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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.22 no.1 São Paulo jan./jun. 2019

https://doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v22i1p1-14 

Artigo Original

DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v22i1p1-14

 

O assédio moral no contexto universitário: o caso de uma IFES em Minas Gerais

 

Workplace bullying in the university context: study with an IFES in the interior of Minas Gerais

 

 

 

Luciene Ferreira Gomides Gomes1 ; Maria Elizabeth Antunes Lima2

Centro Universitário Unihorizontes (Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil)

 

 


RESUMO

O artigo se baseia em um estudo sobre a vivência do assédio moral por servidores técnico-administrativos de uma instituição federal de ensino superior de Minas Gerais. A pesquisa teve por objetivos identificar a ocorrência desse problema, suas consequências e possíveis ações de prevenção. Realizou-se um estudo qualitativo por meio de entrevistas semiestruturadas e em profundidade. Por meio das entrevistas, tentou-se obter informações sobre as características pessoais dos sujeitos em conflito, as particularidades do seu trabalho e o contexto organizacional. Participaram da pesquisa doze servidores que foram ou não vítimas de assédio moral, tendo sido escolhidos, inicialmente, por indicação do sindicato da categoria e, posteriormente, pelo método de Snowball (Bola de Neve). Os resultados confirmam outros obtidos em instituições de ensino superior, revelando formas importantes de violência moral nesse contexto e sugerindo a presença de um grupo dominante na instituição, que dita normas e regras de comportamento, favorecendo o abuso. Tudo isso aponta a necessidade de medidas de prevenção e combate ao problema, além da sua divulgação, dando publicidade a tais formas de conduta, para que todos possam reconhecê-las, denunciá-las e, se possível, preveni-las.

Palavras-chave: Assédio moral, Instituição de ensino, Saúde mental, Servidores técnico-administrativos, Trabalho.


ABSTRACT

The article is based on a study about the experience of moral harassment by technical-administrative employees of a Higher Education Federal Institution of Minas Gerais. The objective of the research was to identify the occurrence of this problem, its consequences and possible prevention actions. A qualitative study was conducted through semistructured and in-depth interviews. An analysis of the problem of moral harassment in the Institution was carried out taking into account the personal characteristics of the subjects in conflict, the particularities of their work and the organizational context. Twelve employees who were or were not victims of moral harassment participated in the survey, and were initially selected by the representatives union and then, by the Snowball method. The results suggest the presence of a dominant group in the Institution that dictates norms and rules of behavior, favoring abuse, a fact that indicates the need for measures to prevent and combat moral harassment in the context studied, besides its dissemination, giving publicity to such forms of conduct so that everyone can recognize, denounce, and, if possible, prevent them.

Keywords: Administrative-technical servers, Educational institution, Mental health, Moral harassment, Work.


 

 

Introdução

Embora o fenômeno do assédio moral já tenha sido bastante debatido no decorrer das últimas décadas, não existe ainda, para ele, uma definição consensual. Apesar disso, as diversas formas de concebê-lo contêm quase sempre a ideia de violência moral, cometida de forma repetida e intencional, sendo frequentemente associada com problemas de saúde física e mental. Ademais, é comum destacar que esse tipo de prática constitui ameaça à dignidade da pessoa assediada, uma vez que a dor, o sofrimento, a frustração e a humilhação sofridos, representam uma forma de desrespeito aos seus direitos fundamentais (Barreto, 2005; Freitas, Heloani, & Barreto, 2008; Hirigoyen, 2014). As discussões sobre o tema se originaram ainda nos anos 1970 e as primeiras teorizações a respeito ocorreram na Suécia, na França e nos EUA (Soares & Oliveira, 2012), sendo que, no Brasil, já se pode contar com uma considerável produção teórica, envolvendo a influência dos modelos de gestão adotados, seus impactos na saúde mental, suas repercussões na sociedade em geral, e as medidas que vêm sendo tomadas em relação ao problema (Freitas et al., 2008, Seligmann-Silva, Bernardo, Maeno, & Kato, 2010; Vieira, Lima, & Lima, 2012; Nunes & Tolfo, 2013).

No caso brasileiro, dois acontecimentos foram decisivos para o reconhecimento do assédio moral como um grave problema social e, particularmente, do trabalho: a publicação da obra Assédio moral: a violência perversa no cotidiano, de Marie-France Hirigoyen (Hirigoyen, 2000/2014) e a divulgação da dissertação de mestrado intitulada Violência, saúde, trabalho: uma jornada de humilhações, de Margarida Barreto (Barreto, 2003/2013). Embora as primeiras abordagens dessa questão tenham sido de cunho individualizante, isso tem mudado, percebendo-se um olhar mais abrangente, envolvendo as dimensões individuais, mas também organizacionais, e trazendo uma crítica à visão do assédio moral como um fenômeno de natureza exclusivamente moral ou psicológica (Soboll, 2008; Freitas et al., 2008; Vieira et al., 2012).

