. Imediatamente o supervisor substituto veio. Senti que ele me ameaçava; havia "outros modos de tratar a doença mental além da análise, que às vezes eram necessários". Lembrei-lhe a proibição do tratamento eletroconvulsivo. Ao entardecer, estava morta de raiva. Atirei para longe a minha bandeja com o jantar, a luminária para leitura e tudo o que pude encontrar no quarto, numa orgia de destruição. Fui imediatamente colocada no isolamento para passar a noite. Durante todo o tempo fiquei paranoica, vendo as enfermeiras como "demônios". (Little, 1992, p. 16)

O que manteve a condição de holding nesse momento delicado de dependência absoluta de Little foi a interferência de Winnicott nas condições de sua estadia: além das recomendações feitas à direção do hospital quanto aos procedimentos médicos, deu de presente a Margaret Little um lenço e sempre enviava cartões-postais informando onde estava.

Little foi sendo assim sustentada em seu momento de regressão por objetos transicionais4 que foram sendo constituídos por uma extensão dela mesma e por partes de Winnicott, entrelaçadas pela relação tecida entre eles, de forma que a ausência física não fosse vivida de maneira desesperadora, permanecendo um registro representacional daquilo que já fora real. A manutenção dessa zona intermediária em um momento de regressão à dependência é importante para que o paciente não tenha a vivência de ter sido abandonado e para que tenha a experiência de ausência com certo grau de presença.

A experiência no hospital, inicialmente ameaçadora, foi tomando a forma de um ambiente estendido suficientemente bom, já que os cuidados básicos eram "totais e a interferência, mínima; tudo era fornecido, e nada era exigido". Sobre este aspecto, Little declara que "lá estava a total 'regressão para a dependência', uma extensão do que D. W. havia me proporcionado" (1992, p. 17).

Aos poucos Little pôde sentir-se segura no ambiente e sendo capaz de brincar (no sentido winnicottiano), passando seu tempo lendo, escrevendo e pintando nas paredes, como se pudesse retomar seu quarto de criança, mas agora conseguindo suportar as perturbações externas que existiam em seu entorno - antes a dinâmica perturbadora de sua casa da infância, agora a do hospital psiquiátrico.

Conforme foi-se sentindo sustentada pelo ambiente, Little foi percebendo que a destruição também é parte da criação (assim como a morte é parte da vida) e, quando ela é experimentada em um ambiente que a sustenta, pode ser integrada ao eu e representar um gesto espontâneo, uma inscrição pessoal no mundo. Posteriormente, Winnicott pôde dizer a ela que a quebra do vaso não havia passado despercebida e que ela havia quebrado um objeto de que gostava, sem, entretanto, haver retaliação. Nesse momento, Winnicott sinaliza que percebe seu gesto e sustenta seu potencial destruidor (e, portanto, criador), resultando em uma experiência pessoal que é vivida por um eu incipiente, sustentado de maneira contundente pelas experiências de destrutividade e criatividade vividas no hospital por meio de seus "limites amplos e flexíveis" (Little, 1992).

Após a passagem pelo hospital, Little pôde retomar suas sessões com Winnicott e caminhar para um processo analítico mais adequado às etapas do processo de desenvolvimento emocional que ia alcançando, em que a análise nos moldes clássicos pôde ser empregada. Aspectos edípicos foram sendo incorporados e os momentos de angústia e dor foram sendo superados pela brincadeira; as sessões passaram a ser realizadas apenas uma vez por semana, e seu trabalho como pintora e psicanalista foi ganhando forma. Sua análise vai caminhando para um fim, quando, após dezoito meses de atendimentos realizados uma vez por semana, Winnicott declara que já era o momento de Little assumir suas próprias responsabilidades - não mais por ele, apenas por ela.

 

Teoria do desenvolvimento emocional e o estágio de dependência absoluta5

Para cumprir com o objetivo deste artigo será detalhado apenas o estágio da dependência absoluta, já que a etiologia das psicoses encontra-se nesse ponto.

Partindo-se assim do marco do nascimento e, considerando que ele foi dado em situações normais em relação à experiência de continuar a ser do bebê, segundo Winnicott, existe então um ser posto no mundo e absolutamente dependente de sua mãe, formando uma composição "dois-em-um", uma extensão do seio, configurando assim o estágio de dependência absoluta.

