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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.20 no.2 São Paulo jul./dez. 2017

https://doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v20i2p203-212 

DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v20i2p203-212

ENTREVISTAS

 

Entrevista: Alessandra Re

 

 

Maristela de Souza Pereira1

Universidade Federal de Uberlândia (Uberlândia, Minas Gerais, Brasil)

Correspondência

 

 

Nessa entrevista, a professora Alessandra Re, docente de Psicologia do Trabalho aposentada, da Università degli Studi di Torino, e personagem importante do Movimento Operário Italiano (MOI) junto com seu companheiro Ivar Oddone, nos fala sobre o papel do psicólogo do trabalho na promoção de saúde dos trabalhadores e sobre as diferenças entre o momento atual e aquele em que surgiu o MOI. A entrevista, concedida a Maristela de Souza Pereira, foi realizada no dia 4 de dezembro de 20132.

Maristela Pereira: Inicialmente, me parece que o professor Oddone mudou sua posição, de médico para psicólogo do trabalho. Essa mudança expressa não só uma modificação na sua forma de ver e de abordar os problemas de saúde dos trabalhadores, mas é emblemática no sentido de indicar a transformação que ele propôs para o aspecto da linguagem e para a relação entre os atores envolvidos na questão da saúde e do trabalho. É isso mesmo? Como isso se deu?

Alessandra Re: Então, eu tentei reconstruir essa história, talvez você possa recuperá-la de modo mais estruturado nos anais daquele evento que fizemos3. Também pode ser encontrada, em parte, no livro Esperienza Operaia4 e, principalmente, em uma conferência do congresso de 1973 do Instituto Gramsci. Porque ele argumenta a partir da premissa que o problema da saúde se constrói a muitas vozes, logo, não é apenas um problema técnico. É um problema de comparação entre tipos diferentes de experiência e de linguagem. Essa constatação o levou a fazer uma passagem, pois não cabia usar – ou não cabia usar somente – a linguagem médica, mas ver a psicologia como um instrumento para poder colocar em comunicação várias linguagens. Usando uma expressão que se tornou corrente posteriormente, pode-se dizer que a psicologia oferecia uma linguagem de interface entre as diversas linguagens da saúde. Oddone se apropriou desse conceito e o utilizou muito no sentido de uma interface entre as linguagens. Então, se o problema é ter instrumentos para intervir dentro dos limites disciplinares, a medicina funciona bem. Se o problema é ter instrumentos para construir multi ou interdisciplinaridade, a medicina não basta, pois é uma das linguagens, mas não pode fazer essa passagem. Já a psicologia, ao contrário, permitia fazer essa passagem. Assim, a defesa da saúde se torna participação, no sentido mais forte do termo, que é não apenas perguntar o que o outro pensa, mas possibilitar uma comparação entre linguagens. Não sei se está claro, pois a participação pode se dar de tantos modos...

Maristela: Na verdade, esta era mesmo a minha segunda pergunta, no sentido de que o papel da psicologia seria, então, viabilizar essa comunicação, fazer a interface entre os trabalhadores e os outros especialistas envolvidos no processo de análise do trabalho. Como seria isso na prática? Sua implementação?

Alessandra Re: Implementar isso significa aquilo que você encontra no manual e no SIC5. No manual, porque levou cinco anos o processo de identificação das categorias que permitissem usar tanto a linguagem dos grupos operários quanto a linguagem do médico, e construir uma representação comum. Não sei se já saiu um novo livro de medicina do trabalho, da Clínica do Trabalho de Milão. Eu perguntava a um colega no Congresso Internacional de Ergonomia, um médico do trabalho que se ocupa de distúrbios musculoesqueléticos, eu lhe perguntei por que tinham resolvido escrever um livro, publicar um livro sobre os fatores químicos, fatores biológicos e fatores físicos, como fatores de risco. E ele me respondeu que o livro é voltado para a formação básica dos médicos. Mas é dificílimo colocar em contato esse tipo de linguagem analítica com a linguagem dos trabalhadores. Os trabalhadores possuem uma noção dos fatores tais como pó, gás, enfim, dos produtos que eles usam, relacionada com o seu cotidiano de trabalho, com as experiências que decorrem do trabalho com tais substâncias. Porque uma linguagem é analítica para os fatores, e a deles, ao invés, é sistêmica para a situação. O médico não conhece jamais a complexidade e a variabilidade das situações de trabalho real, e o trabalhador não conhece toda a articulação científica dos fatores de risco. Então, o que acontece na prática, voltando, por exemplo, às categorias de quatro grupos de fatores, é que o médico pode se aprofundar sobre os fatores específicos de risco e sobre a interação entre esses, e o trabalhador, em sua avaliação sistêmica, pode distinguir situações onde um fator de risco é agravado porque existem outros fatores que o tornam mais grave: espaços inadequados, interrupções, falta de pessoal. Então, as duas linguagens, juntas, podem construir uma avaliação de risco mais eficaz. Portanto, nesse sentido, o manual e o SIC são significativos. Porque a linguagem médica, por exemplo na Itália – talvez na Europa em geral, principalmente no momento atual –, tem pouco da linguagem da prevenção primária. O médico para nós, hoje, faz vigilância em saúde, que significa atender um trabalhador após o outro e, se encontrar um problema (e se considerar necessário), fazer uma denúncia de doença profissional. Mas a prevenção primária é outra coisa. Enquanto isso, você tem trabalhadores como os de Marc, que recolhe histórias inacreditáveis dos trabalhadores que vão até ele, que possuem uma doença em função da qual vão morrer em poucos meses, e dizem: "o problema não é a minha doença, o problema é que a situação continua a mesma", referindo-se à situação de trabalho que gerou a doença. Então são duas linguagens profundamente diferentes que, com o manual e o SIC, trabalham em conjunto. Trabalham em conjunto porque qualquer reconhecimento de doença se traduz na localização do risco e em um incentivo aos trabalhadores e seus representantes sindicais para modificarem aquela situação.

