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Psicologia da Educação
versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520
Psicol. educ. no.49 São Paulo jul./dez. 2019
https://doi.org/10.5935/2175-3520.20190022
ARTIGOS
Papel do professor face à medicalização: estudo exploratório no território brasileiro
Teacher's role in relation to medicalization: an exploratory study in the brazilian territory
Papel del profesor frente a la medicalización: estudio exploratorio en el territorio brasileño
Tatiane dos Santos Costa; Monica de Araújo Damasceno; Thaisa da Silva Fonseca; Fauston Negreiros
Universidade Federal do Piauí, Piauí, PI, Brasil
RESUMO
Este estudo teve por objetivo compreender as concepções de professores sobre suas práticas pedagógicas mediante o fenômeno da medicalização. O método utilizado foi qualitativo, exploratório e utilizou dados transversais. Participaram da pesquisa 563 professores, com idades que variaram de 19 a 66 anos (M= 34,2 DP= 9,23), de 26 estados brasileiros e do Distrito Federal, mediante respostas a entrevistas semiestruturadas e questionários sociodemográficos, cujos dados foram analisados pelo Software Iramuteq. Foram analisadas 502 respostas, sendo gerados 196 segmentos de texto, com 9297 ocorrências e 1507 formas. A retenção foi de 86,55% do corpus. Originaram-se duas classes de palavras, a primeira com significância de 60,96% (Professores não medicam, logo não medicalizam) e a segunda com significância de 39,04% (Professores são capazes de identificar e solucionar problemas), que foram analisadas. Evidencia-se a crença dos professores em conseguir identificar possíveis problemas de comportamento e aprendizagem, o que vai ao encontro do processo de medicalização.
Palavras-chave: Medicalização; Concepções; Professores.
ABSTRACT
This study aimed to understand teachers' conceptions of their pedagogical practices upon the phenomenon of medicalization. A qualitative exploratory method was used, as well as transversal data. A total of 563 teachers, ranging in age from 19 to 66 years (M = 34.2 SD = 9.23), from 26 Brazilian states and from the Federal District, participated in the study through responses to semi-structured interviews and sociodemographic questionnaires, whose data were analyzed by Iramuteq Software. We analyzed 502 responses, generating 196 text segments, with 9297 occurrences and 1507 forms. The retention was 86.55% of the corpus. Two classes of words originated, the first one with a significance of 60.96% "Teachers do not medicate, so do not medicalize" and the second with significance of 39.04% "Teachers are able to identify and solve problems." The teachers' belief in being able to identify possible behavioral and learning problems is evidenced, which is in line with the medicalization process.
Keywords: Medicalization; Conceptions; Teachers.
RESUMEN
Este estudio tuvo por objetivo comprender las concepciones de profesores sobre sus prácticas pedagógicas mediante el fenómeno de la medicalización. El método utilizado fue cualitativo, exploratorio y utilizó datos transversales. En la encuesta, 563 profesores, con edades que variaron de 19 a 66 años (M = 34,2 DP = 9,23), de 26 estados brasileños y del Distrito Federal, mediante respuestas a entrevistas semi-estructuradas y cuestionarios sociodemográficos, cuyos datos fueron analizados por el Software Iramuteq. Se analizaron 502 respuestas, siendo generados 196 segmentos de texto, con 9297 ocurrencias y 1507 formas. La retención fue de 86,55% del corpus. Se originó dos clases de palabras, la primera con significancia de 60,96% ("Profesores no medican, luego no medicalizan") y la segunda con significancia del 39,04% ("Profesores son capaces de identificar y solucionar problemas"), que fueron analizadas. Se evidencia la creencia de los profesores en conseguir identificar posibles problemas de comportamientos y aprendizaje, lo que va en la misma dirección de el proceso de medicalización.
Palabras clave: Medicalización; Concepciones; Profesores.
