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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.46 São Paulo jan./jun. 2018

 

10.5935/2175-3520.20180010 ARTIGOS

 

A escola promotora de processos-chave de resiliência em famílias organizadas em modelos não convencionais

 

The school promotes resilience of key processes in families organized in unconventional models

 

La escuela promotora de procesos claves de resiliencia en famílias organizadas en modelo no convencionales

 

 

Isaias Batista de Oliveira Júnior

ORCID 0000-0002-9068-1983. Universidade Estadual do Paraná - UNESPAR. jr_oliveira1979@hotmail.com

 

 


RESUMO

A família da pós-modernidade é permeada por diversas configurações familiares. No entanto, a escola continua a difundir um ideário de família distante dessa realidade. No presente trabalho, defende-se o contexto escolar como um contexto promotor da resiliência de instituições familiares que se organizam em modelos não convencionais. Toma-se a Ecologia do Desenvolvimento Humano como suporte para a compreensão do processo de formação social do sujeito mediante a interação do contexto familiar e escolar. Recorre-se aos estudos de resiliência familiar para estabelecer a relação positiva entre família e escola na promoção da resiliência de famílias não convencionais. Conclui-se que a escola necessita adotar estratégias que promovam os processos-chave da resiliência, mediante inclusão de todas as formas de família em seus ritos.

Palavras-chave: escola, família, modelos familiares não convencionais, resiliência familiar.


ABSTRACT

A family of postmodernity can be made up of a genus of people who give rise to countless family care. However, the school continues to spread an ideal of falmily that is too distant from reality. The present work argues that the school context is a context that promotes the resilience of family institutions organized in unconventional models. The Ecology of Human Development is taken as support tothe understanding of the student's social development process through the interaction of the family and school context, resorting to family resilience studies to establish a positive relationship between family and school in promoting the resilience of unconventional families. It concludes that the school needs to adopt strategies that promote the key processes of resilience, by incorporating all forms of family into their rites.

Keywords: school, family, unconventional family model, family resilience.


RESUMEN

Una família en la pos modernidad puede ser constituida por distintas configuraciones. Sin embargo, la escuela sigue difundiéndo un ideario de família distinto de la realidad. En este trabajo, se defiende el contexto escolar como un marco promotor de la resiliencia de la instituiciones familiares que se organizan bajo modelos convencionales. Se toma La Ecología del Desarrollo Humano como soporte para la comprensión del proceso de desarrollo social del alumno a través de la interacción del contexto familiar y escolar. Se recurre a los estudios de la resiliencia familiar para establecer la relación positiva entre família y escuela en la promoción de la resiliencia de famílias no convencionales. Se concluye que una escuela necesita adoptar estrategias que promuevan los procesos clave de resiliencia, mediante la incorporación de todas las formas de família en sus ritos.

Palabras clave: escuela, família, modelos de família no convencionales, resiliencia familiar.


 

 

A sociedade pós-moderna encontra-se diante de uma série de formas de ser família que estão em contradição direta com as até o momento admitidas como únicas e verdadeiras. A família contemporânea passa a ser considerada um gênero permeado por várias espécies, e mesmo diante daquilo que considera 'seu' modelo mais estável e familiar, existem tantas subespécies. Os progressos legislativos, genéticos e amorosos libertam ou aceleram a imaginação (Oliveira Júnior, 2016;Oliveira Júnior, 2017;Oliveira Júnior & Coimbra, 2018).

A família não é mais singular, é plural, e essa multiplicidade não se refere simplesmente ao ato de nomear cada membro que a compõe, mas expressa as ideias que ultrapassam a consanguinidade próxima/distante, igual/desigual, que servem de evidência para um sistema inteiramente organizado e capaz de expressar centenas de diferentes relações de parentesco que permitem aos indivíduos se organizar como família(Oliveira Júnior & Coimbra, 2018).

Porém, para quem atua no contexto escolar, é perceptível a visão unívoca da escola, em seus ritos,ao assumir como ideal um modelo familiar nuclear do qual grande parte dos alunos se distancia. Assim, é comum observar, em encontros pedagógicos, educadores alegando que a família está por detrás do sucesso ou do fracasso escolar, acusando as famílias organizadas em modelos não convencionais (não compreendidas no modelo familiar nuclear, tradicional ou patriarcal)pelas dificuldades de seus alunos. Além disto, esses profissionais têm crenças pessimistas sobre essas famílias, que, aliadas a outros aspectos, acabam sendo caracterizadas como desestruturadas, desviantes e/ou instáveis (Oliveira Junior, Ferreira & Coimbra, 2016; Honório, Yaegashi, Caetano, Cintra & Franco, 2017).

