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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.15 no.2 São Paulo ago. 2013

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

Representações sociais de violência urbana entre policiais civis

 

Social representation of violence among civil police

 

Representaciones sociales de violencia urbana entre policías civiles

 

 

Luciana Ferreira de Almeida; Maria de Fátima de Souza Santos

Universidade Federal de Pernambuco, Recife - PE - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo teve como objetivo compreender as representações sociais de violência urbana entre policiais civis do Recife e a relação com suas práticas profissionais. Utilizou-se como suporte a teoria das representações sociais que visa compreender as teorias do senso comum construídas coletivamente. Foi realizada uma associação livre por meio de questionário acessado on-line, respondido por 108 participantes, e, em seguida, entrevistas individuais, com 12 participantes. O conteúdo das entrevistas foi analisado através do software Alceste que gerou cinco classes, reunindo discursos sobre a valorização e o investimento na formação do policial, as mudanças nas práticas policiais, as práticas criminais, a família "desestruturada" como uma causa da violência, causas e consequências da violência, e, finalmente, os procedimentos policiais nas abordagens à população. Os resultados demonstraram que os participantes objetivam a violência urbana nos crimes e as representações sociais dessa violência podem estar ancoradas em uma ligação entre pobreza, violência e drogas.

Palavras-chave: violência urbana; policiais civis; representações sociais; Alceste; crime.


ABSTRACT

This article presents some results of a research that aims to understand the social representation of urban violence between Recife's police officers and their professional practice. Used as theoretical support, the Theory of Social Representation studies the common sense theories collectively constructed. Data collection occurred in two stages: initially an online questionnaire based on free association, answered by 108 participants. Then 12 participants were individually interviewed. The content of these interviews was analyzed through Alceste software that generated five classes, bringing together discourses of valuing and police training investments: changes in the police practice, the criminal practice, 'dysfunctional' family as a cause of violence, causes and consequences of violence and, finally, the policies approaches to the population. The result shows that the participants objectify the urban violence in crimes and social representation of violence may be anchored in a link between poverty, violence and drugs.

Keywords: urban violence; police officers; social representation; Alceste; crime.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo entender las representaciones sociales acerca de la violencia urbana que tienen los policías civiles de Recife y la relación con sus prácticas profesionales. Para ello, se utilizó como base teórica la teoría de las representaciones sociales que visa comprender las teorías del conocimiento del sentido común como conocimientos construidos colectivamente. Se realizó la asociación libre a través de cuestionario on-line respondido por 108 participantes, y en seguida, entrevistas individuales a 12 participantes. El contenido de las entrevistas fue analizado utilizando el software Alceste que generó cinco clases reunindo discursos sobre la valoración y la inversión en la formación del policía, los cambios en las prácticas policiales, las prácticas criminales, la familia desestructurada como una causa de la violencia urbana, causas y consecuencias de la violencia, y, finalmente, los procedimientos policiales en las abordajes a la población. Los resultados demostraron que los participantes tienen el concepto de que la violencia urbana en los crímenes y las representaciones sociales de esta violencia, pueden estar ancladas en una vinculación entre pobreza, violencia y drogas.

Palabras clave: violencia urbana; policías civiles; representaciones sociales; Alceste; crimen.


 

 

Este trabalho teve como objetivo principal analisar as representações sociais de violência urbana entre policiais civis. O problema da violência tem suscitado na sociedade cobranças pela atuação preventiva e/ou repressiva dos órgãos de segurança pública que, segundo a Secretaria Nacional de Segurança Pública (2008), deve ser garantida pelos profissionais que atuam na preservação da ordem pública. Dessa forma, são os policiais que executam a função fim atribuída ao Estado no tocante à segurança, confrontando-se, assim, cotidianamente com situações de violência.

Apesar das delimitações teóricas quanto às funções específicas da polícia civil e da polícia militar em Pernambuco, atualmente existe certa fluidez quanto às atividades desempenhadas pelas polícias, ou seja, a polícia civil (PC) desempenha papéis que na teoria são característicos da polícia militar (PM), que é considerada como uma polícia ostensiva, responsável pela prevenção e repressão da violência. Não é raro encontrar policiais civis nas vias da cidade do Recife realizando blitz para repressão ao uso do álcool durante a condução de veículos ou realizando abordagens em alguns locais. Dessa forma, os policiais civis, ao executarem tanto funções administrativas como ostensivas e preventivas, estão atuando com cada vez mais proximidade ante as práticas de violência urbana. Nessa perspectiva, cabe questionar quais os sentidos dados pelos policiais à violência urbana e como tais sentidos podem ser referência para as suas práticas profissionais.