Maristela: Digamos que o papel do psicólogo seria traduzir estas linguagens e fazer a tessitura destas linguagens.

Alessandra Re: Pode-se usar aquilo que hoje, em diversos estudos, se identifica por artefato cognitivo – um objeto cognitivo que serve de mediação entre as diferentes linguagens. Então o manual é um objeto cognitivo em que todos os envolvidos se reconhecem, e o SIC também, porque nele você tem um cadastro dos postos de trabalho e aqueles dados são comuns ao médico, ao trabalhador, ao sindicato, ao especialista em tecnologia. Cada ponto representado graficamente se refere a um espaço de 2 x 2 metros, um espaço que identifica as atividades que comportam exposição a risco. Representa-se assim a especificidade local, isto é, se aquela atividade, naquelas condições, se torna mais perigosa ou menos perigosa em relação à tecnologia ou aos dispositivos de proteção, e por aí vai. Isso se torna um objeto comum, sobre o qual se pode construir conhecimento e intervenção compartilhados, da parte do médico, do sindicato, do especialista em tecnologia e do trabalhador.

Maristela: O professor Oddone propôs a ideia de uma Comunidade Científica Ampliada, que é exatamente isso que você está falando, com o propósito de legitimar as diversas linguagens e as diversas perspectivas, que são provenientes não só do campo científico, mas também da experiência concreta de trabalho, por exemplo, o conhecimento que os trabalhadores possuem. Nesse sentido, como o conhecimento do psicólogo, orientado a fornecer instrumentos e metodologias de aproximação entre os diferentes saberes, não se sobrepõe a esses outros saberes? Como fazer para não acontecer uma hierarquia entre o saber do psicólogo e os outros saberes envolvidos?

Alessandra Re: Isso é muito difícil. É muito difícil porque também a psicologia, como todas as disciplinas científicas, se aproxima do mundo que deve conhecer, com categorias predefinidas. É possível, se você usa categorias de método, mais do que categorias de conteúdo. A Instrução ao Sósia é um método. É um método que pressupõe que o psicólogo deva compreender a linguagem do outro, e não sobrepor-se a ela. Se, ao contrário, me aproximo do outro, perguntando-lhe como lida com o stress, se dorme à noite, se sente-se agressivo no contato com a família, e assim por diante, eu estou usando a minha linguagem. Então o psicólogo pode desempenhar dois papeis: aquele de um especialista em meio a outros especialistas, ou aquele do perito da comunicação. Se escolhe a segunda coisa, não basta apenas estar aberto à linguagem do outro. Se deixa só aberto, o outro procura falar a linguagem do especialista, para se fazer compreender, e então deforma. Quando você fala com o médico, você procura falar em termos de sintomas, mais do que de situações de trabalho. Então, é um problema de construção, é um problema de método para construir a comunicação. Na verdade, a "não delegação" difundida no manual foi muito banalizada nos anos 1970, porque se dizia que era absurdo falar que o trabalhador não precisa do técnico. Mas a "não delegação" não é não precisar do técnico, é agir com o técnico para compreender e colocar em evidência o limite de usar só a linguagem e só o conhecimento de tipo técnico. Então, na realidade, é um processo muito difícil. Não sei se fui clara.