Portanto, são recorrentes práticas discursivas que apontam determinadas configurações familiares como responsáveis por comportamentos indevidos, como por exemplo: "ele é assim porque os pais são separados", "quem cria é a avó, por isso ele não tem limites", "a mãe tem um filho com cada pai", dentre outros. Dessa maneira, pode-se pensar na criação de dois mitos escolares: um é a crença de que as famílias saudáveis são isentas de problemas, e outro é que o modelo idealizado da família tradicional é a única forma possível de ser uma família saudável.

Diante desse cenário questiona-se: como os contextos escolares e familiares se integram e contribuem para o desenvolvimento dos sujeitos? Quais aspectos caracterizam a resiliência individual? Pode o contexto escolar contribuir para o constructo da resiliência familiar?

Partindo dessa problematização, no presente artigo caracteriza-se o contexto escolar como ambiente promotor da resiliência de instituições familiares que se organizam em modelos não convencionais, compreendendo-se a relação entre o contexto escolar e familiar no desenvolvimento humano; caracteriza-se a resiliência e os processos-chave no desenvolvimento e na manutenção da resiliência familiar e aponta-se a escola como agente promotor da resiliência familiar. Para tanto, toma-se como suporte a Ecologia do Desenvolvimento Humano, tal como proposta por Bronfenbrenner (1994) e estudada por Collodel, Vieira, Crepaldi e Schneide (2013). Para auxiliar a compreensão do processo de formação do sujeito mediante a interação positiva entre família e escola na promoção da resiliência de famílias organizadas em modelos não convencionais recorre-se aos estudos de Walsh (2012).

 

A FAMÍLIA E A ESCOLA COMO MICROSSISTEMAS PRIMÁRIOS NO DESENVOLVIMENTO HUMANO

Partindo do pressuposto de que tanto a família como a escola ocupam lugares distintos e cumprem funções diferentes, é necessário considerar que a interação entre elas e a complementaridade de suas funções na educação de crianças é algo que deve ser equacionado. Para Bronfenbrenner (1994), proponente da Teoria da Ecologia do Desenvolvimento Humano, os contextos que sustentam sua teoria são como uma porção de estruturas encaixadas, umas às outras, como se imageticamente o sujeito estivesse centrado nessa relação e partindo dele emergem círculos concêntricos se diferenciando em quatro níveis distintos, mas sobrepostos: micro, meso, exo e macrossistemas. Esses contextos moldam, mudam, criam e recriam o meio no qual o indivíduo em desenvolvimento se encontra, em um processo de reciprocidade ou de interação mútua (Collodel et al., 2013).

O nível mais interno e próximo ao sujeito é conhecido como microssistema e pode ser representado pela família, escola e pelos grupos de pares. Ao mesmo tempo, pode ser considerado um complexo de relações estabelecidas entre uma pessoa em desenvolvimento e o meio ambiente em que está inserida, como, por exemplo, a casa, a escola, o local de trabalho, etc. Esses espaços são definidos por dinâmicas especiais nos quais os participantes se envolvem particularmente em determinadas atividades e desempenham funções específicas, por exemplo, filha, pai, professor, aluno, etc., por certo período de tempo (Bronfenbrenner, 1994; Collodel et al., 2013).

O segundo nível, caracterizado como mesossistema, está atrelado às interações ou inter-relações entre dois ou mais contextos proximais (microssistemas), em que o indivíduo tem participação ativa direta, como no caso das relações estabelecidas entre o microssistema familiar e o escolar (Bronfenbrenner, 1994; Collodel et al., 2013).

O terceiro contexto é definido como ecossistema e contribui para a interconexão de vínculos entre ambiente imediato, em que o sujeito desempenha seu papel ativamente, e outros ambientes que não têm participação direta, mas que apresentam peculiaridades que influenciam seu cotidiano, tais como: sistema escolar, instituições médicas, meios de comunicação, comunidade, etc. (Bronfenbrenner, 1994;Collodel et al., 2013).