Na vida cotidiana, a violência tem se configurado como uma preocupação constante e tomado proporções cada vez maiores nos mais variados contextos sociais (Costa, Coutinho, & Araujo, 2011). Abarcando espaço na mídia, nas conversas informais (Santos, Aléssio, & Silva, 2009) e em produções acadêmicas, ela circula nos discursos, provocando simultaneamente (re)construções no plano individual e grupal, caracterizando-se, assim, como um objeto de representações sociais (Porto, 2009; Almeida, Almeida, Santos, & Porto, 2008; Santos & Aléssio, 2006; Minayo, 2005, 2006; Pinheiro & Almeida, 2003).

As representações sociais são teorias de senso comum, elaboradas coletivamente por grupos sociais específicos, que se constroem por meio dos processos de objetivação e ancoragem e atuam transformando o não familiar em familiar. Enquanto o processo de objetivação torna concreto aquilo que antes era abstrato, o processo de ancoragem dá sentido ao objeto inscrevendo-o no sistema de conhecimento prévio. O sujeito retém do objeto as informações que lhe são mais significativas, de acordo com suas experiências e conhecimentos prévios. Dessa maneira, o processo de objetivação torna simples o que era complexo (Almeida, A. M. O., 2005; Almeida, L. M., 2005; Santos, 2005). O processo de ancoragem atua inserindo o objeto social desconhecido entre as categorias preexistentes no sistema de conhecimento e valores dos sujeitos. Nesse processo, o conhecimento anterior modifica o novo objeto e é modificado por ele. Conforme Almeida, L. M. (2005, p. 127), "um novo objeto é ancorado quando ele passa a fazer parte de um sistema de categorias já existentes, mediante alguns ajustes".

Segundo Moscovici (2007), as representações sociais são construídas para possibilitar a comunicação entre as pessoas e atuam orientando e justificando as condutas e construindo identidades grupais. Considera-se haver uma relação de reciprocidade entre as representações e as práticas do grupo. As representações orientam as práticas sociais, mas são, ao mesmo tempo, originadas dessas práticas (Almeida, A. M. O., 2005).

Estudar representações sociais corresponde a:

[...] investigar o que pensam os indivíduos acerca de um determinado objeto (a natureza ou o próprio conteúdo da representação) e porque pensam (que funções o conteúdo de uma representação assume no universo cognitivo e social dos indivíduos). Ao nos debruçarmos sobre a teoria das representações sociais, passaremos a enfocar a forma como pensam os indivíduos (quais são os processos ou mecanismos psicológicos e sociais que possibilitam a construção ou a gênese deste conteúdo) (Almeida, A. M. O., 2005, p. 125, grifo nosso).

É nessa perspectiva que se buscou analisar as representações sociais de violência entre policiais e sua relação com as práticas profissionais. O que pensam os policiais sobre violência urbana? Por que pensam e como pensam? Há relação entre as representações sociais de policiais sobre a violência urbana e sua prática profissional?

Para Misse e Lima (2006, pp. xi-xii), violência urbana

[...] diz respeito a uma multiplicidade de eventos (que nem sempre apontam para o mesmo significado mais forte da expressão violência) que parecem vinculados ao modo de vida das grandes metrópoles na modernidade tardia. Esses eventos podem reunir na mesma denominação geral, motivações e características muito distintas, desde vandalismos, desordens públicas, motins e saques até ações criminosas individuais de diferentes tipos, inclusive as não-intencionais como as provocadas por negligência ou consumo excessivo de álcool ou outras drogas.

Misse e Lima (2006) comentam que a violência urbana demonstra o desgaste das redes de controle social, como também o surgimento e a rápida evolução do "crime organizado" na América Latina e no Brasil, especialmente o crime vinculado ao tráfico internacional de drogas. Ainda segundo Misse e Lima (2006, p. 35), "A representação social dominante revela uma expectativa racional, amplamente difundida, de que privação relativa e pobreza extrema podem conduzir ao crime". E a polícia não adotaria seu "roteiro típico", caso este não fosse fundamentado em uma associação imaginária anterior entre "pobreza, limites estruturais e revolta social, e entre revolta e violência popular" (Misse & Lima, 2006, p. 35).

Anchieta e Galinkin (2005), ao analisarem as representações sociais de violência entre policiais civis, afirmam que estes constroem representações que permitem explicar e justificar a sua ação, algumas vezes violentas. Anchieta e Galinkin (2005, p. 30) enfatizam a importância de se buscar compreender o sentido dado por policias à violência em suas práticas profissionais, na medida em que compreender as representações pode contribuir para se "entender, ou pelo menos conjeturar sobre as ações e comportamentos desses agentes no seu lidar com a violência".

