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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.24 no.1 São Paulo jan./jun. 2021

https://doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v24i1p17-31 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A percepção de agentes funerários sobre morte e vida a partir de sua experiência laboral

 

The perception of morticians over death and life from their labor experience

 

 

Ana Carolina Besen de SouzaI; Zuleica PrettoII

IUniversidade do Sul de Santa Catarina (Florianópolis, SC, Brasil)
IIUniversidade do Sul de Santa Catarina (Tubarão, SC, Brasil)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta pesquisa pretendeu analisar como a experiência laboral do agente funerário afeta suas relações cotidianas e sua percepção sobre a morte. Realizaram-se entrevistas semiestruturadas com cinco agentes funerários no Sul do Brasil. Em uma sociedade onde o tema da morte é um tabu, ao se relacionar com o corpo falecido nos rituais funerários, são despertados no trabalhador questionamentos acerca da própria finitude. Os dados coletados foram submetidos a uma análise de conteúdo e discutidos a partir de uma perspectiva existencialista sartriana quando os conceitos como morte e projeto-de-ser foram explorados. Identificaram-se alguns fatores que podem dificultar o trabalho dos agentes, dentre eles: a falta de preparação para o atendimento da família enlutada, a dificuldade em se deparar com a questão da morte, os impactos de seu trabalho nas relações pessoais e a visão social sobre as características de seu trabalho.

Palavras-chave: Morte, Agente funerário, Prática laboral, Existencialismo.


ABSTRACT

This research aimed to analyze how work experience of morticians affects their daily relationships and perception of death. Semi-structured interviews were carried out with five funeral directors in southern Brazil. In a society where the theme of death is a taboo, when relating to the deceased body in funerary rituals, workers are awakened to questions about their own finitude. The collected data were subjected to content analysis and discussed from a Sartrian existentialist perspective, when concepts such as death and project-to-be were explored. Some factors that can make mortician's work difficult were identified, including: lack of preparation for the care of the mourning family, difficulty in facing the issue of death, the impacts of their work on personal relationships and the social vision about the characteristics of their work.

Keywords: Death, Mortician, Labor practice, Existentialism.


 

 

Introdução

Os agentes funerários, trabalhadores responsáveis pela organização dos rituais funerários, correspondem a uma pequena parcela da população que de fato entra em contato com o fenômeno da morte em seu trabalho. Na parte de vendas e negociações a respeito do funeral, têm um primeiro contato com o sofrimento do outro, visto que seus clientes são, em maior parte, pessoas em sofrimento decorrente da perda de um falecido. Saber como os agentes funerários percebem a morte (e a vida) através de suas experiências funerárias foi o objetivo deste estudo - percepção aqui entendida como uma maneira de abarcar o entendimento, mais ou menos reflexivo, sobre suas experiências. Para tal, tornou-se importante entender como percebem o trabalho, como esse afeta suas relações pessoais e a compreensão sobre si mesmos, bem como quais as principais dificuldades ou desafios são encontrados no desenvolvimento de seu trabalho.

O referencial teórico orientador do estudo, no que tange à concepção de sujeito, foi a psicologia existencialista, em especial de Jean-Paul Sartre (1904-1980). Em diálogo com essa perspectiva, essencialmente histórico-dialética, foram também importantes para alcançar os objetivos propostos, estudos contemporâneos sobre a morte e sobre o trabalho numa visão psicológica sócio-histórica crítica.

A partir de uma perspectiva dialética, Castro (2015, p. 255) refere o trabalho como fundamento ontológico do ser social, ou seja, como "uma condição indispensável para a existência humana fazer-se e historicizar-se ao recuar as barreiras naturais e transformar a natureza em mundo humano", dotado de significações e percepções diversas. Dessa maneira, o trabalho desenvolve uma função mediadora fundamental entre o sujeito e o mundo em que vive, criando novas formas de sociabilidade.

Conforme Sartre (2015), o homem se constitui a partir de suas relações sociais, logo, seu trabalho tem importante papel na sua vida. Inserido em determinada realidade antropológica e sociológica, isto é, em condições sociais, culturais e materiais gerais e em formas de sociabilidade específicas vivenciadas através dos grupos históricos a que pertence, o sujeito é lançado a pensar, agir e escolher, e é essa condição que define seu projeto-de-ser. Na visão de Sartre (2002), a liberdade é uma condição inerente à existência humana, o sujeito está condenado a fazer escolhas. Desse modo, infere-se que o trabalho do agente funerário se torna parte importante de seu projeto-de-ser, já que, ao escolher essa ocupação, acaba não apenas produzindo uma ação dirigida à coletividade social, mas também escolhe a si mesmo. Nesta pesquisa buscou-se compreender sobre a experiência concreta desses profissionais e suas significações singulares, inseridas no campo social, cultural e histórico.

De acordo com a Classificação Brasileira de Ocupações (Ministério do Trabalho, 2019), os agentes funerários - tanatopraxista, atendente funerário e auxiliar de funerária - são os trabalhadores que:

Realizam tarefas referentes à organização de funerais, providenciando registros de óbitos e demais documentos necessários. Providenciam liberação, remoção e translado de cadáveres. Executam preparativos para velórios, sepultamentos, conduzem o cortejo fúnebre. Preparam cadáveres em urnas e as ornamentam. Executam a conservação de cadáveres por meio de técnicas de tanatopraxia ou embalsamamento, substituindo fluidos naturais por líquidos conservantes. Embelezam cadáveres aplicando cosméticos específicos (maquiagens).

Segundo Dubar (2012), em uma visão da sociologia alguns trabalhos são considerados profissões mais valorizadas, entre elas a dos médicos, dos advogados, dos engenheiros, e outros, como a do agente funerário, se definem como ocupação sem uma formação específica, menos qualificadas. Essa distinção se dá pela diferença na socialização de seu trabalho, isto é, nas possibilidades presentes na construção de uma carreira profissional, o que influencia a percepção sobre o fazer laboral.

É através da prática funerária que o profissional pode ter consciência de sua própria finitude de forma mais concreta, ponderando questões da sua própria morte. Essa constatação não é algo estimulado na sociedade ocidental em que vivemos, visto que o próprio tema é desencadeador de angústia1. Os cuidados para com os mortos são feitos para que o falecido pareça, o mais próximo possível, com a aparência do mesmo em vida, para que seja evitado desconforto nos familiares. Acontece com estranheza o processo de constatação da finitude do próximo.

Langaro et al. (2012) afirmam que, para Sartre, a morte é caracterizada pela negação das possibilidades no mundo do sujeito, a nadificação das possibilidades: o evento que define o fim do projeto. Portanto, a morte vem como evento que retira a liberdade, que é definidora da existência e impossibilita a continuidade do seu projeto-de-ser: "Assim, a morte não é minha possibilidade ...; é situação limite, como avesso escolhido e fugidiço de minha escolha... ela me impregna no próprio âmago de cada um de meus projetos como sendo o avesso inelutável destes" (Sartre, 2015, p. 670, grifos do autor). A relação estigmatizada que a sociedade possui com a finitude e temas que a envolvem, no sentido da exteriorização da morte ˗ algo não pertencente aos vivos ˗ interfere na vida desse trabalhador.

