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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954versão On-line ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. v.17 n.15 São Paulo dez. 2009

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Tocar e trocar... o corpo, o afeto, a aprendizagem: uma experiência de formação continuada em um Centro de Educação Infantil

 

To touch and To share... the body, affect, apprenticeship: an experience of continuous Formation In a Child Education Centery

 

 

Rosmari Pereira de Oliveira1

Rede Pública Municipal de Ensino de São Paulo

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta o relato de uma experiência em formação continuada desenvolvida com professores de educação infantil (0 a 4 anos) da rede pública de ensino da cidade de São Paulo no ano de 2008. Nesse projeto foram realizadas vivências e reflexões teóricas sobre o toque corporal e a afetividade, partindo-se do pressuposto de que tais aspectos são fundamentais para o desenvolvimento infantil e para a constituição dos indivíduos. Nesse sentido, buscou-se oferecer subsídios ao professor para que ele ressignificasse a sua relação com a criança pequena, integrando em sua prática importantes posturas relacionadas ao processo de cuidar e de educar. Essa proposta de formação baseou-se principalmente nos fundamentos de Leboyer (1989) a respeito da técnica indiana de massagem para bebês “Shantala”; na investigação antropológica sobre o ato de tocar de Montagu (1988) e nas contribuições psicopedagógicas sobre processos de sensibilizações na construção do conhecimento, segundo Fagali (1992-2001). Assim, as experiências desencadeadas a partir de mediações psicopedagógicas, por meio dos toques corporais e das sensibilizações, possibilitaram a expressão da subjetividade do professor como pessoa e como profissional, a reflexão sobre a sua própria relação com a criança e a construção de novas práticas no contexto da educação infantil.

Palavras chave: Educação infantil, Formação continuada, Toque corporal, Afetividade.


ABSTRACT

This article presents the report of an experience in continuous formation developed together with child education teachers of the public sector in the city of São Paulo in 2008 (children aged 0-4 years). In this project, theoretical experiences and reflections about body touch and affectivity were carried out, assuming that such aspects are fundamental for the development of children and constitution of individuals. In this sense, the necessary support was offered to the teacher so that the relationship with children could be resignified, integrating important attitudes related to the process of caring for and educating a child. This formation proposal was mainly based on the fundaments of Leboyer (1989) concerning the Indian “Shantala” massage technique; in the anthropological investigation about the act of touching by Montagu (1988) and the pyscho-pedagogical contributions about sensibilization processes in the construction of knowledge, according to Fagali (1992-2001). Thus, experiences resulting from psycho-pedagogical intermediations, through body touches and the sensibilizations, permitted the expression of the teacher’s subjectivity as a person and professional, as well as reflection about his/her relationship with a child and the construction of new practices in the context of child education.

Keywords: Child education, Continuous formation, Body touch, Affectivity.


 

 

Introdução

No presente artigo, apresento o relato de um projeto de formação continuada de professores de educação infantil por mim desenvolvido no ano de 2008, em um Centro de Educação Infantil – CEI – pertencente à rede pública de ensino da cidade de São Paulo. Nessa experiência, o foco principal foi a abordagem do tema toque corporal e dos aspectos afetivos inerentes à essa forma de contato humano e às relações que se estabelecem entre adultos e crianças no contexto educacional. Tal projeto recebeu menção honrosa no 3º Prêmio “Paulo Freire” pela Qualidade do Ensino Público Municipal, promovido pela Câmara Municipal de São Paulo, em setembro do mesmo ano.

Ao idealizar este projeto, tive como base experiências anteriores com a implantação da técnica indiana de massagem infantil “Shantala” (LEBOYER, 1989) em creches públicas, como também vivências, pesquisas e reflexões realizadas no campo da Psicopedagogia Clínica e Institucional sobre o significado do toque nos processos de aprendizagem (OLIVEIRA, 2000). Convém destacar que, no decorrer do desenvolvimento da proposta, eu exercia o cargo de diretora na referida Unidade Escolar e, concomitantemente, atuava como coordenadora de um dos grupos de formação. Devido a essas circunstâncias, foi necessário articular, nesse processo, múltiplos aspectos envolvendo a gestão escolar no âmbito dos CEIs; os desafios que atualmente se colocam para o campo da educação infantil; a especificidade da temática abordada no que se refere à questão do toque e, ainda, as demandas implícitas na formação continuada de professores que atuam junto a crianças pequenas. Mas, foi sobremaneira o olhar psicopedagógico lançado sobre os processos de aprendizagem desencadeados junto a todos os sujeitos imbricados nesta experiência - professores, crianças, famílias, coordenadora pedagógica, eu – idealizadora do projeto; eu - diretora, eu - coordenadora de grupo etc., que me permitiu ir tecendo essa variada gama de anseios, expectativas, desejos, medos, descobertas, resistências e conhecimentos que foram se manifestando nessa trajetória, onde, a dimensão subjetiva pode emergir ao mesmo tempo como conteúdo e como metodologia.