 

Método

Antes de iniciar o trabalho de campo, foi feito um contato com a chefia de Polícia Civil e agendada uma reunião na qual se apresentou o projeto de pesquisa e se esclareceram os objetivos dele, obtendo-se, assim, a assinatura da Carta de Anuência para a realização da pesquisa. Em seguida, o projeto foi submetido à avaliação e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Pernambuco, com Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (Caae) nº 00093.0.172.000-10. Além disso, solicitou-se a cada participante que assinasse o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Participaram desta pesquisa policiais civis lotados nas delegacias distritais de Recife que ocupam os cargos de agente, escrivão(ã) e delegado(a) de polícia, de ambos os sexos e idades a partir de 18 anos. Quanto à escolaridade, apresentam o ensino médio ou superior. Todos os sujeitos selecionados, com exceção de um deles, tinham mais de três anos no exercício na função (conclusão do estágio probatório).

A pesquisa foi realizada em duas etapas. Na primeira etapa, 108 policiais responderam a um questionário de associação livre, no qual se solicitava que os sujeitos associassem livremente a partir de um termo indutor (violência urbana). Em seguida, o sujeito era convidado a numerar as palavras por ele associadas por ordem de importância ("aquela que melhor definia a violência urbana") e justificar a escolha da palavra mais importante. Em um segundo momento, foram convidados 12 policiais, de duas delegacias diferentes e que haviam feito parte da primeira etapa, para realização de uma entrevista. A escolha dos 12 entrevistados foi em função da disponibilidade deles em dar a entrevista.

A análise dos dados da associação livre permitiu delinear a estrutura da representação social de violência entre os policiais. Observou-se que, para eles, a violência urbana se concretizava na ideia de homicídio, roubo e tráfico de drogas, cuja causa estaria no desemprego e na desigualdade social, que eram ainda associados à falta de escolarização e de educação. Tais resultados permitiram compreender o que pensam os sujeitos sobre a violência, entretanto buscava-se ainda compreender como pensam e por que pensam. Essas questões puderam ser respondidas a partir das entrevistas realizadas.

Em cada delegacia, buscou-se entrevistar dois policiais na função de agente, dois na função de escrivão(ã) e dois na função de delegado(a).

Para selecionar as duas delegacias onde se realizaram as entrevistas, foram solicitados à Gerência de Análise Criminal e Estatística (Gace) da Secretaria de Defesa Social os dados estatísticos sobre o número de registros de boletins de ocorrências (BO) no período de janeiro de 2007 a dezembro de 2009 (com a devida autorização do secretário de Defesa Social). Assim foram selecionadas as duas delegacias com maior número de registros.

O quantitativo de entrevistados foi estipulado para estabelecer um parâmetro inicial que permitisse entrevistar o mesmo número de participantes em cada uma delas, de forma a haver certa representatividade para cada função.

As entrevistas tinham início com a apresentação dos principais dados obtidos na associação livre, solicitando-se aos sujeitos que dissessem o que pensavam sobre tais resultados e se eles tinham semelhanças com o seu modo de pensar a violência urbana. Em seguida, eram mostradas duas imagens, uma de cada vez, informando-se que seriam utilizadas para ajudar a pensar sobre o tema. As fotos continham ce-nas que incluíam claramente policiais em ação em contextos diferentes. Elas foram retiradas de notícias veiculadas na mídia impressa (www.estadao.br) e na internet (blog: fredsonpaivareporter.blogspot.com). A primeira foto correspondia a uma das ações da "operação verão" realizada em Pernambuco.

A segunda foi veiculada no site do jornal O Estado de S. Paulo com a legenda: "MAIS CURIOSIDADE QUE ESPANTO - Cadáver deixado em carrinho de compras perto do Morro dos Macacos" ("O risco de vestir a faixa...", 2009). Esta última cena ocorreu na cidade do Rio de Janeiro.

Essas imagens serviram como facilitadoras para a introdução do tema violência, das práticas policiais diante da violência e seu posicionamento diante das ações governamentais no enfrentamento da violência urbana. Após mostrar as fotos, pedia-se que os sujeitos as descrevessem, iniciando-se assim um conjunto de perguntas sobre o que eles pensavam e sentiam a respeito da violência urbana. Finalmente, eram feitas algumas questões sobre a trajetória profissional do policial e o que era ser policial civil para eles.