Ao pesquisar a palavra-chave "funerário" na base de dados Scientific Electronic Library Online (Scielo) (acesso, 4 abril, 2019), 13 artigos foram encontrados, porém, apenas um na área da Psicologia, intitulado "Profissionais do Serviço Funerário e a Questão da Morte" de Kóvacs et al. (2014). Esse trabalho ressaltou os riscos físicos e psíquicos decorrente das atividades realizadas no trabalho.

Diante disso, pesquisar esse fenômeno através da percepção de agentes funerários tornase importante com vistas a ampliar o escopo de pesquisas sobre morte de um modo geral e sobre o trabalho realizado pelos agentes, especificamente no campo da Psicologia, em que, conforme pesquisas indicadas acima, se identificou uma escassez de produções sobre o tema. Entende-se que essa pesquisa se coaduna com as preocupações da psicologia social do trabalho, quando esta destaca, conforme afirmam Coutinho et al. (2016), a importância de compreender o trabalho e o trabalhador como situados no campo social, atravessados pelas dimensões macrossociais tanto em seu labor, palco de ações locais sempre complexas, conflituosas e contraditórias, onde seu trabalho realmente acontece, como em relação a sua identidade como trabalhador.

Na sequência do texto serão abordados os procedimentos metodológicos utilizados na pesquisa e a caracterização dos agentes funerários entrevistados, seguidos da apresentação dos dados provenientes das entrevistas, analisados e discutidos segundo referencial teórico eleito como central nesse estudo.

 

Método

A pesquisa se caracterizou como de natureza qualitativa, exploratória de campo, de acordo com as diretrizes sobre pesquisa qualitativa definidas por Minayo (2002). Foi realizada em duas funerárias localizadas na região da Grande Florianópolis, selecionadas pela localização. Uma das funerárias é qualificada como de pequeno porte, pertencente à mesma família há três gerações em que trabalham mãe, responsável pelas vendas, pai e filho (entrevistado) que efetuam as demais atividades da empresa. A segunda, de maior porte, conta com uma equipe de sete agentes funerários (dos quais quatro foram entrevistados), três deles responsáveis pela preparação do corpo e quatro pela parte de vendas, translado do corpo e organização dos funerais.

Foi realizado um primeiro contato pelo telefone com as funerárias, quando foi apresentada a pesquisa aos proprietários que indicaram alguns trabalhadores que poderiam querer participar da pesquisa e passaram seus telefones pessoais. Ao entrar em contato com esses, cinco agentes funerários tiveram interesse em participar da pesquisa, todos homens, maiores de 18 anos e que possuíam pelo menos seis meses de trabalho (os dois últimos critérios para inclusão no estudo).

Como instrumento para o alcance dos dados, foram efetivadas entrevistas semiestruturadas desenvolvidas a partir de um roteiro prévio elaborado de acordo com os objetivos da pesquisa e estudo teórico preliminar, como ensina Minayo (2002). As entrevistas foram individuais, quatro delas foram realizadas na própria funerária e uma na casa do agente. As cinco durante o segundo semestre de 2019. Um dos agentes estava com pressa para retornar para seu trabalho paramentando os corpos, contudo, a maioria se mostrou disposta a compartilhar suas experiências. Um deles agradeceu o interesse da pesquisadora pelo tema ao afirmar que pouco se fala sobre o agente funerário.

O material resultante da relação com o campo e com os participantes foi submetido a uma análise de conteúdo, conforme orientações de Minayo (2002): transcrições das entrevistas, classificação do material de acordo com os objetivos e conteúdo exposto pelos entrevistados, articulação dos dados com o referencial teórico, o que possibilitou discussões e considerações acerca do tema.

Por se tratar de uma pesquisa com seres humanos, atendeu-se à Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012 do Conselho Nacional de Saúde (2012), e à Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016 (2016), sendo aprovada por comitê de ética institucional.

Para melhor visualização dos participantes da pesquisa, segue uma breve descrição de suas trajetórias com nomes fictícios, de forma a garantir o sigilo sobre suas identidades:

Davi, 32 anos. Cursava o ensino superior, evangélico não praticante, divorciado, em união estável. Já foi servente de pedreiro, trabalhou em indústria metalúrgica e como motorista de caminhão, afirmando ser, esta última, sua ocupação "mesmo". Se tornou agente funerário após seu divórcio, buscava uma vida nova. Trabalha há um ano como agente na parte de vendas, remoções, preparação do velório e auxiliando no enterro. Tinha curiosidade acerca da ocupação e pensava em promover auxílio às famílias enlutadas.

Pedro, 25 anos. Não possui religião, mas acredita em Deus. Mora junto com sua parceira. Fez curso técnico em eletromecânica, trabalhou com máquinas agrícolas e em uma multinacional na área de mecânica industrial. Trabalhou na mesma área, em uma transportadora e com telemarketing. Cursa ensino superior e pretende sair do ramo funerário ao se formar. Pedro trabalha há um ano como agente funerário na parte de vendas, remoções, preparação do velório e auxiliando no enterro. Teve receio ao ser chamado pela funerária, contudo, avaliou que os benefícios financeiros valiam a pena.

Leo, 21 anos. É solteiro e não possui religião, cursa os últimos semestres de uma faculdade e, quando se formar, pretende conciliar a ocupação com o serviço funerário. Sua família é a proprietária da empresa, e Leo, já aos 14 anos, auxiliava na prática funerária buscando flores e acompanhando na busca do corpo do falecido; aos 17 anos começou a trabalhar paramentando os corpos com seu pai. Trabalha no laboratório preparando corpo, fazendo remoções, preparando o velório e transportando o falecido para o enterro.

Morton, 32 anos. Concluiu o ensino médio e é solteiro. Sempre que passava em frente às funerárias, tinha curiosidade. Se tornou agente funerário impulsionado por esse interesse e acabou gostando. Trabalhou por um período na parte de vendas, a fim de se encaixar no ramo funerário, e trabalha há doze anos com tanatopraxia - parte do laboratório em que se especializou. Hoje, Morton diz que é o que sabe fazer, além de adorar a função que desempenha.

Zé, 29 anos. Possui ensino médio completo, é católico e vive em união estável. Já trabalhou como vendedor, assessor parlamentar, técnico em ótica e fez técnico em segurança do trabalho, mas não atuou nesta última área. Trabalha há seis meses como agente funerário. Não buscava o emprego, mas como se mudou de outra cidade, o aceitou por "não se encaixar em outro lugar". Relata não ter desejado esse trabalho, mas que por fim gostou bastante.

