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Cadernos de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento

versão impressa ISSN 1519-0307versão On-line ISSN 1809-4139

Cad. Pós-Grad. Distúrb. Desenvolv. vol.18 no.2 São Paulo jul./dez. 2018

https://doi.org/10.5935/cadernosdisturbios.v18n2p152-169 

Criando dicionários de línguas de sinais: modelos iconográfico, linguístico e contemporâneo

 

Creating dictionaries of sign languages: iconographic, linguistic and contemporary models

 

Creando diccionarios de lenguajes de signos: modelos iconográfico, lingüístico y contemporáneo

 

 

Fernando Cesar CapovillaI; Antonielle Cantarelli MartinsII; Wanessa Garcia Santos OliveiraIII

IInstituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: fcapovilla6@gmail.com
IIInstituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: an.cantarellim@gmail.com
IIIInstituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: wanessagarcia.s@gmail.com

 

 


RESUMO

Existem três eras de dicionarização das línguas de sinais, cada qual com sua estratégia lexicográfica: a era iconográfica ou pré-stokoeana, que usa a representação analógica e gestual, mímica e pantomímica; a era linguística ou stokoeana, que faz descrição linguística das unidades arbitrárias e recombinativas; e a era contemporânea ou pós-stokoeana, que concilia as duas modalidades de representação: a iconográfica e a linguística. Este artigo compara as estratégias lexicográficas de seis dicionários de línguas de sinais, três da brasileira (Libras) e três da americana (ASL), e os distribui nessas eras, ilustrando suas peculiaridades por meio de alguns sinais-chave. Para fins de eficácia pragmática dos dicionários, o artigo discute a importância da ilustração gráfica e da descrição da forma e do significado dos sinais, e do modo como a forma é inspirada no significado.

Palavras-chave: Lexicografia. Língua de sinais. Surdos. Gestos. Dicionários.


ABSTRACT

There are three periods in sign language lexicography (pre-Stokoean, Stokoean, and post-Stokoean), each with its own lexicographic strategy for designing sign language dictionaries. Iconographic or Pre-Stokoean era dictionaries employ analogical representation, resorting to mimicry, pantomime and gestures. Linguistic or Stokoean era dictionaries employ linguistic representation strategy based on the description of discrete recombinative units pertaining to hand-shape, articulation place, movement and facial expression. Contemporary or Post-Stokoean era dictionaries employ both, analogical and linguistic representation strategies. The paper compares lexicographic strategies used in six classical sign language dictionaries, which pertain to one or another of the three eras of sign language lexicography. For the purpose of maximizing pragmatic efficacy of sign language dictionaries, the paper discusses the importance of graphic illustrations and sign form descriptions emphasizing how sign form is inspired by sign meaning.

Keywords: Lexicography. Sign Language. Deaf. Gesture. Dictionary.


RESUMEN

Existen tres períodos en la lexicografía del lenguaje de signos (pre-stokoeano, stokoeano y post-stokoeno), cada uno con su propia estrategia lexicográfica para diseñar diccionarios de lenguaje de signos. Los diccionarios de la era iconográfica o pre-stokoeana emplean la representación analógica, recurriendo a la mímica, la pantomima y los gestos. Los diccionarios de la era lingüística o stokoeana emplean una estrategia de representación lingüística basada en la descripción de unidades de recombinación discretas pertenecientes a la forma de la mano, el lugar de articulación, el movimiento y la expresión facial. Los diccionarios de la era contemporánea o posterior a stokoeana emplean estrategias de representación, tanto analógicas como lingüísticas. El documento compara las estrategias lexicográficas utilizadas en seis diccionarios clásicos de lenguaje de signos, que pertenecen a una u otra de las tres eras de la lexicografía del lenguaje de signos. Con el propósito de maximizar la eficacia pragmática de los diccionarios de lenguaje de signos, el documento discute la importancia de las ilustraciones gráficas y las descripciones de las formas de los signos enfatizando cómo la forma de los signos se inspira en el significado de los signos.

Palabras clave: Lexicografía. Lenguaje de signos. Sordos. Gesto. Diccionario.


 

 

INTRODUÇÃO

Ao longo dos séculos, a documentação lexicográfica dos sinais em dicionários de línguas de sinais vem sendo feita conforme diferentes estratégias. Tais estratégias refletem o modo como os sinais são concebidos na época em que os dicionários são elaborados. O linguista Stokoe (STOKOE; CASTERLINE; CRONEBERG, 1965) é considerado o divisor de águas no campo dos sinais. De fato, Capovilla, Mauricio e Raphael (2009) propuseram uma cronologia para a lexicografia das línguas de sinais, dividida em três períodos ou fases: a fase pré-stokoeana, a fase stokoeana e a fase pós-stokoeana.