O material discursivo obtido com as entrevistas foi analisado com o apoio do programa computacional de análise estatística de textos Alceste. Esse software, desenvolvido por Max Reinert (1998), empreende uma análise das coocorrências de palavras nos enunciados do texto. A partir do cálculo da coocorrência das palavras, o programa realiza uma classificação hierárquica descendente (CHD) reunindo em classes as palavras que vêm juntas em um discurso. O objetivo da análise com esse software é assinalar classes de palavras que indicam diferentes formas de discurso sobre o objeto em questão. Uma vantagem na sua utilização é obter uma visão geral, em pouco tempo, de um expressivo corpus de dados (Kronberger & Wagner, 2002).

 

Análise e discussão

Em sua análise, o Alceste revelou a formação de cinco classes estáveis representadas na Figura 1. A classe 1 reúne os discursos a respeito da necessidade de formação e de valorização da profissão do policial, enquanto a classe 2 faz referência às práticas policiais e criminais. A classe 3 reúne os discursos sobre a família e sua relação com a violência, enquanto as classes 4 e 5 referem-se à violência urbana e ao papel da polícia no seu enfrentamento. A Figura 1 apresenta a presença das formas reduzidas das palavras representativas de cada classe, os χ2 (qui-quadrados) de associação e os títulos atribuídos a cada uma das classes. Ressalte-se que o qui-quadrado é teste de hipótese que tem como objetivo encontrar um valor da dispersão de duas variáveis nominais, verificando a associação entre duas variáveis qualitativas. O princípio básico desse método é comparar possíveis divergências entre as frequências observadas e as frequências esperadas para um certo evento.

Classe 1: valorização e formação do policial

Essa classe concentrou as respostas sobre a profissão policial e a importância da valorização dos policiais, especialmente quanto à formação e ao salário. Na classificação hierárquica descendente (Figura 1), essa classe comporta os discursos sobre a realiza-ção do concurso para ingresso na instituição policial como uma oportunidade de emprego e remete ao salário insuficiente, que leva à prática dos denominados "bicos" - atividades laborais remuneradas exercidas fora da polícia. Contempla também os discursos acerca da formação dos policiais, ao mencionarem a importância da realização de cursos e de investimento nos estudos e na aprendizagem para uma melhor qualificação.

Eu fiz porque era oportunidade de emprego, fiz um concurso, só que depois eu me identifiquei com o trabalho. Gostei do trabalho. Então gostando do trabalho, surgiu a oportunidade de concurso pra delegado, eu já tinha curso de direito, aí fiz concurso pra delegado (entrevistado 12).

Essa classe é claramente marcada pelo conjunto de questões feitas sobre a identidade policial e a trajetória profissional dos sujeitos. Os policiais entrevistados destacam a necessidade de formação dos policiais e de reconhecimento e valorização da profissão. É interessante observar que esse dado contrasta com aqueles obtidos por Anchieta, Galinkin, Mendes e Neiva (2011) que, ao investigarem policiais de Brasília recém-empossados, constataram que o prazer do trabalho parece suplantar o sofrimento por ele causado. As autoras destacam que o fato de os policiais por elas investigados terem mudado de trabalho recentemente em busca de melhor remuneração e qualidade de vida pode estar na base da satisfação encontrada no trabalho, assim como certa idealização do trabalho policial como uma atividade heroica que ainda não foi confrontada com o cotidiano do trabalho.

No caso desta pesquisa, os policiais entrevistados já haviam ultrapassado o estágio probatório, isto é, estavam no cargo público havia mais de três anos. Nesse caso, a educação aparece como um elemento importante na formação policial.

Se, por um lado, eles destacam a educação da população como uma forma de prevenir a violência, a educação, por outro, aparece como algo fundamental para os próprios policiais. A educação, no discurso dos sujeitos entrevistados, é algo a ser incentivado pela instituição, como forma de valorização do policial. Ela também expressa diferenças entre gerações distintas de policiais. Aqueles que possuem mais tempo de serviço se referem aos recém-ingressos como dedicados mais aos estudos do que ao exercício da função policial, o que é compreendido como um problema para a instituição. Problema por se dedicarem menos tempo ao trabalho e, mais ainda, por ocasionar a saída precoce da polícia, na medida em que são aprovados em outros concursos que oferecem maiores salários. Segundo os sujeitos, com a desvalorização dos policiais, a instituição perde funcionários competentes e que não investem na instituição porque aguardam um emprego mais bem remunerado.