Dessa forma, a mãe suficientemente boa6 (a mãe comum, segundo Winnicott), que consegue atingir o estado de preocupação materna primária, ou seja, que tem um alto grau de adaptação às necessidades do bebê, pode lhe oferecer a possibilidade de experimentar o mundo, inicialmente o seu próprio mundo subjetivo, e paulatinamente apresentar o mundo objetivo ou compartilhado por meio de sua capacidade amadurecida de identificar-se com seu filho, para que o indivíduo em potencial possa descobrir de um modo muito particular e pessoal que existe e então seguir os caminhos de sua própria existência.

Ao desempenhar alguns cuidados específicos, a mãe fornece ao bebê condições para que sejam executadas as tarefas fundamentais do continuar a ser, inerentes ao que Winnicott denominou "estágio da primeira mamada teórica"7 (momento inaugural de amamentação que não deve ser confundido com a primeira mamada concreta, mas sim com o conjunto delas). Este momento é extremamente importante para o processo de desenvolvimento, já que estabelece desde o princípio qual será o padrão de relação entre o bebê e sua mãe, determinante, portanto, para a relação futura com a realidade externa, uma vez que sua mãe é a primeira representante do que futuramente será denominado "não-eu".

Dando sequência às tarefas nas quais o bebê estará envolvido por meio dos cuidados maternos, inicialmente terá que integrar-se em uma unidade identitária, e para tal o cuidado desempenhado por sua mãe ao sustentá-lo em seu colo (holding), por exemplo, será condição essencial para que isso aconteça. Esta condição é tão importante, que instituirá, junto com os outros cuidados específicos relacionados à manipulação (handling) e a apresentação de objetos (object-presenting), o fortalecimento do ego rudimentar do bebê, que já estava lá, pronto para ser integrado rumo ao estágio do eu sou e do estabelecimento do si-mesmo verdadeiro.

Dessa forma, por meio de estados excitados o bebê começa a experimentar sensações e excitações corporais, provocadas pelo oferecimento de comida, por exemplo, que, após serem integradas às experiências emocionais ou afetivas, culminam em um estado de relaxamento, ou repouso, em que é possível o retorno algumas vezes a um estado de não-integração. Este jogo de idas e vindas entre integrar-se, reintegrar-se ou mesmo de não-integração cria as bases para a futura estruturação do si-mesmo, que é a conquista máxima no alcance do status de unidade.

Assim, o tempo corpóreo, instigado pelas necessidades instituais, é atendido. Somando-se a essa experiência, os braços que o sustentam incutem em certa medida uma borda para a experiência do existir, estabelecendo-se também uma ideia de espaço. No entanto, apesar de o corpo ser instigado pelas necessidades instintuais (fome, sede, dor etc.), a satisfação dos instintos não é a totalidade da experiência, já que a continuidade do ser só é sentida se existir uma elaboração imaginativa8 do que está sendo sentido pelo corpo.

Segundo Winnicott, inicialmente, o bebê faz uma elaboração imaginativa de suas experiências, dando um sentido pré-representacional, pré-verbal e pré-simbólico do que está sendo integrado com base nos sinais sentidos em seu próprio corpo. O dar sentido é uma condição extremamente pessoal, do próprio indivíduo, que dependerá da capacidade da mãe de propiciar tal condição, já que a elaboração imaginativa sempre parte de uma condição do estar vivo físico (corpo) em relação ao ambiente (mãe ambiente).

Os estados tranquilos e excitados que são vividos pelo bebê, segundo as condições do psique-soma, permitem que paulatinamente a mãe ambiente (que propicia a integração e a continuidade de ser do bebê por meio de seus cuidados) possa tornar-se a mãe-objeto quando começa a descolar-se subjetivamente de seu bebê e a apresentá-lo ao mundo objetivamente em pequenas doses, ou seja, quando começa a falhar e propiciar que a mente dê conta das características do mundo que se apresentam além do seio.

Nos casos de psicose, a falha ambiental se dá exatamente nesse ponto em que de alguma forma não foi possível atingir-se uma unidade, havendo desintegração na experiência de ser real e estar descolado objetivamente do mundo exterior. Desta forma, a continuidade de ser fica abalada e as relações com o mundo tornam-se invasivas e aniquiladoras devido à intensa imaturidade para lidar com algo que esteja fora do controle onipotente.