Até Stokoe, os sinais eram considerados como tendo uma natureza gestual, mímica e pantomímica. Sua forma era sempre descrita como motivada pelo seu significado. Ou seja, pelas características físicas do referente representado, de seu comportamento ou do comportamento humano em relação a ele. A estratégia típica da descrição consistia em usar o recurso: "fazer como se". Os dicionários dessa época empregavam ilustrações que enalteciam a semelhança entre a forma do sinal e a do significado. A partir de Stokoe, os sinais passaram a ser concebidos como tendo uma natureza linguística. Sua forma passou a ser descrita em seu próprio direito, como resultante da combinação entre unidades sublexicais arbitrárias, sem qualquer referência ao seu significado. Os dicionários dessa época não empregavam ilustrações, mas códigos alfanuméricos arbitrários e símbolos abstratos que ressaltavam a arbitrariedade e a recombinatividade das unidades arbitrárias recombinativas. De fato, Stokoe foi o primeiro a propor que os sinais têm natureza linguística. Ou seja: que os sinais constituem itens lexicais que mantêm, com seu significado, uma relação arbitrária e convencional; que os sinais se combinam segundo regras arbitrárias de sintaxe; e que os sinais são compostos de unidades sublexicais arbitrárias que se combinam segundo regras arbitrárias no nível da morfologia.

Passado meio século dessa revolução stokoeana, inicia-se a era contemporânea, pós-stokoeana, a partir da constatação de que os dicionários da era stokoeana, devido ao seu teor árido e arbitrário, não eram usados, na prática, por usuários surdos ou na educação de surdos. A partir da era pós-stokoeana, os sinais passam a ser considerados como tendo uma natureza dupla, tanto gestual, mímica e pantomímica, quanto linguística. A forma dos sinais é descrita como resultado da combinação regrada de unidades mínimas sublexicais. Ao mesmo tempo, a forma também é descrita, sempre que possível, como motivada pelo seu significado. Assim, os sinais são descritos tanto no que se refere a sua fonologia (i.e., de sua sematosemia ou composição sematosêmica) quanto a sua morfologia (i.e., das unidades básicas de significado ou de sua composição morfêmica). Além de descritos em sua forma e significado (e da explicação de como a forma do sinal representa a forma do referente representado, a forma de seu comportamento ou a forma do comportamento humano em relação a ele), os sinais são também ilustrados em sua forma e significado.

Assim, enquanto a era pré-stokoeana usa a representação analógica e gestual, mímica e pantomímica, a era stokoeana faz descrição linguística das unidades arbitrárias e recombinativas e a era pós-stokoeana concilia as duas modalidades de representação: a analógica e a linguística. Este artigo compara as estratégias lexicográficas de seis dicionários de línguas de sinais, três da brasileira (Libras) e três da americana (ASL), e os distribui nessas eras, ilustrando suas peculiaridades por meio de alguns sinais-chave.

O artigo compara as diferentes estratégias de documentação lexicográfica em seis dicionários clássicos, três da Língua de Sinais Brasileira (Libras) e três da Língua de Sinais Americana (ASL). Os dicionários foram: 1. A iconographia dos signaes dos surdos-mudos (GAMA, 1875); 2. Linguagem das mãos (OATES, 1969); 3. A dictionary of American Sign Languages on Linguistic Principles (Stokoe; Casterline; Croneberg, 1965); 4. American Sign Language dictionary (STERNBERG, 1998); 5. The Random House Webster's American Sign Language Dictionary (COSTELLO, 1994, 2008); 6. Dicionário da Língua de Sinais do Brasil: a Libras em suas mãos (CAPOVILLA et al., 2017a, 2017b, 2017c). Além desses, para fins de discussão, foram também considerados dois dicionários iconolinguísticos adicionais: Capovilla e Raphael (2001a, 2001b) e Capovilla, Raphael e Mauricio (2015a, 2015b).

O foco da comparação entre os seis dicionários está no modo como as entradas lexicais dos sinais foram elaboradas. A comparação busca compreender em que as estratégias se assemelham e em que elas diferem. Os seis dicionários foram examinados para encontrar significados que tivessem entradas lexicais comuns a todos eles. Foram identificados 124 significados em comum que tinham entradas lexicais em todos os seis dicionários. O presente artigo toma duas dessas entradas: as dos sinais leite e mesa, e faz uso delas para explicar a configuração geral dos achados.