O contexto externo é o macrossistema, caracterizado por um sistema de ideias, valores, crenças e ideologias compartilhadas por um conjunto de pessoas, subjacentes aos contextos micro, meso e exossistema, por exemplo: as condições sociais, os valores culturais, os costumes, os ideais, entre outros (Bronfenbrenner, 1994; Collodel et al., 2013).

Componente do microssistema, a família é referenciada como um local de maior relevância para a criança, acima de tudo, por ser a instituição responsável pela transmissão de genes, bem como porque tem forte influência emocional sobre seu comportamento, sendo incumbida a ela a regulação de aspectos cognitivos, psíquicos e físicos cotidianos, atrelados aos cuidados com o corpo, a higiene, a alimentação, o descanso e o afeto, os constituintes básicos para a promoção e manutenção das condições social e produtiva.

Como primeira mediadora entre o homem e a cultura, a família constitui a unidade dinâmica das relações permeadas pelas condições materiais, históricas e culturais de um dado grupo social. Com características, práticas e significados culturais próprios, a família é o berço da aprendizagem humana, pois as experiências propiciadas por ela contribuem para a formação de um arcabouço comportamental (Birolli, 2014).

A família, ao estabelecer relações com os outros contextos, promove a construção de aspectos individuais e coletivos que estruturam as formas de subjetivação e interação social, em um processo bidirecional, pois, ao mesmo tempo em que as vivências familiares incidem nas sociedades, transformando-as; essas, por sua vez, influenciam as dinâmicas familiares futuras (Oliveira Júnior, 2017).

A escola, por sua vez é considerada como o espaço onde se cuida das novas gerações; uma instância mantenedora das aprendizagens e um lugar de direcionamento da juventude em prol da preparação para o futuro. Portanto, ela tem dupla injunção: social - efetivada por meio da transmissão de determinada herança cultural às novas gerações por intermédio do trabalho de várias instituições; e individual - concretizada na aquisição de conhecimentos, formação de disposições, visões, habilidades e valores instáveis (Oliveira Junior, Ferreira & Coimbra, 2016).

Sendo assim, reitera-se constantemente a importância da comunicação e da participação entre os contextos escolar e familiar como uma fonte substancial de retroalimentação (ou feedback) permanente, promovendo a transição da criança entre um sistema e outro e, consequentemente, seu desenvolvimento. Por isso, no âmbito das políticas educacionais, a família tem sido constantemente apontada como fonte e solução de problemas educacionais. Partindo dessa premissa, frequentemente observa-se em documentos legais e projetos pedagógicos a inclusão da gestão democrática nas decisões escolares, incluindo a família como agentes importantes do processo, cuja participação é fundamental para o enfrentamento de problemas, como, por exemplo, o fracasso escolar (Dal'igna, 2011).

Está posto, a partir dessas práticas, o maior ponto de incongruência entre a escola e família, pois ao mesmo tempo em que educadores reiteram a importância da participação familiar na educação escolar, estabelecem prescrições visando regular essa participação, o que torna seus anseios contraditórios, pois "[...] os mesmos discursos que possibilitam a escola responsabilizar a família pelo desempenho escolar contribuem para posicionar algumas famílias como desqualificadas, a priori, para fazê-lo [...]" (Dal'igna, 2011, p. 26).

Oliveira Junior, Ferreira e Coimbra (2016)apontam em seu estudo que, parte considerável de educadores fazem referências a uma suposta crise do sistema educacional, ao afirmar que as famílias se isentam da responsabilidade de educar as crianças, não impõem limites aos filhos, são distantes da escola e não participam do acompanhamento das aprendizagens, ou que atribuem a responsabilidade de formar a criança exclusivamente para a escola, dentre outros.

Nesses jargões pedagógicos, parece estar naturalizada a ideia de ausência da família atual no acompanhamento dos filhos, o que repercute no processo de escolarização e, de certo modo, na dimensão cognitiva e socioafetiva dessas novas gerações e, como decorrência do encaminhamento dessas, o fracasso escolar (Oliveira Júnior & Coimbra, 2018).