Maristela: Sim, sim. Agora chegamos ao ponto central para mim, a minha principal questão de pesquisa. Esse papel, essa atividade do psicólogo, no sentido de fazer essa interface, dever ser realizada por psicólogos que trabalham onde? Pelos psicólogos organizacionais, que fazem seleção e treinamento de pessoal nas empresas, ou pelos psicólogos da universidade? Por aqueles que prestam consultoria, pelo psicólogo do sindicato, ou das instituições de saúde? Onde está esse psicólogo, o psicólogo que faz isso?

Alessandra Re: É na cabeça, não é no lugar, em minha opinião. Quer dizer, não é necessário que seja um psicólogo do sindicato, você tem psicólogos do sindicato que são muito mais fechados à linguagem dos outros, do que alguns psicólogos que trabalham na universidade. Não é onde trabalha, mas como trabalha. O que conta é o lugar do ponto de vista metodológico, não o lugar do ponto de vista do pertencimento. É claro que, se o psicólogo faz seleção, possivelmente não coloca para si o problema da prevenção, embora nem sempre seja assim. Quando eu trabalhei na Olivetti, por exemplo, se acompanhava o percurso de trabalho de uma pessoa, inclusive quando em certo ponto da carreira poderia apresentar problemas de saúde psicológica. Em outros casos, ao contrário, o psicólogo que faz seleção, na minha visão, tem um conhecimento muito pontual do outro, isto é, apenas naquele momento, depois se perde. O psicólogo que trabalha em empresa, como você já identificou, frequentemente não coloca para si o problema da saúde, no máximo se coloca o problema da educação em saúde, mas não da análise do trabalho para promover saúde. Então, o papel que você menciona é de um psicólogo que, em minha opinião, tem a concepção de que a saúde se constrói no lugar de trabalho, não só se perde ali, mas também se constrói. E hoje, certamente, esta é uma posição muito minoritária. Hoje, a psicologia mais comprometida, digamos assim, faz uma descrição das situações de saúde precária e delega para a empresa que, por sua vez, delega aos técnicos a solução disso. Podem existir psicólogos que tentam promover participação na empresa, mas hoje, na minha experiência, eu não saberia te apontar algum que constrói essa participação.

Maristela: Aquela psicóloga italiana com quem eu falei, aquela que eu entrevistei por Skype, me disse que, na empresa em que ela trabalha, que é uma refinaria, quem faz a prevenção e a proteção da saúde não são psicólogos, são os RSPP, em acordo com a Lei 816. Ela me disse que não são psicólogos, nem médicos, mas ex-técnicos, muitas vezes engenheiros.

Alessandra Re: Geralmente, o RSPP não é um psicólogo. Quando saiu, em 1994, a 626, que é a Lei que pela primeira vez atendia à diretiva europeia para a saúde e segurança dos locais de trabalho (e que foi assinada pela Itália no último dia do prazo para isso ser feito), esta teve uma forte influência da Clínica do Trabalho de Milão que, naquele momento, estava comprometida com temas da saúde, através de Antônio Grecco, que era o responsável na época pela Clínica do Trabalho. Havíamos realizado nessa Clínica do Trabalho de Milão um processo longo e desafiador, de definição das figuras responsáveis pela prevenção, isto é, todas as figuras que, na nova Lei, tinham um papel na construção de segurança nos locais de trabalho. Eu tinha participado como representante da Sociedade de Ergonomia. Também havia médicos do trabalho, engenheiros, e assim por diante. Os psicólogos permaneceram muito ausentes daquele processo, e procuramos inserir ao menos o ergonomista, pois a Lei falava da necessidade de respeitar princípios ergonômicos. Mas a figura do ergonomista não passou. Não passou porque havia uma fortíssima resistência por parte das empresas, que já tinham sido obrigadas a aceitar o RSPP, o médico competente, enfim muitas figuras que representavam custos, então, haviam dito que o ergonomista não. E então não entrou nem o ergonomista, muito menos o psicólogo. O psicólogo permaneceu, naquele momento, bastante distanciado das questões de prevenção. Há algum tempo nós fomos chamados, enquanto Faculdade de Psicologia, quando o judiciário abriu uma investigação a respeito da Telecom, pois a avaliação de risco não previa o risco de stress nos call centers. Então fizemos este percurso de análise do bem-estar ou do mal-estar nos call centers. Mas o fizemos a pedido da empresa que, por sua vez, havia sido solicitada pelo judiciário. Ainda hoje o psicólogo entra pouquíssimo na avaliação dos riscos. Esta é feita por um representante da empresa e pelo médico competente.