A medicalização é um fenômeno que perpassa a sociedade de forma sutil e que vem sendo discutida por muitos estudiosos. Ivan Illich (1975) foi um dos primeiros a apresentar a reflexão de que a medicalização não só se apropria do discurso médico para justificar comportamentos fora dos padrões vistos como normais pela sociedade, mas também retira a autonomia para escolha, tendo em vista que muitos problemas de origem social passam a ser analisados como doenças, cabendo à Medicina tratá-los (Carvalho, Rodrigues, Costa & Andrade, 2015).
Na área da Educação, a Medicalização ganhou repercussão após o crescente número de crianças diagnosticadas com transtornos que interferem no processo de aprendizagem. No entanto, se faz necessário desvelar o que há por trás desse acontecimento, tendo em vista que ele centraliza no aluno a culpa da não aprendizagem, fazendo com que aspectos existentes no ambiente escolar e na sociedade passem despercebidos, negligenciando os contextos históricos de produção da sociedade e de suas instituições sociais especificamente (Souza, 2010; Collares & Moysés, 2015; Viégas & Freire, 2016). O termo medicalização tem sido utilizado em diferentes enfoques (Christofari, Freitas & Batista, 2015):
Por um lado, identifica-se a racionalidade médica como uma força produtora de discursos que funcionam e definem modos de ser e estar no mundo. Outros usam o termo como sinônimo do ato de medicar, quando seria necessário reconhecer que o ato de medicar é um dos tentáculos da medicalização - talvez o mais visível, ou mesmo o mais possível de contabilizar. E os números são pródigos quanto ao aumento de adoecimentos que necessitam de medicação. Cada vez mais assistimos a um processo amplo de medicação para tratar, minimizar, aniquilar sentimentos e ações que fazem parte da vida: tristeza, euforia, preguiça, baixa autoestima, desânimo, falta de criatividade, agitação (Christofari, Freitas & Batista, 2015, p. 8).
O cotidiano escolar não se preocupa em conhecer a criança dentro de sua realidade fora dos muros da escola; com isso, o lugar que seria de transformação coletiva e individual é negligenciado, visto como uma forma de velar as falhas institucionais, estruturais e políticas, o que acaba colaborando com o fracasso dos alunos. Há também as disparidades existentes entre as escolas públicas e privadas, em que uma reproduz o processo de dominação de massa e a outra mantém a seguridade do padrão de vida elitista (Guzzo, 1999).
Muitas queixas em relação à não aprendizagem permeiam o cotidiano escolar, havendo uma busca costumeira por justificativas. Um exemplo é o desvio de conduta dos alunos, que pode se tornar algo também de ordem médica, o que vem de herança das práticas higienistas nas primeiras décadas do Século XX, que buscavam prevenir os "maus comportamentos". Essa ideia de patologizar os modos de ser dentro da escola causa uma série de apontamentos sobre os reais culpados pelo não enquadramento do aluno nas expectativas criadas pela instituição escolar. A família é tida como principal influência sobre o desenvolvimento de cada criança, seja no ambiente escolar ou na sociedade, isto é, ela estaria sendo responsável por seres "saudáveis, frágeis, doentes, como produtora de condutas que poderiam justificar a julgada incapacidade do indivíduo em se adaptar às condições sociais nas quais está inserido" (Christofari; Freitas & Baptista, 2015, p. 3).
Dentro desse contexto, há o professor, cujo papel principal centra-se no processo de ensino-aprendizagem. Esse profissional possui um contato maior com a criança e sua família, além de ter tido toda uma formação voltada ao ensino e aprendido métodos e técnicas para efetivar seu objetivo docente. Para muitos, uma profissão nobre. Para outros, há certa desvalorização. Nesse dilema, às vezes é visto não apenas como protagonista, mas também vilão. Mesmo assim, a ele cabe o oficio do saber, pois acredita-se que possui uma sensibilidade cultivada durante as experiências construídas em sua formação como docente, visto que sua palavra é capaz de produzir modos de ser em referência à figura do aluno (Tardif, 2000; Garcia, Borges & Antonelli, 2015).