No campo da gestão escolar, havia a necessidade de responder às demandas e exigências colocadas pelas atuais políticas educacionais para a educação infantil e, especificamente, para os Centros de Educação Infantil – as antigas creches. A partir da promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB em 1996, pela primeira vez no Brasil, a educação infantil foi reconhecida como uma das etapas da educação básica (BRASIL, 1996). Nesta nova organização, as creches, anteriormente, vinculadas a órgãos de assistência social, passaram a ser consideradas legitimamente como equipamentos de educação infantil, assumindo, também, seu caráter educacional. Em 2001, em conformidade com o proposto na LDB, na cidade de São Paulo, onde se desenvolveu o projeto que ora apresento, as creches da rede pública municipal desvincularam-se da Secretaria da Assistência Social, passando a integrar a Secretaria Municipal da Educação, sendo, então, denominadas Centros de Educação Infantil – CEIs (CAPESTRANI, 2007).

Essas recentes mudanças, em termos de políticas educacionais, no campo da educação infantil e em especial nos Centros de Educação Infantil, evidenciavam a urgente necessidade de se repensar as práticas desenvolvidas junto a crianças pequenas e, consequentemente, o processo de formação dos professores que atuam nessa área. Até então, de uma maneira geral em nosso país, como aponta Oliveira (2007), o trabalho nas creches esteve pautado em práticas assistencialistas voltadas à população carente, desconsiderando as importantes tarefas educacionais a serem promovidas nessa fase do desenvolvimento infantil. Já as pré-escolas mantidas por entidades privadas, voltadas para uma camada da população de maior poder aquisitivo, priorizavam a escolarização precoce da criança. Além desse aspecto sócioeconômico, Kramer (2005) afirma que a origem dessa dicotomia entre o cuidar e o educar está também relacionada a aspectos culturais envolvendo questões de gênero, já que a presença feminina é um traço característico das creches e pré-escolas. Assim, a representação cultural de que mulheres podem desempenhar, única e exclusivamente, o trabalho doméstico e a maternagem, ou o cuidar, também influenciou, ao longo da história, o caráter do atendimento prestado por essas instituições.

Desse modo, a análise da trajetória do perfil do profissional que atua nos Centros de Educação Infantil mostra que, antigamente, o pré-requisito para desempenhar esta função era apenas um conhecimento informal com base em experiências pessoais na criação de filhos ou no cuidado de crianças. Atualmente, coloca-se como desafio construir competências que imprimam intencionalidade nas interações entre adulto e criança e que viabilizem um fazer pedagógico pautado na indissociabilidade entre o ato de cuidar e o educar (OLIVEIRA, 2007).

Hoje, a formação do professor de educação infantil no âmbito dos CEIs passa, necessariamente, por uma reflexão sobre a construção dessa nova identidade profissional. Se por um lado o profissional deve se desvencilhar do caráter doméstico até então imposto à sua função, por outro necessita, também, como educador, ressignificar sua prática no que se refere a aspectos importantes para o desenvolvimento infantil relacionados à maternagem, como o significado do toque corporal e o seu papel na constituição de vínculos afetivos entre adultos e crianças.

No cotidiano dos CEIs, são várias as situações em que o professor precisa lidar com aspectos da afetividade infantil: a separação da mãe; a adaptação a um espaço coletivo de convivência; as muitas tarefas de higiene, alimentação, sono, entre tantos outros cuidados e ações pedagógicas. Ainda, convém considerar que, na maioria dos casos, o atendimento é prestado em tempo integral, ficando a criança, por muitas horas, afastada do convívio familiar, situação em que o professor passa a representar uma grande referência em sua formação de vínculos afetivos.

Leboyer (1989), médico francês divulgador da técnica indiana de massagem Shantala para bebês no Ocidente, afirma que ao nascer, junto com a criança, nasce, também, o medo e que, além de nutrir a barriga do bebê com leite, é necessário nutrir a sua pele, a fim de auxiliá-la nessa transição do útero para o mundo. Wallon (2007) afirma que, na primeira etapa do desenvolvimento infantil, ocorre um verdadeiro diálogo tônico entre o adulto e a criança através das reações corporais do bebê, as quais exercem essa função de manifestar emoções e mobilizar o adulto para atender às suas necessidades. Montagu (1988), em uma abordagem antropológica, discute o significado humano do toque investigando diferentes culturas e experiências sobre o comportamento de animais mamíferos, como a estimulação tátil propiciada pelo ato da fêmea lamber os seus filhotes. Nessa perspectiva o autor afirma que tocar é uma necessidade vital para o ser humano e, principalmente, para o desenvolvimento do bebê, constituindo-se numa linguagem não-verbal fundamental nas relações entre os indivíduos. Maturana e Rezepka (2008 p. 17) discutem ainda a importância da convivência no ato educativo: “O espaço educacional como espaço de convivência na biologia do amor deve ser vivido como espaço amoroso e, como tal, no encanto do ver, ouvir, cheirar, tocar [...]”.

