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Psicologia: teoria e prática
versão impressa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. v.4 n.1 São Paulo jun. 2002
RESENHA
Escolha da paixão: uma análise do romance entre Camille Claudel e August Rodin à luz da psicanálise
Maria Alice Barbosa Lapastini
Universidade Presbiteriana Mackenzie
ROCHA, Ana Maria Martins Lino (2001). Escolha da paixão: uma análise do romance entre Camille Claudel e August Rodin à luz da psicanálise. São Paulo: Vetor, 133 pp.
Com muita freqüência temos visto as contribuições da psicanálise sendo utilizadas na compreensão de fenômenos psicológicos além da prática clínica. Neste livro a autora apresenta-nos uma análise do romance entre Camille Claudel e August Rodin a partir do referencial psicanalítico, priorizando as idéias de Freud, Winnicott, Joyce McDougall e Piera Aulagnier.
Inicialmente faz um breve histórico da vida pessoal e familiar de cada um deles, como se conheceram e as peculiaridades da relação estabelecida por eles. Estas informações são importantes, pois ao longo do texto são articuladas com os vários questionamentos levantados acerca da paixão, do desenvolvimento psíquico e da construção do ser. Além disso, a autora com freqüência faz análise das obras de arte dos artistas, permitindo um recurso a mais na compreensão da trama passional.
Por que nos apaixonamos? Porque a paixão de Camille e Rodin tornou-se patológica? Essas e muitas outras perguntas são lançadas e respondidas pela autora ao longo do livro, com um aprofundamento teórico dos principais conceitos envolvidos na compreensão do funcionamento e dinâmica psíquica dos escultores. Percorrendo importantes textos freudianos, não só explicita, de modo claro e conciso, conceitos como narcisismo, identificação, luto e melancolia, como também aponta para as modificações teóricas elaboradas por Freud nestes trabalhos.
Além de Freud, perpassa por autores psicanalíticos da envergadura de Piera Aulagnier e Joyce McDougall e, sempre numa linguagem esclarecedora, trata da problemática da paixão, profundamente, articulando-a com conceitos como processo identificatório e constituição egóica.
O ponto central do livro é a discussão da paixão a partir da falta constitutiva e dos movimentos identificatórios e a correspondente complexidade da relação entre o Eu e os objetos, e entre o Eu e seus ideais. A autora elabora uma compreensão da escolha da paixão como uma forma peculiar de reorganização do Eu; reorganização que visa, em última instância, uma tentativa de manter-se vivo.
Ancorada na visão de McDougall, apresenta, ainda, as implicações da paixão com a perversão, ou seja, trata do caráter perverso da paixão. Traz questionamentos como: “A escolha da paixão estaria mesmo a serviço da criação, já que possui o caráter inventivo e inovador das perversões?” Nas respostas às suas perguntas, a autora mantém-se muito cuidadosa em estabelecer a diferenciação entre criações perversas e art ísticas.
Ampliando ainda mais a compreensão sobre a escolha da paixão, traz algumas contribuições de Piera Aulagnier, destacando o posicionamento desta no que se refere ao interjogo estabelecido entre a relação passional e a criação, ou entre a relação passional e a psicopatologia. Para Aulagnier a relação passional estaria a servi ço da criação ou da psicopatologia. Em sua discordância ao pensamento desta autora, traz como contraponto as importantes contribuições de Winnicott, que vincula a criatividade e a transicionalidade, como espaço de transformações relacionais.
A certa altura do texto, relaciona o movimento da paixão com a modelagem do potencial criativo do ser humano. Para tanto, recorre às idéias de Winnicott, principalmente aos seus conceitos sobre “o gesto espontâneo”, “a continuidade do ser”, “o falso-self” e “a transicionalidade”. Dedica um grande espaço do livro às idéias fundamentais de Winnicott articulando-as com a escolha da paixão. Inicialmente explicita estas idéias para posteriormente relacioná-las com a paixão e, por fim, conclui com frases sintéticas e bastante esclarecedoras.
Ainda empenhada em argumentar sobre os aspectos positivos da paixão, recorda ao leitor as contribuições de McDougall e Christian David, autores que defendem a idéia da paixão como uma forma de expressão vital do desenvolvimento psíquico.
Reporta-se à caracterização dos tipos de relação objetal, dando ênfase ao período de desenvolvimento caracterizado pelo estado fusional com o outro, relação esta como uma possibilidade de existência, embora primitiva e insustentável em si mesma. Relaciona falhas na introjeção da figura materna, aspecto importante na história de vida de Camille, já que a mutualidade com a figura materna não se realizou suficientemente. Além disso, a autora desenvolve uma compreensão ampla e profunda de outra marca existente na paixão: a ambivalência.
Como se pode notar, a paixão, um amor problemático, é trabalhada de forma ampla e profunda, analisada sob vários ângulos. Para tanto, a autora relaciona paixão e criatividade, criatividade e pulsão de morte, pulsão de morte e experiência transformadora, pulsão de morte e paixão e, por fim, paixão e idealização.
O texto traz, com sensibilidade e beleza e, por vezes, com poesia, aspectos arcaicos do psiquismo, como a vivência da falta num período precoce do desenvolvimento tornando-a insuportável ao ego e ameaçando-o de um colapso.
Trata-se de uma leitura estimulante, reflexiva, que articula conceitos psicanalíticos complexos de maneira significativa. A autora provoca, com sua escrita expressiva, uma experiência emocional, mobilizando no leitor angústias de natureza profunda, próprias do existir humano.