No entanto, é perceptível que na escola há uma produção da institucionalização da atividade docente, na qual o cotidiano escolar é cercado por condutas reprodutoras do que é adequado, seja comportamento ou formas de aprendizagem, contribuindo por suprimir a subjetividade dos alunos e disseminar um modelo reprodutor de conhecimento. Diante disto, o papel do professor, que seria de agente de transformação, começa a ir ao encontro do discurso patologizante, prática esta comum à dinâmica dos dias atuais (Meira, 2012; Sá, Urru & Silva, 2013; Collares & Moysés, 2015).
Assim, se faz necessário compreender qual o papel do professor diante do processo de ensino e aprendizagem em tempos de expansão de diagnósticos que tentam apontar falhas nos alunos. Collares e Moysés (2015) ressaltam que há desvios no sentido da formação docente, na qual o imediatismo também ganha voz, tendo o discurso de que problemas educacionais devem ser tratados de forma emergencial, o que contribui com a ideia da necessidade de modelos prontos a serem seguidos, ou seja, receitas que facilitem o trabalho do professor.
Constrói-se, assim, a ideia de que cabe ao profissional de educação a incumbência de detectar os primeiros sinais de prováveis distúrbios que dificultam a aprendizagem. Essa prática de "rotular" se torna trivial no cotidiano escolar, em que cada vez mais se observam "transtornos", como Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e Dislexia, ganharem respaldo científico, surgindo novos diagnósticos, realidade que vem crescendo por meio do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), definido pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) (Sá, Urru & Silva, 2013).
Quando isso ocorre, negligencia-se ao professor a viabilidade do conhecimento e o aprofundamento de teorias que contribuam para a melhoria de sua prática docente, o que forneceria a possibilidade de ver as potencialidades de seus alunos e de tornar a aprendizagem incontestável (Collares & Moysés, 2015).
Nessa lógica de adoecimento e da necessidade de tratamentos, o professor incorpora a lógica medicalizante de que o problema está apenas no aluno, a escola se exime da responsabilidade pela aprendizagem e a delega às áreas de saúde, o que causa "transtornos" ainda maiores para a criança que, de certa forma, encerra suas possibilidades de inclusão, já que sua alteridade é exposta e demarcada por suas faltas. Assim, o local onde as potencialidades deveriam ser enaltecidas, torna-se um lugar clínico (Legnani & Pereira, 2015). Com base no exposto, este estudo objetivou compreender as concepções de professores sobre suas práticas pedagógicas mediante o fenômeno da medicalização.
MÉTODO
O presente estudo configura-se em qualitativo, do tipo exploratório, e utilizou-se de dados transversais.
Participantes
A amostra foi composta por 563 professores da Educação Básica, de escolas públicas e privadas, de todas as regiões brasileiras. O critério de inclusão dos participantes foi lecionar na Educação Básica. Os professores apresentaram diversidade formativa: Pedagogia (38,4%), Letras Português (10,2%), Biologia (5,8%), Educação Física (5,8%), História (5,8%), Matemática (5,1%), Geografia (3%), Letras Inglês (2,5%), Ciências Sociais (2,1%), Química (2,1%), Normal Superior (1,9%), Ciências da Natureza (1,6%), Espanhol (1,4%), Filosofia (1,2%), Física (1,2%), Teologia (1,1%), Computação (0,9%), Educação Artística/Artes Visuais (0,5%) e Música (0,2%).
Procedimentos
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Piauí, sob o número 1.653.446. No decorrer da pesquisa, realizaram-se todos os esclarecimentos éticos para a participação, assim como a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Instrumentos
Para a caracterização da amostra, aplicou-se um questionário inicial com perguntas referentes aos dados sociodemográficos. Em seguida, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, baseadas em estudos prévios sobre Medicalização da Educação.
Análise dos Dados
Os dados obtidos no questionário sociodemográfico foram analisados através do pacote estatístico SPSSWIN versão 21. As respostas obtidas nas entrevistas semiestruturadas foram analisadas qualitativamente através do software IRAMUTEQ (Interface de R pour analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionneires), versão 0.7 (Camargo & Justo, 2013; Ratinaud & Marchand, 2012).