No caso de Margaret Little, sua mente teve papel fundamental em seu sistema de defesa, aparecendo prematuramente para lidar com as experiências de invasão vividas na relação com sua mãe, tornando-se um escudo diante da privação de uma real experiência psicossomática. É neste sentido que seus núcleos psicóticos por vezes apareceriam, mesmo diante de um intelecto fortemente estruturado para contê-los, denotando a fragilidade emocional que se escondia por trás de sua borda porosa.

 

A clínica do manejo e a regressão à dependência

Conforme observado na descrição do caso de Margaret Little e nas concepções oriundas da teoria do desenvolvimento emocional, a etiologia das psicoses relaciona-se a um estágio pré-representacional e pré-verbal, e, portanto, adaptações na clínica foram necessárias para que Winnicott pudesse atender à necessidade de seus pacientes psicóticos: não é a palavra (interpretação) que acolhe a loucura,9 e sim a experiência que se dá entre o analista e o paciente e inevitavelmente a forma como este encontro culmina em uma relação de confiabilidade.

Conforme observado, pela própria descrição da análise de Little (1992), percebem-se os recursos a que Winnicott recorreu para que um ambiente suficientemente bom pudesse acolher de maneira adequada suas necessidades, e, uma vez estabelecidas as condições para que o paciente pudesse regredir à dependência, Winnicott assegurava-se de que não apenas ele, mas um ambiente estendido pudesse funcionar como sustentação (holding) da relação de confiabilidade construída.

Segundo Barone (2011), a regressão à dependência e o estabelecimento de um holding é "fundamental pelo fato de existir no paciente uma tendência para desintegrar-se. No caso do paciente regredido, o não atendimento das necessidades do self reproduz a privação sofrida no início de sua vida" (p. 76, grifo nosso).

Winnicott, tomando cuidado para não reproduzir a privação sofrida por Margaret Little, se valeu não apenas de sua atuação como analista em seu consultório particular, mas assegurou uma espécie de "retaguarda", convocando uma amiga de Little ou mesmo providenciando uma hospitalização em um momento delicado da análise em que teve de ausentar-se, "ofertando"10 um ambiente suficientemente bom que transcende o setting e recorrendo à instituição como forma de compor o acolhimento de uma paciente que se encontrava regredida.

Adicionalmente, a regressão à dependência convoca o analista a comunicar-se com a fala silenciosa do paciente, aquela não expressa por palavras, de forma que as ansiedades e angústias possam aflorar e ser integradas a uma vivência psicossomática, reunidas pelo holding do analista. Assim como o bebê, o paciente regredido precisa ser reconhecido como um indivíduo preso a um amálgama, sendo importante que suas necessidades sejam aos poucos atendidas, registradas e acessadas futuramente, fornecendo elementos estruturantes para um si-mesmo em desenvolvimento.

Dessa forma, quando o analista se cala e assegura uma presença psicossomática atenta e real não é preciso recorrer à interpretação, que nesse caso pode ser uma invasão tão traumática quanto a experimentada nos estágios iniciais de desenvolvimento.

No caso de Margaret Little, seus recursos intelectuais, aliados a algumas experiências agradáveis com sua mãe, que se mostrava por vezes bem-humorada e dedicada a práticas de jardinagem, e a certa estabilidade vivenciada na relação com seu pai, permitiram que não enlouquecesse totalmente. Estas experiências eram mescladas por momentos extremamente caóticos vindos de sua mãe, que não foi capaz de desenvolver uma preocupação materna primária.

Para Winnicott, assim como fez com Margaret Little, propiciar que um paciente possa regredir à dependência é inseri-lo em um processo de cura ou retomada de um existir que possa ser feito com base em uma experiência pessoal satisfatória. O analista que se põe à disposição para esse tratamento deve permanecer atento à busca pelo paciente de unir-se a ele em uma espécie de objeto subjetivo (assim como a composição dois-em-um), e "tolerar o ódio do paciente sem revidar quando os traumas originais são revividos [Winnicott, 1947/1975] e suportar as suas próprias emoções quando elas são despertadas" (Little, 1992, p. 23).