Classe 2: práticas policiais e práticas criminais

A classe 2 reuniu os elementos ligados às práticas "criminais" e "policiais". No que se refere às práticas policiais, os sujeitos destacaram as mudanças ocorridas na polícia ao longo do tempo, comparando frequentemente as práticas antigas com as atuais (as práticas de "hoje em dia"). Ora, destacando uma evolução que facilita a vida do policial, ora salientando que houve um retrocesso em algumas práticas.

[...] não, bota aqui sessenta, não precisa nem mandar o ofício. Lá ele tem um controle. Antigamente não, era um Deus nos acuda. O carro quebrava, acabou-se. Hoje em dia não. O carro tá com problema, liga pra locadora, leva o carro lá, aí resolve. A dificuldade foi só a questão mais burocrática, né? (entrevistado 9).

Se, por um lado, os sujeitos reconhecem maior agilidade na solução de alguns problemas, algumas práticas antigas, por outro, são para eles mais eficazes.

[...] então eu sou a polícia de hoje. A de antigamente resolvia muitas coisas rapidinho. Ah, quem arrombou a minha casa foi fulano de tal, aí foi, foi? Aí chegava lá e puxa ele pra lá, sacode pra aqui, sacode aqui pro lado e daqui a pouco tempo aparecia (entrevistado 9).

Nesse discurso, observa-se que o entrevistado considera que antigamente se resolviam as queixas registradas nas delegacias mais rapidamente, na medida em que o policial tinha mais "liberdade de ação". De fato, eles consideram que hoje há maior limitação à ação policial na resolução dos crimes. É como se os direitos civis fossem compreendidos como obstáculos diante das atividades policiais.

Nessa classe, encontram-se também trechos que destacam as diferentes gerações de policiais. Aqueles com mais tempo de serviço na instituição consideram que os recém-ingressos estão mais preocupados em estudar do que com o trabalho policial: "O cabra quer estar estudando. O cabra quer estar estudando, não é proibido estudar, mas, quando chega o período de férias, quer ter férias daqui e férias do colégio" (entrevistado 9).

A classe 2 também engloba os discursos dos policiais acerca de práticas criminais, muitas vezes utilizados como exemplos para falarem sobre a violência urbana. Um dos discursos abordou um caso que, para o participante, se assemelha à cena da foto 2 utilizada na entrevista: "mataram ele e ligaram pra delegacia. E botaram num carrinho de mão. Botaram num carro de mão e botaram ele ali, atrás do, do, ali daquele posto, aquele posto Z do bairro X" (entrevistado 9).

Tal como nos resultados obtidos por Anchieta e Galinkin (2005), os policiais definem a violência a partir da criminalidade e, portanto, do lugar social que ocupam e de sua relação cotidiana com o crime. Pode-se afirmar que o conceito de violência urbana para eles assume concretude por meio dos crimes. Essa simplificação ocorre pelo fato de os participantes reterem da violência urbana as informações mais significativas para eles diante de suas experiências e conhecimentos prévios, tornando-as mais próxima de sua realidade.

Classe 3: família desestruturada

Os discursos da classe 3 foram agrupados em torno das noções de família, mais especificamente destaca-se a ideia de que a família desestruturada é uma das causas da violência urbana, como se pode notar no seguinte trecho de entrevista:

Família desestruturada é o ponto, vamos dizer, o ponto onde começa tudo. Agora, vem depois na droga, perspectiva de vida, uma série de coisas. Mas eu acho que primeiro é família desestruturada.

Pesquisadora: O que é família desestruturada?

Pai que num, que num, que num cuida dos filhos (entrevistado 4).

A ideia de que a família desestruturada é responsável pela violência urbana é comum em outros grupos sociais, como demonstram estudos realizados com educadores sociais (Espíndula & Santos, 2004) e professores (Santos & Aléssio, 2006). Segundo os autores, os grupos sociais tendem a atribuir a outro grupo (diferente do seu) a origem da violência. Configura-se um processo que visa afastar a ameaça e manter a identidade grupal, atribuindo ao outro a causalidade e, portanto, a responsabilidade por um fenômeno que coloca em xeque a segurança e a manutenção da vida.

Como se pode observar, as classes 2 e 3 formam um grupo que possui em comum um discurso relacionado à educação. No entanto, essas classes se diferenciam, visto que a primeira enfatiza a educação relacionada aos policiais, a sua importância na qualificação deles e como diferencial dos policiais mais recentes na instituição. É como se esperassem uma polícia mais técnica, com um grau maior de escolarização. A clas-se 3 reúne questões relacionadas à educação familiar e, sobretudo, à necessidade de uma "boa educação" oferecida pela família para evitar a violência. Para os sujeitos, é a "desestruturação" familiar a causa maior de violência.