Portanto, com base no modelo de Capovilla, Mauricio e Raphael (2009), que propõe diferentes fases ou eras da dicionarização das línguas de sinais, o artigo compara duas entradas lexicais de seis dicionários representativos de diferentes eras: dicionários iconográficos da era pré-stokoeana (GAMA, 1875; OATES, 1969), dicionários linguísticos da era stokoeana (e.g., STOKOE; CASTERLINE; CRONEBERG, 1965) e dicionários iconolinguísticos da era pós-stokoeana (STERNBERG, 1998; COSTELLO, 2008; CAPOVILLA et al., 2017a, 2017b, 2017c). Na discussão foram também considerados a tese de Capovilla (2000a, 2000b) e os dicionários de Capovilla e Raphael (2001a, 2001b), dado o seu pioneirismo como inauguradores de um novo patamar da era pós-stokoeana, e de Capovilla, Raphael e Mauricio (2015a, 2015b), dada a consolidação desse patamar que ele promove e a importância de seus capítulos teóricos para a lexicologia e lexicografia (URDANG, 1963), com foco nas línguas de sinais. Com o objetivo de aumentar a eficácia pragmática dos dicionários em favorecer a consulta, a compreensão e a retenção dos sinais, o artigo dis-cute a importância do emparelhamento entre as ilustrações gráficas da forma e do significado dos sinais, de modo a frequentemente conseguir sugerir ou revelar como a forma dos sinais pode ser inspirada em seu significado. Por fim, discute alguns achados das Neurociências Cognitivas que justificam essa estratégia lexicográfica dos dicionários de Capovilla e seus colaboradores, tão bem explicada em Temoteo (2012) e Martins (2017) e em Martins e Capovilla (2018), ampliando assim o trabalho iniciado por Capovilla, Mauricio e Raphael (2009, 2015), de analisar como a estratégia lexicográfica pode se alinhar com achados do estado da arte nas Neurociências Cognitivas da Linguagem.

A era pré-stokoeana

Dicionários pré-stokoeanos compreendem aqueles feitos até meados do século XX, como os de Língua de Sinais Francesa, ou LSF (L'ÉPÉE, 1776; FERRAND, 1897; SICARD, 1808; BÉBIAN, 1825; VALADE, 1854; PÉLISSIER, 1856) e de Língua de Sinais Brasileira, ou Libras (GAMA, 1875; OATES, 1969). De caráter iconográfico, essas obras documentam os sinais e a motivação de sua forma por analogia à forma ou comportamento dos referentes, ou das pessoas em relação a eles. Essas obras destinam-se a satisfazer as necessidades representacionais visoespaciais e analógicas, típicas do processamento cerebral hemisférico direito (POIZNER; KLIMA; BELLUGI, 1987). A abordagem iconográfica à dicionarização do léxico dessas línguas de sinais fica clara já desde os títulos, que incluem palavras como iconografia ou mimografia, no sentido de mímica e mimética. Constituem exemplos desses títulos os dicionários de Língua de Sinais Francesa intitulados: Mimographie (BÉBIAN, 1825) e L'enseignement primaire des sourds-muets mis à la portée de tout le monde avec une iconographie des signes (Pélissier, 1856), e o de Língua de Sinais Brasileira (Libras) intitulado Iconographia dos signaes dos surdos-mudos (GAMA, 1875). Esses dicionários figuram ao lado de outros como L'institution des sourds et muets, par la voie des signes méthodiques (L'ÉPÉE, 1776); Dictionnaire des sourds-muets (FERRAND, 1897); De la thèorie des signes (SICARD, 1808) e Etudes sur la lexicologie et la grammaire du langage naturel des signes (VALADE, 1854).

Conforme Capovilla, Mauricio e Raphael (2009), esses dicionários descrevem os sinais de modo analógico às propriedades visuais dos referentes representados, como se esses sinais fossem gestos, mímica ou pantomima, típicos do processamento hemisférico direito. Tais dicionários descrevem a forma do sinal, tal como motivada pelo seu significado, e comumente apelam à fórmula "como se", numa clara alusão ao sinal como metáfora do gesto ou da pantomima naturais. Ainda segundo os autores, tal modelo de dicionarização leva em conta basicamente o processamento do córtex parieto-occipital do hemisfério direito, como se ele fosse suficiente para dar conta dos sinais, de seu significado e de sua forma. Apesar de ser eficaz para relacionar forma e significado, essa estratégia não dava conta de permitir o tratamento fonológico-sematosêmico mais fino dos sinais, que explica como as propriedades fonológico-sematosêmicas das línguas de sinais podem ser combinadas de maneiras complexas para codificar informação linguística em níveis mais complexos e abstratos. Tais dicionários descrevem os sinais de maneira representacional iconográfica, enfatizando a natureza gestual, mímica e pantomímica dos sinais, e chamando a atenção do leitor para o modo como os sinais evocam as características do objeto representado, de seu comportamento ou do comportamento humano em relação a esse objeto.