Ressalta-se que, a partir de um levantamento feito com base na CBO (Ministério do Trabalho, 2019), foi identificado que a faixa salarial desses trabalhadores varia de R$ 1.256,87 a R$ 2.223,08, com uma jornada de trabalho de 43 horas semanais. Os entrevistados desta pesquisa recebem entre três a quatro salários mínimos (R$ 3.300,00 a R$ 4.400,00), um saldo superior à média salarial indicada pela CBO, e trabalham em regime de plantão (a cada 12 horas trabalhadas, uma folga de trinta e seis horas).

Foram definidas cinco categorias analíticas a partir das entrevistas: os primeiros contatos com a ocupação, que envolve o período de adaptação ao trabalho na funerária; a prática laboral, com destaque às dificuldades encontradas; a relação com o corpo do falecido e com seu próprio corpo a partir dessa relação; o estigma da ocupação, o olhar do outro frente ao agente; as percepções dos agentes sobre a morte.

 

Análise e discussão

Primeiros contatos com a ocupação

Com a duração de aproximadamente um mês, o período de adaptação pode ser uma etapa difícil. Percebeu-se que alguns profissionais tinham fantasias associadas ao serviço funerário. Pedro (entrevista, 13 agosto, 2019) diz: "Ah, no começo é tudo muito estranho, né. Começa caixão pra cá, pra lá, é ...Aí tu acaba acostumando, depois não dá mais bola, mas no começo é complicado, a gente sonha bastante". O entrevistado relata ter sentido mais medo dos caixões que dos falecidos no início. Na mesma direção, ao trabalhar no laboratório, Morton (entrevista, 15 agosto, 2019) afirmou ter tido pesadelos no início da carreira. Sentiu um impacto ao preparar o corpo de uma pessoa que teve sua morte decorrente de acidentes e deparar-se com a "destruição" causada. Esses dados evocam um questionamento acerca da existência de um imaginário, compartilhado ou não, atravessado pelo medo dos símbolos relacionados à morte.

Tavares e Barbosa (2014) afirmam que o medo é uma emoção que tange a sobrevivência humana e que faz parte da constituição psíquica dos sujeitos de forma coletiva. No entanto, o modo como cada sujeito se apropria dessa emoção é único, o que torna o medo algo subjetivo. A ameaça detectada que é proveniente do medo pode ser caracterizada como real ou imaginária. No caso dos agentes, há uma ameaça real quando se trata da possibilidade de contrair alguma doença no contato com o corpo do falecido, especialmente no trabalho realizado dentro do laboratório; sendo que a ameaça imaginária existe quando relacionada ao simbolismo cultural a que certos objetos peculiares ao ambiente funerário remetem, como os caixões, urnas ou o próprio cemitério. Essas ameaças são construídas a partir de como os agentes significaram esses símbolos ao longo de suas vidas. Esse imaginário pode ser formado pela maneira como a religião percebe a finitude, também pela forma como a sociedade significa os objetos pertencentes aos rituais funerários, por exemplo, o caixão, objeto frequentemente citado pelos agentes funerários.

Sartre (1996) afirma que existem diferentes modos de consciência, cita-se aqui a forma perceptual ou imaginante. A primeira diz respeito a como são percebidos os objetos no mundo, a consciência acontece diante de objetos reais que são dotados de uma temporalidade, espacialidade e uma organização material. A consciência imaginante, por sua vez, ocorre diante de um objeto irreal, ausente ou inexistente que não tem necessidade de atender a esse ordenamento material do mundo ou de respeitar as propriedades constitutivas desse mundo, mas, ao contrário, pode criar novas relações mágicas, como é o caso do sonho ou do pesadelo. Assinala-se que as experiências imaginantes são vividas de modo concreto pelos sujeitos, ganham densidade afetiva e estão relacionadas com as demais experiências da vida.

Alguns entrevistados relataram experiências em seu primeiro mês inseridos no trabalho funerário, onde despertavam no meio da noite suando frio após terem tido pesadelos com mortos. A maneira que o sujeito subjetiva o sonho influencia na forma de perceber os símbolos no mundo real. No caso dos agentes, os pesadelos relatados em seu período de adaptação estavam relacionados com o trabalho funerário e com fantasias individuais acerca da morte. Contam que os próprios colegas de trabalho auxiliam na elaboração de um significado sobre os pesadelos compartilhados. Pedro (entrevista, 13 agosto, 2019) diz: "Já trabalhei em muito lugar, mas lugar que mais dá risada é aqui, na funerária... A gente brinca e dá risada até com os defuntos ali, então ...Acaba sendo bem natural".

No caso de Zé (entrevista, 23 agosto, 2019), em sua primeira remoção de um corpo no hospital junto com seu colega. Ao ser indicado para segurar o corpo, se dirigiu para os pés do falecido e seu colega, em tom de brincadeira, diz para ele segurá-lo pela cabeça. Isso reforçou seu primeiro sentimento de impacto diante do corpo falecido. Após seis meses de trabalho na funerária, afirma: "No começo dá um baque assim sabe, quando tu vê ali o ...Uma pessoa falecida, tu já pensa no ...No teu pai que um dia pode acontecer, teu filho, alguma coisa assim. Mas depois vai acostumando".

De acordo com os agentes, o treinamento nas funerárias em que trabalhavam era realizado de forma que o funcionário mais antigo e experiente transmitia o conhecimento para o mais jovem no próprio ambiente de trabalho. Esse primeiro contato que o agente funerário possui com a morte mostrou-se impactante, e o sujeito pode tanto reviver perdas passadas como pode refletir sobre perdas futuras. Existe, nesse contexto, um movimento de se colocar no lugar do corpo falecido ou vê-lo como alguém próximo a si, como sujeito que é finito. O contato direto com o cadáver impulsiona o trabalhador a questionar não só sua existência como também a de seus entes queridos.

Dificuldades encontradas na prática laboral

Para Flores e Moura (2018), o trabalho do profissional funerário se organiza em cinco funções: o atendimento ao cliente que procura o serviço; o translado do corpo; preparação do falecido; a organização dos velórios; os sepultamentos. As entrevistas sugerem que esses profissionais não possuíam função única em suas práticas, mas que todas essas atividades se mesclam no contexto funerário, tornando-o imprevisível.

A primeira etapa é a contratação do serviço, quando as famílias ou pessoas responsáveis pelo falecido procuram uma funerária. Nesse contato inicial, o profissional deve, além de lidar com as questões burocráticas do processo de óbito, mostrar empatia para com os responsáveis enlutados, se colocando em posição de auxílio. Em seguida, acontece a remoção dos corpos, e o agente vai até o local para fazer o transporte do corpo; são necessários dois agentes na realização dessa função (Flores & Moura, 2018).