Ao investigar a relação família-escola por meio de discussões com docentes sobre as características de crianças narradas como repetentes, Dal'Igna (2011) aponta que frequentemente o conceito de família desestruturada é mobilizado no discurso docente para responsabilizar as dificuldades de aprendizagem e baixo desempenho escolar dos alunos. Mesmo que os docentes não explicitavam no debate a noção de família nuclear, essa acabava servindo como referencial por meio do qual as demais famílias passam a ser avaliadas, atribuindo o sucesso ou o fracasso escolar a partir da organização familiar: a criança que não tem pai ou mãe, cuja mãe nem sabe quem é o pai, que é criada pela avó, que mora com a tia, cujo pai ou mãe é homossexual, cuja mãe abandonou, cujos pais são catadores de lixo ou são analfabetos, dentre outras.

Schwertner, Horn e Giongo (2013, p. 78) mencionam que são frequentes as práticas discursivas que "[...] ocupam grande fôlego pedagógico nas reuniões entre corpo docente, conselhos de classe, diálogos informais nos diversos ambientes escolares e nos meios de comunicação [...]", ao afirmar que pais e mães estão terceirizando a educação de seus filhos à escola, uma vez que trabalham demais e não têm tempo para cuidarem de suas crianças. Ainda, quando determinados comportamentos considerados desviantes são apresentados por algum aluno na escola ou quando uma criança ou um adolescente manifesta problemas de aprendizagem, logo se torna alvo do pensamento dirigido dos educadores para os possíveis desajustes de suas famílias.

Mesmo diante dessas discrepâncias, famílias e escolas comumente difundem um discurso de colaboração que prega a necessidade do diálogo e da parceria entre os dois contextos, em função de um maior ajustamento e de um estreitamento entre as ações educativas produzidas por essas duas agências socializadoras. Assim, é crescente o número de iniciativas que abrem aos pais a possibilidade de intervir, em certa medida, nas decisões e no funcionamento das escolas (Oliveira Júnior, 2016, 2017).

Entretanto, observa-se que as representações de família, perpetuadas por essas estratégias, estão coladas a uma determinada configuração ideal: um pai, uma mãe e seus filhos, formando um arranjo de proteção e cuidados, garantido por essa estrutura - típico daqueles arranjos familiares de comerciais que vendem margarina, residenciais, eletrodomésticos, alimentos; que fazem compras no supermercado; entre outros, que acabam criando um imaginário de perfeita harmonia, como apontam Oliveira Júnior, Moraes e Coimbra (2015). A disseminação do ideário da "família margarina" é um chamariz midiático para vender a ideia de felicidade, de estabilidade e harmonia familiar, e o desvio desse padrão, pelas famílias organizadas em modelos não convencionais, é frequentemente visto pela comunidade escolar como sintoma de inferioridade, desestruturação, desorganização social ou atraso (Schwertner, Horn & Giongo, 2013).

Portanto, há um hiato no que tange às interconexões desenvolvidas entre a família e a escola, e as comunicações entre as duas instâncias demonstram-se precárias, centradas em reuniões bimestrais entre pais e mestres, nas quais prevalece nesses encontros uma postura hierárquica na regência da escola sobre as famílias.

Fica evidente, nessas estratégias de integração família-escola, que os conceitos de "família" têm sido pouco trabalhados, uma vez que ao se estabelecer essa parceria, torna-se necessário conhecer a fundo os contextos nesse processo, pois como defendem Oliveira Júnior & Coimbra (2018)esse tipo de política impõe tensões ao adotar um modelo de família afluente, do qual se distancia um grande número de alunos.

Pode-se, então, estabelecer alguns questionamentos a partir desses apontamentos: quais famílias estão presentes nas escolas? A escola segue de encontro ou ao encontro delas? Estão sendo lidadas com sabedoria as transformações da família contemporânea? Por que a escola ainda localiza na chamada "configuração familiar" um ponto nevrálgico ou uma possível solução para resolver os problemas de (in)disciplina na escola?

Muitas das respostas a tais questionamentos apontam para a ineficiência da implementação de estratégias educacionais que objetivam integrar a família no contexto escolar, uma vez que tende a afastar do seu interior as famílias organizadas em modelos não convencionais, que por ela são consideradas desordenadas. Consequentemente, o processo de desenvolvimento dos membros dessas instituições se torna comprometido, devido a sua dissociação.

