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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.5 no.9 São Paulo  2000

 

RESENHA

 

K. H. K. WONDRACEK & D. JUNGE (orgs.). Cartas entre Freud & Pfister (1909-1939): Um diálogo entre a psicanálise e a fé cristã. Viçosa, MG: Ultimato, 1998

 

 

Leandro Alves Rodrigues dos Santos

Psicanalista, psicólogo clínico e escolar, mestrando em Psicologia no IPUSP

 

 

Crentes e ateus têm algo em comum, aferram-se às suas certezas de uma forma bastante radical, quase dogmática. Mas o que acontece quando dois representantes desses grupos decidem iniciar algum tipo de conversação, mesmo que, já de início, aparente se tratar de uma empreitada inviável? Temos no livro Cartas entre Freud & Pfister (1909-1939) - Um diálogo entre a psicanálise e a fé cristã um exemplo interessante sobre a possibilidade de uma interlocução entre dois sujeitos que tratam, apaixonadamente, cada qual a seu modo, das variadas formas do sofrimento humano.

Os sujeitos em questão são Sigmund Freud e Oskar Pfister. O primeiro é o criador da psicanálise, que dispensa maiores apresentações, e o segundo é um suíço, filósofo e teólogo, pastor protestante e contemporâneo de outro suíço, chamado Carl Gustav Jung; aquele a quem Freud depositou esperanças consideráveis sobre uma possível sucessão na missão de ampliar e solidificar a nascente teoria psicanalítica. Com Jung, Freud rompeu de maneira irremediável e até hoje enigmática, mas com Pfister, que Freud conheceu justamente por intermédio de Jung, ocorreu uma situação inversa. Durante trinta anos, houve uma profícua troca de correspondências, idéias e elucubrações sobre as possibilidades da psicanálise, enquanto terapêutica e, principalmente, como instrumento de elucidação de uma parcela considerável de fenômenos do psiquismo humano. São essas cartas que compõem o livro, iniciando em 1909 e terminando em 1937, algum tempo antes da mudança forçada de Freud para Londres. Anna Freud, relata que uma parte das cartas de Pfister foi destruída por seu pai, a pedido do próprio Pfister, que não desejava que chegasse a público algo "que pudesse ferir pessoas vivas" (1962, p. 19).

Mas, a despeito desse fato, essa lacuna não obscurece a intensidade do diálogo que se erigiu entre ambos, sobre uma vasta gama de assuntos. Apressadamente poderíamos imaginar que não sairiam do âmbito da educação e da religião, temáticas em que o pastor Pfister concentrou suas incursões, algo já sabido especialmente pelos interessados na intersecção entre a psicanálise e os dois campos de saber anteriormente citados. Não, o livro vai além e mostra, nas linhas - e nas entrelinhas - uma gradativa afeição mútua, uma amizade que veio a se solidificar, incluindo uma relação pessoal e familiar, como atesta Freud quando afirma "que nenhuma visita, desde a de Jung, teve tanto impacto nas crianças e trouxe tanto bem-estar a mim mesmo" (12/7/ 1909). Do lado de Pfister, também encontramos declarações calorosas, como quando assinala que "faz quase quinze anos que pude entrar pela primeira vez na sua casa, e rapidamente me apaixonei pelo seu modo amável e pelo espírito alegre e livre de sua família". E, ainda na mesma carta, comenta sobre uma oportunidade que teve de sentar ao lado da esposa e da cunhada de Freud, afirmando que se "sentia como na morada dos deuses olímpicos, e se me perguntassem sobre o lugar mais aprazível da terra, eu responderia: 'Informem-se na casa do professor Freud!'" (30/12/1923).