A etapa seguinte ocorre assim que o falecido chega na agência funerária, que consiste na preparação para os rituais posteriores. Existem instrumentos específicos para que essa prática seja realizada. Primeiro, o corpo é disposto em uma mesa de material inoxidável para que seja feita a higienização, que ocorre com o banho, seguido do corpo e cabelos. Em seguida, em alguns casos, é realizada uma técnica na qual o agente realiza a troca dos fluídos corpóreos do cadáver por um líquido com propriedades conservantes. Após isso é feito o tamponamento para em seguida serem aplicados os cosméticos, a "necromaquiagem", e se necessário for, a reconstrução de algumas partes que podem ter sido decompostas. Mãos e rosto têm prioridade, pois são as partes que comumente são expostas durante um velório, logo, é instruído para que a família escolha uma roupa que evite a exposição demasiada do corpo (Flores & Moura, 2018).

Morton (15 agosto, 2019) relata que, para cada falecido, existe um formulário que a família preenche no momento em que o serviço é contratado. Nele são informadas preferências dos responsáveis para a preparação do corpo para o velório: tirar ou deixar a barba, fazer ou não o bigode, por exemplo. É esperado que após a preparação o corpo falecido atinja as expectativas dos familiares em relação à aparência que foi solicitada. Morton (15 agosto, 2019) conclui dizendo: "Não posso errar nessa área. Tem que ser corretamente como tá no formulário". No laboratório ainda, o agente realiza as práticas de restauração facial, embalsamento, necromaquiagem, além de pintar unhas e cabelos se for a preferência dos familiares do falecido.

A organização dos velórios e sepultamento são os últimos rituais pelos quais os agentes são responsáveis. Inicia-se com o transporte do falecido dentro do caixão para o local decidido pela família para que o corpo seja velado. Em seguida, o sepultamento é realizado com um cortejo fúnebre que segue do local em que o corpo foi velado até o cemitério em que ocorrerá o enterro (Flores & Moura, 2018).

Por fim, Kóvacs et al. (2014) afirmam que esses rituais possuem a função de dar confirmação da morte para os vivos. São costumes que variam entre civilizações que se diversificam através dos séculos, mas mantêm uma mesma função. Visto que no passado não havia o atestado de óbito para auxiliar a confirmação, o ritual funerário aparece como agente de validação da morte, de que não existe possibilidade de o falecido acordar. O velório, por exemplo, é um ritual importante no que diz respeito à despedida. É nele que acontecem algumas tradições como as velas, coroas de flores e o caixão que, quando possível, é preparado para que amigos e familiares possam despedir-se.

A dificuldade no contato com as famílias foi uma das principais questões apontadas pelos entrevistados. Cada família é diferente. Algumas mostram extrema tristeza, raiva, outras lidam com a situação de forma mais leve. Os agentes contam sobre certa vez em que os familiares estavam em clima festivo e levaram caixa de som e bebida alcoólica para o velório. Acerca do seu trabalho, Zé (entrevista, 23 agosto, 2019) confessa que achava que o mais difícil seria o contato com a pessoa falecida, contudo, é no contato com a família que encontra maior dificuldade em seu trabalho: "Isso, tem família que é bem tranquila ao falar, né. Mas tem família que é mais ...até pelo momento que ela tá passando ali. Elas falam um pouco ...Às vezes, mais grossa".

Por não existir uma preparação prévia para o atendimento com a família enlutada, o agente funerário é afetado por essa relação. Em um movimento empático, buscam compreender a dimensão do sofrimento do sujeito enlutado ao se colocar em seu lugar. De acordo com Davi (entrevista, 13 agosto, 2019), algumas famílias chegam "transtornadas, revoltadas" com a morte de seu ente querido. Alteram a voz, ficam agressivas com os agentes e isso dificulta o atendimento no momento da venda. Pedro (entrevista, 13 agosto, 2019) avalia: "Família tem de todo jeito, tem família do jeito bom, tem família que chega aqui rindo ...Tem família que chega aqui grossa pelo momento ...Tem que ter paciência, né".

No caso de Leo (entrevista, 18 agosto, 2019), o único contato que tem com a família é quando leva o corpo preparado até ela: "Geralmente é uma situação meio triste, né. Porque tu chega com o caixão, abre e daí tá todo mundo chorando. É algo desconfortável". Tenta realizar o trabalho rapidamente, diz ser um "momento da família". Esse aspecto leva a pensar no fazer funerário como um trabalho que promove o cuidado. Neste contato inicial com as famílias, acontece um acolhimento no qual o agente funerário ouve o sofrimento manifestado decorrente da perda. É esperado que o trabalhador possa sentir algum desconforto ou dificuldade ao lidar com essas emoções, em grande parte como consequência da carência de treinamento para lidar com questões psicológicas.

Os agentes destacaram não ter havido nenhum tipo de preparo psicológico ao entrar na funerária. Davi (entrevista, 13 agosto, 2019) acredita que o trabalhador deve possuir habilidades a priori para lidar com os sentimentos que aparecem em seu trabalho, aptidão para lidar com as famílias que atendem. Afirma: "Você já tem na cabeça o que você precisa fazer pra confortar uma família, né. Se você não tem, você não tá apto pra trabalhar com uma coisa assim, né?".

Sobre as condições de saúde no trabalho, por trabalhar há doze anos no laboratório, Morton (15 agosto, 2019) relata o medo constante do contágio de doenças. Quando, em meio a uma preparação do corpo, fura sua luva acidentalmente com a agulha fica preocupado e procura esterilizar sua mão imediatamente. Explica que como o vírus da imunodeficiência humana (HIV/AIDS) morre rapidamente após a aplicação do formol no corpo do falecido, seu maior medo é contrair hepatite. Segundo ele, o laboratório é um local "delicado" e "perigoso", por isso se previne usando luvas, mangote, máscara, avental e touca na execução dos procedimentos, bem como realiza "check-ups" de quatro em quatro meses, por sua conta, para verificar sua saúde. Pesquisas de Kóvacs et al. (2014) apontam que as pessoas têm medo de que o corpo sem vida possa ser contagioso, "há temor de contágio da morte" (p. 946) e que através do contato nos cuidados póstumos "a manipulação do corpo morto ficasse impregnado na pessoa e pudesse contaminar quem dele se aproxima" (p. 946). Esse medo da morte do agente funerário, muitas vezes, pode se estender até sua família, o que pode impactar negativamente não apenas sua experiência profissional, mas também sua vida pessoal.

Outra dificuldade da prática funerária citada pelos agentes é o desconforto que sentem quando o falecido em questão é uma criança. Leo (entrevista, 18 agosto, 2019) diz que esse desconforto se dá por não ser uma situação "normal", que vai ao encontro da crença embutida no contexto social da morte como consequência da velhice. Ignora-se o fato de que ela pode acontecer em qualquer idade, inclusive na infância: "A preparação de uma criança ...me comove, eu fico chocado. Passa alguma coisa na minha cabeça. Eu tenho mãe, eu tenho filha, então . . ." (Morton, 15 agosto, 2019).