É necessário que a escola compreenda as variáveis que compõem as famílias na contemporaneidade o que possibilitaria a efetivação de estratégias apropriadas de participação conjunta, bem como o fornecimento de orientações específicas, respeitando as particularidades dessa instituição, observando suas características culturais, os papéis e sua disponibilidade efetiva para concretizar atividades escolares que visem promover a resiliência de famílias organizadas em modelos não convencionais.

 

PROCESSOS DE RESILIÊNCIA EM FAMÍLIAS NÃO CONVENCIONAIS

Libório e Ungar (2010) apontam que a incorporação do conceito de resiliência nos estudos da área da Psicologia datam do início dos anos 1970, embora seja mais recente ainda a inclusão de debates sobre o tema em congressos científicos, a partir do final dos anos 1990, em que pesquisadores começaram a observar e estudar indivíduos e grupos que mesmo expostos às situações traumáticas, pessoais, familiares e sociais conseguiam se desenvolver bem e continuar crescendo de forma saudável e adaptada.

Da mesma maneira que o organismo físico se reorganiza funcionalmente ou desenvolve uma flexibilidade permitindo que ele mude ou se adapte em determinadas situações, chamado de potencial de plasticidade, o comportamento também tem essa capacidade de rearranjo - definido como resiliência. Ela é uma espécie de recurso protetor que possibilita "[...] manter e recuperar o nível de adaptação normal, isto é, uma plasticidade comportamental que nos permite responder aos diferentes eventos da vida. É a nossa capacidade de resiliência que garante o equilíbrio entre ganhos e perdas ao longo da vida [...]" (Simão & Saldanha, 2012, p. 292).

Os estudos sobre essa "capacidade" foram incorporados pelas Ciências Humanas, que passaram a empregar o termo resiliência ou resilientes às pessoas, às famílias, aos grupos, às culturas e às sociedades que, diante das distintas formas, recursos, limitações e desafios psicossociais alçados em seu cotidiano, fazem emergir elementos restauradores que potencializam o desenvolvimento saudável do indivíduo ou do grupo (Libório & Ungar, 2010).

Portanto, o uso do termo resiliência nas ciências humanas pode ser considerado relativamente novo, datado das últimas décadas, sendo importado das ciências exatas, como a Física e a Engenharia, que descrevia como determinadas estruturas e/ou materiais se mantinham inabalados, mesmo diante das intempéries, e de seu uso nas diferentes atividades sociais, consideradas como resilientes (Libório & Ungar, 2010).

No entanto, não há um consenso entre os pesquisadores se a resiliência pode ser considerada como um processo ou um traço, se ela se manifesta em determinadas situações ou se é uma característica permanente, se pode ser inata ou aprendida.

Para Libório e Ungar (2010), a resiliência não está atrelada unicamente a traços individuais, pelo contrário, está associada às características do lugar social e político ocupado pelos sujeitos. Essa forma de conceber resiliência, associada a fatores outros e não como um aspecto individual, minimiza a tendência de atribuir ao indivíduo, de forma singular, a responsabilidade por seu insucesso.

Poucos estudos sobre resiliência têm levado em conta a família como um recurso necessário no desenvolvimento e manutenção das possibilidades de resiliência em crianças e adultos e em seus ambientes, caracterizando-se como um campo fértil para futuras pesquisas. Dentre as investigações que debruçaram seus objetos na resiliência individual, poucas têm considerado explicitamente as contribuições da família, dando ênfase, em sua quase totalidade, aos aspectos deficitários e negativos da convivência familiar, como doenças, sintomas, carências.

Walsh (2012) defende que o ambiente familiar desempenha um papel sumamente importante no desenvolvimento individual e coletivo, pois é nela que se transmitem os princípios, os valores, o respeito, a responsabilidade e a capacidade para desenvolver sua identidade e os processos de resiliência da melhor forma possível.

Walsh (2012) aponta como domínios necessários para o fortalecimento familiar: a transposição de experiências perturbadoras, o enfrentamento ao estresse interno ou externo à família e à maneira como efetivamente se reorganiza e avança. Tais aspectos influenciam na adaptação imediata e de longo prazo de todos os membros da família e na sobrevivência e no bem-estar da unidade familiar, possibilitando a resiliência em todos os seus membros.