A partir desses e de outros estudos, constata-se que, dentre os demais aspectos psíquicos, físicos, sociais e culturais, as interações afetivas e o toque corporal são fatores decisivos para o desenvolvimento infantil. Entretanto, talvez devido à forma e os critérios com que são planejadas as ações na linha do tempo no cotidiano do CEI, ou ainda, por não se conceber o contato físico como uma necessidade básica dos indivíduos, essa dimensão tátil e afetiva ainda é, por vezes, negligenciada ou pouco valorizada na agitada rotina de cuidados oferecidos às crianças nos Centros de Educação Infantil. Surge daí a necessidade de se ampliar a compreensão sobre o significado do ato de tocar, do contato físico, do colo, da estimulação tátil, das diferentes manifestações afetivas, enfim, das muitas formas de interação corporal que perpassam o processo de cuidar e educar crianças pequenas.

Abordar esta temática no processo de formação dos professores de educação infantil era o desafio que se colocava no Projeto em questão. Não se tratava apenas de promover a compreensão teórica deste conteúdo ou o mero planejamento e sistematização de ações e intervenções didáticas, mas, sim, buscar meios para que o profissional repensasse a sua própria relação com o toque e com a afetividade e, assim, ressignificasse a sua prática docente. Em tal processo era necessário provocar o reconhecimento dessa intersecção entre o eu profissional e o eu pessoal como discute Nóvoa (2007 p.17 - grifo do autor):

Aqui estamos. Nós e a profissão. E as opções que cada um de nós tem de fazer como professor, as quais cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar e desvendam na nossa maneira de ensinar a nossa maneira de ser. É impossível separar o eu profissional do eu pessoal.

Nos Centros de Educação Infantil, o processo de formação continuada, reconhecido atualmente como fator decisivo para a conquista da qualidade do ensino, estava sendo implementado, ainda de forma irregular, através de iniciativas isoladas nas unidades ou através do oferecimento esporádico de cursos e treinamentos. Na cidade de São Paulo, onde se desenvolveu o Projeto em questão, apenas em 2007, a jornada de trabalho dos professores de CEI foi reorganizada, no sentido de garantir-lhes, diariamente, momentos específicos para formação e planejamento (SÃO PAULO, 2007).

A discussão desse complexo conjunto de aspectos presentes no contexto em que se gestava aquela proposta de formação continuada junto a professores de educação infantil, envolvendo aspectos educacionais, culturais, sociais, econômicos, políticos, subjetivos, entre outros, conforme o exposto anteriormente, levou-me às reflexões propostas por Morin (2004 e 2008) em sua teoria da complexidade, no sentido de buscar compreender aquele processo sob o foco da multiplicidade:

O que me interessa é o fenômeno multidimensional e não a disciplina que recobre uma dimensão desse fenômeno. Tudo o que é humano é ao mesmo tempo físico, sociológico, econômico, histórico, demográfico; interessa, pois, que esses aspectos não sejam separados, senão concorram para uma “multivisão”. O que me motiva é a preocupação de ocultar o menos possível a complexidade do real. (MORIN apud GONZÁLEZ REY, 2005 p.18).

E, orientando-me por esse referencial da multiplicidade, para configurar o projeto em questão, além minha experiência com a técnica de massagem para bebês “Shantala”, percorri vários caminhos afim de elaborar uma metodologia que pudesse abranger de forma objetiva e subjetiva a temática envolvendo a questão do toque e da afetividade.

Entre outras abordagens, busquei inspiração nas contribuições psicopedagógicas de Fagali (1992 e 2001), que discute a necessidade de se repensar os processos de ensino e aprendizagem com base nesse enfoque do múltiplo, apontando a importância dos processos de sensibilização para a construção do conhecimento. Pautei-me, ainda, em alguns estudos baseados na psicologia de Jung (2008), principalmente no que se refere à correlação entre experiência corporal e processos inconscientes proposta pelo autor.

Deste modo, integrando técnicas de massagem, exercícios corporais, recursos da Psicopedagogia, intervenções com base na arte-terapia etc., foi estabelecido um espaço vivencial que deu sustentação aos estudos práticos e teóricos realizados no decorrer do Projeto, conforme será visto a seguir.

