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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho
versão impressa ISSN 1516-3717
Cad. psicol. soc. trab. vol.21 no.2 São Paulo jul./dez. 2018
https://doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v21i2p103-117
DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v21i2p103-117
ARTIGOS ORIGINAIS ORIGINAL ARTICLES
Adoecimento mental e o trabalho do professor: um estudo de caso na rede pública de ensino
Mental depletion and the work of a teacher: a case study in the public-school system
Farney Vinícios Pinto SouzaI,1
ICentro Universitário Unihorizontes (Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil)
RESUMO
O artigo tem por objetivo descrever e analisar os aspectos que fazem parte da organização do trabalho de uma escola pública, verificando sua relação com as manifestações de sofrimento ou de adoecimento de docentes que ali atuam. Foi feita uma análise dos problemas de saúde mental do professor a partir da abordagem metodológica proposta por Louis Le Guillant. Os instrumentos de coleta de dados foram entrevistas, visitas in loco e pesquisa documental. Os dados secundários foram tratados por meio de análise documental e os dados primários foram tratados com base na análise de conteúdo. Os resultados evidenciaram que a organização do trabalho na escola apresenta vários fatores com potencial patogênico, tais como as condições precárias de trabalho, dificuldades no relacionamento com os alunos, falta de autonomia, problemas na gestão, sobrecarga de trabalho, dificuldade de exercer suas atividades e pouca valorização profissional. Os docentes recorrem a alguns mecanismos de regulação para enfrentar as dificuldades, no entanto, observou-se a presença de sintomas físicos e mentais entre os professores, e a maioria dos entrevistados já adoeceu ou está doente em função do trabalho.
Palavras-chave: Saúde mental, Adoecimento mental, Docentes.
ABSTRACT
This article aims to describe and analyze the aspects that are part of the work organization of a public school, verifying its relations with the manifestations of suffering or illness of teachers who work there. An analysis of teacher' mental health problems was made using the methodological approach proposed by Louis Le Guillant. Interviews, on-site visits and documentary research were carried out. The secondary data were treated by a documentary analysis and the primary data were treated based on content analysis. The results showed that the work organization at the school presents several factors with potential pathogenic such as poor working conditions, difficulties in the relationship with the students, lack of autonomy, problems in management, work overload, difficulty in carrying out their activities and the low value of the professional. Teachers use regulatory mechanisms to deal with difficulties; however, physical and mental symptoms have been observed among them, and most of the interviewees have become ill or are ill due to their work.
Keywords: Mental health, Mental illness, Teachers.
Introdução
De acordo com pesquisas recentes, a docência possui potencial patogênico devido a diversos fatores, tais como carga excessiva de trabalho, remuneração inadequada, falta de cooperação entre pares (Codo, 1999), falta de autonomia, excessos de burocracia, indisciplina dos alunos (Reinhold, 2012) e estilo de gestão autoritário (Silva, 2011). Ademais, há uma pressão exercida pelas novas tecnologias sobre os docentes, exigindo deles constantes atualizações e adaptações, muitas vezes sem possibilidade de um preparo prévio (Meleiro, 2012) e até mesmo sem a disponibilização de recursos pela instituição onde trabalham.
Outros estudos têm revelado a presença de vários sintomas físicos e mentais nessa categoria, por exemplo: tensão muscular, dores de cabeça, dores nas costas, perda de voz, taquicardia, aumento de sudorese, tontura, fadiga, problemas de memória, irritabilidade excessiva, ansiedade, nervosismo, angústia, depressão (Aguiar, 2010; Araújo, 2011; Pereira, Amaral & Scorsolini-Comin, 2011; Zille & Cremonezi, 2013), além da manifestação de quadros como estresse e síndrome de Burnout (Aguiar, 2010; Codo, 1999; Nunes-Sobrinho, 2012; Silva, 2015; Zille & Cremonezi, 2013). A partir desses resultados, Freitas (2007, p. 190) passou a apontar a profissão do docente como uma "atividade de risco para a saúde".
Um teórico que estudou essa relação entre trabalho e saúde mental foi Louis Le Guillant (Lima, 2006a), concluindo que algumas profissões apresentavam um claro potencial patogênico. O autor considerava essencial a avaliação ampla das condições de vida e de trabalho, propondo uma abordagem multidimensional dos problemas de saúde nos contextos laborais, segundo a qual todas as questões devem ser consideradas, tais como aspectos econômicos, políticos, culturais e sociais.
Para Le Guillant (Lima, 2006a), a compreensão do psiquismo e suas formas de adoecimento nos contextos laborais exige que se vá além da organização do trabalho, alcançando as experiências pessoais e profissionais que compõem a história do indivíduo. Deve-se levar em conta todo o contexto social no qual o indivíduo está inserido, sua cultura, condições financeiras e o acesso à educação, a valores morais e religiosos. É importante apreender o sentido que o indivíduo atribui ao seu trabalho e às situações às quais está submetido, envolvendo a percepção que ele tem sobre os fatos, as formas de enfrentamento dos problemas, os mecanismos de regulação que adota e a capacidade de dialogar e de questionar as adversidades. A análise desses elementos ajuda a entender por que alguns indivíduos adoecem e outros não, embora estejam inseridos em um mesmo ambiente de trabalho, o que permite avançar na compreensão da gênese das doenças mentais diagnosticadas nos contextos laborais.
Considerando esse contexto, concluiu-se ser oportuno conhecer a experiência de uma escola municipal da cidade de Congonhas/MG, onde se realizou a pesquisa que será reportada a seguir, buscando também compreender o desenvolvimento de certas manifestações de sofrimento mental que vêm ocorrendo nesse ambiente de trabalho. A opção pela abordagem multidimensional de Le Guillant (Lima, 2006a) se deveu ao fato de permitir uma melhor compreensão sobre as possíveis relações entre trabalho e adoecimento. Dessa forma, o objetivo consistiu em descrever e analisar os aspectos que fazem parte da organização do trabalho de uma escola municipal, verificando sua relação com as manifestações de sofrimento ou mesmo de adoecimento dos docentes que ali atuam.