Quanto ao campo no qual foi desenvolvido este estudo, o setor público apresenta certas particularidades em relação às empresas privadas, inclusive, no que concerne à questão do assédio moral, uma vez que a estabilidade dos servidores não apenas dificulta sua demissão como reduz os mecanismos de controle e de penalização daqueles que praticam essas ações, o que termina por criar um campo propício para essas formas de violência. Assim, apesar da ausência de qualquer ameaça imediata de desemprego, esse setor apresenta um número importante de vítimas de assédio moral no trabalho. Isto significa que essa mesma "impossibilidade" de ser demitido – que representa uma vantagem em relação ao setor privado –, na prática, pode se voltar contra o servidor, sendo que a medida mais comum tomada em casos de assédio moral tem sido a transferência compulsória de setor, o que pode gerar remoções, licenças médicas ou, mesmo, aposentadorias precoces (Souza, 2011; Prata, 2008). Cabe destacar ainda que, nesse setor, os atos de violência moral podem envolver tanto os servidores concursados quanto aqueles que ocupam os chamados cargos comissionados. É também comum que servidores mais antigos se sintam ameaçados diante de novatos, algumas vezes jovens e bem qualificados, ocasionando diversas formas de violência, nem sempre percebidas pelos próprios colegas de trabalho (Arenas, 2013). Pode ocorrer também que o superior hierárquico seja nomeado por meio de relações de amizade ou por critérios políticos e não pela competência para o exercício da função, sendo que, ao se sentir despreparado para o exercício do seu cargo, ele passe a adotar atitudes arbitrárias como forma de compensar suas insuficiências e limitações. Assim, o regime jurídico ao qual o servidor está submetido inviabiliza a adoção de medidas disciplinares, sendo necessários longos e humilhantes processos administrativos, levando o assediado a optar por não denunciar, devido ao receio de sofrer represálias (Araújo, 2012).

É interessante observar que, na França, Hirigoyen (2014) constatou um problema semelhante, dizendo que, no setor público, os abusos de poder também estão presentes e podem ser expressos, por exemplo, por meio da nomeação dos cargos comissionados, atribuídos aos funcionários pelo viés político antes mesmo de conhecer o modo como desempenham suas atividades.

No contexto específico das universidades federais brasileiras, um estudo realizado por Nunes, Tolfo e Nunes (2013) constatou a existência de um sistema de apadrinhamento que gera vantagens para alguns, enquanto os outros são alvos potenciais de perseguições, convertendo a submissão em uma condição necessária para se adaptar, além de deixar espaços para a impunidade. Já Rodrigues e Freitas (2014) observaram que o assédio moral, nesse contexto, é motivado tanto por questões de ordem pessoal quanto organizacionais, tendo como elementos deflagradores a fragilidade ou a inexistência de normas e processos referentes à prevenção e ao tratamento do problema.

Este estudo teve sua origem na queixa de assédio apresentada por alguns servidores da instituição estudada, atribuindo o problema às atitudes dos seus superiores hierárquicos, mas, eventualmente, também de colegas. O objetivo foi de verificar a ocorrência de situações que podem ser qualificadas como assédio moral, além de suas consequências na saúde mental dos servidores. Tentou-se, igualmente, identificar e descrever as estratégias de prevenção e combate a esse problema, adotadas não apenas pela instituição, mas também pelo sindicato da categoria.

 

Assédio moral: aspectos conceituais e consequências mais importantes

O assédio moral é visto como um fenômeno socialmente antigo (Jacoby, Falcke, Lahm, & Nunes, 2009; Mallmann, 2010; Nakamura & Fernandez, 2004), todavia, foi somente nas últimas décadas, por intermédio da divulgação de estudos e pesquisas, que ganhou visibilidade e começou a despertar maior interesse. No entanto, pode-se dizer que ocorreu uma intensificação do problema em decorrência de mudanças ocorridas no cenário econômico mundial. A aceleração do processo de globalização e o consequente aumento da competição intercapitalista, transformaram o ambiente interno e externo às organizações, tornando-o propício à proliferação de várias formas de patologias sociais (Aguiar, 2008).