Maristela: Então o psicólogo quase não intervém na prevenção primária da saúde dos trabalhadores, mas tampouco o faz depois que a doença já está instalada. Por exemplo, às vezes as pessoas vão a um psicólogo clínico, que atende em um consultório privado, para falar de seus problemas psíquicos e emocionais, que são causados pelo trabalho, e o psicólogo não ouve essa queixa, e começa a fazer perguntas sobre a infância, sobre a relação com a mãe. Então não há uma formação, nem mesmo para intervir depois que já a doença profissional já está instalada.

Alessandra Re: Nós temos em parte, por exemplo, nos casos de assédio moral. Atualmente o serviço de saúde da CGIL7 é liderado por um psicólogo. Em Milão há um grupo de médicos do trabalho que incluiu o psicólogo, pois perceberam que havia casos que estavam relacionados ao assédio moral, ou seja, de perseguição de trabalhadores. Nesse caso, o psicólogo intervém sobre uma patologia psicológica, que é o assédio moral. Já sobre o stress, é menos presente. Quem o faz, é, frequentemente, o médico.

Maristela: Sobre o stress, o que eu notei na literatura específica brasileira, e também notei aqui, é que a abordagem sobre o stress é, muitas vezes, centrada nos aspectos cognitivos, como se bastasse modificar a percepção das pessoas para se resolver o problema, sem que se modificassem os fatores da organização do trabalho que criam a situação de stress.

Alessandra Re: Sim, geralmente o psicólogo lida apenas com o stress psicológico, enquanto, como sublinhava Marc, por exemplo, um trabalhador que sabe que trabalha com fatores cancerígenos, possui um stress pela angústia de saber que o seu colega de 48 anos tem um tumor incurável de vesícula. Quando você tem um companheiro de trabalho nesta condição e você vai trabalhar na mesma situação, com os mesmos fatores de risco, há um stress evidente, que não se resolve, digamos, fortalecendo psicologicamente a pessoa. Nesse nível, não adianta nada.

Maristela: Você já me falou sobre a diferença de contexto entre hoje e aquele momento no qual vocês construíram toda aquela experiência do MOI. Como é a sua prática, hoje, em relação às suas pesquisas e ações para melhorar a saúde dos trabalhadores? O que mudou, do passado para o presente, na sua perspectiva e na sua prática profissional?

Alessandra Re: Aquele foi um período irrepetível, pois havia um impulso social que criava as possibilidades que hoje... Hoje se está no auge da ciência ritual, ou seja, aquele era um momento não ritual, hoje estamos na ritualidade total. Eu creio que tentei uma síntese de dois mundos absolutamente diversos do ponto de visa científico e histórico, que é, de um lado, um mundo mais europeu, portanto, ligado à filosofia alemã, ao marxismo, ao materialismo histórico, à escola soviética da psicologia, a chamada escola histórico-cultural, com Vygotsky, com Leontiev, com tudo isso. É uma abordagem histórica e situada dos problemas. Do outro lado, um mundo que é aquele anglo-americano, norte-americano, que teve trinta anos de comportamentalismo. Esse foi formado sobre a ideia de estímulo-resposta, e o cerne daquela visão permaneceu no paradigma informacional, que vê o homem como um processador de informação. Eu os vi como antagônicos por muito tempo, hoje penso que se pode achar uma síntese e assim uso, digamos, o mundo anglófono, normativo, prescritivo, generalizável, para formar hipóteses. Hipóteses que tendencialmente são válidas para tudo. Mas então penso que deve haver um enfoque, alguns o chamam idiográfico, idiográfico quer dizer que descreve a especificidade da situação. Então, deve-se ser capaz de ver a situação específica, de fazer uma análise de como tudo interage naquela situação. E então pode haver uma visão de síntese. Aquilo que dá muito trabalho é promover a participação. Porque, nesse enfoque, a participação é indispensável. Pois você, como técnico, pode ir além das hipóteses e propor soluções. Mas as soluções devem ser construídas com as pessoas, com as diferentes perspectivas. Então, deve haver uma participação forte. Hoje é muito difícil produzir participação. É difícil porque o gerente não te permite, como não te permitia do mesmo modo no passado. Mas hoje poderia ser mais factível a participação, porque há um menor reconhecimento do conflito de classes, isto é, o conflito de classes existe, mas não se usa mais o modelo de conflito de classes. Mas o conceito de participação não existe sequer para o trabalhador, pois, de um lado, o trabalhador tem medo de perder seu trabalho se ativar uma estratégia para modificá-lo. E, do outro lado, perdeu a sua organização como classe. Então esse é, na minha opinião, o ponto mais difícil, onde, por exemplo, com Gianna Carta e, em parte, com Tiziana8 nós conseguimos porque a gerência apoiou, construindo, com muito trabalho, aquilo que queríamos. Mas, mesmo nesses casos, tivemos... como dizer? Uma participação oculta, pois você faz emergir coisas que você restitui ao nível mais alto. Através de uma análise aprofundada do trabalho, você se faz intérprete da participação, digamos assim. É um modo muito mais indireto, acredito que seja o único praticável hoje. Mesmo nos anos 1970, nós encontrávamos os delegados da Fiat somente fora da empresa. Mas, depois, eles estando dentro da fábrica, ativavam estratégias coerentes com aquilo que havia emergido nos contatos fora. Hoje você pode se encontrar com os trabalhadores fora, mas depois eles, dentro, não conseguem ativar nenhuma estratégia. Nós fizemos uma tese de doutorado com um responsável pela qualidade de uma empresa manufatureira, um personagem importante – o "número dois" da empresa. Mas tivemos que entrevistar os trabalhadores fora das empresas que ele estudou e ocultar o nome das empresas, pois nem ele, que era a expressão do alto poder decisório de uma empresa, conseguia obter a autorização para que trabalhássemos com os funcionários de outras companhias. Então se torna muito difícil praticar a participação.