Consideremos as entradas dos sinais leite e mesa em dois dos dicionários da era pré-stokoeana da dicionarização das línguas de sinais. Iconographia dos signaes dos surdos-mudos (GAMA, 1875, Estampa 3 e Estampa 5, respectivamente) e A linguagem das mãos (OATES, 1969, p. 189 e p. 131, respectivamente). Nos dois dicionários os sinais são descritos de modo representacional, gestual, icônico e pantomímico. Neles, o sinal leite é descrito por referência à ação de ordenhar. No dicionário de Gama (1875, Estampa 3), o autor confunde dois verbos tipicamente restritos à vaca: a ação de ordenhar com a de mugir. Nesse mesmo dicionário, o sinal mesa é descrito por referência às características físicas das mesas: o tampo plano e as quatro pernas.

Comparando as entradas lexicais dos sinais leite e mesa nesses dois dicionários representativos da era pré-stokoeana (GAMA, 1875; Oates, 1969), pode-se constatar como a natureza distinta dos estilos de descrição de sinais revela as diferentes concepções de dicionarização explicadas por Capovilla, Mauricio e Raphael (2009). A descrição do sinal era feita para lembrar o leitor de comportamentos de manejo de objetos, ou de mímica e pantomima em relação a eles, ou da aparência ou comportamento dos objetos animados ou inanimados representados. O sinal é descrito quanto ao "como se", de modo a fazer o leitor lembrar-se da aparência do objeto e de seu manuseio, ou de seu comportamento em relação ao objeto representado. De fato, na descrição do sinal leite por Gama (1875, Estampa 3), o indicador esquerdo representa o peito da vaca e a mão direita, o ordenhar. Do mesmo modo, Oates (1969, 189) descreve o sinal por referência ao comportamento do fazendeiro de ordenhar uma vaca, ou seja, o sinal é descrito como se representasse objetos e o comportamento em relação a eles.

A era stokoeana

Os dicionários da era stokoeana são de natureza fundamentalmente linguística, com notação abstrata e arbitrária. Eles descrevem a estrutura dos sinais no que se refere a combinações específicas de parâmetros como a forma da(s) mão(s), o local que a(s) mão(s) ocupa(m) no espaço da sinalização, o movimento que a(s) mão(s) descreve(m) nesse espaço e a expressão facial eventualmente associada. O exemplo mais radical e prototípico dessa abordagem é o dicionário seminal de Stokoe, Casterline e Croneberg intitulado A dictionary of American Sign Language on linguistic principles (STOKOE; CASTERLINE; CRONEBERG, 1965). Ele se atém à descrição das unidades mínimas dos sinais nos parâmetros descritos de mão (forma, local, movimento) e face, e evita mencionar o significado dos sinais como inspirador da forma. Esse dicionário se limita à descrição da estrutura fonológica ou sematosêmica dos sinais, sem chegar a atingir a estrutura morfológica dos sinais, ou seja, sem chegar a descrever as unidades mínimas de significado dos sinais (os morfemas).

Comparando as entradas lexicais dos sinais leite e mesa nesses dois con-juntos de dicionários (GAMA, 1875; OATES, 1969, representativos da era pré-stokoeana; e STOKOE; CASTERLINE; CRONEBERG, 1965, da era stokoeana), pode-se constatar como a natureza distinta dos estilos de descrição de sinais revela as diferentes concepções de dicionarização. O dicionário seminal de Stokoe, Casterline e Croneberg (1965) descreve a estrutura dos sinais em termos de combinações específicas de parâmetros, como a forma da(s) mão(s), o local que a(s) mão(s) ocupa(m) no espaço da sinalização, o movimento que as(s) mão(s) descreve(m) nesse espaço, e a expressão facial eventualmente associada. Para enfatizar a natureza arbitrária das unidades fonológicas que se combinam para compor um dado sinal e se recombinam de modos distintos em outros sinais, o dicionário de Stokoe, Casterline e Croneberg (1965) faz uso de um sistema de notação preciso específico. Esse dicionário constitui o exemplo seminal mais radical e prototípico dessa abordagem. Seu objetivo central é romper com o preconceito contra as línguas de sinais por parte de linguistas, que acreditavam que os sinais não passavam de representações gestuais, mímicas e pantomímicas do significado, e estabelecer firmemente a natureza linguística das línguas de sinais. Conforme Capovilla, Mauricio e Raphael (2009), para atingir esse objetivo de expurgar qualquer inspiração da forma pelo significado, e qualquer teor representacional gestual, mímico e pantomímico dos sinais, Stokoe empregou um sistema de notação de sinais com unidades mínimas arbitrárias e recombinativas para descrever a estrutura fonológica ou sematosêmica dos sinais, cuidando para não atingir a estrutura morfológica dos sinais ou mencionar as unidades mínimas de significado dos sinais. Isso fica claro na entrada lexical dos sinais leite e mesa nesse dicionário.