A origem das discussões em torno do tema tem sido atribuída ao psicólogo alemão Heinz Leymann, que atuava na Suécia, onde passou, ainda nos anos 1980, a estudar o tema a partir dos relatos de sofrimento laboral de 64 pacientes de uma clínica de amparo psicológico. Após terem passado por situações de violência moral dentro do trabalho, esses pacientes desenvolveram um quadro severo de Síndrome de Estresse Pós-Traumático, sendo que, em 1992, Leymann descobriu a presença do mesmo quadro entre 95% das vítimas desse tipo de violência (Bradaschia, 2007). Em seguida, na França, a psiquiatra e psicoterapeuta familiar Marie-France Hirigoyen retomou essa discussão, difundindo seus estudos, em 1998, na obra Le harcèlement moral, la violence perverse au quotidien. Ao ser publicado no Brasil, dois anos depois, com o título Assédio moral: a violência perversa no cotidiano (Hirigoyen, 2000/2014), desencadeou a discussão em torno do tema recebendo, em seguida, o reforço da obra Violência, saúde, trabalho: uma jornada de humilhações, fruto da dissertação de mestrado da médica Margarida Barreto, na qual a humilhação é posta como um indicador importante na avaliação das condições de trabalho e saúde dos trabalhadores (Barreto, 2013).

Desde então, diversos pesquisadores brasileiros vêm contribuindo para a discussão sobre o tema, sendo que a obra Assédio moral no trabalho, de Maria Ester de Freitas, Roberto Heloani e Margarida Barreto, se destaca pela sua abordagem crítica e processual do fenômeno, posto como um problema organizacional e não só decorrente das relações entre pessoas. Em outros termos, para os autores, as causas e os prejuízos decorrentes do assédio moral não são apenas pessoais, mas concernem às organizações e até mesmo à sociedade, o que justifica a mobilização de todo esforço possível para compreender e lidar com esse problema. Nesse sentido, eles ultrapassam a visão psicologizante do problema, observada, por exemplo, em análises como a de Hirigoyen (2014, 2015), as quais, embora mencionem os fatores relativos aos processos de gestão e organização do trabalho, concluem que o assédio moral é determinado, em última instância, por problemas de ordem essencialmente individual e psicológica.

Assim, em uma crítica dirigida a essa visão de Hirigoyen (2014, 2015), Vieira et al. (2012, p. 259) concluem que essa pouca ênfase nos modos de gestão adotados nos ambientes de trabalho "[...] reduz o contexto organizacional a um mero décor no qual se expressa a perversidade individual". Os autores argumentam que a personalidade dos envolvidos não é suficiente, de forma isolada, para explicar o assédio moral, mencionando as formas de gestão e de organização do trabalho, além das exigências impostas pelo mercado às próprias empresas, como elementos centrais na compreensão dessas condutas (Vieira et al., 2012).

Entre os elementos mais citados na caracterização do assédio moral, estão a atribuição de tarefas cujas exigências estão aquém do cargo ocupado pelo indivíduo, a exposição a situações de constrangimento e, a imposição de metas absurdas ou inatingíveis (Hirigoyen, 2015). Já sobre as reações a tais situações, tudo indica que essas variam bastante, sendo que algumas pessoas se fragilizam de imediato em razão das condutas abusivas, enquanto outras demoram a apresentar um abalo emocional, seja por sua maior capacidade de suportar a violência moral, seja por não perceberem quando os primeiros sintomas aparecem, frequentemente, em razão do seu envolvimento com o trabalho e da necessidade de corresponder às expectativas do seu superior hierárquico (Martins, 2013).

De modo geral, são citadas várias consequências do assédio moral, sendo comuns os sintomas psicológicos mais ou menos graves e as mudanças comportamentais. Alguns estudos apontam ainda que essa experiência pode afetar profundamente a identidade do assediado, mudando seu funcionamento mental e acarretando, entre outras coisas, o declínio na qualidade e na produtividade do trabalho, o aumento do absenteísmo e dos acidentes. Tudo isso culmina, frequentemente, em interrupções da atividade profissional por motivos de saúde, podendo ocorrer uma dificuldade crescente de enfrentar situações de pressão ou de interagir com a equipe de trabalho, chegando ao pedido de demissão ou aos processos judiciais. (Soares & Oliveira, 2012; Hirigoyen, 2015; Calil, 2013). Barreto (2005) vai além ao apontar que a vítima do assédio pode desenvolver distúrbios psicossomáticos que, em sua maioria, se tornam crônicos, isto é, podem ser reduzidos, mas não curados. Segundo a autora, tudo isso tende a levar à perda do sentido da vida, sendo que a depressão pode ser o estágio mais grave, culminando no suicídio, quando a pessoa prefere a morte à perda da dignidade. Ela corrobora os estudos de H. Leymman, quando se refere ao quadro de Transtorno de Estresse Pós- Traumático, apontando que é frequente a pessoa reviver o mesmo sofrimento ao relembrar as ofensas e as situações traumáticas que viveu. A autora afirma, ainda, que as consequências podem ser mais amplas, já que o problema não afeta somente os contextos de trabalho, mas a sociedade como um todo, inclusive, pelos gastos públicos envolvidos no tratamento dos problemas de saúde ocasionados por essas formas de violência nos ambientes de trabalho (Barreto, 2005, 2013).