Referencial teórico
Este estudo se baseou na teoria desenvolvida por Louis Le Guillant (Lima, 2006a), tendo sido considerados os estudos que desenvolveu com várias categorias profissionais, tais como telefonistas, mecanógrafos, condutores de trem e empregadas domésticas, e por meio dos quais conseguiu explicitar o lugar do trabalho no desencadeamento e/ou agravamento das doenças mentais.
Le Guillant foi quem conseguiu estabelecer melhor a relação entre subjetividade e objetividade, relacionando os aspectos do ambiente onde o sujeito está inserido com suas vivências subjetivas, sendo, entre os teóricos da sua época, aquele que mais se aproximou de uma adequada compreensão da relação sujeito/objeto (Lima, 2002).
Por meio da sua perspectiva teórico-metodológica, ele buscava tanto a explicação de fatos concretos, como também o aprofundamento na experiência subjetiva dos indivíduos e nas relações humanas (Le Guillant et al., 1984). Reforçando esta postura científica em seus estudos, o teórico estabeleceu um campo onde o subjetivo e o objetivo estariam interligados (Le Guillant et al., 1984).
A proposta metodológica do autor envolvia dados estatísticos, entrevistas, dados secundários obtidos em sindicatos, serviços médicos especializados, a literatura médica e até mesmo a literatura geral, como romances e poesias, considerando, assim, diferentes enfoques do problema (Lima, 2006a).
Tal metodologia assegura que o adoecimento mental não seja analisado sob uma única perspectiva, já que sua heterogênea busca de dados para a compreensão da realidade permite estabelecer melhor a relação entre subjetividade e materialidade, buscando o estabelecimento de conexões entre os problemas psicopatológicos, as condições de existência e as situações vividas pelo doente (Souza & Athayde, 2006).
Percurso metodológico
Norteada pela abordagem multidimensional de Le Guillant (Lima, 2006a), esta pesquisa buscou uma interação entre o maior número possível de informações envolvendo a organização do trabalho dos docentes, bem como suas vivências, comportamentos, emoções, trajetórias e ambiente cultural.
A coleta de dados se deu por meio de pesquisa documental, entrevistas semiestruturadas, visitas in loco e entrevistas em profundidade. Para tal, procurou-se tanto os dados secundários como os dados primários, conforme explanado a seguir.
Para levantar os dados secundários buscou-se analisar os regimentos internos, normas, leis e procedimentos específicos, tendo em vista a necessidade de compreender como o trabalho dos docentes está organizado, quais as responsabilidades, os mecanismos de gestão de pessoas, carreira, avaliação do desempenho, tipos de controles a que estão submetidos, sistemas de recompensas, entre outros.
Para os dados primários, com o objetivo de buscar uma melhor compreensão das situações de trabalho às quais o profissional está submetido, bem como seus impactos na saúde, foi utilizada, inicialmente, a técnica de observação in loco, ocasião em que os docentes foram acompanhados na realização de suas atividades, tendo sido consideradas as condições materiais de trabalho, os recursos disponíveis, a relação com os alunos, com os pais e com a direção da escola. Nessa etapa, foram realizadas várias visitas à escola, tendo sido percorrido todo seu espaço físico, como biblioteca, sala de microcomputadores, salas de aula, refeitório, auditório, quadra, pátio, salas de apoio e salas administrativas. Foi possível também observar uma das reuniões com os pais, sendo esta conduzida pelos professores e pela equipe gestora. Com o consentimento de um professor, uma aula foi observada pelo pesquisador.
Os docentes que atuam na escola estudada foram selecionados pela acessibilidade, sendo que o número de participantes foi definido por saturação dos dados, que consiste na interrupção das entrevistas quando as informações começam a se repetir. Thiry-Cherques (2009) aponta que a saturação pode ocorrer em, no máximo, 15 entrevistas, sendo que neste estudo foram realizadas 13. As entrevistas com estes docentes foram semiestruturadas e buscaram compreender, a partir da perspectiva dos sujeitos, a forma como o trabalho é organizado, quais são suas condições, o relacionamento com os alunos, a relação com a educação/profissão, os sintomas/adoecimento que apresentam e sua possível relação com a atividade que exercem, bem como o reconhecimento social do seu trabalho. Além disso, procurou-se entender como reagem às exigências presentes no contexto do trabalho.
Visando apreender melhor como se dá a relação entre a organização do trabalho e o adoecimento mental, foi adotado também, por meio de um estudo de caso individual, o método biográfico preconizado por Le Guillant (Lima, 2006a), pois, conforme apontado por Lima (2006b), este é o melhor caminho para se compreender o processo de adoecimento. Para tal, foram realizadas entrevistas em profundidade com um dos docentes que adoeceu mentalmente.
Para a análise dos dados, as categorias foram definidas conforme os objetivos da pesquisa e baseadas em aspectos que envolvem a realidade do docente, de acordo com estudos anteriores (Codo, 1999; Meleiro, 2012; Reinhold, 2012; Vilela, Garcia & Vieira, 2013). Elas se basearam na compreensão da organização e das condições de trabalho, dos aspectos que causam maior sofrimento nos docentes, no seu modo de perceber o trabalho que realizam e como enfrentam as dificuldades neste contexto. As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas e analisadas por meio de análise de conteúdo.
Apresentação e análise dos resultados
Os sujeitos pesquisados são professores que atuam nos Ensinos Fundamental I (1º ao 4º ano) e Fundamental II (5º ao 9º ano). Nove deles lecionam no Fundamental II e dez são do sexo feminino. Quanto à faixa etária, quatro estão entre as idades de 34 a 40 anos, cinco estão entre 40 a 45 anos e quatro estão entre de 46 a 57 anos. Entre os entrevistados, oito são casados e um é divorciado.
No que se refere ao tempo de trabalho na escola, sete trabalham na instituição há mais de dez anos, cinco deles estão desde a fundação da escola, isto é, há 13 anos. Quatro docentes estão na escola há dois anos, quando esta passou a incorporar as turmas do Ensino Fundamental I em sua estrutura.