É estranho que Pfister, ao contrário de outros interlocutores, como Jung, Fliess, Adler e Ferenczi, por exemplo, não seja contemplado com a devida cota de importância pelos estudiosos da teoria e da história da psicanálise, pois algumas cartas denotam que Freud mantinha um tipo de relação bastante intensa com o pastor - carinhosamente alcunhado de "amado adversário" -, discutindo com vigor particularidades da técnica psicanalítica, que, naqueles dias, ainda começava a esboçar as feições de uma prática específica. As descobertas pontuais sobre a dinâmica pulsional, a interpretação de sonhos, a associação livre, a transferência, a resistência e, principalmente, sobre as possibilidades de curar ou atenuar as vicissitudes da condição humana são repetidamente citadas, em cartas que se assemelhavam a pequenos tratados teóricos. Pode-se supor que Pfister, com suas posições pessoais sobre a religião, a sexualidade e a crença na capacidade humana de amar incondicionalmente, tenha influenciado Freud, pois este, num determinado momento, agradece e frisa que "fiz muito pelo amor, como o senhor admite, mas não posso confirmar com minha experiência que ele reside no fundo de todas as coisas, a não ser que se some a ele também o ódio, o que é psicologicamente correto. Mas aí o mundo nos pareceria bem mais triste" (17/3/1910). Temos aqui então um exemplo clássico do estilo freudiano, contundente.

Freud, como inúmeros historiadores do ambiente psicanalítico de então apontam, era um hábil comandante, um articulador eficaz no plano de solidificar e expandir a psicanálise, sendo muitas vezes duro com aqueles que, de alguma maneira, o contrariavam. Um exemplo desse fato pode ser encontrado num trecho em que Freud diz: "Em Viena, aconteceu uma pequena crise, da qual ainda nada comuniquei a Jung. Adler e Stekel pediram demissão (...) As teorias de Adler afastavam-se demais do caminho correto. Era hora de fazer oposição a isto (...) É certo que sempre me propus a ser tolerante e não exercer autoridade; na realidade, porém, isto não é possível. É como o veículo e os pedestres. Quando comecei a andar de condução todo dia, irritava-me com a imprudência dos pedestres, assim como em tempos passados, com a falta de consideração dos cocheiros" (26/2/1911). Como ter acesso a afirmações desse naipe, senão pelas correspondências? Elas permitem uma via de expressão mais íntima, em que as confidencias podem ser enunciadas, quase que como um segredo partilhado com o outro.

O livro está recheada delas, algumas até mesmo cômicas, como quando Pfister envia os originais de seu livro Aplicações da psicanálise na pedagogia e na cura de almas, e Freud, agradecendo, afirma: "Li hoje as provas de seu qualificado trabalho para a Imago e somente lhe peço que me mencione, como dono da casa, com mais moderação. Já sei qual é sua intenção, e os adversários somente seriam estimulados para altercações" (9/2/1912). Um outro trecho digno de destaque é aquele em que Freud indaga a Pfister: "Por que nenhum de todos esses devotos criou a psicanálise, por que foi necessário esperar por um judeu completamente ateu?" (9/10/1918). E Pfister, vinte dias após, retruca: "Porque devoção ainda não significa gênio de descobridor, e porque os devotos em boa parte não foram dignos de produzir esses resultados". E, ainda na mesma carta, reitera que "quem vive para a verdade vive em Deus, e quem luta pela libertação do amor, segundo 1 João 4.16, permanece em Deus. Se o senhor se conscientizasse e experimentasse a sua inserção nos processos mais amplos, o que a meu ver é tão necessário como a síntese das notas de um sinfonia beethoveniana para formar a totalidade musical, eu gostaria de dizer também do senhor: 'Jamais houve cristão melhor'" (29/10/1918).

Ainda nessa linha, Freud exibe sua marca inconfundível, quando, ao tratar de um trabalho de tradução, comunica a Pfister: "Quanto ao seu tradutor, preciso dizer uma palavrinha. Eu mesmo conheço L., ele é um sujeito bastante limitado e rude, na verdade, um completo burro. A não ser que tenha mudado muito" (11/3/1913).