Sobre o aspecto da cura, Winnicott explica que uma pessoa razoavelmente sadia possivelmente terá oportunidades durante a vida de experimentar situações que propiciem o descongelamento das situações de fracasso ambiental e de assim seguir seu processo de desenvolvimento emocional, já que consegue ter esperança nas relações humanas, enquanto em uma pessoa muito doente "há pouca esperança que se reproduza uma nova oportunidade" (1955, tradução nossa), exigindo do analista uma boa maternagem por meio de um setting adaptado, experiência esta que o paciente não tinha mais esperança de viver.

No caso de Margaret Little, essa experiência com Winnicott tornou possível a diminuição da sensação de superficialidade que sentia ao sustentar-se por seu falso si-mesmo, podendo destruir e ser destruída ilusoriamente por Winnicott, perceber sua sobrevivência e usá-lo como objeto posteriormente, ao constituir-se em uma unidade.

No entanto, em relação ao uso ou não de interpretações durante a análise, torna-se necessário mencionar que verbalizações que reconheçam situações reais às quais o paciente foi exposto no contexto traumático, mesmo em períodos de regressão à dependência, podem ser úteis para que o paciente recorra aos dados da realidade e assimile a invasão sentida anteriormente. Como aponta Barone (2011), Winnicott pôde reconhecer o quanto o ambiente inicial de Little era caracterizado por uma "mãe imprevisível, caótica, e que estabelece o caos ao seu redor", trazendo grande alívio à paciente, já que reconhecia "o grau de inadequação de seu ambiente de origem" (p. 82).

A respeito desse tópico, Winnicott diz que a

interpretação oportuna [well-timed] e correta no tratamento analítico dá um sentimento de ser sustentado [of being held] fisicamente, que é mais real (para o não-psicótico) do que se um holding real ou acalento [nursing] tivesse tido lugar. Uma compreensão vai mais profundo e, pela compreensão, demonstrada pelo uso da linguagem, o analista sustenta [holds] fisicamente, no passado, isto é, no momento da necessidade de ser sustentado [to be held], quando amor significou cuidado físico e adaptação. (Winnicott, 1988/1990, pp. 61-2 citado por Barone, 2011, p. 82, grifo do autor)

Durante o processo analítico de Margaret Little, percebe-se o quanto o "cuidado estendido", incluindo a instituição, pode ser um recurso eficaz na garantia de que haveria um cuidado permanente e previsível, sendo possível sustentar esta condição de dependência mais facilmente.

Winnicott, assim, por meio de adaptações no setting analítico mostrou-se sensível à natureza humana, reconhecendo a dificuldade inerente às pessoas de erguerem-se diante das situações de alienação e desamparo, aquelas que beiram o insuportável, mas que quando bem aproveitadas podem oferecer maneiras criativas de criar o mundo, destruí-lo novamente e recriá-lo em outras bases.

Winnicott usa o exemplar "dois-em-um" para que a reunião dos fragmentos de um corpo espalhado no ambiente ocorra e propõe que assim seja feito na clínica - que o analista seja capaz de oferecer um ambiente confiável e seguro para que o psicótico possa regredir à dependência e, por meio desta experiência, poder começar um processo em direção à aquisição de uma unidade.

Há, em Winnicott, a presença da permanência como um pilar na relação que se quer construir com o psicótico: oferecia possibilidades de instituições por meio do setting estendido e suas adaptações, internações quando necessárias, convocação de amigos etc., conforme foi amplamente discutido na análise do caso Margaret Little. Há circulação e promoção de encontros, e tem-se claro que o foco é a reunião de um corpo subjetivo despedaçado que precisa existir.

É nesse sentido que talvez a forma como atualmente alguns equipamentos em saúde mental se configuram denote um distanciamento significativo da real necessidade da pessoa que sofre com a loucura, passando despercebida esta condição tão peculiar da psicose: a necessidade de sustentação metafórica e às vezes literal de um ambiente.