Quanto ao tempo que exercem o trabalho como docentes, oito dos professores têm mais de dez anos de experiência e dois têm mais de vinte anos de experiência. Todos os professores entrevistados são efetivos e apenas cinco não trabalham em mais de um cargo ou escola, ou não aumentaram sua carga horária na própria instituição. Todos os professores têm curso superior e nove têm pós-graduação latu senso.
A atividade do professor na instituição pesquisada consiste em lecionar as aulas conforme a regência assumida; elaborar o planejamento anual de todo o conteúdo da disciplina e, após sua entrega, elaborar o plano de aula. Esse plano deve ser desenvolvido sob análise do perfil de cada turma, buscando-se estratégias diferenciadas e inovadoras para o processo educacional (Congonhas, 2014).
O professor deverá elaborar também o Plano de Desenvolvimento Individual (PDI), que consiste num planejamento individualizado para alunos que sejam portadores de necessidades especiais. Cabe a ele, por ser o responsável pela disciplina, preencher os relatórios de encaminhamento e acompanhamento especializado deste aluno, conforme instrução no regimento escolar da Secretaria de Educação (Congonhas, 2016).
Além das atividades relacionadas ao planejamento da disciplina e das aulas, o professor é responsável pela avaliação do processo educativo, cabendo a ele elaborar e corrigir provas, exercícios, trabalhos e outros instrumentos avaliativos (Congonhas, 2014).
Os docentes realizam também algumas atividades adicionais, como participação em projetos da secretaria, desenvolvimento de projetos, participação em reuniões, elaboração de relatórios, apoio à equipe pedagógica no relacionamento com os familiares dos alunos, lançamento de notas e frequência nos diários, além de orientação e acompanhamento de alunos. Cabe também ao professor, conforme propõe o Regimento Escolar, administrar e investir na sua formação continuada, buscando aplicar tal conhecimento no processo educacional (Congonhas, 2014). No entanto, diante das atividades que estão sob sua responsabilidade, muitos não encontram tempo suficiente para melhorar sua formação ou mesmo se atualizar.
Essa sobrecarga de trabalho que impossibilita ou dificulta a busca de formação do docente foi também verificada nos estudos de Carvalho (2011), Freitas (2007), Reinhold (2012), Silva (2015), Vilela, Garcia e Vieira (2013), Witter (2012) e Zille e Cremonezi (2013).
Organização do trabalho
Dejours (1987) aponta que a organização do trabalho compreende o conteúdo da tarefa, a divisão do trabalho, a estrutura hierárquica, as relações de poder e políticas nas organizações e as divisões da responsabilidade. Segundo o autor, os elementos que compõem a organização do trabalho têm impacto mais imediato sobre o psiquismo do indivíduo, afetando, portanto, sua saúde mental.
A jornada de trabalho dos professores compreende quatro dias de trabalho no turno da manhã ou da tarde, mas observou-se que eles precisam estender essa jornada, uma vez que parte de suas atividades é realizada em casa. Ademais, vários professores, visando uma melhor remuneração, assumem trabalhos em outras escolas, o que gera uma dupla jornada de trabalho, fator que compromete a sua vida social, o lazer e também o tempo disponível para se atualizarem. As mulheres casadas apresentaram essa dificuldade de disponibilidade de tempo de forma mais intensa que os homens, uma vez que assumem demandas domésticas que fazem com que sua jornada de trabalho se estenda ainda mais.
Como já foi dito, a sobrecarga de trabalho vem sendo apontada por vários pesquisadores como um fator com potencial de adoecimento para o docente (Carvalho, 2011; Nunes-Sobrinho, 2012; Ribeiro, 2011; Vilela et al., 2013; Witter, 2012). Este estudo corrobora as conclusões desses autores ao trazer a sobrecarga de trabalho como um elemento importante entre os docentes entrevistados, podendo constituir elemento favorável ao adoecimento, uma vez que questões importantes como lazer, atividades físicas e formação são deixadas de lado devido à falta de tempo.
Um fator importante para compreender a forma como o trabalho está organizado é o grau de autonomia que os indivíduos têm na execução de suas atividades e, também, na definição de normas e procedimentos relativos ao seu trabalho. A maioria dos professores entrevistados relatou não ter autonomia no desenvolvimento de suas atividades, enquanto uma minoria percebe essa autonomia como limitada. De modo geral, afirmam não terem suas opiniões consideradas, no que tange às normas e definições do regimento.
A autonomia é mínima, não tenho autonomia nem de quantos pontos que vou distribuir . . . . Já opinamos sobre o Regimento Interno, mas nada do que opinamos está lá (E2).
Tal fato pode ser explicado também pelo estabelecimento de Leis da Educação Nacional que visam organizar em todo o território nacional a educação segundo diretrizes e bases comuns, não considerando aspectos particulares e específicos de cada escola. Ademais, as metas quantitativas estabelecidas pelo Ministério da Educação contribuem para que essa autonomia seja limitada.
Dessa forma, o trabalho do docente está condicionado às regras estabelecidas pela Secretaria de Educação, limitando sua autonomia, que permanece apenas no que tange à condução da aula. Essa falta de autonomia no trabalho do docente foi também constatada nos estudos de Reinhold (2012).
O estilo de gestão é um importante fator que compreende a organização do trabalho, podendo favorecer um local de trabalho com potencial patogênico ou não. No período de 2013 a 2016, a escola era gerenciada por um diretor com perfil autoritário, centralizador e controlador, sendo que sua postura firme com os alunos, pais de alunos e funcionários favoreceu a organização da escola como um todo. Por outro lado, esse estilo de gestão favoreceu a redução da autonomia do professor e gerou insatisfação.
O regime é ditatorial. Não pode absolutamente nada. . . . Eu desconheço uma pessoa tão estúpida e grossa igual a ele. . . . Ele é prepotente (E8).