 

Desenvolvimento

O Projeto de formação de professores de educação infantil que ora apresento foi desenvolvido junto a um grupo de professores em um Centro de Educação Infantil – CEI – localizado em um bairro de periferia na zona leste da cidade de São Paulo, durante o ano de 2008. Na ocasião a unidade atendia trezentas crianças em idade de zero a quatro anos, contando com uma equipe de oitenta profissionais, dentre os quais setenta eram docentes e apenas dois do sexo masculino.

Desde que assumi as minhas atividades como diretoras neste CEI, em janeiro de 2004, eu tinha a intenção de lá implantar a técnica de massagem Shantala e desenvolver ações sobre esta temática. Nesse sentido, já naquele ano, promovi uma oficina envolvendo pais, professores e funcionários sobre essa técnica de massagem infantil, não havendo, porém, naquele momento, condições organizacionais para que se garantisse a continuidade daquela proposta.

Em 2007, buscando alternativas para o atendimento de uma aluna com necessidades especiais - portadora da Síndrome de Edwards -, retomei a proposta de utilização da técnica de massagem Shantala. A criança matriculara-se na escola no início do ano letivo por solicitação da APAE – Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, estando na ocasião com quatro anos de idade. Apesar das suas limitações físicas por usar cadeira de rodas, apresentar pouca coordenação em seus movimentos, e não ter ainda desenvolvido a sua fala, ela encontrava a cada dia novas formas de se comunicar. Ela demonstrava as suas vontades, os seus medos, as suas preferências, através de gestos, olhares, expressões faciais, demonstrando, porém, dificuldades no contato físico com as outras crianças e com as professoras, o que também ocorria na relação com a sua própria mãe e familiares.

Ao final daquele ano, abrindo espaço em meio às rotinas administrativas e à agitada linha do tempo do CEI, propus à coordenadora pedagógica, às professoras e à mãe da aluna que realizássemos alguns encontros para que eu pudesse transmitir informações e orientações sobre a técnica. Esta atitude representou uma experiência muito positiva para mim, para a equipe, para a família e, principalmente, para a criança que, segundo sua mãe, desde quando ela iniciara a aplicar a massagem Shantala, estava se abrindo para o contato físico, avanço este reconhecido até pelos profissionais da APAE.

Essa experiência motivou-me a formatar, em parceria com a coordenadora pedagógica da escola, uma proposta de ação que inserisse definitivamente a técnica de massagem infantil Shantala e a discussão de práticas envolvendo o toque no Projeto Pedagógico da escola. Para tanto, era necessário pensar no processo de formação dos professores e no processo de implantação desse trabalho junto às crianças. Essa tomada de decisão coincidiu com a orientação por parte da Secretaria Municipal de Educação de que fossem desenvolvidos Projetos Especiais de Ação – PEAs - nos Centros de Educação Infantil da cidade de São Paulo (SÃO PAULO, 2008). Historicamente, tratava-se da primeira iniciativa da rede municipal de ensino, no sentido de prever um horário regular para a formação continuada dos professores nos CEIs e promover o aprimoramento das práticas educativas.

As recentes mudanças ocorridas no âmbito do CEI, conforme discuti anteriormente, as novas exigências quanto à realização do PEA e, ainda, a temática específica a ser abordada – a questão do toque – suscitaram muitas polêmicas no momento de implantação do Projeto tanto entre os profissionais da equipe, como na própria rede municipal de ensino. Porém, assumindo todas as incertezas – na acepção de Morin (2008) - dei início às atividades do projeto em março de 2008.

Participaram desse processo de formação vinte e três professoras (refiro-me aqui a profissionais do sexo feminino), que aderiram ao trabalho espontaneamente e se organizaram em dois grupos. O Grupo 1, sob a minha coordenação como diretora da Unidade, contava com a participação de sete docentes e o Grupo 2, conduzido pela coordenadora pedagógica, era composto por dezesseis professoras. Durante o ano letivo, foram realizados cento e oito encontros, distribuídos em três reuniões semanais com uma hora de duração cada, além das ações desenvolvidas dentro da jornada de trabalho das professoras – seis horas diárias.

Partindo de conteúdos e estratégias por mim sistematizados, todo o planejamento e condução do trabalho também se pautavam por um constante diálogo com a coordenação pedagógica e pelas expectativas, interesses, dificuldades e descobertas manifestadas pelas integrantes dos grupos no decorrer do processo de formação.

O PEA – Projeto Especial de Ação foi denominado “Tocar e trocar: a inclusão do amor como currículo essencial”. Além do objetivo principal no sentido de desencadear um processo formativo e a implantação da técnica de massagem Shantala, o projeto estabelecia também algumas metas para o ano letivo de 2008: a mobilização de toda a comunidade escolar para a importância desta temática, a realização de oficinas envolvendo os demais docentes da equipe e as mães de alunos, como também a produção de um vídeo como forma de registro do trabalho.