Ou ainda, quando critica Jung acerca de sua conduta com a sra. H., afirmando que Jung talvez não estivesse maduro tecnicamente para casos de tal intensidade. Freud pede textualmente que Pfister "não acredite muito em um entendimento pessoal entre mim e Jung. Ele exige demais de mim, e eu estou me retraindo bastante depois da superestimação da sua pessoa" (1º/1/1913).

Pfister, por sua vez, reitera: "Estou definitivamente cheio da mania junguiana. Essas interpretações que consideram toda sujeira como elevada marmelada da alma, que rotulam todas as perversidades como santos oráculos e mistérios e que contrabandeiam para dentro de cada alma acabrunhada um pequeno Apolo e um Cristo não prestam" (19/7/1922). Podemos aventar a possibilidade de que Pfister também tenha rompido com Jung, postando-se fielmente ao lado de Freud, organizando então a logística institucional da psicanálise na Suíça.

Esses detalhes, aparentemente pitorescos, na verdade colaboram para a apreensão da atmosfera européia da época, que influenciou a nascente ciência psicanalítica, como por exemplo no encaminhamento de pacientes; quando Freud responde a Pfister que ele se disporia a atender uma médica, "desde que ela pague os agora habituais 40 francos por hora e permaneça até que a análise tenha a perspectiva de alcançar algum sucesso, isto é, de 4 a 6 meses; por menos tempo não vale a pena" (20/3/1921); ou ainda quando Freud comunica a Pfister que estava atendendo diversos médicos americanos e que seus honorários correspondem a 20 dólares por hora, o que provavelmente era um valor considerável na época. Aliás, quantos brasileiros poderiam pagar 20 dólares por sessão, hoje?

Alguns detalhes permeiam grande parte das cartas, tanto de um lado quanto do outro; o primeiro deles denota uma intensa atividade de ambos na organização de congressos psicanalíticos, produções teóricas para as revistas científicas da época, arrecadação de fundos para a editora que publicava material psicanalítico, além de reserva de hotéis, passagens de trens e outras burocracias do gênero. Isso merece ser citado, pois evidencia a intensa rede de colaboradores que Freud arregimentou em suas hostes, o que nos permite supor que grande parte da força do movimento psicanalítico deveu-se a esse trabalho incansável de Freud.

Outro detalhe é a troca constante de material teórico, pois durante todo o livro, as notas de rodapé clarificam sobre as obras em questão, tanto de Freud quanto de Pfister. As mortes de colaboradores importantes, como Tausk, Rorschach e Ferenczi, são citadas e comentadas com pesar, e parceiros, como Aichhorn, Zulliger, Jones, Abraham, Hall e outros, são igualmente citados com consideração eloqüente, além de Reich, quando do lançamento de seu livro A análise do caráter, técnica e embasamento para analistas praticantes e estudiosos, que Pfister admira, pedindo o apoio de Freud para as idéias inovadoras que se faziam presentes no referido livro.

Mas a principal contribuição dessa coletânea de cartas reside na constatação da influência de Pfister sobre Freud no quesito religião, facilmente verificável nas palavras de Freud: "Nas próximas semanas sairá uma brochura de minha autoria, que tem muito que ver com o senhor. Eu já a teria escrito há tempo, mas adiei-a em consideração ao senhor, até que a pressão ficou forte demais. Ela trata - fácil de adivinhar - da minha posição totalmente contrária à religião - em todas as formas e diluições, e, mesmo que isto não seja novidade para o senhor, eu temia e ainda temo que uma declaração pública lhe seja constrangedora. O senhor me fará saber, então, que medida de compreensão e tolerância ainda consegue ter para com este herege incurável" (16/10/1927). A brochura é, obviamente o bombástico texto O futuro de uma ilusão, em que Freud demole impiedosamente as esperanças humanas no paraíso prometido pelas religiões. Pfister, que na polêmica se assemelhava muito a Freud, responde rapidamente: "No tocante à sua brochura contra a religião, sua rejeição à religião não me traz nada de novo. Eu a aguardo com alegre interesse. Um adversário de grande capacidade intelectual é mais útil à religião que mil adeptos inúteis. Enfim, na música, filosofia e religião eu sigo por caminhos diferentes dos do senhor. Não poderia imaginar que uma declaração pública sua pudesse melindrar; sempre achei que cada um deve dizer sua opinião honesta de modo claro e audível. O senhor sempre foi paciente comigo, e eu não o seria com o seu ateísmo?" (21/10/1927).