Não seria muito difícil de imaginar, considerando o que foi discutido até então, como deve ser para um paciente psicótico que ainda não adquiriu o status de unidade ter que dividir-se, fragmentar-se cada vez mais, para adequar-se às encomendas sociais dos serviços de saúde ou mesmo da vida cotidiana. É possível que esse sujeito se adapte às exigências do meio e desenvolva um falso si-mesmo patológico por meio da submissão para poder atender minimamente às ofertas e até parecer estar melhorando. Certamente, essa condição poderia reforçar seu estado de esfacelamento, caso o precário de sua condição não possa encontrar pontos de fluxo até deparar com um ambiente estável que possa reunir suas partes e resgatá-lo das verdadeiras zonas de fragilidade em que se encontra congelado.

O psicótico precisa regredir e depender de uma relação confiável para então um dia poder atingir o status de cidadão do mundo (da forma como conseguir chegar até aí). Este talvez seja o maior desafio da escuta psicanalítica (institucional ou de consultório) em relação à clinica das psicoses e dos casos borderline: o de poder ser usada como objeto subjetivo no sentido winnicottiano do termo, de tolerar as não-formas, de sobreviver aos ataques destrutivos e às crises tão presentes na loucura e às convocações para uma relação de aproximação de corpos.

Para que essa sobrevivência de fato aconteça é preciso considerar uma relação entre instituições vivas, seja pela figura do analista ou de um conjunto de pessoas. A vivacidade pressupõe manter um ambiente que permite minimamente o aparecimento de uma relação espontânea entre pessoas. Winnicott (1962/1983a) fala em seu texto sobre os objetivos do tratamento psicanalítico que

Ao praticar psicanálise, tenho o propósito de:

me manter vivo;

me manter bem;

me manter desperto.

Objetivo ser eu mesmo e me portar bem.

Uma vez iniciada uma análise espero continuar com ela, sobreviver a ela e terminá-la.

Gosto de fazer análise e sempre anseio pelo seu fim. A análise só pela análise para mim não tem sentido. Faço análise porque é do que o paciente necessita. Se o paciente não necessita análise, então faço alguma outra coisa. (p. 152)

Winnicott ressalta a importância de reconhecer-se na condição de cuidador para assumir esta função na relação com o outro, que passa muito mais, em princípio, pela qualidade de estar vivo e desenvolver uma escuta atenta ao indivíduo do que aplicar especificamente uma técnica ou assegurar-se que o paciente se adapte a determinada condição de tratamento. No caso dos pacientes psicóticos, é preciso sempre se manter em um estado de transição em que o ambiente suficientemente bom, embora represente a realidade e tenha que controlar a sessão ou o grupo pelo relógio, possa ser também uma extensão do indivíduo, um objeto subjetivo.

Finalmente, retomando algumas ideias de Winnicott, pode-se dizer que no tratamento das psicoses e no entendimento da natureza humana em geral, assim como nas artes, deve-se levar em conta que não há nunca uma obra acabada. Há sempre um espaço de criatividade que deve existir entre a obra e o artista, ou entre a obra e seu intérprete, porque a obra nunca é estática; sempre há possibilidade de ser recriada a cada contemplação, a cada interrogação imposta pelo mundo, assumindo assim um caráter irreprodutível.

Cada ato, delírio ou alucinação faz comunicações únicas e singulares, atravessa lugares e precisa encontrar diferentes rotas de fuga para que o fluxo subjetivo que busca incessantemente por uma sustentação seja finalmente recolhido e armazenado, e então um novo ciclo de "passar por" recomeça. Este seria o ensaio cotidiano para que fosse possível construir uma coreografia da loucura em relação ao "estar-no-mundo" e finalmente um dia estrear no ballet da vida e seguir se apresentando ad infinitum.

 

Referências

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Winnicott, D. W. (1975). Hate in the countertransference. In D. W. Winnicott, Collected papers: through pediatrics to psycho-analysis. London: Hogarth/Institute of Psycho-Analysis. (Trabalho original publicado em 1947)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1983a). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1965)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1983b). Os objetivos de um tratamento psicanalítico. In D. W. Winnicott, O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1962)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1988)        [ Links ]

 

 

Recebido em: 30/4/2018
Aceito em: 12/8/2018

 

 