Maristela: Você, hoje, é uma ergonomista. Não se considera mais uma psicóloga? Como você distingue essas duas atividades?

Alessandra Re: Eu gastei um pouco de tempo para encontrar uma solução para isso, pois havia algumas coisas da psicologia que não me diziam nada, e havia outras que, ao contrário, me diziam muito, e eu não tinha clareza de qual era o critério. Agora acho que entendi o critério, no sentido daquilo que me dizia Nick MacDonald9, aquele de Dublin, ele era um psicólogo experimental e me disse "eu joguei fora noventa por cento daquilo que eu havia aprendido, quando entendi que não me servia para nada". Então se joga fora muita coisa (a compreensão dos colegas sobre isso nem sempre é fácil), mas permaneço uma psicóloga porque, de qualquer modo, você deve conhecer o ser humano, deve conhecer as organizações, para modificá-las. O que te diferencia principalmente é que nesse ponto você não age sobre o ser humano, mas sobre aquilo que o circunda. Você praticamente deve construir linguagens de observação, que não são aquelas do psicólogo, são linguagens contaminadas, quer dizer, que possuem elementos também de outras linguagens, como eu explicava ontem aos alunos da graduação. Eu dizia que devo dar-lhes todas as características humanas: antropométricas, fisiológicas, perceptivas, cognitivas, e então eu procurava explicar-lhes a razão disso e lhes propus um trabalho realizado em Israel sobre a preparação dos remédios, no qual eles pudessem reconstruir todos os problemas físicos, cognitivos, organizacionais, isto é, relacionados ao tamanho e à embalagem dos remédios, as questões de interrupção etc. Creio que o número de mortes nos Estados Unidos seja de sete mil ao ano, devido a erros no preparo e administração dos remédios. Eles então encontram soluções relacionadas ao ambiente, e conseguem fazê-lo porque foram capazes de observar também os aspectos físicos. Assim, quando falamos da linguagem sociotécnica, pois há um olhar sociotécnico, sua linguagem de psicólogo permanece, mas deve conseguir ver o ser humano de forma completa, e não fragmentá-lo. Quer dizer, o ser humano completo não é nunca apenas um ente psicológico, é também físico. Então o problema físico se torna um problema psicológico, e o problema psicológico se torna um distúrbio físico. Existem muitos estudos que colocam em conexão os distúrbios musculoesqueléticos com os aspectos organizativos. Então permaneço uma psicóloga, mas uma psicóloga que procura ampliar a sua linguagem observacional, sabendo que o ser humano que está à sua frente é uma pessoa inteira.

Maristela: Há pouco você falava de uma abordagem europeia, mas também aqui na Europa existem diversas formas de ver a psicologia e também a ergonomia. Há inclusive diferenças entre a ergonomia italiana e a francesa. Quais são as diferenças entre elas?

Alessandra Re: A ergonomia à qual eu me ligo é muito semelhante à francesa, os conceitos de fundo são os mesmos. Nosso livro de 1977 foi traduzido para o francês em 1981 e, agora mesmo, eles produziram um livro dedicado a Ivar Oddone. Então, é claro que há uma forte ligação. A diferença talvez esteja no fato de que na Itália as referências marxistas eram mais fortes, mais gramscianas, na França isso faltava. Gramsci é muito mais orientado à ação do sujeito singular, enquanto em Marx são mais as leis históricas que entram em jogo. Então isso talvez possa ser um background diferente na França e na Itália. Na ergonomia, de um modo geral, diria que são muito próximas. Tenha em consideração que, quando falamos de ergonomia francesa e italiana, falamos de uma certa ergonomia, porque na França, assim como na Itália, acima de tudo, se pratica uma ergonomia cognitiva muito inglesa, como em toda a Europa. Então, quando eu trabalhei no projeto europeu, éramos 42 colegas de trabalho, dentre os quais uns vinte eram especialistas em recursos humanos. Não conseguíamos nos entender de modo algum. Alguns deles utilizavam uma linguagem normativa, falavam de regras gerais do trabalho, ao invés de uma linguagem descritiva, enquanto nós procurávamos ver o trabalho concreto, então não conseguimos encontrar uma síntese.