Em fevereiro de 2017, tomou posse uma nova direção, apresentando um estilo de gestão mais descentralizado, porém com pouco envolvimento, passando a impressão de insegurança, na visão dos docentes. Questões pedagógicas, administrativas e estruturais importantes parecem que não são tratadas da forma como os professores gostariam e estes percebem um descontrole na escola.
Mas hoje está mais solto, estamos tendo problemas aqui que não tinha antes, até questão de limpeza de sala, de organização mesmo, então, a gente já está percebendo isso (E11).
Assim, os dois estilos tão opostos de gestão parecem ter efeitos negativos sobre os docentes, configurando-se como mais um fator potencialmente patogênico. Foi isto que percebeu Reinhold (2012), ao concluir que o modo de gerir a escola exerce papel central no adoecimento do professor, sendo que o diretor deve ter capacidade e competência para lidar com as demandas e necessidades dos docentes, principalmente, na solução de conflitos.
O desempenho do professor é avaliado anualmente por meio de um instrumento que engloba vários itens relativos ao seu trabalho. Depois de fazer a autoavaliação, esta é submetida a uma comissão composta por representantes dos docentes, funcionários da secretaria, orientadores e pedagogos. Essa comissão julga a nota atribuída pelo docente, propondo uma pontuação final, sendo esta passível de recurso em caso de discordância (Congonhas, 2014).
A esse respeito, seria de se esperar que, ao receber o resultado final, a equipe gestora da escola oferecesse um feedback aos docentes visando a elaboração de planos de ação em busca de melhorias e desenvolvimento no processo educacional. No entanto, nenhum professor recebe feedback e consequentemente nenhum acredita na efetividade dessa avaliação, pois sua pontuação é utilizada apenas como critério para definição de prioridade na escolha de turmas para o próximo ano letivo. Por isso, os professores concluem que a avaliação possui um caráter punitivo, uma vez que inclui elementos que reforçam essa visão, como o fato daqueles que se afastaram por problemas de saúde terem sua nota comprometida.
E essa avaliação chega a ser prejudicial para uns. É uma avaliação punitiva, não é uma avaliação para crescimento (E12).
Tal política desabona a eficácia desse instrumento e contribui para que os resultados não correspondam à realidade, além de contribuir para que o docente se sinta desvalorizado. Cabe ressaltar a esse respeito que a política inadequada de avaliação de desempenho tem sido associada com problemas de saúde entre professores, sendo citada, por exemplo, a síndrome de Burnout (Reinhold, 2012).
Quanto às formas de reconhecimento do seu trabalho, todos os professores afirmaram que não existe um sistema formal de recompensa, elevando o sentimento de desvalorização.
Salienta-se ainda que o trabalho do docente é permeado de normas, leis e regras que visam à normatização do processo educativo e o seu melhor funcionamento. No entanto, já é sabido que nem sempre o prescrito é passível de ser aplicado na prática, pois dificilmente retrata a realidade do trabalho. Dessa forma, como todo trabalhador, o docente também precisa desenvolver estratégias para vencer as discrepâncias entre o prescrito e o real, sendo este esforço mais um elemento gerador de sofrimento no trabalho (Dejours, 1997; Mendes, 2011).
Assim, os docentes entrevistados apontam que as regras não são coerentes com a realidade que enfrentam, sendo que o objetivo central da educação, na visão de alguns, se perde em meio às normas impostas. A regra que mais incomoda os professores é a relativa à promoção do aluno, pois o mesmo tem o direito de fazer cinco recuperações no final do ano letivo e, caso não consiga se recuperar, tem o direito de ficar de dependência em pelo menos três disciplinas, progredindo para o ano posterior. Ademais, disciplinas como inglês, espanhol, artes, literatura, educação física e ensino religioso não reprovam, embora o docente precise elaborar todo o processo avaliativo dessas disciplinas (Congonhas, 2014).
Não estou esquentando a minha cabeça, estou dando nota em tudo, os exercícios estão todos fáceis, o resultado vai ficar melhor que no bimestre anterior. Isso não significa que o aluno aprendeu, mas eles estão preocupados com a aprendizagem do aluno? (E8)
Quem tratou dessa questão foi Meleiro (2012), ao dizer que os professores se sentem pressionados em função de as normas permitirem que o aluno seja aprovado, ainda que esteja com qualificação insuficiente. E acrescenta que esse tipo de imposição é incoerente com os objetivos da educação.
No que tange ao plano de carreira desse profissional, o critério norteador é o tempo, já que a cada três anos há uma progressão. No entanto, o progresso fica condicionado ao não afastamento do professor por problemas de saúde. Além disso, modificações recentes cortaram a possibilidade de gratificação salarial gerada por cursos de pós-graduação (Congonhas, 2014). Para os docentes, a ausência de plano de carreira representa uma forma de desvalorização, o que foi constatado em outros estudos (Carvalho, 2011; Codo, 1999; Ribeiro, 2011; Vilela et al., 2013) e está relacionado com a precarização do trabalho do professor, já que poucos investimentos são dispensados para essa categoria, limitando suas possibilidades de crescimento.
Ao tratar sobre remuneração, os professores apontam que ela é insuficiente e que, por isso, muitos trabalham em outras escolas para aumentarem sua receita. O salário inicial dos docentes é de R$ 2.000,00, valor que é considerado insuficiente pela maioria.
Busco aulas a mais, em função do salário. No início eu até peguei aulas a mais por gostar, mas hoje eu estou nessa por causa do salário (E2).
Sobre o apoio que recebem dos pais, os professores relataram que a falta de envolvimento da maioria dos pais com as questões escolares dos filhos dificulta processo de aprendizagem.
Junta isso com uma família que não está nem aí para ele, porque têm pais e mães que estão nas drogas, na bebida. Ele nunca teve alguém que preocupasse com ele, com a aprendizagem dele em casa (E2).
É evidente que a falta de envolvimento dos pais no processo de aprendizagem dos filhos contribui para que o trabalho do docente se torne ainda mais penoso, levando-o a se sentir frustrado por não conseguir cumprir adequadamente o seu papel. Isso também favorece a indisciplina e o desinteresse do aluno pela educação, o que pode ser mais uma fonte do mal-estar do docente (Esteve, 1999).