Nas representações sociais do grupo estudado, a ideia da família desestruturada como causa de violência se destaca por estar entre os dados resultantes de todos os procedimentos de análise utilizados. Um certo modelo de família parece subjacente às representações sociais dos sujeitos que também ressaltam o seu papel como formadora da educação moral e de exercício do controle sobre os filhos. Entretanto, como ressaltam Santos e Oliveira (2006, p. 55),

[...] em que pese o conhecimento que se tem produzido sobre a família e a diversidade de famílias existentes no cotidiano, persistem no senso comum e entre profissionais as idéias de harmonia, responsabilidade, amor e compreensão como definidoras da família. A evidência do cotidiano não parece conseguir romper com representações arraigadas de uma família ideal.

A ideia hegemônica de família ainda é atrelada ao modelo da família nuclear burguesa, assim, a família pobre é, em geral, percebida como "desestruturada" e "violenta".

Classe 4: causas e consequências da violência

Quando se analisam as falas características da classe 4, vê-se que elas estão relacionadas a causas e consequências da violência. Essa classe está mais ligada às duas primeiras perguntas da entrevista, que tiveram como objetivo validar os dados obtidos na fase de associação livre.

Então agressão à criança, furto, é consequência de violência. Ela não é violência em si. A violência, na minha opinião, ela é gerada pelo conjunto de fatores e aí ela gera o furto, ela gera a violência contra a criança, né?, tem muita consequência aí (entrevistado 10).

A educação aqui aparece sob dois aspectos, a sua presença como forma de prevenir a violência e a falta como uma das causas da violência urbana:

E educação. E educação. É a base de tudo, o alicerce. No meu entendimento é mais importante do que qualquer, veja bem, qualquer questão que nós possamos aqui relatar, qualquer assunto que nós possamos discutir como causador dessa questão tão abrangente que é a falta de segurança. [...] nessa questão tão complexa que é a segurança pública, o bem-estar da sociedade. Agora, acho, isso opinião particular minha, que o cerne dessa questão tá na falta de educação (entrevistado 11).

A classificação hierárquica descendente apresentou as formas reduzidas das palavras "violência", "social" e "homicídios" como as mais representativas da classe, remetendo à relação entre violência e desigualdade social presente nas representações sociais de violência urbana para os policiais. O homicídio, que apareceu na primeira etapa da pesquisa como um dos elementos centrais da representação social dos policiais, aparece na classe 4 como consequência da violência urbana, conforme depoimento do entrevistado 12: "Desemprego, desigualdade social, num sei o que tem mais aí, escolaridade e tal, é causa, e consequência é homicídio, roubo, os crimes que apareceram nisso aí. Vejo que é realmente isso".

Os resultados obtidos reforçam aqueles analisados por Anchieta e Galinkin (2005). Os policiais estudados por essas autoras destacaram três grandes causas da violência: causas sociais, família desestruturada e causas individuais, ou seja, a "índole do criminoso". Nos dados aqui analisados, as causas sociais (desemprego e pobreza) e a família desestruturada são destacadas como responsáveis pela violência.

Como destacam Anchieta e Galinkin (2005, p. 32), "tais explicações, de caráter mais sociológico, mostram a apropriação de um discurso acadêmico, um saber científico popularizado, que fundamenta as causas da violência em questões socioeconômicas estruturais".

As autoras lembram que, a partir da década de 1970, os discursos dos cientistas sociais considerados de esquerda enfatizavam a pobreza, a miséria e a falta de escolarização como as causas dos problemas sociais, incluindo a violência. Nessa perspectiva, destacam as autoras, tanto as vítimas como os autores de violência seriam vítimas do Estado. Essa justificativa parece socialmente aceita e pode esconder a ligação que se faz entre pobreza e violência que justifica o preconceito e a discriminação com relação a um segmento da população.

Entretanto, quando o binômio pobreza e violência é rompido, as pessoas têm dificuldade de encontrar explicações "prontas" e, em geral, atribuem a problemas psicológicos. Em sua pesquisa sobre as representações sociais de violência praticada no Distrito Federal por jovens de camadas socioeconômicas privilegiadas, Porto (2009) questiona o motivo de essa violência chamar mais atenção da população do que outras formas de violência. A autora levanta a hipótese de que tais atos violentos se destacam por apresentarem dimensões da violência que as teorias do senso comum costumam relacionar apenas às camadas pobres.