A era pós-stokoeana

Enquanto os dicionários da era pré-stokoeana são de natureza iconográfica e os da era stokoeana são de natureza linguística, os dicionários da era pós-stokoeana são de natureza dupla: iconográfica e linguística. São de natureza iconográfica porque revelam como a forma do sinal é motivada pelo seu significado. São de natureza linguística porque revelam como a forma do sinal é composta de unidades mínimas recombinativas. Seu avanço consiste no fato de que essas unidades mínimas que se recombinam não estão limitadas apenas ao nível da fonologia (de fonemas ou sematosemas, cf. CAPOVILLA, 2011, 2012, 2015A, 2015B; CAPOVILLA; GARCIA, 2011; CAPOVILLA; OLIVEIRA, 2015), mas se estendem para atingir o nível da morfologia (i.e., de morfemas ou unidades mínimas de significado). Assim, esses dicionários combinam a descrição da estrutura fonológica ou sematosêmica dos sinais com a descrição da estrutura morfológica dos sinais, ou seja, das unidades mínimas de significado dos sinais: os morfemas. Por isso, tais sinais são, ao mesmo tempo, iconográficos e linguísticos. Apesar de revelar a estrutura sublexical dos sinais quanto à combinação específica de unidades recombinativas, tais dicionários não ignoram a natureza representacional iconográfica, a natureza gestual, mímica e pantomímica dos sinais. E chamam a atenção do leitor para o modo como os sinais evocam as características do objeto representado, de seu comportamento ou do comportamento humano em relação a esse objeto. Isso faz com que os sinais documentados nesses dicionários possam ser apreciados em sua sistematicidade formal tanto quanto em sua familiaridade intuitiva.

Consideremos agora as entradas dos sinais leite e mesa em três dicionários representativos da era pós-stokoeana: American Sign Language Dictionary (STERNBERG, 1998, p. 416 e p. 688, respectivamente), Random House American Sign Language Dictionary (COSTELLO, 2008, p. 302 e p. 501, respectivamente), e Dicionário da Língua de Sinais do Brasil: a Libras em suas mãos (CAPOVILLA et al., 2017b, p. 1657 e p. 1835, respectivamente).

Nos três dicionários da era pós-stokoeana, a descrição do sinal leite faz referência explícita ao comportamento de ordenhar uma vaca. A descrição do sinal mesa faz referência explícita à superfície plana do tampo da mesa. Tais descrições iconográficas são acompanhadas de ilustrações da forma do sinal; e, em Capovilla et al. (2017b), de ilustração do significado também.

Nota-se que a abordagem stokoeana concebe o sinal como composto de unidades mínimas arbitrárias, que se recombinam de acordo com regras linguísticas de morfologia e sintaxe. A análise do sinal se restringe à sua composição fonológica ou sematológica no que se refere a unidades mínimas destituídas de significado, e caracterizadas pelo cruzamento de parâmetros tais como: a articulação da mão, o local de sinalização em relação à face e ao tronco, o movimento e componentes não manuais (expressão facial associada).

 