Portanto, em famílias com bom funcionamento, alguns valores se organizam e se expressam de formas e graus variados, dependendo dos ajustes necessários nas normas, nos valores e nos desafios. Sendo assim, três domínios,protegidos e em bom funcionamento, são fundamentais para proporcionar uma estrutura útil à identificação das potencialidades da família: crenças familiares (valor da união, perspectiva positiva e transcendência e espiritualidade), padrões organizacionais (flexibilidade e conexão) e processos de comunicação (clareza, expressão emocional aberta e resolução colaborativa dos problemas) (Walsh, 2012).

Sob essa abordagem, a resiliência familiar pode ser considerada uma trajetória constituída gradativamente desde o início da vida, sob a influência de processos proximais complexos e crescentes, em que as famílias, mesmo vivenciando um ambiente de risco potencial, conseguem administrar as adversidades, suprir suas necessidades e resolver seus problemas. Em outras palavras, a resiliência familiar, é um fenômeno permeado por resultados positivos diante de uma série de processos negativos ao desenvolvimento da pessoa ou do grupo familiar, resultando em uma adaptação humana por meio de sistemas básicos, como por exemplo, o contexto escolar. Esse por sua vez se torna essencial na constituição de aspectos promotores da resiliência em famílias organizadas em modelos não convencionais.

 

A ESCOLA PROMOTORA DA RESILIÊNCIA EM FAMÍLIAS NÃO CONVENCIONAIS

Do ponto de vista da abordagem bioecológica, o desenvolvimento do sujeito se manifesta em distintos contextos em que os processos adaptativos aos ambientes ocorrem por meio das transições ecológicas quando o indivíduo começa a expandir suas relações, passando a integrar outros sistemas, tais como contexto social, geográfico, cultural e histórico, sistemas educacionais, dentre outros (Bronfenbrenner, 1994; Collodel et al., 2013).

Sendo assim, o papel da escola surge como inquestionável no contexto do desenvolvimento, ao participar da regulação da atenção, de emoções, da aprendizagem, dos comportamentos e das oportunidades de crescimento cognitivo, emocional e social para os educandos (Oliveira Júnior, 2017).

A escola, para Fajardo, Minayo e Moreira (2010, p. 766), é um dos espaços promotores de resiliência mais potentes para a sociedade, pois apresenta duas condições importantes: "a primeira, porque agrupa distintos sistemas humanos; a segunda, porque articula a pessoa do professor ao aluno dentro de uma perspectiva de desenvolvimento humano, de proteção [...]". Sendo assim, ela é fundamental para a socialização e é nela que as crianças passam a maior parte do seu tempo, "[...] portanto, saber lidar com as formas de promover a resiliência é a chave para a educação cumprir objetivos fundamentais tais como formar pessoas livres e indivíduos responsáveis [...]".

Porém, conforme descrito anteriormente, a escola nem sempre se mostra receptiva aos membros de famílias organizadas em modelos não convencionais, o que, por inúmeras vezes, traduz-se como um fator de risco para o desenvolvimento saudável dos membros dessas famílias. Uma criança em idade escolar, por exemplo, pode perceber a escola como um ambiente hostil por ser oriunda de uma família organizada em modelos não convencionais e não ver o contexto escolar como acolhedor a sua organização familiar em datas comemorativas ou ritos escolares. Outra criança pode se sentir bem quando advinda de um modelo familiar tradicional, nuclear, pois é constantemente estimulada a participar das atividades ofertadas (Oliveira Júnior & Coimbra, 2018).

Nesse sentido, os recursos voltados ao desenvolvimento do sujeito na escola não devem se consumir apenas nos aspectos de ordem acadêmica, mas devem abranger distintos domínios da esfera humana, partilhados com o papel da família, tais como as dimensões da qualidade da relação, da realização ou competência pessoal ou da construção da identidade (Collodel et al., 2013).

[...] A família e a escola têm, assim, um projeto comum a cumprir, embora com papéis e funções diferenciadas. Sem a concretização desse projeto não haverá provavelmente nem vida familiar nem vida escolar de qualidade e a crescente eficácia desse projeto dependerá da forma como enfrentamos e encaramos as dificuldades como oportunidades especiais de desenvolvimento. (Sousa, 2006, p. 47)

Assim, pode-se considerar que as escolas que promovem a resiliência são aquelas que agenciam um sentimento de pertencimento e proporcionam a comunidade escolar - alunos, professores, famílias, etc. - a sensação de fazer parte de um lugar onde normalmente não existe intimidação e alienação. Além disso, essas escolas trazem em todos seus estratos as ferramentas necessárias para que o alunado consiga enfrentar, superar, fortalecer e, inclusive, adaptar-se a partir de acontecimentos diversos, melhorando e desenvolvendo ao máximo suas capacidades acadêmicas, físicas e sociais.