Dessa forma, o professor se vê obrigado a assumir outros papéis além de ensinar, o que pode gerar conflito com aqueles voltados para sua prática de ensino. O aluno, em função do apoio que não encontra na família, busca nos professores esse amparo. Os docentes acabam se envolvendo com problemas emocionais dos alunos, conflitos familiares, violência doméstica, drogas, álcool e até casos de abuso sexual. No entanto, muitos não se sentem preparados para oferecer uma resposta a tais demandas.
Hoje, a gente percebe que a família jogou muito a responsabilidade dela pra gente. A gente ensina valores que a família deveria ensinar e a gente não está dando conta aqui. . . . Ele vem buscar aqui e quer as soluções aqui. E será que a gente tem as soluções? (E2)
Outro depoimento revela a dificuldade que o docente enfrenta ao assumir tais papéis.
O que falar com um aluno desse? O que eu, como professora, tenho para dar para essa menina [abusada sexualmente]? O que adianta trabalhar Segunda Guerra Mundial com ela? O que isso vai fazer de diferença na vida dessa menina? Nada. Eu tenho que ser psicóloga, mas nós também não estamos bem, estamos todos doentes, como ajudar? (E8)
Na visão dos docentes, o papel central do professor, que consiste em ensinar, se perde diante das demandas trazidas pelos discentes, gerando um sentimento de frustração, porque o sistema exige a aplicação do conteúdo e o cumprimento do planejamento sem considerar essas questões (Congonhas, 2014, 2016).
Condições de trabalho
De acordo com Dejours (1987), as condições do trabalho consistem naqueles elementos que compõem os ambientes físico, químico e biológico, envolvendo as condições de higiene e de segurança, e as características antropométricas do posto de trabalho. Esses aspectos afetariam mais diretamente o corpo do trabalhador, pois as condições de trabalho precárias podem contribuir para que o trabalho desse profissional se torne mais penoso.
Foi constatado que os recursos disponibilizados aos professores são escassos, forçando-os a recorrerem ao seu próprio salário para obter recursos básicos como folhas e fotocópias. A ausência de recursos para que o trabalho seja desenvolvido, acaba limitando as ações desses professores, além de sinalizar um baixo investimento na educação, precarizando seu trabalho.
Sobre essa questão, Meleiro (2012) aponta a ausência de materiais necessários para as atividades dos docentes como um fator inibidor de iniciativas criativas, fato também encontrado neste estudo, quando muitos docentes deixam de elaborar aulas inovadoras e projetos em função da falta de recursos.
Ademais, a visita in loco na escola permitiu constatar o baixo investimento na sua estrutura, gerando desconforto entre os docentes. Problemas de iluminação foram detectados em várias salas de aula, inutilizando algumas. Apesar de a direção ter feito várias solicitações de manutenção, a ausência de recursos e a morosidade na solução dos problemas fazem com que persistam por meses. Durante a visita, outros problemas foram identificados, como vidraças quebradas, equipamentos roubados, fechaduras danificadas em todas as salas de aula, quadra com o piso quebrado, vazamentos no telhado, bancos dos pátios quebrados, goteiras em algumas salas, espaços sujos, falta de serviços de jardinagem e ausência de cortinas nas salas, tornando o ambiente quente e desagradável, sobretudo, nas que estão expostas ao sol.
Relações interpessoais
A maioria dos professores considera que o ambiente na escola é agradável, prevalecendo um clima de amizade e descontração, havendo também cooperação entre os pares, o que contribui para que cada um consiga vivenciar os problemas do seu trabalho com mais tranquilidade. No entanto, embora seja um fator relevante para a saúde, esse ambiente amigável por si só não é suficiente para compensar todas as dificuldades mencionadas, o que pode ser constatado pelo fato de alguns docentes apresentarem sintomas de sofrimento ou até de adoecimento mental.
Portanto, ao tratar do relacionamento entre os pares, os entrevistados não se referiram a conflitos importantes. A escola tem em torno de 13 anos de fundação e a maioria dos docentes estão trabalhando ali desde o início, o que favoreceu a construção de relações de amizade entre eles. Tudo indica que esse é o aspecto mais compensador que percebem no seu contexto de trabalho.
O que ainda segura a gente é o clima agradável entre os professores (E2).
Mas ao relatar o relacionamento com a direção, os professores não consideram haver a mesma proximidade, pelo contrário, há um distanciamento, conforme apontado por alguns entrevistados. Reinhold (2012) discorre sobre a necessidade de o gestor possuir capacidade de bom trato no relacionamento interpessoal, como senso de valorização das pessoas, empatia e capacidade para resolver conflitos. No entanto, na escola em estudo, foi possível verificar que a direção atual não tem demonstrado essa capacidade, o que gera desconforto entre os docentes.
Já na relação com o aluno, o desrespeito foi relatado como uma constante. Além do mais, os entrevistados relataram a questão da indisciplina e do desinteresse pelo estudo como um fator gerador de tensão, pois atrapalha o desenvolvimento das atividades. Alguns docentes expressaram o sentimento de não cumprir bem o seu papel em função da indisciplina e do desinteresse dos alunos.
Tal fato foi comprovado através dos relatos dos docentes e também por meio de constatações feitas pelo pesquisador, ao observar a aula de um dos docentes e verificar o desinteresse pelo conteúdo e a falta de respeito com o professor. Enquanto apresentava uma atividade avaliativa, os alunos estavam conversando em voz alta, transitando pela sala e ignorando presença do professor. Durante a reunião de pais e professores, foi possível perceber que a temática central era a indisciplina e o descaso dos alunos com as atividades escolares.
Essas questões disciplinares foram verificadas também por Carvalho (2011), Silva (2015), Sousa, Bueno e Silva (2016) e Zille e Cremonezi (2013). Reinhold (2012), ao estudar a síndrome de Burnout do docente, constatou que a questão da indisciplina aparece em vários estudos como um fator que contribui para essa forma de adoecimento do professor, uma vez que é uma constante fonte de tensão.