DISCUSSÃO E CONCLUSÃO

Os dicionários contemporâneos, da era pós-stokoeana, combinam as estratégias das duas eras anteriores: a era pré-stokoeana e a era stokoeana. Eles descrevem e ilustram a forma dos sinais em seus dois aspectos: o iconográfico típico da era pré-stokoeana e o linguístico típico da era stokoeana. Nesse aspecto linguístico, eles vão além do que havia sido logrado no dicionário stokoeano, pois descrevem a forma do sinal nos dois níveis: o sematosêmico (i.e., fonológico) e o morfêmico. Assim, conciliam o que as duas escolas, a iconográfica e a linguística, tinham de melhor. Indo além da escola iconográfica da era pré-stokoeana, os dicionários da era pós-stokoeana oferecem ilustrações e descrições não apenas da forma, como também do significado dos sinais, e revelam como a forma se inspira no significado dos sinais. Melhor que o dicionário da escola linguística da era stokoeana, os dicionários da era pós-stokoeana oferecem descrições sistemáticas, detalhadas e minuciosas, da forma dos sinais em termos da combinação entre unidades mínimas arbitrárias definidas, e sistematiza essas unidades sublexicais definidas, bem como as regras para sua recombinação que resultam em unidades no nível lexical, ou seja, os sinais. Contudo, diferentemente das duas abordagens anteriores, os dicionários da era pós-stokoeana descrevem e ilustram a estrutura sublexical dos sinais no nível morfêmico, ou seja, das unidades mínimas de significado embutidas nesse sinal. Tais unidades se constituem em morfemas metafóricos molares, bem como em morfemas moleculares (BRENNAN, 1990). Eles mostram como os sinais são compostos da combinação entre esses morfemas e como esses morfemas metafóricos das línguas de sinais têm, eles próprios, a sua forma inspirada nas propriedades físicas do referente, do comportamento do referente ou do comportamento humano em relação a esse referente.

Para apreciar bem a diferença entre o dicionário seminal de Stokoe, Casterline e Croneberg (1965) e dicionários da fase pós-stokoeana, como os de Capovilla e Raphael (2001a, 2001b), Capovilla, Raphael e Mauricio (2015a, 2015b) e Capovilla et al. (2017a, 2017b, 2017c), podemos considerar como esses dicionários indexam as entradas dos sinais e descrevem a sua forma, de modo a permitir a um consulente leigo encontrar um dado sinal desejado e compreender bem a sua forma.

O dicionário de Stokoe, Casterline e Croneberg (1965) emprega um sistema notacional arbitrário e opaco, essencialmente arcano, para indexar e descrever a forma dos sinais, e pressupõe o conhecimento desse sistema por parte de um consulente para que ele seja capaz de encontrar um dado sinal desejado e compreender bem a sua forma. Nesse dicionário, a descrição combina elementos desse sistema notacional com segmentos de descrição feitos na língua inglesa. Essa descrição não é feita nem puramente nesse sistema notacional, nem puramente em inglês. Portanto, ela pressupõe que o consulente conheça muito bem esse sistema notacional para que possa localizar um dado sinal (já que as entradas lexicais não são indexadas por verbetes) e compreender a forma de qualquer sinal que se tente buscar. Além disso, esse dicionário não emprega qualquer ilustração, seja de forma, seja de significado.

Em contraste, os dicionários de Capovilla e Raphael (2001a, 2001b), Capovilla, Raphael e Mauricio (2015a, 2015b) e Capovilla et al. (2017a, 2017b, 2017c) não pressupõem qualquer conhecimento de qualquer sistema notacional. Para localizar um dado sinal é preciso apenas saber ler, já que os sinais são arranjados na ordem alfabética dos verbetes em português simples. Para compreender a forma do sinal e intuir o significado desse sinal, não é necessário sequer saber ler, já que esses dicionários empregam ilustrações gráficas, tanto da forma do sinal quanto de seu significado. Essas ilustrações de forma e de significado são emparelhadas lado a lado, de modo a mostrar, sugerir ou demonstrar que a forma do sinal é frequentemente inspirada em propriedades da forma do referente por ele representado, ou da forma do comportamento desse referente no espaço, ou da forma do comportamento humano em relação a esse referente (como no sinal motocicleta, que sugere o segurar as manoplas do guidão e acelerar girando o pulso). Assim, ao buscar demonstrar como a forma dos sinais se inspira nas propriedades da forma do referente, ou seja, como eles têm inspiração gestual, mímica e pantomímica, pode-se começar a perceber como esses dicionários engajam a circuitaria neural responsável pelo processamento de metáforas. De fato, usando ressonância magnética funcional (fMRI), Schmidt-Snoek e Seger (2009) descobriram que o processamento de metáforas se dá no hemisfério direito. Mais especificamente, quando comparadas com sentenças literais, as metáforas recrutam a ínsula direita e o giro frontal inferior direito. Além disso, para descrever a forma dos sinais, em vez de empregar um sistema notacional arbitrário e opaco, essencialmente arcano, esses dicionários empregam descrições precisas da forma e da sequência de formas envolvidas em cada sinal. Essas descrições são redigidas na língua portuguesa corrente do cotidiano. Elas são sistemáticas e seguem padrões uniformes de sinal a sinal, o que facilita a compreensão dos sinais e a sua execução por parte de consulentes alfabetizados completamente leigos em Libras ou em qualquer sistema notacional.