Para os sujeitos aqui entrevistados, os crimes são consequências da desigualdade social e das drogas. Ao acentuarem a ideia do binômio violência-pobreza, explicitam a concepção de que as famílias menos favorecidas economicamente têm maiores chances de contato com a criminalidade, em função do local onde moram, da falta de acesso à educação e da maior suscetibilidade ao uso e ao tráfico de drogas.

Encontra-se, então, nas representações sociais de violência urbana para os policiais civis, a associação entre violência e pobreza. Essas representações estão ancoradas em aspectos ideológicos que reforçam a marginalização do pobre, criam e justificam preconceitos de classe social. Tais resultados são compatíveis com aqueles encontrados por Anchieta e Galinkin (2005). Para as autoras, o discurso que atribui causas sociais à violência

[...] atende à necessidade de aprovação, de corresponder à expectativa do entrevistador, como uma estratégia para mitigar os atos de fala que seriam potencialmente ameaçadores na interlocução. O Estado é apontado como responsável pela violência na medida em que não oferece condições de trabalho e educação para toda a população. A má distribuição de renda, a falta de interesse dos governos em solucionar os problemas sociais, a falta de controle do Estado sobre a violência, a ausência de planejamento que leva ao crescimento desordenado das cidades, são algumas das explicações para o crescimento da violência [...] (Anchieta & Galinkin, 2005, p. 32).

Observa-se ainda que, ao atribuir a causa da violência a outro grupo ou a questões "externas" (pobreza, miséria, por exemplo), o policial mantém, de certo modo, protegida a sua identidade profissional. De acordo com Santos e Aléssio (2006, p. 130):

[...] a atribuição de causalidade ao outro grupo parece fazer parte do processo de objetivação. Na tentativa de compreender um fenômeno que se alastra socialmente e torná-lo familiar, os sujeitos tentam objetivar a violência em um espaço geográfico específico e/ou em um grupo determinado. É importante ressaltar, entretanto, que não é qualquer lugar, qualquer grupo, o escolhido. A causa da violência é atribuída ao outro grupo diferente do meu. O "jogo de culpas" parece servir para a manutenção da identidade grupal.

Ao atribuírem a causa da violência ao Estado, à pobreza, à família, os policiais afastam de si qualquer responsabilidade sobre o fenômeno, ao mesmo tempo que se colocam fora do grupo potencialmente violento.

Classe 5: procedimentos policiais

A classe 5 está mais próxima da classe 4 e juntas formam um eixo denominado "Violência e o papel da polícia". A proximidade entre essas classes ocorre por possuírem como características comuns a reunião dos discursos sobre violência e sobre o papel da polícia diante dela. Elas se distinguem pelo fato de a classe 4 focalizar as causas e consequências da violência, enquanto a classe 5 destaca os procedimentos policiais ou as formas de atuação policial, principalmente em áreas que denominam de risco. A classe 5 remete ainda à visão que tem o policial sobre a forma de os moradores dessas áreas se relacionarem com cenas que envolvem violência e polícia. Essa classe reúne mais especificamente os discursos ligados às reações dos participantes às fotos utilizadas na entrevista.

Isso aí seria pra polícia militar. A nossa ação seria mais a parte investigativa, né?, de apuração desses fatos. Só que infelizmente muitas vezes a gente tem que ir pra rua fazer esse papel ostensivo, às vezes tem necessidade de utilizar a força, muitas vezes tem necessidade (entrevistado 7).

Olhe, na verdade o que mais me chama a atenção nessa foto, além da curiosidade normal, é que eu imagino que também são pessoas que estão numa área que estão acostumadas tanto com a abordagem como com esse tipo de situação (entrevistado 12).

Mencionam também os descuidos ocorridos em abordagens policiais:

Porque numa favela tem bandido e tem também família, gente de bem, então imagine uma ação, uma, uma, uma reação de bandido numa área dessa, esse policial que tá com essa arma pesada, que eu chamo metralhadora aqui, e uma aqui, ele vai reagir, então vai haver morte de inocente (entrevistado 1).

"Abordagem" e "policial" são as palavras mais representativas da classe 5, de acordo com a classificação hierárquica descendente, corroborando a ideia de que essa classe agrupa os procedimentos policiais e, principalmente, aqueles procedimentos utilizados em abordagens.

É importante destacar, no que concerne às práticas policiais, que seis dos 12 entrevistados mencionam especificamente a violência policial ou a provocação de constrangimento ao falarem livremente sobre as imagens. As alusões a esse tipo de violência ocorreram pelo fato de as cenas retratadas nas fotos conterem ações que podem ser consideradas violentas, como policiais que portam armas pesadas, imagens que remetem a comentários acerca da violência policial. Sobre a primeira foto, um entrevistado menciona que a abordagem policial pode ser vista como violenta pelas pessoas da comunidade e usa a expressão violência policial, mas justifica ser uma forma de ação necessária para a proteção dos policiais.