Ressalte-se ainda que o assédio é percebido, acima de tudo, como uma ofensa à dignidade da pessoa, sendo que a divulgação do fato e os comentários dos colegas de trabalho sobre o caso criam um ambiente laboral completamente inadequado, aumentando a pressão psicológica. Tudo isso acarreta, entre outras coisas, atitudes de represália, como mudanças de funções, transferências compulsórias de locais de trabalho, recusas de promoções ou mesmo a demissão (Pamplona Filho, Lago Junior, & Braga, 2016).

 

O assédio moral na administração pública

Ainda são escassos os estudos sobre esse tema no setor público brasileiro, em especial, quando se trata de instituições de ensino superior, embora, como bem perceberam Caran, Secco, Barbosa e Robazzi (2010), as universidades são locais onde acontecem competições por cargos, recursos para pesquisas e publicações, podendo ser um ambiente favorável para a ocorrência do assédio moral. Foi nesse sentido que Ventura (2015), por exemplo, ao analisar esse problema entre servidores de uma IFES, constatou a existência de um resquício cultural de cunho autoritário, cujas características em termos de valores, crenças, comportamentos e atitudes não coadunam com a imagem que a instituição propaga a seu respeito.

Ao abordar o problema no serviço público em geral, Schiavi (2011) concluiu que, além de expor o trabalhador a situações humilhantes e constrangedoras durante a jornada de trabalho, afetando sua autoestima e sua dignidade, bem como sua capacidade física e intelectual, a prática do assédio moral nesse setor deve ser vista também como um ato ilícito e inconstitucional. Bambirra (2018) percebeu ainda que o assédio moral é um problema endêmico na administração pública, provavelmente em razão de existir uma conjunção de elementos envolvendo poder e hierarquia, além da complexidade dos procedimentos administrativos envolvidos na apuração das denúncias.

Sobre o enfrentamento do problema, Minassa (2012) admite ser uma tarefa árdua, uma vez que, quase sempre, ele se deve à utilização, pelas pessoas que detêm os mais altos cargos hierárquicos, dos poderes que lhes são atribuídos para agirem de forma espúria e abusiva em relação aos subalternos. Um estudo realizado por Guimarães, Cançado e Lima (2016) em uma instituição federal de ensino superior corroborou essa visão ao constatar a ocorrência de assédio moral por abuso de poder, autoritarismo e manipulação perversa, com severas consequências para a saúde física, psíquica e emocional do assediado.

Em suma, a maioria das pesquisas em torno do tema sugere que a prática de assédio possui peculiaridades nesse setor, devido às dificuldades impostas pelo modelo vigente de organização pública, dificultando ou mesmo impedindo o reconhecimento e a penalização dos casos concretos de abuso. Trata-se de um verdadeiro desafio para essas instituições, uma vez que, somente por meio do real conhecimento do problema e de suas causas, será possível intervir de forma efetiva, tanto no seu tratamento quanto na sua prevenção.

 

Percurso metodológico

Foi realizada uma pesquisa qualitativa com o objetivo de aprofundar o conhecimento da realidade estudada por meio da observação, do registro e da análise dos fatos, buscando descobrir se (e como) o problema do assédio ocorre, sua regularidade, bem como suas motivações e seus impactos nas pessoas (Cervo et al., 2007). Pretendeu-se, pois, identificar e descrever a configuração do assédio moral nas relações de trabalho, por meio da vivência desse problema por alguns servidores, bem como avaliar o tratamento que vem sendo oferecido a eles em uma instituição de ensino superior.

Devido aos aspectos subjetivos envolvidos na pesquisa, foi adotada a entrevista em profundidade por ser a forma mais adequada de explorar e entender um fenômeno como o assédio moral, sobretudo, quanto aos sentidos a ele atribuídos (Creswell, 2010). Nesse caso, o importante não é a quantidade de sujeitos envolvidos e, sim, se são representativos daquilo que se pretende estudar (Polit et al., 2004). Assim, o procedimento adotado para chegar até eles foi o snowball, também chamado de snowball sampling (Biernacki & Waldorf, 1981), conhecido no Brasil como "amostragem em Bola de Neve" ou "cadeia de informantes". Consiste, basicamente, em solicitar que os participantes iniciais de um estudo indiquem novos participantes que, por sua vez, indicarão outros e, assim, sucessivamente, até que seja alcançado o objetivo proposto (Goodman, 1961).