Segundo Capovilla, Mauricio e Raphael (2009), por sua completude e por tirar vantagem das Neurociências Cognitivas do sinal (CAPOVILLA, 2012, 2015a, 2015b; CAPOVILLA; OLIVEIRA, 2015), os dicionários de Capovilla e Raphael (2001a, 2001b), Capovilla, Raphael e Mauricio (2015a, 2015b) e Capovilla et al. (2017a, 2017b, 2017c) inauguram uma nova e adiantada fase da era pós-stokoeana na lexicografia das línguas de sinais, ao conciliar o que havia de melhor entre as fases stokoeana e pré-stokoeana. De um lado, buscam realizar o objetivo stokoeano de alcançar precisão linguística da descrição sematosêmica, mas sem envolver o arcano sistema de notação stokoeano. De outro lado, buscam revelar, sempre que possível, a semelhança entre a forma do sinal e a forma do referente por ele representado, seja a forma de um objeto ou ser animado, seja a forma do comportamento desse ser no espaço, seja a forma do comportamento humano de manejar no espaço esse objeto ou ser. Revela, assim, o apelo gestual do significado como inspirador da forma, de modo a aumentar o engajamento dos dois hemisférios sem desprezar as importantes funções do hemisfério direito (BADDELEY; DELLA SALA, 1996; RUDNER et al., 2018). Além de valorizar o engajamento simultâneo dos dois hemisférios, o modo de desenhar as entradas lexicais, com ilustrações dos sinais em estágios de movimento e com setas indicativas do plano e direção e sentido do movimento, engaja as funções executivas centrais do córtex pré-frontal e as funções visomotoras do cerebelo, em especial pelo uso de metáforas, que transferem as propriedades do gesto ao sinal (BRENNAN, 1990; EVANS; GREEN, 2006; RUDNER et al., 2018; SCHMIDT-SNOEK; SEGER, 2009), especialmente nos sinais de apelo gestual ou pantomímico.

Se considerarmos como esses dicionários pós-stokoeanos representam as formas dos sinais, em suas características, e se nos concentrarmos na característica do movimento, poderemos apreciar melhor a importância de usar ilustrações do significado e da forma do sinal como fazem esses dicionários. Essa forma de engajar a circuitaria neural pré-frontal, responsável pelas funções práxicas de planejamento e de execução sequenciais, engaja, também, a circuitaria neural do cerebelo para perceber as propriedades do movimento do modelo sinalizador ilustrado na entrada lexical do dicionário, bem como a circuitaria vestíbulo-cerebelar para perceber, de modo visual, proprioceptivo e sinestésico, as posições do próprio corpo ao longo dos estágios de movimento; e para perceber, de modo cinestésico, os movimentos do próprio corpo, para coordenar esses movimentos de modo a emular os movimentos representados na ilustração.

A estratégia de documentação lexicográfica de sinais empregada por Capovilla, Raphael e Mauricio (2015a, 2015b) e Capovilla et al. (2017a, 2017b, 2017c) faz uso de ilustrações dos sinais em etapas e com setas para indicar as propriedades do movimento, como o eixo, a direção, a forma e o sentido. O movimento, no eixo Y, pode ter direção para cima ou para baixo; no eixo Z, para a frente ou para trás; e no eixo X, para a direita ou para a esquerda. A forma do movimento pode ser bastante variada, como a ovalar, a circular ou a espiralar, dentre outras. Em todas essas, o sentido do movimento pode ser horário ou anti-horário. O plano em que se dá esse movimento pode ser o plano XY (que é o da parede da frente ou de trás), o plano XZ (que é o do teto ou do piso ou de uma mesa) e o plano YZ (que é o das paredes laterais). O espaço resulta da combinação entre os eixos X, Y, Z. O endereço de um ponto no espaço é dado pela combinação entre os valores de cada eixo.

O engajamento das funções vestíbulo-cerebelares pelas ilustrações de movimento dos sinais se dá em vários aspectos, desde a percepção visual do movimento envolvido no sinal, tal como representado graficamente nas ilustrações de forma, na percepção da posição do próprio corpo no espaço, na coordenação motora dos movimentos do próprio corpo e na coordenação visomotora entre os movimentos representados na ilustração e os observados no próprio corpo.