Para abordar essa temática no processo de formação das professoras, busquei criar uma dinâmica própria que garantisse ao mesmo tempo a reflexão sobre aspectos subjetivos, teóricos e a implantação de novas práticas, o que por mim foi denominado de ‘tripé metodológico'. Partindo de algumas metáforas que a palavra toque suscita, conforme propõe Montagu (1988), o tripé metodológico oferecia ao trabalho a configuração expressa na seguinte tabela:

 

 

Desta forma, inicialmente eram desenvolvidas vivências envolvendo exercícios corporais, técnicas de massagem e de relaxamento ou outras formas de sensibilização como a leitura de poesias ou textos metafóricos, ou ainda recursos como música new age; exercícios simples de respiração e alongamento, apreciação de registros audiovisuais (vídeos e fotos) etc. Deflagrava-se, em seguida, a discussão sobre aspectos subjetivos como sensações, emoções, sentimentos, percepções pessoais, etc. Num outro momento, era proposto o estudo de abordagens que ajudavam na elucidação e compreensão dos conteúdos manifestados ou de outros importantes para a discussão da temática. Com base nessas vivências e discussões do grupo, realizava-se, então, o diagnóstico e o planejamento das intervenções junto aos grupos de crianças e outras ações previstas no PEA.

Contudo, no decorrer do processo de formação não era possível garantir essa ordem linear na sequência dos acontecimentos. Estabelecer uma dinâmica relacional, na qual eram permitidas a manifestação e a discussão de conteúdos subjetivos, exigia das coordenadoras estarem atentas e disponíveis para lidar com reações inusitadas dos grupos. Por exemplo, em um determinado momento a leitura de um texto teórico, cujo enfoque seria a princípio um estudo objetivo sobre os conteúdos, provocou manifestações afetivas. Numa outra situação, a sistematização de sensações experimentadas em uma vivência pode desencadear descobertas objetivas sobre a prática com as crianças. Em outro momento, ainda, o planejamento da prática possibilitou a compreensão de aspectos teóricos, ou mesmo a percepção de aspectos subjetivos manifestados anteriormente. Todavia, em cada uma dessas situações não se perdeu de vista os demais aspectos do processo de ensinoaprendizagem a serem contemplados. Nesse sentido a referência do tripé metodológico atuou também como uma forma de delimitar o caráter das relações naquele lócus formativo, e, mesmo possibilitando a expressividade de aspectos subjetivos, também mantinha o grupo atento ao seu processo de aprendizagem e ao aprimoramento de sua prática pedagógica.

A seleção de vivências utilizadas no projeto – o que me toca? - se deu, segundo critérios que contemplavam aspectos subjetivos e objetivos, tendo como referência a contribuição de Fagali (1992 e 2001) e Byington (2003) que enfatizam a importância dos processos de sensibilização, articulando conceitos da Psicologia junguiana aos processos de aprendizagem. Concebendo o psiquismo sob o enfoque da multiplicidade, Jung (11ª ed.) afirmava existir múltiplas funções psíquicas que orientam o funcionamento do ego, dentre as quais destacava quatro como básicas: o pensamento, o sentimento, a percepção e a intuição. Se o tocar como experiência tátil está diretamente ligado à função sensorial - perceptiva, como explica Oliveira (2000), o contato com a pele também provoca a manifestação de processos inconscientes como recordações, memórias, fantasias associadas à função intuição. Por outro lado, o toque também suscita sensações de prazer e desprazer - gostar ou não gostar de ser tocado - o que é uma manifestação da função sentimento. E todas essas experiências sensoriais, intuitivas e relacionadas aos sentimentos, também, ativam novas maneiras de compreender e explicar o mundo através da função pensamento. Assim, nas vivências propostas, eu procurava disponibilizar várias formas de expressividade e de contato com a temática toque, possibilitando a promoção de aprendizagens através de múltiplos canais.

Para a realização das vivências buscou-se estabelecer um clima de acolhimento e respeito com relação aos conteúdos pessoais manifestados. Havia um acordo coletivo no sentido de evitar intervenções invasivas e de garantir a preservação da privacidade de cada participante, cuidado este que também conduziu a elaboração deste artigo. Para exemplificar, inicialmente, propus uma vivência em que o grupo, de pé e em círculo, com todas as integrantes de olhos fechados, interagia através das mãos colocadas ao centro da roda. Após essa exploração coletiva, cada integrante, ainda de olhos fechados, escolhia através das mãos uma parceira para formar uma dupla e conversar sobre a experiência. Dessa maneira, escolhendo intencionalmente introduzir essa linguagem tátil através das mãos – considerando a aceitação cultural do aperto de mãos - essa proposta teve por finalidade explorar a percepção tátil e a entrega a essa nova forma de entrar em contato com o outro.