A primeira entrevista foi realizada com o representante da Associação dos Servidores Técnico-Administrativos da instituição em estudo a quem foi apresentado o projeto de pesquisa e solicitada a indicação de associados que buscaram assessoria jurídica alegando terem sofrido assédio moral, e que estariam dispostos a colaborar com o processo de pesquisa. A partir desse contato, tornou-se possível identificar o primeiro sujeito a ser entrevistado.

Foram escolhidos para a pesquisa tanto aqueles que se apresentaram como vítimas do assédio moral quanto os que não viveram essa experiência, evitando, assim, abordar o problema por uma perspectiva exclusiva de quem se considera alvo dessa forma de violência. Durante as entrevistas, foram abordados aspectos relativos à visão do sujeito a respeito do assédio moral, além do que pensava e sentia em relação a esse problema na instituição estudada. Os encontros foram previamente agendados após o consentimento dos participantes, sendo gravados com sua anuência, e os conteúdos transcritos para posterior análise. Ressalve-se que todos ingressaram na instituição por meio de concurso público e a maioria conhece bem o contexto da universidade onde atua.

O tratamento dos dados foi realizado por meio de análise de conteúdo, observando-se o sentido e o significado das mensagens verbais, gestuais, silenciosas, figurativas ou diretamente provocadas (Franco, 2008), por meio da sistematização, interpretação e realização de inferências a partir dos conteúdos produzidos (Bardin, 2009).

 

Resultados e discussão

A instituição pesquisada se localiza no interior de Minas Gerais e possui uma estrutura organizacional composta por quatro Centros de Ciências (Agrárias; Biológicas e da Saúde; Exatas e Tecnológicas; e Humanas, Letras e Artes) e seis Pró-Reitorias (três acadêmicas e três administrativas). Os centros são compostos por trinta e oito departamentos, sendo quarenta e seis cursos de graduação. Existem vinte e oito programas de pós-graduação, que oferecem cursos de mestrado e doutorado. Atualmente, a instituição possui 1300 docentes e o seu corpo técnico-administrativo é composto por 2300 servidores, que ocupam basicamente cargos de apoio às atividades fins.

Os dados que serão discutidos a seguir foram obtidos por meio de entrevistas com doze sujeitos, conforme exposto no Quadro 1.

 

 

O problema do assédio moral foi considerado levando-se em conta as características da instituição, assim como a maneira como cada um a concebe, as vivências pessoais dos sujeitos em conflito e as particularidades do seu trabalho.

 

A visão sobre o assédio moral

A visão que prevalece entre os sujeitos a respeito do assédio moral coincide com aquela divulgada na literatura, sendo citados atos de humilhação e constrangimento, além das condutas vindas da hierarquia e que extrapolam as relações estritamente profissionais (Hirigoyen, 2015; Barreto, 2013). Eles o associam, geralmente, com as situações humilhantes e constrangedoras que sofreram ou presenciaram, com as imposições absurdas vindas da hierarquia, além das diversas formas de manifestação de violência, envolvendo perseguição isolamento, abuso de poder e autoritarismo. Observou-se ainda que nenhum fez referência a outro tipo de assédio que não fosse do superior em relação ao subordinado, estando ausentes, no seu discurso, outras formas de manifestação desse problema, como o assédio entre pares ou dos subordinados em direção aos superiores.

 

Descrição das situações de assédio

De modo geral, o assédio foi associado com mudanças bruscas e importantes nas tarefas exercidas, envolvendo a retirada de responsabilidades, além de situações de isolamento ou de cobrança excessiva de desempenho, como se verifica no extrato a seguir:

No meu caso específico, configura-se uma das formas que também entendo como assédio que foi essa supressão de tarefas, de funções para que o servidor fique deslocado, ou ainda tenha o sentimento de não pertencimento àquela localidade de trabalho. Na investidura do cargo, foram repassadas a mim várias atribuições e tarefas, tentando isolar, tentando eliminar esse servidor naquele ciclo, naquela pirâmide produtiva. Várias atividades dele foram delegadas a outros servidores, tentando isolá-lo, retirá-lo do processo administrativo (E4).

Chegou a ponto de ser trocado de setor e fiquei em desvio de função, ou seja, meu cargo não tinha nada a ver com as atribuições daquele setor, nada a ver com o que eu trabalho e para o cargo ao qual prestei concurso. Me senti extremamente constrangido porque estava sendo impedido de desempenhar uma atividade para a qual recebo e acredito que recebo um bom salário para fazer. Tenho capacidade e condições de fazer e fui proibido acho que por questões políticas, por poder e por vaidade (E8).