Nas análises, realizou-se o procedimento de Classificação Hierárquica Descendente (CHD), que é apresentada no formato de árvore, o dendograma, dando origem a classes lexicais em que foi dividido o discurso, a partir da frequência e do qui-quadrado (X2), modelo este que foi proposto por Reinert (1990); e a nuvem de palavras, que mostra a representação gráfica, em função da frequência das palavras, na qual as palavras mais significativas no relato dos professores ficam enfatizadas na imagem.
RESULTADOS
Das 563 respostas referentes à pergunta Quais as concepções de professores sobre suas práticas pedagógicas mediante o fenômeno da medicalização?, que compunham o corpus inicial, foram analisadas 502, sendo gerados 196 segmentos de texto, com 9297 ocorrências e 1507 formas. A retenção foi de 86,55% do corpus, mostrando-se satisfatória aos critérios sugeridos pela literatura (Camargo & Justo, 2016).
A partir da Classificação Hierárquica Descente (CHD), o corpus foi dividido em duas classes, compostas pelas palavras que melhor se relacionam com suas respectivas classes, a partir do x2 e significância. Desse modo, a Figura 1 apresenta o dendograma formado por duas classes, bem como as nove palavras que melhor representam cada uma.
Classe 1: Professores não medicam, logo não medicalizam.
A Classe 1, denominada Professores não medicam, logo não medicalizam, representa 60,96% do corpus, apresentando-se como variável significativa para os professores que trabalham em redes de ensino públicas e privadas. As palavras que melhor se relacionam estão ligadas a fatores diversos, que apresentaram significância, sendo elas: não, profissional, encaminhar, medicar, precisar, diagnosticar, achar, competente, ajuda. Observa-se que as palavras que trabalham a significância do discurso também serão percebidas nas falas apresentadas no decorrer no estudo.
Conforme os segmentos de texto mais representativos desta classe, com base na média do Χ 2 das formas ativas em cada segmento de texto e organizadas seguindo a ordem de importância do Χ 2, pode-se perceber relatos como: Acredito que não cabe ao professor intervir para que o aluno utilize medicação. A função do professor é observar e, se necessário, junto aos familiares, encaminhar o aluno ao serviço médico especializado. O médico e a família são responsáveis por utilização ou não de medicamentos (Professor367). Identifica-se que o professor tem consciência de que não é responsável por uma intervenção medicamentosa, no entanto, o mesmo percebe-se como sujeito responsável por identificar problemas e, caso o aluno esteja fora dos padrões vistos como normais, avisar a família para um possível encaminhamento aos serviços especializados.
Fiamoncini e Kraemer (2017), em estudo que utilizou de narrativas de duas professoras e de uma aluna que vivenciaram uma escola multisseriada na década de 1960, perceberam que, diferentemente dos dias atuais, a falta de disciplina era vista com naturalidade, sendo relacionada à vivacidade e não à doença. A indisciplina era, pois, responsabilidade da educação e não da medicina, sendo primordial repensar a estrutura, as rotinas e o autoritarismo escolar. Para os autores, a medicalização da conduta das crianças é um fenômeno da sociedade contemporânea.
É nesse sentido que, para Collares e Moysés (2015), a escola deixa de ser um serviço voltado à aprendizagem e torna-se um espaço onde se realizam encaminhamentos, ou seja, um espaço clínico, pois se a criança não aprende, cabe ao professor identificar, à família levar ao serviço adequado e ao médico diagnosticar e medicar, isso ocorre devido à busca pela normatização do sujeito.
O referido perfil de compreensão ainda se faz presente nos depoimentos de outros professores: O professor é apenas um mediador, logo, não compete a ele orientar quando algum aluno precisa de medicalização ou não. O papel do professor é encaminhar, caso observe que determinado aluno possui algum déficit de aprendizagem (Professor 78) e O professor na verdade não pode transcrever medicamentos aos alunos, apenas detectar o problema e encaminhar às necessidades competentes (Professor 421).