Leo (entrevista, 18 agosto, 2019) retrata ter sentido desconforto e sofrimento ao preparar pessoas que conhecia, como foi o caso da preparação de um tio e também de um amigo próximo, logo, foi um trabalho difícil. Teve a opção de não realizar esta preparação, mas fez questão por ser seu amigo. Segundo ele, "Foi o mais desconfortável pra mim até hoje, porque era um amigo meu que convivia diariamente. A gente jogava bola junto ...Pra mim foi o pior de todos, eu acho".

Esse relato suscita o questionamento trazido por Kóvacs et al. (2014, p. 945), "...esses profissionais lidam com corpos ou com pessoas mortas?". Isso pode definir o modo como o trabalho é visto e de que forma interfere em como os próprios agentes lidam com suas respectivas funções. Nesse enfrentamento diário da morte no serviço funerário, os profissionais podem relacionar o fenômeno com sua própria experiência de vida, levando em conta suas crenças religiosas e o estágio do desenvolvimento no qual se encontram.

Relação com o corpo falecido e com o próprio corpo

Na visão sartriana, a constituição do sujeito é compreendida a partir do modo como este vive sua existência. Sartre (2015) descreve o sujeito como um ser dotado de um corpo e uma consciência que o possibilita relacionar-se com o mundo. É através dessa relação que se pode compreender o sujeito como um ser-no-mundo, quer dizer, o corpo é situado em uma determinada realidade antropológica e sociológica, na qual o sujeito é "lançado" a viver sua existência, como já citado.

Segundo Langaro et al. (2012), é participando de um contexto social em que estão impressas marcas das civilizações anteriores, resultado das ações dos que habitaram respectivo tempo e lugar, que o sujeito singular, da mesma forma, irá definir sua existência pela sua própria práxis. Logo, é a partir desta condição psicofísica, corpo e consciência, que a singularidade do sujeito se constitui como uma totalização em curso. Na relação com os outros, por exemplo, um valida a existência do outro simultaneamente, tornando-se participantes na construção de uma história coletiva.

Schneider (2011), ao falar da relação do sujeito com o próprio corpo, discorre sobre a noção de corpo-para-outro, o corpo que aparece nas relações, mas que, por ser dotado de um Para-si, não é apenas um corpo. Esse corpo é sempre considerado como inserido numa determinada realidade e temporalidade, numa situação.

Isso indica que o corpo do outro é sempre significante, remete a um sentido que o transcende, indica o ser de alguém. Não existe um corpo como puro Em-si; se assim fosse não passaria de um cadáver. O cadáver não está em situação, é pura coisa (Schneider, 2011, p. 121).

Contudo, ao se deparar com o cadáver e identificá-lo como um ser semelhante a si mesmo, pode ser difícil constatá-lo como coisa "Em-si", dado que esse cadáver um dia já possuiu vida, já foi um "Para-si".

Não conseguir separar o corpo do falecido, que é "Em-si", do corpo de alguém que um dia já foi vivo, pode desencadear uma série de sentimentos difíceis de lidar e que podem também influenciar na prática laboral. Pedro (entrevista, 13 agosto, 2019) afirma que não gosta do trabalho dentro do laboratório; não sente medo do contato com o corpo falecido, mas relata ser diferente de quando o corpo já está devidamente preparado para o velório. Revela sentir "nojo" do corpo antes da preparação por ele encontrar-se, por vezes, sujo, ensanguentado ou com secreção. Além disso, sente repulsa do cheiro que permanece dentro do laboratório, tanto das substâncias químicas como do corpo que ali está.

Ao trabalhar com a pessoa falecida, Davi (entrevista, 13 agosto, 2019) relata pensar nela como se ainda estivesse viva. Conta que pede licença antes de entrar em contato com o corpo e manuseia este com delicadeza. Considera essa relação "tranquila" e "normal". Acrescenta que ao atender as famílias, se solidariza com a perda desses sujeitos, mas que ao realizar a parte burocrática seu trabalho se tornou mecanizado: "Eu tento me pôr sempre no lugar da pessoa, entendeu? ...nessa parte assim sentimental, eu pelo menos eu ...sinto um pouco da dor daquela pessoa. No termo do trabalho assim já é mais mecãnico sabe".

Em contrapartida, Morton (entrevista, 15 agosto, 2019) conta que, a partir do momento que sai do laboratório, não se recorda quem foi o sujeito falecido que preparou: "Eu entro no laboratório eu me transformo". Diferentemente de alguns colegas de trabalho que perdem o apetite nessas relações com as mortes, Morton (entrevista, 15 agosto, 2019) não tem a lembrança do corpo falecido fora do contexto das preparações, logo não interfere na maneira como se relaciona com a comida, por exemplo. Acrescenta que nesse ramo é necessário que a pessoa possa esquecer as vivências ocorridas dentro do laboratório. Em contrapartida, ao terminar seu turno e retornar para casa, continua preocupado com os corpos que preparou, que ainda não foram velados e sepultados. Durante a entrevista foi percebido que há um sentimento de insegurança ocasionado pela pressão sofrida pelo trabalhador: "Não pode ter erro no laboratório. Laboratório é a base da empresa". Esse pensamento faz com que esse agente funerário esteja constantemente exigindo uma atuação impecável de si mesmo em suas preparações.

As emoções que a família enlutada deposita sobre o agente também podem ser geradoras de ansiedade pela cobrança excessiva e a falta de preparo para lidar com essas famílias. Vale notar que, como forma de lidar com tais emoções, os trabalhadores indicam procurar encaminhar as questões burocráticas o mais rápido possível para que as famílias possam realizar os rituais de despedida do falecido.

Levando esses relatos em conta e considerando que o trabalho funerário é atravessado diariamente pela questão da perda, o agente funerário pode ser visto como um cuidador. As famílias que chegam nas funerárias inconformadas com as mortes de seus entes queridos buscam a resolução dos seus problemas, dentre os quais, além da contratação de um serviço funerário, buscam atenuar os sentimentos que aparecem com o luto. A percepção do trabalho como permeado pelo cuidado é o que torna o serviço gratificante para alguns agentes. Davi (entrevista, 13 agosto, 2019) afirma: "Me conforta muito, algumas famílias depois de fazer o atendimento, sepultar o seu ente querido, voltar aqui e dizer 'olha, muito obrigado, tu ajudou muito a gente' sabe, então isso pra mim é prazeroso".

Quando se trata da morte por adoecimento, Kóvacs et al. (2014) destacam a posição das famílias dos enfermos que, com horários restritos para visitação, ficam impossibilitadas de elaborar o adoecimento de seu familiar. A equipe médica informa às pessoas próximas do paciente os procedimentos médicos realizados no tratamento, mas pouco se faz no que diz respeito aos cuidados feitos em relação ao preparo dos familiares para o fim da vida do sujeito. Logo, é comum que a família demande do agente funerário uma relação de cuidado após ocorrer o óbito de seu ente querido.