Mesmo entre aqueles que não vivenciaram o assédio moral, foi comum se referir aos colegas que passaram por situações de humilhação, constrangimentos, desvios de função, entre outras práticas consideradas abusivas. Um dos aspectos mais citados foi o abuso de poder, entendido pelos sujeitos como sendo devido ao apego ao cargo. Eles mencionaram, sobretudo, aqueles postos ocupados por indicação política e não por critérios de competência técnica para exercê-los, razão pela qual era, muitas vezes, patente o despreparo da chefia. Esse abuso se expressava, geralmente, pela imposição de atividades que não estavam descritas no rol de atribuições do cargo ocupado pelo subordinado. O relato de um sujeito ilustra bem esse aspecto:

Para fazer cirurgia você tem que usar um sapato próprio chamado Crocs. Neste dia, a professora falou comigo assim: "você viu como esse sapato meu tá sujo? Ela pegou o sapato e mostrou a sola para mim". Eu falei: "vi". "Você viu como esse bloco está sujo?". "Vi". "Você podia pegar esse sapato para mim e limpar". Olhei aquilo ali e por estar em estágio probatório fiquei com medo de falar "não vou fazer isso" (E1).

 

Os fatores institucionais que favorecem o assédio moral

A sensação de impunidade

Entre os aspectos mais citados pelos sujeitos ao falarem dos fatores que influenciam a ocorrência da violência e que fazem parte da cultura institucional, encontra-se a impunidade daqueles que a praticam. Ou seja, existe na instituição, segundo eles, uma cultura desfavorável à punição daqueles que cometem ações antiéticas, hostis ou mesmo violentas, o que os obriga a procurar outros espaços, conforme ilustra o relato a seguir:

Entrei na justiça comum. No meu caso em especial, com mais de dois anos, o meu processo administrativo não tinha tomado uma decisão. Ele foi arquivado pela questão temporal. mesmo passados mais de três anos, questionando, comprovando, apurando, com testemunhas, confissão do próprio réu. Pela questão temporal que é uma prática da universidade, o longo prazo para tramitação do processo, a decisão final foi o arquivamento do processo, que demorou muito (E4).

 

Os grupos dominantes ou de poder

Além do sentimento generalizado de impunidade, a maioria apontou os grupos dominantes de poder presentes na instituição, geralmente compostos por professores em cargos de direção como os principais assediadores. Um aspecto importante é que a legitimidade de se preencher esses cargos apenas com professores não foi posta em questão e, sim, a forma como exercem suas atribuições, gerando conflitos que podem culminar no assédio moral.

A cultura institucional foi descrita como bastante favorável a esses comportamentos, manifestando-se, por exemplo, na tendência de se colocar o professor em uma posição superior aos demais membros da instituição, a ponto de levá-lo a não se considerar um servidor como os outros. É claro que tal situação pode favorecer desigualdades no tratamento oferecido aos demais funcionários:

Acho que existe uma separação muito grande de professores e técnico-administrativos. Eles não acham que são servidores, né? Eles são professores, se colocam num nível muito diferente do nosso. Os professores acham que somos funcionários deles, que estamos aqui para fazermos as coisas pra eles, tirar o peso das costas deles. E eles ficarem só com as pesquisas. O resto, a gente que se vira. Tem recesso, libera as aulas, os professores não vêm e não são cobrados (E2).

 

O discurso versus a prática em relação às normas da instituição

A instituição estudada possui um conjunto de normas bem descritas, visando à proteção, ampliação e garantia dos direitos do servidor. No entanto, os sujeitos apontaram o seu não cumprimento, dizendo que, mesmo estando em vigência, são ignoradas, fazendo parte apenas de um protocolo. Ocorre, portanto, uma distância entre o discurso oficial e aquilo que, de fato, é colocado em prática, sendo essa incoerência associada pelos sujeitos com as relações de poder vigentes que parecem colocar os professores acima das normas institucionais, conforme observado no relato a seguir:

Além da diferença entre o discurso e o que está na norma, há uma diferença maior ainda na aplicação da norma. Ela não é aplicada. Por exemplo, um caso recente de uma professora que desviou recursos públicos e ela foi penalizada com a suspensão de 30 dias. Tivemos um caso de uma servidora técnico-administrativa que também desviou recurso, mas em volume bem menor e foi punida com demissão. Então, existe uma diferenciação quando a norma que nem sempre é aplicada e, quando é, não existe uma isonomia, mas sim o corporativismo na aplicação (E8).