E assim, gradativamente, respeitando o processo de cada participante e de cada grupo, ia propondo novas formas de interação de modo que as professoras pudessem ir se aproximando aos poucos dessa nova linguagem. Após cada uma das vivências, propunha-se a reflexão e a sistematização das impressões e descobertas do grupo. Durante o ano, em vez de propor um grande número desse tipo de intervenção, optei por priorizar algumas vivências mais significativas, garantindo, porém, um tempo maior para o aprofundamento das discussões.

Esse cuidado em respeitar o ritmo e a maneira como cada professora entrava em contato com aquela linguagem não verbal, tinha também como intenção promover a autoreflexão sobre como cada docente se relacionava através do toque corporal com a criança, conforme o depoimento da professora M.T.: “Agora ao tocar a criança sempre tenho em mente: ‘será que ela está aceitando o meu toque? ’, ou seja, percebi a importância desse respeito mútuo e desse diálogo silencioso entre aluno e educador”

A fundamentação teórica – dando alguns toques - foi realizada mediante a leitura compartilhada de textos, debates, exposições em forma de seminário, pesquisas etc., envolvendo vários assuntos relacionados à temática em questão. Nesse processo, percebi que as muitas e diferentes percepções sobre o tema que surgiam a partir do trabalho vivencial mobilizavam o interesse do grupo para a compreensão dos aspectos teóricos. Do mesmo modo as descobertas no plano teórico provocavam a tomada de consciência de aspectos subjetivos contribuindo para o processo de autoconhecimento das professoras. Assim, ao lerem a poética obra de Leboyer (1989) “Shantala; uma arte tradicional; massagem para bebês”, para além de apropriar-se da técnica ali apresentada, os grupos puderam fazer várias reflexões articulando essas idéias às suas próprias vivências pessoais e profissionais sobre assuntos como: a vida antes do nascimento; a transição do bebê do útero para o mundo; o papel do adulto em acolher e proteger a criança após o nascimento; a importância do toque como alimento da pele; a qualidade do tempo dispensado à criança etc. Essas reflexões colocaram em cheque os automatismos com que comumente é conduzida a rotina de cuidados junto às crianças no cotidiano dos Centros de Educação Infantil, como exemplifica a professora E.C.:

Percebemos que, pelo menos nos grupos maiores, pouco tocamos as crianças, principalmente as mais tranqüilas e tímidas, pois estas não nos procuram ou mesmo não entram em situações que requerem nossa atenção. A nossa preocupação maior está sempre voltada para aquelas crianças mais agitadas, ou seja, pegamos sempre nas mãos das mais indisciplinadas(...)

Essa reflexão ampliou-se ainda mais com o estudo de alguns trechos da obra “Tocar, o significado humano da pele” de Montagu (1988). Neste estudo o autor analisa exaustivamente o importante papel exercido pela pele como órgão de contato no corpo do indivíduo e o significado do toque nas relações entre os humanos. Montagu propõe que a forma como os bebês são cuidados em determinadas culturas se reflete diretamente no perfil do adulto daquela comunidade, pois, segundo o autor, as experiências vividas são registradas através do que denominou a mente da pele. Assim, o autor conclui que os indivíduos precisam ser ensinados a tocar e serem tocados, pois amar se aprende amando. Essa percepção foi muito importante para o grupo ressignificar a abrangência de suas ações na relação com a criança pequena e perceber também o importante papel social a ser exercido pelos Centros de Educação Infantil no que se refere à formação dos indivíduos, como apontou a professora F.V.: “Olhando assim de fora para aquelas crianças interagindo de forma tão intensa com as minhas colegas, fiquei emocionada, pois percebi a dimensão política e social de nosso projeto.”

Com base em pesquisas que desenvolvi anteriormente (OLIVEIRA, 2000), foram abordados ainda temas como a construção do conhecimento através de experiências táteis, a partir do conceito de período sensório-motor proposto na teoria de Piaget (1995); a teoria da emoção de Wallon (2007); e inteligência corporal cinestésica de Gardner (1994). Foram apresentados, ainda, alguns conceitos da Psicologia de Jung (2008), no que se refere à interligação entre vivências corporais e processos inconscientes e de Reich (1998), enfatizando a compreensão do corpo como memória da história psíquica do indivíduo e aspectos da sexualidade.