Esses dois relatos estão intimamente ligados ao apresentado pelo Professor 367. Observa-se também que os professores confundem o significado das palavras medicar e medicalizar. Nesse sentido, Souza (2010) esclarece a importância de discernir esses conceitos, pois medicamentar estaria ligada ao uso do remédio, prescrição, tratamento de alguma enfermidade, enquanto medicalizar estaria ligado à forma como são percebidos os problemas que, olhando através da ótica de ordem psicológica ou social, muitas vezes não está ligada a um adoecimento propriamente dito, conceito esse defendido por muitos outros autores.
As respostas que formaram a Classe 1, as concepções trazidas pelos professores, reafirmam seu papel diante do processo de medicalização, pode indicar suas propensões de que não são aptos a prescrever medicamentos, no entanto, concordam que é papel do professor realizar encaminhamentos para que os alunos sejam diagnosticados, caso apresentem algum problema no processo de aprendizagem. Em relação às palavras que formaram a Classe 1 do dendograma, compreende-se uma lógica de que o profissional de educação é responsável pelo diagnóstico de alunos.
Pode-se perceber diante da Classe 1, dos segmentos e das falas, que os professores reforçam a ideia, já discutida pelos estudos, de que as crianças são diagnosticadas de forma assustadora, devido à necessidade de padronização do desempenho e atitudes esperadas pelo processo educacional. Desse modo, há uma busca pela normatização, na qual alunos devem ser disciplinados e assim não atrapalham o trabalho dos professores, seguindo a lógica da medicalização, posto que se criam doenças para os medicamentos (Collares & Moysés, 2015; Ito, Gomes, Masini & Cols, 2015).
Destaca-se, então, o crescimento de encaminhamentos procedentes da escola, em que professores se apropriam desse discurso para eximir-se da responsabilidade referente ao ensino, além de buscar uma normatização dos discentes, o que faz com que diagnósticos infundados entre o normal e o patológico justifiquem a não aprendizagem. Contudo, sabe-se que a escola é um espaço para o desenvolvimento do ensino, da autonomia e das aptidões das crianças (Angelucci, 2007).
A partir da análise da nuvem de palavras, construída pelos segmentos de palavras mais consideráveis da análise anterior, agrupadas e organizadas de acordo com sua frequência e relação entre as mesmas, pode-se perceber, conforme a Figura 2, que palavras como aluno, professor, dever, não e medicamento estão mais evidenciadas, conciliando com a ideia apresentada na Classe 1, de que os professores não medicam alunos. Palavras como família, uso, orientar, precisar, aprendizagem, problema e processo, também perceptíveis na nuvem de palavras, podem estar, por sua vez, coadunadas às Classes 1 e 2, o que pode sugerir o uso de medicamentos como forma de melhorar a aprendizagem e corroborar a percepção de que os professores não são responsáveis por prescrever medicamentos, mas por orientar os alunos, caso eles precisem.
Classe 2: Professores são capazes de identificar e solucionar problemas
A Classe 2, denominada Professores são capazes de identificar e solucionar problemas, representa 39,04% do corpus, apresentando como variável significativa professores que trabalham em redes de ensino privadas. As palavras que obtiveram maior significância com a classe foram: melhor, ajuda, buscar, conhecer, uso, entender, compreender e sala e aula, conforme observado na Figura 1. Assim como realizado na Classe 1, as falas foram apresentadas conforme os descritos nos segmentos de texto mais representativos dessa classe, com base na média dos Χ 2 das formas ativas em cada segmento de texto.