Flores e Moura (2018) destacam que uma parte importante do trabalho do agente funerário é caracterizada pelo cuidado do outro que perpassa várias etapas do seu fazer. Esse cuidado de que se fala vai desde a paramentação do corpo falecido quanto no atendimento a seus familiares, que é de onde é possibilitado um reconhecimento do seu trabalho. A palavra cuidado:

É um 'modo de fazer na vida cotidiana' que se caracteriza pela 'atenção', responsabilidade', 'zelo' e 'desvelo' 'com pessoas e coisas' em lugares e tempos distintos de sua realização. A importância da vida cotidiana na produção do 'cuidado' está na oferta de múltiplas questões específicas que circulam no espaço da vida social e nos conteúdos históricos que carregam. O cotidiano é produzido social e historicamente sob dois ângulos: primeiro, porque se trata - como noção geral e dimensão do conhecimento - do 'vivido', quer dizer, do repetitivo-singular, do conjunturalestrutural: no cotidiano 'as coisas acontecem sempre'. Segundo, porque essa noção se constrói e se identifica com o dia-após-dia em que tudo é igual e tudo muda - 'nada como um dia após o outro' - ao menos em algumas sociedades, não em todas (Pinheiro, 2009).

Inspiradas na perspectiva sartriana de que as pessoas se constituem como seres-nomundo, podemos inferir que ser-no-mundo implica relacionar-se com o outro enquanto alguém inevitável; além disso, que esse outro também se faz um ser-no-mundo, ou seja, também se constitui à luz de suas relações, tanto quanto eu próprio. Nesse sentido, cuidar do outro pode significar acolher a sua situação, reconhecê-lo enquanto sujeito, levando em conta suas limitações e características, entendendo que as suas ações podem também ter um efeito sobre o outro.

Sobre o cuidar de si, conforme entende Pedro, o contato com a ocupação não interferiu na forma como se relaciona com o próprio corpo, já que mantém os mesmos hábitos. Todavia, foi visto que houve modificações em sua alimentação decorrente das mortes que presencia em seu trabalho. Para os demais agentes, notou-se a relação de autocuidado intensificada, como para Davi, que assinala que parou de fumar, pois presenciou diversas mortes precoces decorrentes do tabagismo. De modo geral, portanto, ao identificar-se com o corpo falecido, os agentes percebem a carência de cuidado consigo mesmos e procuram manter uma boa saúde. Alguns adotaram hábitos que consideram saudáveis como uma forma de "prevenção" para sua própria morte.

O estigma da ocupação: o agente funerário frente ao olhar do outro

O estatuto social do ofício do agente funerário é algo a ser questionado quando se percebe o impacto do olhar do outro na vida desse trabalhador. Por ser uma ocupação em uma sociedade em que a morte é escondida, os agentes funerários, responsáveis por "mascarar" essa realidade, são os que menos obtêm prestígio social na ocupação (Flores & Moura, 2018).

O que os trabalhadores almejam é uma retribuição moral. Esperam que a qualidade do seu trabalho e a sua contribuição sejam reconhecidas pelo outro, na forma de ganhos materiais, através de prêmios, adiantamentos ou aumento do próprio salário (Flores & Moura, 2018). Contudo, mesmo com essas bonificações, analisam os autores, o verdadeiro impacto psicológico está ligado ao prestígio social atrelado a essas recompensas. Percebe-se que o reconhecimento proveniente do círculo social do trabalhador influencia positivamente no seu envolvimento com a ocupação. Morton (entrevista, 15 agosto, 2019) refere que sua família sente orgulho do profissional que se tornou: "Ah, vê um orgulho, né. Porque tem uma renda boa, eu me formei nessa área, tenho o diploma na parede ...É um curso que eu estudei, é uma coisa que eu gosto". Diz também, que seus amigos o admiram e o parabenizam por fazer algo que em suas palavras "ninguém faz".

A maioria dos entrevistados aponta que a ocupação não interfere em suas relações pessoais, porém, em suas falas, aparecem elementos que mostram como, em alguns casos, suas relações afetivas são impactadas em decorrência do serviço funerário. Leo (entrevista, 18 agosto, 2019) afirma separar a vida profissional e pessoal, no entanto, conta que sua família acha engraçado que em sua ocupação ganhe dinheiro com a morte das pessoas; comentam também "Ah, eu não tinha coragem" e "Não ia, porque deve ser ruim, porque deve ser uma tristeza". Sobre isso, Leo pondera que na realidade a prática funerária não é assim, que pode ser triste para as famílias que procuram o serviço, mas que os agentes brincam entre si nos "bastidores".

Para Sartre (2002), as relações sociais são constitutivas do sujeito, como visto, sendo que o modo como ocorre a dinâmica dessas relações poderá imprimir diferentes formas de sociabilidade ou de organização da coletividade, em que poderá haver a partilha de um projeto comum ou sua ausência. Os entrevistados nesta pesquisa fazem parte de um coletivo no qual, entre si, compartilham de um interesse comum caracterizado pelo trabalho funerário. Essa relação que o agente funerário tem com a equipe é determinada pela troca de afetividades entre os sujeitos pertencentes a esse grupo. O compartilhamento de projetos individuais no tecimento de um projeto coletivo influencia a maneira como o sujeito percebe seu trabalho.

No caso de Leo, como a funerária é o negócio da família, o assunto se mostra enraizado em suas práticas laborais. Durante a entrevista, Leo (entrevista, 18 agosto, 2019) mostra uma miniatura do "carro do 007" com o símbolo da funerária que seu pai lhe deu como presente. A retribuição moral aparece na forma como sua família reconhece suas práticas como profissional. A aprovação proveniente do sentimento de pertencimento a um grupo, neste caso o familiar, é outro fator que promove o reconhecimento deste agente. Para Schneider (2011), esse senso de pertencimento, proveniente do fato de ser reconhecido de modo afirmativo pelos outros, promove segurança no âmbito psicológico, bem como contribui para a motivação em prosseguir na realização das mesmas atividades ou similares.

Como contraponto a isso, Davi percebe que além da existência da curiosidade e piadas dos colegas e familiares sobre o fazer funerário, ocorrem atitudes de evitação ou estranhamento por parte da população de modo geral. Quando, por exemplo, param o carro da funerária num posto para abastecer, é comum verem atitudes do tipo "nossa as pessoas fazem sinal da cruz, 'nossa, Deus!' saem assim" (Davi, 13 agosto, 2019).

Davi nota que as pessoas evitam falar sobre o assunto ou até mesmo entrar nas funerárias, especialmente na parte em que são dispostos os caixões, por medo de atrair a morte para si mesmas: "É um tabu pras pessoas ...eles não querem falar de medo de atrair. Mas não, isso é uma coisa normal, todo mundo morre, não existe nada nessa terra aqui que nasce e não morra" (Davi, 13 agosto, 2019).