Nesse processo de ensino-aprendizagem pude perceber, através dos registros e relatos apresentados pelas professoras, que, aos poucos, elas passavam a distinguir as diferentes abordagens. E, o que é ainda mais importante, começavam a diferenciar com autonomia e consciência as suas próprias construções do pensamento dos demais autores, aplicando com pertinência os saberes construídos na reflexão sobre sua prática como pode ser observado nesse depoimento da professora C.M.:

[...] embora não possamos substituir a importância da mãe na vida da criança, o educador precisa exercer esse papel, cuidando e educando de forma integrada. Retomando o pensamento de Montagu (1988) que ‘quando nasce uma criança nasce também uma mãe’, no início do ano letivo a criança é uma incógnita e o professor precisa criar o vínculo.

Com relação ao planejamento da prática – tocando em frente – a princípio, propus às professoras que realizassem um diagnóstico sobre como cada criança se relacionava com o toque, criando para esse fim um instrumental denominado rotas de carinho, no qual além dos registros sobre o comportamento das crianças, as professoras faziam uma autoanálise sobre a sua própria relação com o toque. Essa foi uma intervenção intencional no sentido de fazer com que as professoras exercitassem a observação e a escuta da criança, de modo a contribuir para o processo de implantação da técnica de massagem Shantala na rotina do CEI.

A partir das vivências e estudos, cada professora, a seu tempo, foi tendo iniciativas no sentido de inserir a aplicação da massagem no planejamento de sua turma. Todas as dificuldades, dúvidas e conquistas eram discutidas coletivamente nos encontros. Para o aprimoramento da técnica, por uma iniciativa das próprias professoras, durante o horário de formação, foram organizadas salas-ambiente para aplicação da massagem. Esta era uma forma das educadoras, em grupo, adquirirem a segurança necessária para a realização dessa nova prática. Paralelamente, com base nas vivências desenvolvidas no projeto, as professoras foram criando e inserindo outras atividades envolvendo o uso do toque em sua prática com as crianças, tais como: toques sutis com o uso de bexigas – inspiradas no trabalho de Pethö Sándor (DELMANTO, 1997) - roda de carinho; projetos didáticos sobre o tema tocar entre outras. Todos os relatos das práticas eram registrados em outro instrumental por mim denominado tocando em frente, no qual as professoras eram convidadas a expor as suas aprendizagens e as das crianças.

Em paralelo às intervenções junto às crianças e mediante os muitos saberes que se construíam a partir dessa prática e do processo de formação, durante o segundo semestre de 2008, várias ações foram se desencadeando no sentido de socializar tais saberes e mobilizar toda a comunidade escolar para essa reflexão sobre o significado do toque nas relações entre adultos e crianças. Nesse sentido foram realizadas as seguintes ações: oficinas sobre o tema toque, envolvendo os demais professores da equipe durante reuniões de planejamento; oficinas para mães e familiares abordando a técnica de massagem Shantala; participação como concorrente em um Prêmio Educacional; produção de um vídeo e organização de uma mostra de cultura infantil. Em tais experiências as professoras puderam vivenciar um novo papel como corresponsáveis pela mediação de outros grupos e segmentos, ampliando o seu olhar sobre o seu próprio percurso formativo.

Transitando entre o papel de idealizadora do projeto, coordenadora de grupo e diretora de escola, vivenciei também diferentes sensações e aprendizagens como pessoa e como profissional na relação com os grupos. Embora os dois grupos seguissem o mesmo planejamento, abordando os mesmos conteúdos, ao longo do processo, cada um foi constituindo a sua própria identidade e um perfil diferente. Tais diferenças ao longo do tempo deram origem a alguns conflitos. Na relação com Grupo 1, por mim coordenado, pude construir um novo vínculo, o que facilitava o ir e vir entre os vários papéis que desempenhava como idealizadora, gestora e formadora. Todavia, o mesmo não ocorreu na relação indireta que eu mantinha com o Grupo 2, conduzido pela coordenadora pedagógica, o qual começou a manifestar resistências, desaprovação ou mesmo distorções das minhas propostas. Percebi, conforme discute Byington (2003), que havia ali um jogo velado de projeções em que as professoras transferiam para a minha pessoa as suas expectativas para com a “Grande Mãe”, e em que eu, na contratransferência, buscava tratar de maneira igualitária e padronizada a todas as minhas filhas, já que essa condição de “Mãe Disputada” era bem confortável para mim como pessoa e como profissional! Partindo dessas reflexões, explicitei esses conflitos junto às professoras e, a fim de promover uma maior autonomia dos grupos, afastei-me intencionalmente do Grupo 2.

Ao mesmo tempo em que eu me sentia realizada profissionalmente com os resultados obtidos e com a abrangência alcançada por aquele projeto de formação por mim idealizado, naquele momento de ruptura com o Grupo 2 como pessoa, eu experimentei fortes sentimentos de rejeição, de ingratidão e desvalorização. Porém, a reflexão sobre as minhas reações e as do grupo, propiciou-me a percepção de que, embora seja papel do coordenador acolher e sistematizar os conteúdos manifestados, ele necessita considerar também a sua participação nessa dinâmica relacional. Assim, compreendi em minha própria pele – no sentido de pele proposto por Montagu (1988) – que para se abordar a subjetividade de outrem é necessário que, também, nos situemos como sujeito nessa relação. Trata-se efetivamente de um processo de troca.