A análise das representações sociais de violência permite a compreensão de dois aspectos indissociáveis do mesmo fenômeno: o conteúdo construído pelos policiais acerca da violência e os processos psicossociais que possibilitaram a construção desse conteúdo e que são ao mesmo tempo sistema de acolhimento do novo conteúdo.

Processo e conteúdo se interpenetram na construção de uma representação social. O estudo do conteúdo possibilita a compreensão da dinâmica social (relações e conflitos intergrupais, intragrupais, processos ideológicos) e da dinâmica psíquica (processos afetivos e cognitivos), refletindo assim a necessidade de compreender sujeito e sociedade como unidades interativas. A análise desses processos permite compreender como e por que certas informações vão sendo filtradas, transformadas e integradas em um sistema anterior de referência.

No caso dos policiais entrevistados, a violência é igualada a crimes, que são sempre cometidos pelo outro. Considerar apenas os crimes como sinônimo de violência urbana é uma forma de simplificação realizada para que o sujeito possa reter do conjunto de comportamentos violentos as informações mais significativas para eles diante de suas experiências e conhecimentos prévios, tornando-as mais próxima de sua realidade e dando sentido ao seu papel social. De fato, pelo viés do processo de focalização, certos aspectos do objeto são salientados, enquanto outros são negligenciados.

Além disso, chama a atenção o distanciamento dos sujeitos com relação à violência. De forma geral, a violência está no outro grupo e é causada por fatores que parecem independer do policial (ausência de educação, pobreza, miséria, ausência do Estado etc.). Culpabilizar o outro para explicar a violência serve de proteção à identidade policial na medida em que afasta de si qualquer responsabilidade que possa ter sobre esse problema e destaca a importância de seu papel social na defesa da sociedade.

Na "acusação" ao outro, isto é, na concretização da violência em outro grupo, ele também reafirma valores e crenças e legitima uma dada ordem social. Podem-se destacar, na análise dos dados aqui apresentados, a crença e a defesa em certo modelo de família, a ratificação da ligação entre pobreza e violência, o que possibilita uma justificativa para as relações sociais de desigualdade.

Os resultados aqui apresentados demonstram a importância de compreender melhor as vivências e sentidos dados a elas pelos policiais, fornecendo subsídios para uma atuação junto a essa população. Estudos que visam compreender os sentidos de violência podem propiciar aos policiais maior clareza acerca dos limites, em suas atividades, sobretudo os limites entre ações imperativas necessárias e ações violentas. Considerando que os policiais possuem o papel de prevenção e contenção da violência urbana, realizar pesquisas como essas podem trazer informações que favoreçam a formação dos policiais, suas práticas, contribuindo para a organização de ações de enfrentamento desse fenômeno. É importante compreender o modo de pensar compartilhado de um grupo para que se possa atuar em direção a uma mudança, se necessário.

Ainda são poucos os trabalhos que buscam compreender os aspectos psicossociais envolvidos no enfrentamento da violência. No caso dos policiais, há necessidade ainda de compreender o impacto afetivo que ela tem na sua vida e nas suas práticas profissionais. O lidar cotidiano com ações de violência não pode levar a que o sujeito minimize o impacto de suas próprias ações?

Este trabalho visou compreender o saber que eles constroem e compartilham a respeito da violência urbana. Entretanto, não se chegou a investigar quais são os grupos que para os policiais são violentos. Além da família desestruturada e da pobreza como causas de violência, quais são os outros elementos que, na perspectiva policial, podem estar na base da violência ou do comportamento violento?

Embora tenha se conseguido algumas pistas a respeito da compreensão dos policiais sobre as suas práticas, considerou-se que é ainda necessário um conjunto de pesquisas que focalize as práticas policiais, e, provavelmente, outros métodos de pesquisa poderiam contribuir para uma melhor compreensão da relação entre representações e práticas sociais. Uma investigação que abordasse de forma mais aprofundada as práticas policiais poderia trazer à tona novas pistas de investigação e novos elementos que possam possibilitar uma qualificação mais próxima do cotidiano dos policiais civis.

 

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Endereço para correspondência:
Luciana Ferreira de Almeida
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de Psicologia
Avenida da Arquitetura, s/n, 9º andar, Cidade Universitária
Recife - PE - Brasil. CEP: 50740-550
E-mail: lu.f.almeida@hotmail.com

Submissão: 17.04.2011
Aceitação: 10.05.2013