Morton (entrevista, 15 agosto, 2019) aponta que seus amigos trazem as seguintes falas: "Tu é louco, mexer com morto" ou "Tu pegar lá, criança despedaçada, é só bizarro mesmo". Ainda, no âmbito amoroso, conta que algumas de suas ex-namoradas não aceitavam a sua ocupação. Diz que quando prepara um corpo que já está em estado de decomposição, o formol que utiliza em alguns procedimentos libera odores que ficam impregnados em suas roupas. Compreende que o cheiro que "penetra" nele era desagradável para algumas mulheres com quem já se relacionou, e essas situações o deixaram "abalado". O que demonstra que o modo como os outros se relacionam com o sujeito trabalhador reverbera em sua prática no trabalho. Segundo Batista e Codo (2018), as atribuições negativas ao ofício fazem o trabalho ser considerado "sujo" no que diz respeito a uma divisão moral do trabalho. Estão nessa categoria de trabalho profissões cujas práticas são desqualificadas ou depreciadas de alguma forma, seja física, moral ou social. Sepultadores e motoristas paramentadores, por exemplo, que têm contato direto com o falecido são exemplos também de profissionais estigmatizados.

Por mais que os agentes se refiram ao seu trabalho como qualquer outro, contam sobre as adversidades que acontecem em sua prática. Davi (entrevista, 13 agosto, 2019) relata que, em meio à etapa inicial da prática funerária, quando está concluindo a venda para seguir os trâmites, não é raro atender famílias que o veem como um aproveitador e que até se referem à funerária como uma "máfia". Pedro também relata não ser incomum serem chamados de "ladrão". Essa compreensão de que é no agente funerário que a família irá descontar suas emoções causadas pela perda do falecido faz parte do que é considerado normal na concepção dos entrevistados. Entretanto, agentes funerários que faltam com a ética corroboram para a estigmatização do trabalhador como o que chamam de "abutres", quando se aproveitam de famílias em sua fragilidade para cobrar valores abusivos. Isso contribui para a criação de mitos e fantasias acerca do serviço funerário e com uma visão negativa do trabalhador (Flores & Moura, 2018).

A perspectiva dos agentes funerários em relação à morte

Embora seja sabido que o ser humano não é eterno, a morte permanece sendo espantosa para grande parte da população. Torna-se condição inevitável da existência humana, é o fim da vida, encerramento, não há como escapar. Siman e Rauch (2017) afirmam que assim como a pessoa é responsável por suas ações em vida, é também responsável por sua própria morte. Considerando que ninguém pode morrer no lugar do outro, é este fator que torna o evento individual e único na vida de um sujeito.

Para Sartre (2015), é através da materialidade que as coisas são como são. Uma cadeira ou um copo não podem ser algo que não elas mesmas, devido à consistência e imutabilidade atribuídas âs coisas do mundo, por isso são definidas como "Em-si". Em se tratando da existência humana, essa dimensão do Em-si está presente quando se refere ao passado, àquilo que já aconteceu e que não pode ser alterado. Mas como humano, o sujeito é também seu presente e seu futuro, ou seja, é também "Para-si", aquilo que ainda não é. O que já passou se petrifica, vira "coisa" distante do que representa o ser no presente ou no futuro. O passado a sua distãncia torna-se essência, enquanto o agora e o que está por vir é existência. No passado, existe uma distância imutável, no sentido de não ser passível de modificação, mas não significa que o sujeito precise ficar preso ao que foi feito até então. O "Para-si" humano é o que o permite tomar decisões frente a esse passado, ao escolher seu presente e decidir seu futuro. O "Para-si" caracteriza-se pela existência, pelas ações e por tudo que ainda não está pronto, está se fazendo.

Portanto, é na morte que a essência de um sujeito se conclui por inteiro, tornando-o puramente "Em-si". Deixa de ser um "Para-si", um ser em vida com possibilidades no mundo para "coisificar-se". Por mais que a pessoa deixe de existir como ser em ação, permanece presente a partir daqueles que ficam e que compartilharam uma existência com ela. Caso não haja resquícios da existência deste morto no passado de alguém ainda vivo, seu "Em-si", impossibilitado de existir, é aniquilado. Sartre (2015, p. 164, grifos do autor) assevera que "os mortos que não puderam ser salvos e transportados a bordo do passado concreto de algum sobrevivente não são passados; eles e seus passados estão aniquilados". Logo, na morte, caracterizada pelo fim do "Para-si", acontece também o fim de todos os projetos de um sujeito. Nesse sentido, pode-se considerar que pensar na morte como aniquiladora das possibilidades de ação em vida sustenta as dificuldades existentes para lidar com esse fenômeno, seja quando a morte é de outra pessoa ou quando trata-se da própria morte (Castro & Ehrlich, 2016).

Boss (1981) afirma que é somente a partir da consciência da própria finitude que o sujeito pode realmente aproveitar sua vida. Por mais que exista o sentimento de angústia diante deste evento demarcado pela imprevisibilidade, essa consciência impulsiona o sujeito a ser livre e envolver-se com sua própria existência de maneira congruente. Ao pensar sobre sua própria morte, Davi (entrevista, 13 agosto, 2019) revela:

...eu só penso assim, aproveitar bastante a vida, porque a gente nunca sabe a hora, né. Não que eu saia assim cuidadoso com medo de morrer, não. Eu penso em aproveitar mais, fazer as coisas que eu gosto, sabe... Como tem aquela música do Raul Seixas lá que 'a gente pode sair tropeçar, bater a cabeça e morrer' ...Então, tudo que eu for fazer, assim do que eu gosto, eu procuro fazer intensamente.

Ao serem levados a pensar sobre a morte, os agentes funerários refletem sobre o falecimento de familiares e amigos. A própria finitude acaba sendo uma questão da qual se esquivam, o que confirma a dificuldade de o sujeito ver a morte como fim do Para-si. Zé (entrevista, 23 agosto, 2019) afirma pensar na morte das pessoas próximas, mas não na sua própria morte.

Morton (entrevista, 15 agosto, 2019) pensa nos falecidos que já preparou. Coloca-se no lugar de alguns motoqueiros por também ser piloto e diz já ter pensado em vender sua moto, mas desistiu da ideia ao pensar em seu valor afetivo. Porém, ao se deparar com uma semelhança entre o corpo que um dia já teve vida diante de si, pensa naquela morte como a sua própria. Por mais que não tenha desistido de ser piloto de moto por gostar da atividade, reflete: "Será que um dia eu vou morrer e vou acabar assim também?". Por ser piloto de moto, Morton (entrevista, 15 agosto, 2019), além de pensar na sua própria morte, pensa na possível morte por acidentes de trânsito de seu irmão, que é motorista de caminhão. Ao entrar em contato com um corpo que em vida se envolveu em um acidente fatal, o agente se pergunta: "Será que meu irmão tá bem?". Além disso, em suas preparações, conta que alguns pensamentos vêm em mente quando a morte ocorre por suicídio. "Então eu fico pensando às vezes, o que faz uma pessoa ...O que que houve? Qual o limite da ...Da adrenalina dele, da depressão. Ter feito isso ali, será que ele podia ter se arrependido e ter voltado atrás?".