Assim, as práticas organizacionais aparecem nas falas dos sujeitos como favoráveis aos abusos, uma vez que as normas são, muitas vezes, ignoradas ou consideradas de acordo com a conveniência do grupo que as aplica. Muitos foram enfáticos em afirmar que as normas são apenas figurativas, não sendo cumpridas, prevalecendo o discurso de que a instituição é contra a violência, embora, na prática, permita sua ocorrência. Assim, a discrepância entre o discurso e a prática é um elemento fortemente criticado pelos sujeitos, ou seja, embora o discurso oficial ressalte a importância de se prevenir os conflitos ou de lidar com as injustiças de forma rigorosa a prática é, quase sempre, oposta a isso, ao permitir a impunidade, os tratamentos diferentes entre categorias ou a sobreposição dos interesses particulares aos institucionais. Nesse contexto, a violência pode se tornar um lugar comum, sobretudo, quando não há intervenção das instâncias que deveriam gerir os conflitos, uma vez que estes passam a ser vistos como algo natural, inerente às relações de trabalho, independentemente do seu grau de destrutividade.

 

As consequências do assédio moral

A experiência do assédio moral, em geral, deixa marcas profundas na saúde física e mental da pessoa assediada. Algumas recorrem aos medicamentos, outras aos aditivos químicos, como bebidas alcoólicas, mas seja qual for o recurso adotado, o resultado pode ser bastante negativo, como revelou um dos sujeitos:

Passei basicamente três anos da minha vida tomando medicação para controlar as crises de ansiedade, controlar a minha insônia, até conseguir atingir uma dosagem que não me dopasse completamente para poder trabalhar, mas que ao mesmo tempo me dopasse o suficiente para passar o dia. Era um medo constante do que ia acontecer, pois eu dependo do meu trabalho para me manter e o meu futuro também. Tudo que passei aqui na instituição transtornou a minha vida (E2).

Ao passar por esse tipo de violência o indivíduo pode sentir suas energias sendo exauridas, progressivamente, ao ponto de se sentir incapaz de lidar com as exigências normais da vida cotidiana sem o auxílio de medicamentos ou de tratamentos médico e psicológico:

Só de tocar no assunto, sinto um calor no meu rosto, dor no peito e o fôlego muda. Eu passei mal, tive ataque de ansiedade, a pressão subiu. Aí, procurei um psiquiatra, que me deu atestado. Quando retornei, os assédios continuaram. Aí, tornei a passar mal novamente, porque não podia falar mais nada, porque já tinha feito a carta relatando o assédio que tinha vivenciado e sem resposta (E3).

Os impactos dessa experiência na saúde mental são de tal forma grave que foram identificados por alguns sujeitos com um quadro de "transtorno mental":

Tive transtorno mental, crises de ansiedade e quando estava em casa, crises de pânico. Chegou uma época que a crise estava tão exacerbada que um dia escondi debaixo da cama, com medo de chegar algum documento do departamento. Tinha crise de pânico ao ir trabalhar. Até hoje, tenho medo de andar na rua. Ando olhando de um lado para o outro, para ver se não encontro com nenhum dos professores com quem trabalhei (E1).

Não dormia direito, cheguei a pensar em suicidar, pois queria a todo o momento eliminar o problema. Então, procurei ajuda psiquiátrica e psicológica. Inclusive, estou até hoje fazendo tratamento e uso de medicamento. Ainda estou afastado por licença médica decorrente dessa perseguição, faço uso constante de medicamento e tenho pânico de ficar em local de grande movimento, com muitas pessoas. Tenho ainda muitas dificuldades para dormir (E6).

 

Estratégias de prevenção e combate ao assédio moral

Apesar do quadro identificado pelo estudo, não se observou nenhuma medida relevante adotada pela instituição, ou pelo sindicato, no sentido de prevenir ou combater o assédio moral. De modo geral, não existem discussões em torno do tema, bem como não foram adotadas outras medidas visando lidar institucionalmente com o problema, o que sugere uma falta de posicionamento da organização em relação a tais práticas, conforme aparece, por exemplo, no seguinte relato:

Nunca houve treinamentos, capacitações que abordassem aspectos relacionados ao assédio. Eles sabem que acontece aqui, mas não querem assumir; então meio que deixam para lá, deixam a coisa rolar (E1).

Da mesma forma, não existem políticas voltadas para o combate ao problema, sendo que os dirigentes são informados sobre as práticas abusivas, processos administrativos são instaurados e sindicâncias são realizadas, mas sem consequências significativas, seja na forma de penalização ou de um procedimento visando sanar e/ou minimizar a situação. A única medida vigente parece ser a remoção do servidor, o que leva aqueles que se sentem vítimas da violência a terem receio de se expor ou de procurar os setores competentes para informar o que está ocorrendo.

Esses dados coincidem com outras pesquisas em instituições de ensino superior que revelam também a fragilidade ou a inexistência de medidas voltadas para a prevenção e/ou o tratamento do problema do assédio moral nesse contexto, sendo que isso decorre, quase sempre, das dificuldades para se reconhecer o problema e apurar as denúncias (Rodrigues & Freitas, 2014; Bambirra, 2018).