É possível verificar, através das verbalizações dos professores apresentadas nos segmentos de texto, um olhar clínico diante das dificuldades expressas pelos alunos, como retratado na fala: O papel do professor é importantíssimo, uma vez que este profissional é capaz de perceber problemas ocorrentes em sala de aula, seja dificuldades de aprendizagem ou comportamentais (professor 501).Esse pensamento fortalece a lógica de que os professores são responsáveis por diagnosticar problemas de aprendizagem em seus alunos, devido ao contato diário em sala de aula. Para Moysés (2001), a lógica do olhar clínico, que a autora denomina de clínico pedagógico, faz com que algo que antes não era visível torne-se visível e consequentemente verdade; portanto, quando o professor se apropria desse discurso estará ajudando na construção de um pensamento que se tornará verídico aos olhos dos familiares, já que o mesmo afirma que ele consegue identificar problemas em seus alunos e, consequentemente, iniciará uma busca pelo provável diagnóstico.
Essa apropriação do discurso médico é vista também na descrição do Professor 48, quando o mesmo afirma que O professor deve ser informado como medicalizar e o que medicalizar. O papel do professor é buscar formas adequadas. Percebe-se, assim, um desconhecimento em relação à terminologia medicalizar, uma vez que o professor lhe atribui o significado de medicar, ou seja, a utilização de remédios. Verifica-se, pois, tanto um equívoco quanto ao uso dos termos, que são tratados como sinônimos, como a extensão para o âmbito clínico de algo que, muitas vezes, seria passível de solução no âmbito educacional. Para Giroto e Santana (2016), quando os professores se apropriam do discurso médico sentem-se incapazes de lidar com as dificuldades de aprendizagem, o que acaba contribuindo para o aumento de justificativas da não aprendizagem associadas às possíveis patologias nos alunos.
Na percepção do Professor 431, O professor deve ser aquele que observa, buscando dessa forma conhecer esse aluno e suas potencialidades, como também suas deficiências, é possível verificar a relevância em também se descobrir os potenciais dos alunos, em contraposição à lógica medicalizante que busca enfatizar apenas o problema, o qual é atribuído como principal fator do fracasso.
Os alunos são culpabilizados pelo seu próprio fracasso não pela sua incapacidade de aprender, mas devido a um sistema educacional tradicional e arcaico, que prejudica o desenvolvimento dos alunos, criando obstáculos e dificultando o processo de ensino (Patto, 1990). Os trabalhos desenvolvidos pelos professores são enviesados por um sistema capitalista que precariza o ensino e que não proporciona condições mínimas para o exercício da profissão, o que faz com que o professor não perceba seu trabalho ativo no processo de aprendizagem, refletindo no discurso de incapacidade atribuído ao aluno (Leonardo & Suzuki, 2016). Diante dessa realidade, os professores acreditam que o uso de medicamentos pode contribuir para a solução dos problemas relacionados à não aprendizagem e aos comportamentos dos alunos, remetendo ao fenômeno da medicalização. No entanto, é importante a compreensão do aluno dentro do seu contexto histórico, das suas relações e de como se agrupam socialmente e politicamente com outros sujeitos.
Há a necessidade de criar novos olhares para enxergar as individualidades e sua totalidade; a criança não deve ser vista apenas pelos rótulos negativos que trazem sofrimento e exclusão, mas como sujeitos históricos, que devem ser respeitados, "Um sujeito que é constituído por - seu tempo, seus semelhantes, seu ambiente natural e social" (Moysés, 2001, p. 251). Em oposição, o que ocorre é a centralização do fracasso escolar nas próprias crianças. A escola transfere a culpa para o aluno para se sobressair e não se responsabilizar. Esse pensamento é grave, pois não contribui para uma mudança efetiva, apenas atrasa o discurso de possíveis propostas verdadeiramente efetivas (Collares & Moysés, 2015).
Os saberes para as práticas docentes devem ser usados de forma criativa e não como uma forma de solucionar problemas, pois é essencial o uso da prática de forma livre, sendo que o professor fortalece sua formação para que possa enriquecer seu conhecimento. É essencial ao professor, para obter sucesso no seu trabalho, saber instigar o aluno. No entanto, isso não é possível se o educador se estagnar, ou seja, se não buscar o enriquecimento de sua prática. A relação entre educador e educando deveria ser libertadora, em que o professor busca ter o aluno como aliado e não como inimigo, mostrando apoio ao aluno e o engajando-se no processo de conhecimento (Freire, 1996).