Nesse viés, promover a resiliência por meio da escola é pensar na reorientação do ser humano no mundo, na reconfiguração do espaço e do tempo de aprender e ensinar e reelaborar a cultura pessoal e profissional. Para atender a essa demanda é necessário que toda a comunidade escolar seja instada a contribuir para o fortalecimento de seus membros,considerando que o desenvolvimento de seus jovens se dá por meio do estabelecimento de ligações firmadas entre os integrantes da comunidade escolar - os pares, os professores, os funcionários da escola e outros membros significativos -, bem como para a qualidade dessas ligações como fatores protetivos. Nesse sentido, os professores desempenham papel relevante no relacionamento com os alunos, permitindo-lhes aprender e expor valores, crenças, ideias próprias e coletivas que influenciam suas relações sociais e, portanto, podem ser uma figura de eleição como suporte e apoio do aluno, tanto no meio acadêmico quanto na perspectiva emocional (Fajardo et al. 2010, Collodel et al., 2013).

Paralelamente à função dos professores, existem outras figuras de referência no âmbito escolar para a promoção da resiliência dos educandos, que não podem ser secundarizadas, que são os funcionários da escola. Assim como os professores, esses profissionais constituem para alguns jovens um ancoradouro com o qual estabelecem uma relação de proximidade (Fajardo et al. 2010).

A comunidade escolar pode proporcionar um ambiente caloroso, estruturado e previsível, com a sensação de segurança e estabilidade, ao estabelecer vínculos de sociabilidade, atitudes e comportamentos positivos, reafirmando valores e evitando outros problemas graves, como violência e a discriminação, especialmente em circunstâncias em que o ambiente familiar de seu alunado não se organize em modelos convencionais. Nessa medida, a presença do grupo de pares, bem como de professores e funcionários da escola disponíveis, pode ser relevante, pois, potencializa a autoestima, o desenvolvimento das competências sociais e o autocontrole dos sujeitos (Fajardo et al., 2010).

Dessa forma, a escola é o contexto fundamental e essencial para que as crianças adquiram as competências necessárias para ter sucesso na vida, por meio da superação das adversidades. "Portanto, saber lidar com as formas de promover a resiliência é a chave para a educação cumprir objetivos fundamentais tais como formar pessoas livres e indivíduos responsáveis [...]" (Fajardo et al.,2010, p. 766).

Pensando nessas considerações, Henderson e Milstein (2010) defendem a necessidade de a escola desdobrar todo seu potencial e recursos em busca de uma comunidade educativa inclusiva e resiliente, recorrendo a alguns passos necessários à superação dos obstáculos para a promoção da resiliência ou manutenção dela, como por exemplo, minimizar os fatores de riscos e promover a resiliência.

No que se refere aos fatores de risco, a escola necessita: - enriquecer os vínculos, pois a falta de dedicação do pessoal a formação dos alunos, as estratégias de ensino limitadas e a escassa oferta de atividades são obstáculos para a construção da resiliência; -fixar limites claros e firmes, pois as políticas escolares inexistentes ou confusas e a escassa intervenção dos alunos nessas políticas são fatores impeditivos para a promoção da resiliência, e; -estimular as habilidades para viver em sociedade, poisa resolução de conflitos, a cooperação e as habilidades comunicativas são impedidas pela ausência de ensino regular de habilidades para a vida e pela falta de planejamento dessas habilidades envolvendo os alunos e seus familiares (Henderson & Milstein, 2010).