Maristela: Nas aulas, algumas vezes, você mencionou a diferença entre abordagens que são somente descritivas e outras que descrevem para fazer mudanças. Talvez essa seja uma diferença que você possa mencionar.

Alessandra Re: Isto é comum à ergonomia italiana e a francesa, exatamente conhecer para transformar. Na Itália, atualmente, temos poucos que trabalham nessa perspectiva. A ergonomia muito presente por aqui é aquela do produto, voltada para o design. Portanto são os produtos de luxo que recebem uma intervenção do ergonomista. Ou então se trata de uma psicologia chamada narrativa, que hoje se interessa muito pela descrição das práticas de trabalho. Mas lhe falta essa capacidade de transformação. Na minha opinião é uma psicologia um pouco ingênua, um pouco espremida pelo dado.

Maristela: E como mudar verdadeiramente? Nós, psicólogos ou ergonomistas, temos realmente essa possibilidade de promover mudanças no trabalho?

Alessandra Re: Digamos que, ao menos, é pensável. Embora, em certas situações, talvez não seja possível. Mas, se perdemos de vista também a possibilidade de que seja pensável, quer dizer que nos demos por vencidos. Então eu continuo a pensar que é possível, porque quero continuar a pensar assim. Eu acredito que para muitas empresas é algo que se faz presente, porque se perguntam, por exemplo, "queremos ter um trabalho sempre menos qualificado e menos remunerado, ou queremos investir sobre o 'feito em Itália' de verdade?". Talvez, em relação aos produtos de luxo, os produtos de alta qualidade, seja mais fácil, pois temos uma modalidade de trabalho mais integrada. Ocorre que, quanto mais todos estão bem na empresa, mais se garante a qualidade. Porque no momento em que você abre mão da qualidade, na minha opinião, abre-se mão também da ideia de mudança. É claro que também na Itália existem fábricas como aquela na qual mais de cem chineses morreram queimados porque trabalham, dormem e vivem no mesmo barracão com grades nas janelas. Estamos de volta ao século XIX, até antes, é a escravidão, como dizia Ivar Oddone. Mas eu espero que seja um mundo capaz, depois dessa crise assustadora, de reconhecer que a exploração não é um modo sequer de gerar lucro. Se você passa da exploração para a qualidade, tudo isso ganha uma nova dimensão. Então eu penso que talvez seja mais possível conseguir mudanças em uma situação de progresso do que de retrocesso, quer dizer, se substitui-se a exploração intensiva por uma integração de competências, aí sim a abordagem da mudança é possível. É preciso uma cultura da mudança, mas, infelizmente, nosso capitalismo, por exemplo na Itália, é prevalentemente um capitalismo muito pobre culturalmente.

Maristela: Agora há pouco, você falava sobre o fato de que talvez o momento histórico no qual o MOI se desenvolveu seja irrepetível, em função de suas características. Alguns autores falam de um declínio das lutas pela saúde, uma retração, digamos assim. A que você atribui esse declínio?