Sintomas e adoecimento
Assim como ocorreu em diversos estudos mencionados anteriormente, esta pesquisa também identificou vários sintomas físicos e mentais, além de adoecimentos, gerando afastamentos entre os docentes da escola pesquisada.
Com relação aos sintomas físicos relatados pelos docentes, houve queixas de dores musculares e nos ombros, enxaquecas, fadiga, taquicardia, dores no estômago e tonteiras. Alguns apresentaram sintomas que remetem ao sofrimento mental, referindo-se a problemas como insônia, alteração no humor, ansiedade, perda de apetite, esgotamento, depressão e sentimento de frustração. Vários docentes relataram precisar fazer uso de medicamentos para combater esses sintomas.
Queixas como enxaquecas, dores de cabeça, distúrbios do sono e distúrbios psíquicos, como fobias e depressão, foram apontados por Reinhold (2004) nessa categoria profissional. Aguiar (2010) apontou também irritabilidade excessiva, tensão muscular, taquicardia e cansaço como alguns dos sintomas identificados na sua pesquisa com docentes. Zille e Cremonezi (2013) apontaram a fadiga, a ansiedade, o nervosismo, a angústia e as dores musculares como os principais sintomas encontrados em sua pesquisa. Pereira et al. (2011) constataram em seu estudo que os sintomas mentais foram mais frequentes que os sintomas físicos, destacando-se os problemas de memória e tontura. Os resultados do estudo aqui relatado vão ao encontro dessas pesquisas, corroborando seus achados e reforçando ainda mais o caráter patogênico dessa atividade profissional.
Ao tratar do adoecimento do docente, todos afirmaram estar sentindo algum sintoma físico ou mental, sendo que mais de 50% deles já se afastaram por problemas de saúde e afirmaram também conhecer algum colega que se afastou das atividades pelo mesmo problema de adoecimento relacionado ao trabalho. Foram apontados depressão, síndrome do pânico, estresse e problemas com a voz como os casos mais comuns na sua categoria.
Eu tenho uma amiga que está afastada por problemas emocionais . . . se ela passar naquele portão ela começa a chorar. O abalo foi tão grande que ela não fica dentro de uma escola mais. . . . Em 2013, eu fiquei mal, por questões emocionais mesmo, uma frustração, um cansaço intenso, uma fadiga que eu não suportava, parei de dormir. Comecei a tomar tarja preta (E10).
Em geral, eles hesitam em se afastar do trabalho, pois qualquer afastamento pode comprometer sua pontuação na avaliação de desempenho, além de ter o seu avanço na carreira comprometido. Na visão dos sujeitos da pesquisa, esta política adotada pelo município tenta coibir o afastamento do professor, até mesmo quando ele se encontra doente e sem condições de trabalhar:
A gente tenta não adoecer, por questões administrativas. . . . Se der atestado, a gente não avança na letra, não progride na carreira (E6).
Em suma, o estudo aqui exposto confirma os achados de outros pesquisadores ao verificar que o docente está exposto a variadas situações que podem favorecer seu adoecimento. Mas vai além ao trazer à luz uma prática de gestão que impede a expressão do sofrimento e até mesmo do adoecimento, o que pode tornar ainda mais graves o quadro de saúde dos docentes da escola pesquisada.
Sentido do trabalho e reconhecimento social
Diante das variadas dificuldades que os impede de desempenhar seu trabalho adequadamente, os docentes relatam que o sentido do seu trabalho se perdeu, gerando grande frustração e despersonalização, pois não conseguem perceber qual é o seu real papel dentro da escola. Isto provoca neles um sentimento de desvalorização e frustração. Evidentemente, essa perda de sentido pode favorecer os quadros de adoecimento observados na categoria.
Perdeu o sentido. Estou vindo aqui só para receber meu dinheiro, já não tem mais o sentido de que o aluno vai aprender, de achar que ele vai usar isso pra vida dele. . . . Pensa! Que sentido é esse? (E6)
Reinhold (2012) pontua que os professores precisam sentir que o resultado de um dia de trabalho tenha contribuído para um propósito, concluindo, por meio dos seus estudos, que a perda do sentido está presente naqueles professores que foram diagnosticados com a síndrome de Burnout. Não por acaso, em outro estudo, Reinhold (2004) constatou que os professores que conseguiam preservar o sentido do seu trabalho eram menos vulneráveis às tensões do trabalho.
Ao serem questionados a respeito da forma como a sociedade vê a figura do professor, todos os docentes relataram perceber uma desvalorização da sua profissão em todas as esferas da sociedade. Os relatos revelam que esta desvalorização se manifesta principalmente com relação ao reconhecimento social do professor. Segundo eles, de modo geral, a sociedade percebe o professor como um profissional "sofredor" e um "coitado".
Assim, essa ausência de reconhecimento da sociedade a respeito do seu trabalho pode contribuir para que o docente se sinta desvalorizado e frustrado, assumindo uma imagem negativa da profissão que, em seguida, será transmitida à mesma sociedade, reforçando sua visão. Diante das frustrações que afirmaram vivenciar em seu trabalho, vários admitiram já terem pensado em trocar de profissão. No entanto, muitos não o fizeram porque realmente gostam da área da Educação. E outros por não terem mais motivação para voltar aos estudos.
Riscos presentes no trabalho e formas de enfrentamento dos problemas
Os docentes apontaram o risco de adoecimento mental no exercício da sua profissão, pois avaliam que o desgaste emocional e o esforço cognitivo são altos. Outro risco evidenciado pela maioria foi com relação à segurança na escola, pois não há proteção, devido à falta de recursos. Dessa forma, o acesso à escola é livre, o que facilita a entrada de estranhos e até mesmo a possibilidade de tráfico de drogas. Alguns professores relataram presenciar "falsos alunos" em sala de aula. Ademais, os casos de vandalismo e roubo são frequentes.