Quanto à promoção da resiliência, cabe à escola: manifestar afeto e apoio -elemento fundamental que pode ser limitado diante de uma esfera negativa, da falta de apoio, do excesso de competitividade e da falta de incentivo e gratificações; estabelecer e transmitir expectativas elevadas - trata-se de proporcionar esperança de futuro factível, para o qual são obstáculos a rotulação/catalogação dos alunos e seus familiares, a falta de reconhecimento do potencial de resiliência desses alunos e familiares e preposições baseadas em gênero, etnia, opção sexual, etc.;dar oportunidades de participação significativa - pois, a desvalorização dos alunos e de suas famílias ao serem percebidos como objetos/problemas/rótulos, a condução da escola por adultos e para adultos e a escassa oferta de atividade que contemple os alunos e suas respectivas famílias são barreiras para promoção da resiliência (Henderson & Milstein, 2010).

Pode-se inferir que, independentemente da organização familiar, a qualidade da relação escola-família é um fator determinante no bem-estar dos filhos e que a promoção da resiliência no âmbito escolar pode contribuir para o desenvolvimento dos membros de famílias organizadas em modelos não convencionais, por meio da redução dos fatores de risco e da promoção dos fatores de proteção.

Amazonas (2006) defende que não importa o ideário e nem a configuração que assuma, "[...] a família continuará a existir, pois é ela que pode assegurar às crianças, aos novos sujeitos que se apresentam ao mundo, o direito ao amor, ao acolhimento no mundo humano e à palavra [...]" (p. 179). É exatamente por isto que a escola deve "[...]incluí-las no 'um de nós' (humanos), abolindo a discriminação quanto às 'mínimas diferenças', reconhecendo que elas existem, respeitando-as tais como são e dando-lhes os mesmos direitos [...]" (p. 182).

Caberá à escola, ao estabelecer vínculos de sociabilidade, atitudes e comportamentos positivos entre professores e alunos, minimizar os fatores de risco e evitar o isolamento social, que pode gerar a violência e a discriminação, por meio do estabelecimento de estratégias que valorizem uma atuação dialógica e de negociação de conflitos. Nesse sentido, o respeito às famílias organizadas em modelos não convencionais nos ritos escolares, de modo a incluir toda e qualquer forma de ser família - o que é altamente significativo - fortalece as conexões entre as pessoas presentes na vida cotidiana da escola e estabelece limites sólidos em relação ao respeito e à prevenção da violência interpessoal.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escola encontra-se diante de um cenário de mudanças na constituição das famílias na contemporaneidade e, por mais que tenha dificuldade, ou mesmo se recuse, a assumir as múltiplas configurações familiares, cada vez mais irá se deparar com alunos advindos de famílias organizadas em modelos não convencionais.

Com base o referencial do modelo ecológico, que concebe o desenvolvimento humano ora como produtor, ora como produto dos processos de interação recíproca entre o sujeito ativo e os distintos contextos, considera-se que a relação estabelecida entre família e escola deva ser de continuidade e constituída na intersecção entre os distintos contextos, com os quais o sujeito estabelece relações direta ou indiretamente, e cuja presença é mais clarividente quando se vivencia uma situação adversa de caráter temporário ou efetivo, sendo capaz de sobressair-se ao advento estressor, mediante uma rede de apoio, do qual a escola é elo indispensável.

Tomando Henderson e Milstein (2010) como referência, com vistas ao fortalecimento individual e promoção da resiliência de famílias organizadas em modelos não convencionais, cabe à escola a adoção de estratégias. Acentuar as relações afetivas, promover atividades e formas de aprendizagem dos alunos; priorizar conexões positivas entre família não tradicional-escola; ofertar capacitação à comunidade escolar sobre estratégias e políticas escolares; promover a participação de alunos e suas famílias nessas políticas; atender às expectativas dos alunos; explorar conexões entre habilidades para a vida e sucesso acadêmico; oferecer capacitação em serviços/incentivos para ensinar habilidades para a vida; criar clima escolar de afeto; implementar processo de intervenção para alunos com dificuldades, sem buscar explicações em sua configuração familiar; enfatizar a cooperação; proporcionar reconhecimento/incentivo a todos os alunos; erradicar a rotulação de alunos e famílias; capacitar a comunidade escolar e os alunos a encontrar resiliência em si mesmos e nos próximos - na família, por exemplo -; adotar filosofia de que todos os alunos podem ter êxito, desenvolver atividades de aprendizagem e programas de serviços entre os pares, ofertar atividades e currículo participativo para os alunos e para suas famílias organizadas em modelos não convencionais.

 

REFERÊNCIAS

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