Alessandra Re: Bem, em minha opinião, isso está relacionado com aspectos tão complexos, que dão pavor. Também porque estamos em um contexto globalizado. Então, o primeiro ponto é a globalização, no sentido de que há uma chantagem sempre possível por parte dos empregadores, que pode ser de dois tipos: "se assim não está bom para vocês, aquela é a porta da rua"; e então se cria uma situação individual difícil, que não é mediada pelas organizações sindicais. Ou então, se podem levar sua produção para a Romênia, ou Bulgária, ou para a China, ou para qualquer lugar onde podem receber benefícios do estado, isenção de impostos por anos e uma mão de obra a preço baixo, porque permanecer com a produção na Itália? Portanto, hoje, existem para as empresas possibilidades que naquele momento não estavam presentes e que provocaram muitas mudanças. Além disso, o modelo de leitura marxiano ou marxista não existe mais. Hoje, até mesmo a esquerda usa um modelo que foca nas desigualdades sociais, mas sob uma ótica de melhoria do capitalismo, enquanto o modelo operário queria, ao contrário, uma outra estrutura econômica, outras relações entre as forças produtivas, outras relações de produção. Hoje isso não existe mais. Outro fator é que o sindicato abandonou completamente a questão da qualidade do trabalho. Hoje eles têm feito uma defesa apenas burocrática, digamos assim. Não têm defendido os novos contratados, aqueles precários, não têm defendido a saúde nos contextos de trabalho nem para os antigos e nem para os novos. Perdeu-se completamente a memória do que foram as lutas operárias. Hoje a cultura é a do trabalho como um instrumento para possibilitar o consumo, ou seja, é uma cultura que te leva a dizer que a vida é fora do trabalho. Então coloque tudo isso junto. O modelo operário era efetivamente o contrário disso, era a centralidade do trabalho, a solidariedade nos locais de trabalho. As prioridades compartilhadas relacionavam-se à defesa da saúde coletiva, ultrapassando a prioridade de um percurso de carreira individual. De fato, naquele momento, propagavam-se da fábrica para a sociedade as reivindicações por melhorias. Assim, como defendíamos a saúde na fábrica, defendíamos a escola pública fora, defendíamos a assistência à saúde pública fora, construíamos o sistema de saúde nacional, construíamos o estatuto de direitos dos trabalhadores, e assim por diante. Construíamos as pré-escolas, pois estas surgiram nos anos 1970, a partir das lutas que defendiam as mulheres e seu direito a trabalhar. Construíamos centros para os idosos, para libertar as famílias do fardo da assistência. Então era um modelo muito forte, que começava na fábrica, com uma pegada marxista, e tendia a se propagar para a sociedade. Hoje, o que se tem em certos aspectos é o oposto, isto é, uma sociedade que tende a privatizar-se e que tende a introduzir essa lógica individualista também no trabalho. Não é mais a lógica solidária que do trabalho se distribui para a sociedade. É a lógica individual que da sociedade contamina e define também as relações de trabalho. Portanto, o declínio do movimento operário era inevitável. Não existe mais nenhuma das premissas daquele modelo.

Maristela: Mas ainda assim persiste um interesse sobre o Modelo Operário Italiano. Vim para Turim por isso, Daisy chega amanhã por isso10. Como você vê a permanência desse interesse?

Alessandra Re: Eu percebi isso naquele evento que fizemos para recordar Ivar, quando li um e-mail que recebi de Cristiano11, que havia descoberto alguns textos e me escreveu: "mas como é possível que não exista uma memória de tudo isso?". Acho que aquilo que o havia tocado era o senso de desafio coletivo que aqueles textos transmitiam. Embora, hoje, esse conceito de desafio coletivo esteja completamente esquecido. Hoje temos um conceito de desafio individual, de um lado, e de renúncia coletiva, de outro. De impotência. O interesse sobre o Modelo Operário Italiano se mantém porque, em minha opinião, temos uma profunda necessidade de desafios coletivos. Porque é um modo de se reconhecer nos outros, isto é, eu acredito que a vida seja ter projetos, projetos de transformação, projetos que podem ser também contemplativos, mas também esses são projetos que comportam uma visão de sociedade. E então o interesse é porque as pessoas não se rendem nunca, porque possuem necessidade de sentirem-se em meio a outras pessoas e de construírem conjuntamente alguma coisa. Nós temos um vice-diretor de um jornal aqui na cidade, um jornal nacional, um jornal grande, que tem uma coluna, e escreveu a poucos dias sobre um trem, no qual sobe um senhor, que possui o bilhete, mas não consegue chegar à máquina para carimbá-lo, pois o trem está muito cheio. Ele fica preocupado, quer carimbá-lo. Isso já é anômalo, porque as pessoas lhe dizem que o fiscal não passa nunca e que elas não conseguem se mover para ele chegar na máquina. Então uma senhora lhe diz: "me dá o bilhete", e o passa de um a outro até chegar à máquina, e depois esse bilhete, passando sobre a cabeça de todos, retorna para o senhor. Então ele contava essa estória e descrevia este momento, digamos, de contentamento, que se criou no trem porque deu certo uma coisa em que todos deram uma mão. Indo além da anedota, eu acredito que, em geral, ficamos muito contentes quando conseguimos construir com outras pessoas alguma coisa na qual acreditamos, pois isso se reflete sobre a vida de muitos de um jeito positivo. Não porque seja um valor moral, mas porque é uma característica realmente humana aquela de ser Homo faber, de ser artesão, construir com as próprias mãos, com a própria cabeça, alguma coisa com a qual outros também contribuem e compartilham. Então eu acredito que sentimos necessidade de sociabilidade. Esse capitalismo assim, individualista, é triste. É muito triste competir com o próprio vizinho quando existe um mundo que você pode melhorar. Acredito que isso gera uma sensação de miséria, no plano humano, e conviver com esse sentimento não é bonito. Ao menos eu vejo um pouco assim, sabe, pois os velhos marxistas são um pouco utópicos [risos].