Vários professores disseram ter vivenciado alguma situação de grande desgaste emocional no trabalho, tendo sofrido agressões verbais, enfrentado conflitos com os alunos e até ameaças de morte, além de absorverem os problemas dos alunos.
Constantemente eu vivo agressão verbal de aluno, menino irritando, desrespeito, coisas muito estressantes. . . . Agressão verbal, bullying de sala. Aumentam o tom da voz para competir com a gente (E13).
Sobre as formas de enfrentamento dessas dificuldades, observou-se que cada um busca maneiras de fazer face às tensões do cotidiano. Algumas estratégias foram apontadas, mas todas elas cumprem mais o objetivo de atenuar o sofrimento e de relaxar diante das tensões do trabalho. Alguns buscam se organizar melhor durante a semana para terem o final de semana livre para a família, os amigos e o lazer. Outros disseram elaborar um planejamento para facilitar a realização de suas atividades, o que, de acordo com Meleiros (2012) pode ser uma técnica "antistress". Existem aqueles que tentam se desligar das atividades profissionais quando estão em casa, enquanto outros buscam experiências que lhes dão prazer, buscando uma vida social mais ativa ou apoio na religião.
Em seu estudo sobre a síndrome de Burnout em professores, Reinhold (2012) esclarece que algumas estratégias podem ser utilizadas para prevenir o esgotamento do professor, já que elas podem estar ligadas direta ou indiretamente à atividade do docente. Estratégias como a organização do tempo, cuidar da saúde, dormir bem, fazer atividades físicas e fazer algo que dê prazer, foram apontadas por ele e encontradas neste estudo como forma de enfrentamento da tensão do dia a dia.
Por outro lado, esta pesquisa também identificou manifestações importantes de alienação que parecem traduzir uma necessidade de negar a realidade como forma de sobrevivência. Além disso, observa-se que as estratégias descritas são individuais e não resultam em qualquer transformação do trabalho, mas apenas em um esforço de adaptação a uma situação que parece insustentável para boa parte dos entrevistados.
Finalmente, embora vivenciem tensões no trabalho e estejam submetidos a um ambiente com potencial patológico, alguns docentes identificaram fontes de prazer que encontram no seu dia a dia profissional. Foi possível detectar que aqueles que lecionam no Ensino Fundamental I (alunos do 1º ao 4º ano) sentem mais prazer no seu trabalho, o que pode compensar, em grande medida, as fontes de sofrimento. O prazer está relacionado ao aprendizado do aluno e ao cumprimento dos seus objetivos, contribuindo para a preservação do sentido do seu trabalho.
O aprendizado do aluno é muito prazeroso e compensa muito o sofrimento (E1).
A resposta do aluno, o brilho no olho deles é gratificante. Isso compensa (E5).
Já os docentes do Ensino Fundamental II (alunos do 5º ao 9º ano), embora tenham citado algumas fontes de prazer como o seu próprio crescimento profissional e algumas poucas aprovações de ex-alunos em faculdades, afirmaram que essas não compensam o sofrimento presente no seu trabalho.
Apesar dessas diferenças, ao serem questionados sobre a possibilidade de exercerem o trabalho na escola em estudo sem adoecer, praticamente todos os docentes consideraram tal hipótese impossível. Alguns defenderam a necessidade de desenvolver alguma estratégia para não adoecerem e aliviarem as tensões vivenciadas no trabalho, enquanto outros simplesmente consideram o adoecimento inevitável:
Muito difícil, tem que ser muito frio para conseguir vencer tudo sem adoecer. Vira e mexe a gente tem professor com atestado (E10).
Portanto, o docente percebe a possibilidade de adoecimento no seu contexto de trabalho atual, sendo que a maioria não acredita ser possível se sobrepor a esse risco com facilidade. Conforme verificado anteriormente, muitos dos entrevistados já adoeceram em função do trabalho ou estão doentes, o que confirma os resultados apontados pela literatura que constata um índice elevado de adoecimento entre professores (Codo, 1999; Freitas, 2007; Pereira et al., 2011; Reinhold, 2004, 2012). Percebe-se também que, embora os professores busquem estratégias de enfrentamento às situações de tensão, estas parecem sem eficácia no combate ao adoecimento, sendo na sua maioria apenas adaptativas.
Caso de adoecimento
É sabido que a gênese da doença não está exclusivamente na organização do trabalho, sendo que autores como Le Guillant (Lima, 2006a) defendem que a origem do adoecimento mental está no encontro entre a trajetória individual e uma dada forma de organização do trabalho. Ao compreender a organização do trabalho e a trajetória pessoal e profissional de uma docente que adoeceu e se afastou do trabalho, através do método biográfico proposto por Le Guillant (Lima, 2006a), foi possível estabelecer uma associação entre seu adoecimento e aspectos da organização do trabalho.
A docente submetida ao método biográfico tem uma personalidade marcante, um perfil de liderança, de independência e de dedicação à profissão. Além disso, ela tem um espírito altruísta, se comove com as dores do outro e desenvolveu um desejo de gerar transformações na sociedade através do seu trabalho. Tais características possivelmente foram influenciadas pela mãe, uma professora que exerceu cargos de liderança durante a infância da docente, tais como direção de escola e parlamentar municipal, sendo referência para a população, principalmente para os mais pobres, na comunidade onde mora.
Em 2014, a professora começou a ficar entristecida com a escola e com a profissão, sentindo-se com a autoestima muito baixa e desmotivada para lecionar. Em 2015, começou a sentir muitas dores nas articulações, dificuldade de dormir, uma fadiga excessiva durante todo o dia. Acordava com uma sensação de cansaço e sentia um desejo constante de chorar. No final desse ano, apresentava dificuldades de raciocínio e de concentração:
outro dia estava dirigindo . . . e fui virar o carro em uma rua e atropelei uma mulher e uma criança, fez um barulho enorme e aí que eu percebi. Não vi elas, eu estava extremamente descompensada (E8).
Além de começar a apresentar falas desconexas, ela se via várias vezes falando sozinha e xingando em voz alta.