Já para Davi (entrevista, 13 agosto, 2019), apesar de solidarizar-se com o momento em que as famílias estão vivenciando, lidar com a morte no trabalho é diferente do que lidar com ela quando acontece na família. Por mais que ao perceber a dor e sofrimento da família o faça ter empatia com ela, seu trabalho se tornou mecânico com o decorrer do tempo. Na mesma direção, Pedro (entrevista, 13 agosto, 2019) menciona:

Pra toca numa pessoa ali que faleceu, a gente coloca a luva, tudo né. E se fosse uma pessoa da tua família, tu nem pensa nisso, né. Então, é diferente, uma pessoa da tua família falecer e uma pessoa que tu não conhece.

Conclui afirmando que se alguma pessoa de sua família falecesse, seu sentimento seria semelhante âqueles que as famílias mostram quando chegam na funerária; "sentimento de perda".

Davi nunca havia pensado em sua própria morte antes de ser um agente funerário. Hoje sente necessidade de se preparar para quando a morte acontecer em sua família. "É uma coisa meio macabra, mas a gente acaba pensando, tipo, um dia minha mãe vai falecer ...E se acontecer o que que eu preciso fazer?" (Davi, 13 agosto, 2019). Ao pensar sobre a própria finitude, Pedro (entrevista, 15 agosto, 2019) afirma que uma fala comum entre os agentes na funerária é: "Na verdade a gente não é nada" e também: "Tu pode tá aqui hoje e amanhã tu não ...Acaba, sei lá se naturalmente, mas acaba valorizando um pouco mais. Os amigos, a família, né, acaba ...Valorizando um pouquinho mais as coisas, né".

Fala isso ao lembrar do caso de uma senhora de mais de oitenta anos com boa saúde e que sofreu um acidente fatal ao atravessar a rua, para ir à padaria, quando foi atropelada por uma motocicleta. Percebe a própria finitude a partir da finitude do próximo.

 

Considerações finais

Foi possível perceber através deste estudo que a carência de um diálogo aberto sobre a morte interfere na vida daqueles que trabalham como agentes funerários. Visto que a satisfação do profissional está ligada à aprovação do outro, a maneira como se relaciona com seus clientes, as famílias enlutadas, se apresenta como um de seus maiores desafios no trabalho.

Além de oferecerem serviços para os rituais fúnebres, os agentes funerários se mostram disponíveis para, de alguma forma, acolher os impactos psicológicos que emergem na situação de perda, o que pode configurá-los como "cuidadores". Para cuidar, o sujeito precisa ser cuidado; os agentes funerários mostraram que possuem autonomia quanto à questão do autocuidado, e que veem seus colegas de trabalho como aqueles que oferecem um espaço importante de auxílio e escuta. Essa relação contribui na elaboração de significado para o seu trabalho para além da sua vida afetiva fora das funerárias, uma vez que a família e amigos possuem uma visão estigmatizada do ofício.

A dificuldade enfrentada por alguns agentes no início expressa o desconforto inicial com o trabalho funerário. É na relação com o corpo do outro, que um dia teve vida, que se questionam sobre a morte das pessoas próximas de si, bem como a sua própria. A negação da própria morte aparece de forma que os agentes costumam pensar na morte de seus familiares e amigos antes da sua própria, o que caracteriza a angústia presente na sua percepção da sua finitude como fim do "Para-si". Mudanças no projeto-de-ser dos agentes foram percebidas após o contato com a ocupação, provenientes da consciência do fim de suas vidas, o que conclui que essa questão fora pouco estimulada anteriormente. No decorrer da pesquisa, foram percebidas algumas reflexões inéditas dos próprios agentes funerários acerca da própria morte e da morte das pessoas próximas, o que leva a pensar na exposição desse profissional aos questionamentos da finitude.

Em seu livro Uma morte muito suave, que trata sobre a dificuldade que teve no período de adoecimento e morte da mãe, Simone de Beauvoir (1964/1984, p. 98), pensadora existencialista, afirma "...é inútil pretendermos integrar a morte na vida e conduzirmo-nos de maneira racional em face de uma coisa que não o é: que cada um se vire como possa na confusão de seus sentimentos". A morte é um tema tabu na sociedade ocidental. O assunto é evitado nas conversas, ocultado das crianças, como se não fosse parte natural do curso de vida do sujeito. Essa evitação prejudica o agente funerário que, ao se inserir na ocupação, tem maior contato com o tema pela primeira vez na vida. Logo, faz-se necessário abrir e ampliar um debate sobre temas recorrentes da morte. Um vasto caminho se mostrou a ser percorrido na elaboração de novas pesquisas que investiguem a relação de cuidado do agente funerário, de forma a verificar a forma como promovem e significam esse cuidado, bem como buscam cuidar de si mesmos. Igualmente, seriam pertinentes estudos com caráter participante que acompanhem a rotina dos agentes, demarcando com profundidade suas experiências no trabalho.

Acredita-se que as reflexões sobre as dimensões do trabalho do ponto de vista dos trabalhadores funerários realizadas neste estudo podem contribuir com o debate sobre o trabalho na contemporaneidade, dando maior visibilidade a essa atividade laboral como importante na organização social, bem como apontando a psicólogos organizacionais a presença de fenômenos psicossociais importantes que surgem na realização da tarefa funerária. Os cursos referentes à preparação de cadáveres carecem de conhecimento acerca da mobilização que o corpo falecido vem a trazer. Da mesma forma, os agentes que lidam com o sofrimento do outro afirmam não terem sido preparados para lidar com as emoções de seus clientes provenientes da perda. O profissional psicólogo poderia contribuir nesses cursos e no treinamento de novos agentes funerários, auxiliando-os a lidar com a maneira com que percebem os rituais funerários bem como atendem as famílias em processo de luto.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Ana Carolina Besen de Souza
anacarolinabesen6@gmail.com

Recebido em: 23/04/2020
Revisado em: 08/03/2021
Aprovado em: 01/04/2021

 

 

1 Para Sartre (2015), a angústia aparece como consequência da liberdade humana e leva a questionar a vida e a própria existência. A liberdade como dimensão ontológica do humano aponta a indeterminação da vida, condiciona o sujeito a fazer escolhas, a agir no mundo, o que acarreta responsabilidades frente a si e ao mundo, o que gera angústia, e ao mesmo tempo faz perceber que não há certezas, nada é determinado, o que abre espaço para o novo, mas também para o imprevisível, como a morte, por exemplo, fenômeno que, diretamente, põe a vida em questão.

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