Maristela: Bem, as questões que eu tinha são essas. Talvez haja alguma coisa que você pense que seja importante acrescentar...

Alessandra Re: O que eu penso que talvez seja importante é que há momentos na história de alguns países que podem perder todo o significado para aquele país, mas podem... como dizer? Encontrar um significado em outros países, em outras histórias. Então talvez, no Brasil, isso possa se dar assim. Certamente eu acredito que o centro do progresso nos próximos decênios não estará na Europa, que se demonstra incapaz de fazer frente aos novos desafios, por motivos diversos: os países do Norte da Europa porque têm essa modalidade na qual a rigidez é o aspecto mais forte das pessoas, porque esse rigor é mais importante do que as pessoas e do que seu bem-estar; os países do Sul, porque estão cercados de corrupção, de desperdício etc., porque não souberam se manter no auge, como já estiveram. Então eu acredito que o centro de desenvolvimento se moverá da Europa. A Índia poderia ser uma aposta, mas possui grandes dificuldades, acredito. A China, nesse momento, é o país mais interessante, pois possui enormes possibilidades, está fazendo mudanças até mesmo no plano ambiental e também no sentido de criar um mercado interno. A América do Sul também poderia ser outro centro de desenvolvimento. No entanto, os modelos com os quais irão interpretar o desenvolvimento são muito importantes. Então, para a Itália, aquele momento do movimento operário foi um momento grandioso no plano dos resultados, foi um momento no qual a produtividade industrial foi absolutamente a mais alta, depois ela caiu, nos anos 1980, exatamente quando caíram todas aquelas premissas. Então, efetivamente, não é um modelo que impede a produtividade. O Brasil, talvez mais do que o restante da América do Sul, deverá escolher seus modelos de desenvolvimento. Então, se isso puder ser útil, poderá ser uma oportunidade maravilhosa, penso eu.

Maristela: Obrigada Alessandra, era isso mesmo, obrigada.

 

 

Endereço para correspondência
maristela.ufu@gmail.com

Recebido em: 31/01/2018
Aprovado em: 03/05/2018

 

 

1 Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.
2 Entrevista realizada durante estágio doutoral da entrevistadora, em Turim, na Itália, sob supervisão das professoras Leny Sato (USP – Brasil) e Alessandra Re (UNITO – Itália), com bolsa fornecida pela Capes através do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE), no ano de 2013 (Processo nº 4487/13-3).
3 Evento "Sfide attuali, passate, future: il percorso di Ivar Oddone" realizado no dia 29 de novembro de 2012, em homenagem a Ivar Oddone, por ocasião do primeiro ano de seu falecimento. Os anais do evento foram publicados e podem ser acessados no catálogo da Editora Otto: https://www.otto.to.it/catalogue.
4 Está sendo preparada uma tradução desse livro para o Português, sob coordenação da professora Daisy Cunha e supervisão da professora Alessandra Re.
5 O manual a que Alessandra se refere é a "Dispensa sull'Ambiente de lavoro", publicada em 1969 e traduzida no Brasil em 1986 com o título: "Ambiente de trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde". O SIC, Sistema Informativo Concreto, é uma experiência concebida por Ivar Oddone e levada a cabo por Marc Andéol, na região de Marsiglia (França). Uma descrição do SIC pode ser encontrada nos anais mencionados na nota 2.
6 O RSPP é o Responsável pelo Serviço de Prevenção e Proteção (Responsabile del Servizio di Prevenzione e Protezione), podendo ser funcionário da empresa ou um profissional externo, desde que tenha formação específica (semelhante ao Técnico de Segurança do Trabalho, no Brasil). Na Itália, é o Decreto Legislativo 81/2008, conhecido como Lei 81, que rege a proteção de saúde e segurança nos lugares de trabalho.
7 Confederação Geral Italiana do Trabalho; trata-se do sindicato mais antigo, e um dos mais atuantes, na Itália.
8 Duas pesquisadoras que desenvolveram o doutorado sob sua supervisão, fazendo intervenções em contextos de trabalho. Gianna Carta realizou sua pesquisa no metrô de Paris, e Tiziana Callari, em um hospital italiano.
9 Pesquisador-chefe de um centro de pesquisa em Dublin.
10 Refiro-me à doutora Daisy Moreira Cunha, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
11 Cristiano Occelli foi orientado por Alessandra no doutorado.

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