Estava na sala com os alunos e comecei a xingar, a resmungar, a brigar em voz alta. Eu comecei a conversar comigo, eu não lembro mais o que era, eu não lembro, e os alunos começaram a falar que eu estava ficando doida (E8).
Sentia taquicardia, enxaqueca, dores nos ombros, no pescoço e nas costas, dores no estômago, gastrite, sentimento de que aquele lugar não era para ela e desejo de abandonar o emprego. Sentia uma angústia enorme, segundo ela, estava com "síndrome do pânico" e "não aguentava ficar ali". Em janeiro de 2016, nas férias, começou a apresentar reações de pânico e desespero em relação à escola.
Eu passei o janeiro inteiro com pânico. Cada dia que diminuía em janeiro era uma dor horrível! Eu falava: Meu Deus do céu! Tá voltando! Então . . . quando chegou o dia eu falei: pelo amor de Deus! Me socorre! O que é que eu vou fazer dentro da sala de aula? (E8)
Ao retornar às aulas, sentia-se trêmula e apavorada, tendo sido afastada por 67 dias a partir de 7 de março de 2016, com diagnóstico de depressão: "se eu não afastasse, eu iria surtar". Buscou tratamento psiquiátrico, tomou vários medicamentos para dormir, antidepressivos e relaxantes, e também iniciou sessões de psicoterapia.
A docente relata que a principal dificuldade que enfrentou neste período foi com o estilo de gestão do diretor que tomou posse em 2013.
O estilo de gestão desse diretor é ditatorial, não há participação dos professores nas decisões da escola, e a forma de abordar os docentes e os alunos, muitas vezes, é grosseira e autoritária (E8).
Ela relata não ter problemas com os alunos e que gosta da atividade de lecionar.
O perfil de liderança e independência da professora contribuiu para que não aceitasse uma forma de gestão autoritária e centralizadora, deixando clara sua decisão de não se deixar dominar. Assim, não é surpreendente que o início do seu adoecimento tenha ocorrido durante a gestão autoritária na escola. Embora no seu ambiente de trabalho existam várias questões que não a agradam, parece que o estilo de gestão autocrático foi o que lhe causou mais sofrimento.
Além do mais, seu desejo de ver mudanças, transformações e de ajudar os alunos em suas questões pedagógicas e pessoais continua sendo tolhido pela gestão atual, pouco envolvida com os rumos da escola. Mais uma vez a docente sentiu-se frustrada em relação aos seus ideais. O trabalho impedido (Clot, 2010) possivelmente contribuiu para o desencadeamento dos seus quadros depressivos.
Embora sejam evidentes os variados aspectos patogênicos presentes no trabalho dos professores e percebidos pela docente entrevistada, parece que questões como a indisciplina dos alunos, a falta de recursos, a ineficaz avaliação de desempenho, a remuneração deficiente, não representam os maiores incômodos para esta professora.
Considerações finais
Nosso estudo permite concluir que o contexto laboral do docente apresenta vários aspectos com potencial patogênico, que associados à trajetória de vida do sujeito podem levá-lo ao adoecimento. Diversos fatores geradores de sofrimento e frustração no trabalho foram identificados, tais como a jornada de trabalho prolongada em função das diversas atividades que o docente assume, o estilo de gestão, uma vez que a diretoria e a vice-diretoria são cargos políticos escolhidos conforme os interesses do prefeito, podendo ocorrer escolhas que não estejam alinhadas com as necessidades da escola.
Outro ponto levantado foi a falta de autonomia, tendo em vista que o trabalho é norteado por leis, normas e regimentos que muitas vezes visam apenas aspectos quantitativos, como índice de aprovações, evasões, dentre outros. A falta de envolvimento familiar no processo de ensino-aprendizagem da criança ou do adolescente também contribui para o sofrimento dos docentes, sobrecarregando-os com demandas que extrapolam sua função, porque assumem uma multiplicidade de papéis dentro do ambiente escolar, sendo muitas vezes pai, mãe e também psicólogo dos alunos. Essa falta de apoio familiar favorece, assim, a falta de interesse do aluno e causa sérios problemas de indisciplina, tornando ainda mais penoso o ambiente escolar, pois os professores não conseguem atrair a atenção dos alunos para a aula.
A precariedade de recursos e as condições físicas da escola também foram verificadas como algo que limita o trabalho desses profissionais, obrigando-os a utilizarem seu próprio dinheiro para prover recursos mínimos para a aula. Aulas inovadoras e desenvolvimento de projetos são limitados em função dessa carência.
Dessa forma, os professores da escola em estudo sinalizaram que o sentido do seu trabalho se perdeu em função das inúmeras dificuldades que encontram para realizá-lo. Normas e regras incoerentes com os objetivos da educação favorecem que o sentido se perca e que a frustração aumente.
Os professores sentem-se desvalorizados, afirmam estar sofrendo sintomas físicos e mentais, e fazem ou já fizeram uso de medicamentos em função de problemas de ansiedade, irritabilidade, dores musculares, enxaquecas, insônia e depressão. Mais ainda, eles não acreditam ser possível exercerem suas atividades sem adoecer. Vários aspectos da organização do trabalho nos ajudam a compreender esse achado.
No caso da docente que se afastou por adoecimento mental, foi possível verificar que a falta de autonomia, o autoritarismo da gestão anterior e o pouco envolvimento da gestão atual nas questões escolares são os fatores que mais a incomodam. Estas características do ambiente de trabalho vão de encontro aos valores que ela traz da sua educação e aos aspectos de sua personalidade, tais como liderança, independência, desejo de mudança e desejo de transformação da vida do aluno por meio da educação. Sendo assim, não é possível elencar uma hierarquização entre os diversos fatores com potencial patológico, já que o que pode ser prejudicial para uns, pode não ser para outros.
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Endereço para correspondência
farneyvinicios@yahoo.com.br
Recebido em: 18/05/2018
Revisado em: 12/06/2019
Aprovado em: 08/07/2019
1 Administrador, especialista em Gestão de Pessoas e mestre em Administração pelo Centro Universitário Unihorizontes.