É importante o desenvolvimento de ações pedagógicas que promovam conhecimentos tanto para professores como para os alunos, no sentido de dar significados às práticas escolares e à humanização das relações no ambiente escolar e com a comunidade. Portanto, o docente fica no centro desse processo para desenvolver seu trabalho de ensinar, sem que haja a necessidade de recorrer a outras áreas profissionais da área da saúde (Garrido, 2016).
Diante do exposto, é perceptível que o professor se percebe como responsável por detectar e solucionar os problemas dos alunos, contribuindo para o fortalecimento da lógica medicalizante e para o aumento do número de diagnósticos. Além disso, verifica-se uma preocupação clínica em detrimento de uma responsabilidade pedagógica com o ato de ensinar. É sob essa ótica que Machado & Souza (1997, p. 30) afirmam: "Às vezes nos preocupamos em demasia com o diagnóstico, como se ele fosse definir o que pode fazer bem ou mal para aquele ser, aquela relação. Ilusão.". Dessa forma, preocupar-se demais com a busca de diagnósticos e possíveis desvios de comportamento contribui para o fracasso, desvia o olhar de seus verdadeiros produtores e desfavorece o ensino brasileiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo permitiu verificar a forma como os professores da Educação Básica representam socialmente a medicalização e o seu papel diante desse processo. Com o desenvolvimento do trabalho, foi possível perceber que há uma prática patologizante por parte dos professores. É notório, ainda, que os agentes educacionais focam no aluno a origem dos problemas de não aprendizagem, em vez de buscar formas acessíveis a todos para efetivação da aprendizagem.
Há enraizada a crença de que o uso de medicamentos pode ajudar alunos que apresentam dificuldades de aprender, sendo vista por muitos como uma forma até de cura do sistema educacional, pensamento que justifica o aumento das vendas de medicamentos que prometem o enquadramento esperado do aluno no processo de aprendizagem. Essa crença, baseada em saberes médicos, coopera, de certa forma, com a ideia reducionista, biologizante e patologizante de que o aluno não aprende por ser uma pessoa doente e que deve ser tratada através do uso de medicamentos.
No relato dos professores diante de seu papel no processo de medicalização, percebeu-se que, mesmo sabendo da importância de seus papéis como formadores de sujeitos sociais, eles afirmam que faz parte do trabalho do professor encaminhar alunos aos atendimentos de saúde, quando este não acompanha o método de ensino que eles usam, colaborando, mais uma vez, com a culpabilização do aluno.
Diante dessa discussão, são necessárias mais informações sobre a medicalização no contexto escolar e os seus perigos, pois essa prática contribui para o adoecimento dos alunos, além de fazer com que a escola transfira para o âmbito médico suas responsabilidades referentes ao processo de escolarização, quando na realidade deveria trabalhar em prol de uma melhoria na prática pedagógica, já que apenas reproduz métodos que muitas vezes evidenciam as dificuldades em vez das potencialidades dos alunos.
Espera-se que este trabalho possa fornecer subsídios e orientações para a reflexão da temática que, como foi constatado, é de pouco conhecimento dos profissionais da educação. Além disso, sugere-se a realização de estudos semelhantes junto aos demais atores educacionais.
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Tatiane dos Santos Costa é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Piauí, Universidade Federal do Piauí, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Piauí, PI, Brasil.
ORCID: 0000-0002-5532-4630
E-mail: tatianecostap2@gmail.com
Monica de Araújo Damasceno é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Piauí, Universidade Federal do Piauí, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Piauí, PI, Brasil.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5362-2212
E-mail monica_damasceno@live.com
Thaisa da Silva Fonseca é mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Piauí. Universidade Federal do Piauí, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Piauí, PI, Brasil.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6373-8125
E-mail thaisafonseca23@hotmail.com
Fauston Negreiros é professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Piauí. Universidade Federal do Piauí, Programa de Pós- Graduação em Psicologia, PI, Brasil.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2046-8463
E-mail: faustonnegreiros@ufpi.edu.br