É notável a classe e a fineza de ambos, mesmo partindo de posições antagônicas, algo muitas vezes incomum quando observamos algumas discussões acaloradas de psicanalistas, que eventualmente pensem de maneiras opostas. Pfister respondeu ao artigo de Freud com o texto "Ilusão de um futuro" publicado em 1928, na revista Imago. A importância desse texto, especialmente quando se considera a quem foi endereçado, deve ser mensurada e alçada ao status de objeto de atenção por parte dos interessados em ampliar os conhecimentos sobre as possíveis interfaces entre a psicanálise e a religião. E essa a proposta dos editores brasileiros, o Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC), localizado em Curitiba e que, nas palavras de um de seus membros, a tradutora do livro, Karin Hellen Kepler Wondracek, "...por mais de vinte anos tem sido um fórum permanente de debates, resultando num intercâmbio fecundo entre as profissões que lidam com a alma - palavra preciosa para Freud e Pfister - e a fé" (p. 11).

O livro se encerra com Freud às voltas com sua prótese, seus artigos de cunho mais culturais, a ascensão do nazismo e sua perplexidade diante da longevidade. Já Pfister nos mostra em suas últimas cartas as tentativas de ajudar a família Freud a fugir do nazismo, demonstrando nesse momento uma solidariedade preciosa, encontrável apenas nas mais profundas amizades. A última carta de Pfister é de 12/12/1939, endereçada à viúva Freud, qualificando seu falecido marido de "magistral e ao mesmo tempo infinitamente bondoso titã".

Este é Oskar Pfister, um apaixonado pela psicanálise e pela vida, em que se viu diante de inúmeras dúvidas existenciais, como por exemplo sobre sua atividade religiosa e seu casamento, mas, a despeito desses momentos, dedicou-se ao acolhimento de uma dor específica, a da alma. Foi um pesquisador dinâmico, com mais de 200 artigos publicados, além de inúmeros livros que tratavam de variados assuntos, incluindo nesse rol a pedanálise, sua tentativa de aplicação da psicanálise à pedagogia, que influenciou um grande números de educadores da época, sendo traduzida em diversas línguas. Somente alguém tão sensível e corajoso no enfrentamento dos mistérios da condição humana poderia alicerçar tal obra, e, para concluir essa resenha, nada melhor que as palavras do próprio Pfister, no prefácio de seu livro de 1944, chamado Das Christentum und die Angst (O cristianismo e a angústia), que relata como chegou à psicanálise, partindo de seu desejo de colaborar para alguma transformação no sofrimento daqueles que o procuravam como pastor: "Tão logo procurei aplicar os novos conhecimentos na cura de almas, provei a alegria do descobridor e do auxiliador, sempre de novo experimentada. Principalmente o estudo das neuroses fóbicas e compulsivas, como também suas seqüelas na vida religiosa e moral, abriu meus olhos para as principais conexões e suas leis. Até as insensatas excentricidades religiosas, como as interessantes neoformações, aprendi a compreender em sua dimensão causai. (...). Experimentei como a neurose altera a prática cristã do devoto, de modo que esta adquire traços neuróticos (...) Os dogmas são monstruosamente ressaltados, transformando-se por vezes em fetichismo dogmático. Desta forma, de uma religião do amor, o cristianismo transformou-se, talvez na maioria das vezes, em uma religião de angústia perante os dogmas. Deus, de um Pai celestial amoroso, transformou-se - em épocas especialmente negras de um cristianismo coercitivo - num Pai sinistramente dogmático" (pp. 15-7).

 

 

Recebido em outubro/2000