1 Este artigo é derivado do trabalho de conclusão de curso intitulado "Contornos, muros e bordas: o caso Margaret Little e o papel da instituição no tratamento das psicoses", apresentado ao Programa de Pós-Graduação Latu Sensu da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Especialista em Psicopatologia e Saúde Pública.
2 Foi mantido o título em inglês, uma vez que a versão em português produzida pela Editora Imago apresenta alguns equívocos de tradução. Em português, o título foi traduzido como "Ansiedades psicóticas e prevenção: registro pessoal de uma análise com Winnicott", sendo que o mais adequado seria "Ansiedades psicóticas e sustentação: registro pessoal de uma análise com Winnicott" (grifo nosso).
3 Para este trabalho, será adotada a tradução si-mesmo para a palavra self sempre que o autor estiver desenvolvendo uma argumentação teórica com base em suas próprias palavras e será mantida a palavra self no caso de citações. A tradução do termo evita anglicismos e enfatiza o conceito de ser algo muito particular e próprio de cada sujeito.
4 Para Winnicott (1971/1972), as expressões "objetos transicionais" e "fenômenos transicionais" designam "a zona intermediária de experiência entre o polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e a verdadeira relação de objeto, entre a atividade criadora primária e a projeção do que já fora introjetado, entre o desconhecimento primário da dúvida e o reconhecimento desta" (p. 18). Pode-se dizer que é a área intermediária entre o subjetivo e objetivo, com características do eu e do ambiente.
5 Esta parte do artigo contém extratos de um trabalho da autora publicado na revista eletrônica Winnicott e-Prints (Dias, 2015).
6 Pode-se pensar também, em uma esfera mais ampla e contemporânea, no conceito de cuidador suficientemente bom, ao pensar-se nas estruturas familiares atuais em que, na ausência da mãe, os cuidados inicias podem ser exercidos por outra pessoa que assuma a incumbência de fornecer um cuidado contínuo ao bebê, acontecendo muitas vezes de ser o próprio pai, a babá, a avó, a tia etc., ou, em casos de famílias homoparentais masculinas, um dos homens que mais se identifique com a maternagem.
7 Pensando que é possível que o bebê seja cuidado por alguém que não seja sua mãe e que mesmo sua mãe possa estar impossibilitada de amamentá-lo por algum motivo, é importante mencionar que a primeira mamada teórica pode ser realizada por meio da mamadeira, e não apenas por meio do seio.
8 Para Winnicott, no início da vida, o bebê ainda não tem a capacidade de fantasiar, sendo este um recurso muito sofisticado a ser adquirido apenas posteriormente, porque requer o pleno desenvolvimento da capacidade de simbolizar e recorrer a representações. Desta forma, todas as vivências sentidas por meio do corpo (excitação e relaxamento de todas as funções) são aos poucos registradas e elaboradas, fornecendo a base para o psiquismo. Para Winnicott (1988/1990), "a psique, portanto, está fundamentalmente unida ao corpo através de sua relação tanto com os tecidos e órgãos quanto ao cérebro, bem como através do entrelaçamento que se estabelece entre ela e o corpo graças a novos relacionamentos produzidos pela fantasia e pela mente do indivíduo, consciente e inconsciente" (p. 70).
9 Incluem-se também casos de neuroses graves ou neuroses com núcleos psicóticos em que se espera que durante o processo terapêutico o paciente possa "enlouquecer" (ou entrar em contato com esses conteúdos psicóticos), e, desta forma, há a necessidade de uma clínica do manejo anterior à clínica psicanalítica tradicional (acesso ao conteúdo presente no inconsciente reprimido causador de conflitos na esfera edípica, por meio de interpretação).
10 Termo utilizado por Campos (2006) ao referir-se à forma como os serviços de saúde podem responder às demandas dos usuários da rede pública. Apesar de Campos (2006) discorrer, nesse contexto, sobre saúde coletiva, parece ser muito adequado utilizar o termo com o olhar winnicottiano. Pressupõe-se assim um pensar amplo e coconstruído de acordo com a necessidade do sujeito, uma vez que Winnicott parece se valer dessa "abertura" ao entender que o setting pode ser estendido e repensado segundo as necessidades de Margaret Little. Assim como sugere Campos (2006), Winnicott recorre à rede (neste caso, amigos, hospital psiquiátrico) para compor a oferta de serviços necessários para o tratamento de Little.

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