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Cadernos de Psicopedagogia

versão impressa ISSN 1676-1049

Cad. psicopedag. v.6 n.10 São Paulo  2006

 

COMUNICAÇÃO

 

A influência das representações religiosas no processo de aprendizagem do sujeito1

 

The influence of religious representations in the subject learning process

 

 

João Clemente de Souza NetoI,II;2; Yara Schramm3

I Programa de Pós-Graduação em Psicologia Educacional no Centro Universitário FIEO
II Universidade Presbiteriana Mackenzie

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo trata das representações religiosas no processo de aprendizagem e produção do conhecimento, a partir da análise da história de vida de um educador/catequista da Igreja Católica. No decorrer da pesquisa, evidencia-se de que modo a prática religiosa contribui para a construção de um tecido social.

Palavaras-chave: Representação, Aprendizagem, Subjetividade e evangelização.


ABSTRACT

This article is about the influence of religious representations in the learning process and knowledge production, taking as a reference point the history of life of an educator/catechist of the Catholic Church. The research shows that religious practice contributes to a construction of a social tissue.

Keywords: Representation, Learning, Ssubjectivity, Evangelization.


 

 

Este artigo é resultado de uma pesquisa com a finalidade verificar o modo pelo qual as convicções e práticas religiosas influenciam a construção do cotidiano e a produção de um tecido social e do conhecimento. A metodologia utilizada foi a abordagem da história de vida como material para estudo de caso e análise documental e das práticas sociais de um educador/catequista, imigrante de Portugal, no Brasil. Essa personagem reúne um conjunto de elementos que revelam como ocorre a colaboração de lideranças católicas leigas no processo de transformação social e cultural.

A pesquisa desvelou que a construção de uma cidadania emergente do cotidiano se faz também por meio do exercício de participação das comunidades e do empenho em converter pequenas práticas de justiça em políticas sociais. O testemunho de vida dos leigos católicos, presente nas ações solidárias e evangelizadoras, propicia as condições para a construção de uma ética. Nessa direção, a pesquisa da história de vida de José Joaquim evidenciou que as concepções e práticas religiosas interferem no processo de aprendizagem e de construção do conhecimento. A motivação religiosa e o desejo de se aprofundar no conhecimento de Deus levaram-no a desenvolver a capacidade de leitura e de pesquisa, como um autodidata. Elas foram essenciais como parte integrante da dinâmica de construção de um saber.

No Brasil, milhares de pessoas têm sido alfabetizadas em função do desejo de ler a Bíblia, como atestam membros das comunidades eclesiais de base e de grupos de rua da Igreja Católica, mas, especialmente, integrantes de denominações protestantes e pentecostais.

Num processo dialético de realimentação, ação pedagógica e representações se refazem mutuamente. É por isso que a subjetividade pode ajudar o educador e o educando a percorrerem com sucesso o caminho da construção e da circulação do conhecimento. Poderíamos inferir que a ação e a história do indivíduo produzem as representações, como um enorme depósito de experiências.

Neste texto, buscamos compreender a influência das representações e da subjetividade na prática de um educador/catequista e verificar como elas podem descongelar as relações e liberar a capacidade de aprendizagem e interação social.

 

Apontamentos para uma certa compreensão da categoria representação

A noção de representação, presente nos clássicos da sociologia, vem sendo rediscutida, ultimamente, por psicossociólogos, psicólogos e filósofos. Neste trabalho, não estamos preocupados com a questão do fenômeno das representações coletivas, já discutido, de maneira suficiente, por Durkheim, Bourdieu e mesmo Marx. Mas as mudanças das representações sociais influenciam as representações individuais. Por esse olhar, as representações florescem na vida cotidiana e nela se interpenetram.

Nossa perspectiva é compreender as representações carregadas de afetos, emoções e sentimento religioso. A análise das formas pelas quais o indivíduo constrói a representação de si, do outro e do Planeta não pode excluir a participação das memórias afetivas e emocionais, que são determinantes na construção das representações, na formulação das idéias e nas práticas.

“Os afetos, induzidos pela reativação da memória emocional, colocam o sistema representacional num estado receptivo que lhe permita assimilar ou criar novos elementos que contribuam para sua expressão e transformação. Elementos novos vão se inscrevendo na memória emocional, num contexto do diálogo interacional, em que podem ocorrer mudanças e conservação.” ( Sawaia, B. B., 1995, p. 81).