 

À guisa de conclusão

Os resultados reportados acima, sobretudo, quando evidenciam um contexto favorável à manifestação de violência moral, corroboram outros estudos realizados em instituições de ensino superior (Caran et al., 2010; Ventura, 2015; Guimarães et al., 2016). Assim como ocorreu nessas pesquisas, observou-se também aqui uma manifestação importante de sofrimento mental entre servidores, sendo que alguns já pareciam caminhar para um transtorno emocional mais grave. Em certos casos, os impactos da violência sofrida eram devastadores, envolvendo tanto a saúde quanto a vida pessoal do sujeito. Assim, entre aqueles que disseram ter sofrido assédio moral, os reflexos eram evidentes, manifestando-se por meio de marcas psicológicas profundas expressas por baixa autoestima, crises de identidade, ansiedade e sentimento de culpa. Alguns se tornaram incapazes de lidar com as exigências normais da vida cotidiana sem auxílio de medicamentos.

A instituição estudada apresenta problemas semelhantes àqueles enfrentados por outras, que vão desde a influência política nas decisões até os abusos nas relações hierárquicas. Não se trata, portanto, de exigir que um ambiente institucional seja isento de falhas, mas de admitir a existência dos problemas, analisá-los e, se possível, preveni-los. No caso aqui analisado, trata-se de reconhecer, em primeiro lugar, a ocorrência do assédio moral, para, depois, pensar nas formas mais adequadas de tratá-lo ou de evitar que ocorra. Sobre isso, ressalta-se a naturalização da violência moral no contexto analisado, uma vez que não se tomam medidas para preveni-la ou puni-la. É o que constatam Freitas et al. (2008, p. 35) ao afirmarem que "aceitar a violência como algo normal é torná-la ainda mais violenta", ou seja, quando se passa a entender "a violência como natural, ela cria vida própria e já não causa repulsa, pois nos tornamos insensíveis a ela e aos seus efeitos".

Ademais, é importante ir além da simples afirmação de que tais ocorrências são originadas apenas das características de personalidade das pessoas em conflito, desconhecendose o contexto organizacional como um todo, os modelos de gestão que adota, suas políticas para preenchimento de cargos, seus planos de carreira ou seus critérios de avaliação. Portanto, torna-se essencial entender o fenômeno aqui analisado como decorrente, sobretudo, das práticas vigentes na instituição estudada, uma vez que ele ocorre precisamente "dentro do ambiente de trabalho, entre pessoas que são parte dessa estrutura organizacional". Assim, "o assédio moral detém prerrogativas a partir de papeis organizacionais e encontra respaldo em questões ou aspirações organizacionais", o que torna o espaço institucional onde ele se manifesta "co-responsável" (Freitas et al., 2008, p. 37).

Na IFES estudada, observou-se que algumas formas de violência deixam de ser denunciadas pelo servidor, muitas vezes, por não ter sequer conhecimento de que está vivenciando algo fora do normal. Outros reconhecem o problema, mas não sabem o que fazer, isolando-se e passando a questionar suas próprias competências. Finalmente, há aqueles que buscam ajuda, mas não encontram respaldo institucional. É nesse sentido que é possível afirmar a existência ali de um ‘terreno fértil' para disseminação da prática do assédio moral, uma vez que, os autores de atos moralmente violentos, não encontram nenhuma forma de resistência ou ameaça de punição, "nem nas regras, nem na autoridade, nem na filosofia, nem na cultura da organização", o que conduz à sensação de impunidade que "potencializa todos os tipos de desvio e serve como justificativa para a sua reprodução" (Freitas et al., 2008, p. 39).

Por outro lado, deve-se evitar a vitimização das pessoas que vivem a experiência do assédio moral, propondo ações que visem transformar os contextos de trabalho que permitem (ou solicitam) essas condutas perversas. Ao invés de apelar para a judicialização dos conflitos do trabalho ou de, simplesmente, criminalizar as pessoas que deles fazem parte, classificando-as em agressoras e vítimas, trata-se de agir sobre a organização do trabalho, tornando-a mais favorável à saúde mental (Clot, 2005).

Sendo assim, ao dar publicidade a essas formas de violência moral no trabalho, pretende-se, acima de tudo, que sejam reconhecidas, uma vez que esse é um requisito essencial para se descobrir possibilidades de ação para combatê-las.

 

 

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Endereço para correspondência

lucscontabeis@yahoo.com.br, antuneslima15@gmail.com

 

 

Recebido em: 27/11/2018
Revisado em: 19/06/2019
Aprovado em: 14/08/2019

 

 

1 https://orcid.org/0000-0002-5970-8420

2 https://orcid.org/0000-0002-6612-1644

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