O sistema vestíbulo-cerebelar é considerado como um sexto sentido (GOLDBERG et al., 2012). Ele é responsável pela representação interna do movimento próprio. As evidências disso parecem ser consistentes. Foi demonstrado que lesões no nódulo e na úvula (lóbulos X e IX de Larsell) alteram o processamento da informação vestibular quanto ao tempo e espaço tridimensional. Usando ressonância magnética funcional (fMRI), Kleinschmidt et al. (2002) e Bense et al. (2006) descobriram que a indução visual de ilusões de movimento próprio (i.e., do próprio corpo) ativa o nódulo e a úvula. Além disso, Bronstein et al. (2008) demonstraram que lesões cerebelares na linha medial do nódulo e da úvula afetam a percepção do movimento próprio. Por fim, Bertolini et al. (2012) demonstraram que a degeneração crônica vestíbulo-cerebelar reduz a percepção vestibular do movimento próprio dos pacientes. Dahlem et al. (2016) descobriram que o mesmo vale para a agenesia cerebelar congênita, o que mostra o papel do cerebelo em aumentar a sensibilidade do cérebro aos sinais de movimento da cabeça e de orientação da cabeça fornecidos pelo labirinto durante os movimentos passivos da cabeça. O sistema vestíbulo-cerebelar é responsável pela representação interna do movimento próprio envolvido na execução do sinal. Mas esse sistema está envolvido na execução do sinal não apenas em termos motores, como também perceptuais. E não apenas em termos de propriocepção e equilíbrio, como também em termos de percepção visual de movimento, tanto do modelo quanto do próprio corpo. Assim, o sistema é recrutado na percepção visual dos movimentos representados nas ilustrações; na percepção visual, proprioceptiva e cinestésica dos movimentos próprios; na coordenação motora do movimento envolvido na execução do sinal; e na coordenação visomotora entre os movimentos do sinal ilustrados na figura e os movimentos próprios envolvidos na execução do sinal representado na ilustração da forma dos sinais.

O engajamento do cerebelo pelas ilustrações de movimento dos sinais é relevante, já que o cerebelo está envolvido também na percepção visual, mais propriamente na percepção visual de movimento, como demonstrado por Sokolov et al. (2010) e por Sokolov et al. (2012). Num artigo de consenso, com os principais investigadores do cerebelo, Baumann et al. (2015) estabeleceram como consenso que a função do cerebelo no processamento visual está relacionada à percepção do movimento e à estimativa das propriedades temporais e visoespaciais do movimento. E que o sistema vestíbulo-cerebelar está envolvido na percepção do próprio movimento, para computar a representação interna do próprio movimento.

Assim, nos dicionários de Capovilla e colaboradores, as entradas lexicais com sinais ilustrados em estágios de movimento e com setas indicativas das propriedades do movimento em cada estágio (como as de seu eixo e plano, e de sua direção e seu sentido) engajam funções vestíbulo-cerebelares de coordenação motora dos movimentos, de percepção visual de movimentos e de processamento visual de movimentos do próprio corpo; além das funções executivas práxicas de planejamento e execução de tarefas envolvendo estágios sequenciais necessários à consecução de um padrão terminal desejado, no caso, a reprodução fidedigna da forma do sinal desejado, que se encontra graficamente representado e precisamente descrito na entrada lexical. Essa estratégia lexicográfica dos dicionários de Capovilla e colaboradores almeja levar o consulente leigo em Libras a perceber claramente as propriedades do movimento imanentes ao sinal, e emular precisamente essas propriedades, de modo a reproduzir com exatidão a forma desse sinal, aumentando a eficácia da pragmática comunicativa do consulente.

Em termos mais amplos, os dicionários de Capovilla e colaboradores se distinguem pela combinação entre várias estratégias lexicográficas. Dentre essas, destacam-se: 1. o emprego de ilustrações da forma do sinal, emparelhada lado a lado com a forma do referente representado, de modo a sugerir como a forma do sinal é inspirada pelo seu significado; 2. o emprego de ilustrações da forma do sinal em estágios e com setas indicativas das propriedades do movimento; 3. o emprego de descrições sistemáticas e precisas e em português corrente da forma dos sinais (relativamente às mãos, sua orientação e posição no espaço, forma do movimento, expressão facial associada) em cada um dos estágios sequenciais de sua execução; 4. o emprego de explicações do significado do sinal; 5. o emprego de exemplos de seu uso linguístico em contextos apropriados; 6. a descrição da composição morfêmica dos sinais, ou seja, dos morfemas metafóricos molares e moleculares que o compõem; 7. a menção à iconicidade do sinal, ou seja, de seu berço no gesto ou na mímica e pantomima. Todas essas características objetivam aumentar a eficácia pragmática do dicionário em produzir a compreensão profunda de seu significado, a aprendizagem e a retenção do sinal para uso linguístico ulterior em contexto apropriado.

 

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Recebido em: 10.08.2018
Aprovado em: 30.08.2018

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