 

Conclusão

Tocar o outro, na dimensão do corpo e do afeto, ampliando as comunicações verbais e não verbais, possibilita o autoconhecimento, a percepção do outro e o reconhecimento de como cada sujeito se encontra entrelaçado nesta rede de relações. Nesta dinâmica relacional, inevitavelmente, estes diversos outros se movimentam, aproximam-se, afastam-se; diferenciam-se em idades, funções, maturidades, estilos de sentir e de viver nos diferentes ciclos existenciais. Todos, porém, necessitam dessas relações complementares: crianças, professores, coordenadores, organizações familiares, instituição de educação infantil, comunidade.

Desse modo, as experiências desenvolvidas no contexto específico de um Centro de Educação Infantil demonstraram que houve ampliações das percepções e expressões dos professores em relação ao diálogo com as crianças por meio do toque corporal ou outras interações afetivas verbais e não verbais. Evidenciou-se também que, as condições de aprendizagem e de ensino dos educadores, em que se integraram o toque corporal, a manifestação afetiva e reflexões teóricas, puderam promover o seu autoconhecimento como pessoas e profissionais. Articulando subjetividade e objetividade, esse processo propiciou transformações de posturas e a criação de recursos pedagógicos relacionados a sensibilizações e toques corporais, que se mostraram viáveis em sua prática com crianças pequenas.

Além dos resultados positivos na aprendizagem das crianças por meio dos toques corporais e da técnica de massagem Shantala, o processo de formação desenvolvido com os professores a partir das sensibilizações psicopedagógicas e da expressão da sua subjetividade, permitiu também uma maior compreensão sobre o seu papel profissional no contexto da educação infantil. Os educadores ampliaram a sua concepção sobre o processo de cuidar e educar, tendo em vista as necessidades da criança em relação à integração do corpo, do afeto e da cognição. Assim, a relação afetiva necessária entre educadores, como adultos cuidadores, e crianças deixou de ser considerada apenas como uma exigência moral ou como um atributo feminino, segundo uma ótica assistencialista, passando a ser concebida como uma condição imprescindível para o desenvolvimento psico-educacional da criança pequena e para os processos de ensino-aprendizagem na educação infantil.

Nesta publicação foram apresentados apenas alguns recortes das experiências realizadas no processo de formação continuada em questão, num enfoque qualitativo de natureza “pesquisa participação”. O projeto continua ainda em andamento na unidade escolar através de novos desdobramentos e especificidades da dinâmica da instituição. Todavia, a avaliação dos profissionais envolvidos tem demonstrado o quanto a promoção destas práticas e reflexões na formação do professor de educação infantil possibilita o desenvolvimento mais integrado da criança e do adulto nas diferentes condições existenciais e de aprendizagem.

Sabe-se que existe ainda um vasto campo psicopedagógico e educacional a ser investigado no sentido de se viabilizar processos significativos de formação continuada no âmbito dos Centros de Educação Infantil. Todavia, as soluções encontradas no contexto específico em que se desenvolveu a experiência relatada neste artigo, ressaltam as relevantes contribuições dos toques, expressões corporais e mediações psicopedagógicas verbais e não verbais. Dessa forma apontam também alguns entre os diversos caminhos a serem percorridos e elaborados, que podem ser aprimorados através de pesquisas e projetos envolvendo o desenvolvimento psico-educacional da criança e a formação psicopedagógica do professor com foco na educação infantil.

Muitas vezes, a expressão dos afetos, o embalo de um bebê, o toque corporal ou a massagem realizada pelo adulto cuidador na criança, bem como um abraço de um educador ao colega ou aos pais de alunos, podem ser considerados como atitudes e contatos banais na rotina de um professor. No entanto, se tivermos consciência e cuidado em relação a estes atos e posturas, observaremos o importante valor destas interações e suas contribuições, numa esfera bem mais ampla, para o desenvolvimento das relações humanas. Em meio às mediações tecnológicas, ausências e abandonos, o amor e a construção de uma nova ética podem estar, sutilmente, se expressando através desse respeito mútuo, dessa importante presença corporal e da delicadeza do toque em suas diferentes dimensões.

 

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1 Pedagoga (UFSCar), psicopedagoga (PUC/SP), diretora de Escola da Rede Pública Municipal de Ensino de São Paulo e formadora de professores. E-mail: r.p.oliveira@uol.com.br.

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