O eu não flui como soma de componentes, fatores ou variáveis. Ele brota da consciência das necessidades primeiras de um ser único e jamais clonado, consciente de que“[...] tem fome, sente dores (físicas ou psíquicas); no ‘Eu’ nascem os afetos e as paixões” (Heller, 1970, p.20). Sob a mola dos carecimentos, sua expectativa é preparar um terreno fértil, provavelmente sob o escudo da democracia, para satisfação de seus anseios, vontades, necessidades e desejos.

Pela ótica da complexidade, diferentemente de outras espécies animais, o sujeito é criador, reconstrutor e empreendedor, em contextos diferenciados. É uma unidade entretecida de razão, carecimento e paixão, simultaneamente capaz de aprender a ser, aprender a conviver, aprender a fazer, aprender a morrer... Agraciado por crenças, valores e sabedoria, sobrevive movido por “deuses e demônios”, por princípios supremos, infinitos e perfeitos, acima da natureza, ou por forças e estímulos interiores e exteriores, que excitam e conturbam.

O ser humano cria e recria representações, e com elas faz e refaz o cotidiano. Poderíamos afirmar que todos os grupos sociais produzem representações. Os cientistas, leigos, artistas, profissionais, enfim, todas as pessoas, usam uma variedade de formas de representações para comunicar algo sobre si e sobre a sociedade. Também criam e desenvolvem propostas, de diferentes meios e gêneros, para responder a diferentes desafios e situações, movidos por necessidades econômicas, afetivas, psicológicas, religiosas, ligadas ao desejo de segurança pessoal, de sentir-se útil e, como se insiste hoje, de garantir ou de aumentar a auto-estima.

Lançado no espaço e no tempo de uma realidade social concreta, que se lhe oferece e escapa, simultaneamente, o sujeito sempre intervém como uma organicidade em que o humano se desenha e se revela. Ele acolhe e recria a realidade, como bola recebida e arriscada em novo chute, num jogo em que as opções e decisões correm por um campo de inúmeras possibilidades, interiores e exteriores, mas também crivado de muitas aberturas e cerceamentos.

O mundo das representações é vasto e complexo. Sejam elas formais, estatísticas, gráficas, cartográficas, sociológicas, das narrativas históricas. Podemos falar, ainda, das representações religiosas, poéticas e das artes em geral. A representação figura a realidade, seja ela política, científica, ou no campo da magia, dos rituais, da convivência humana. O sujeito penetra no tempo e no espaço, por meio de experiências fundadas em estruturas mentais, feitas de intuições, crenças, convicções, certezas, sonhos e expectativas.

Entretanto, é importante deixar claro que as representações capturam e sistematizam apenas parte do real. Uma racionalidade, ou irracionalidade, feita de pontos de vista parciais pode dificultar a compreensão da verdadeira natureza do ser humano e das coisas. Portanto, a vida é mais ampla do que as representações. Elas têm que ser compreendidas também como uma construção social, em que o sujeito que resiste a um contexto social dominante necessita de outras representações para se integrar na sociedade.

A “[...] realidade da vida social é uma conversação de símbolos significantes, no curso da qual as pessoas fazem movimentos tentativos e depois ajustam e reorientam sua atividade à luz das reações (reais ou imaginárias) que os outros têm a estes movimentos”, (Becker, H. S. 1997, p. 109) .na linguagem de George Herbert Mead. A forma e o conteúdo das representações ganham sentido quando reunidas num corpo“[...] organizacional, como maneiras que as pessoas usam para contar o que pensam que sabem, para outras pessoas que querem sabê-lo, como atividades organizadas moldadas pelo esforço conjunto de todas as pessoas envolvidas”. (Becker, H. S. 1997, p. 137)

Por essa perspectiva, as representações influenciam, de forma vital, a ação social dos indivíduos e dos grupos. Poderíamos ainda dizer que elas são uma construção social. Por essa razão, podem ser alteradas a qualquer momento, em função de convicções e relações estabelecidas. As análises de textos de cunho biográfico, autobiográfico, de histórias de vida e narrativas estudam formas de atividades representacionais do agir comum, que revelam e também escondem padrões comportamentais movidos por ideologias, concepções, convicções e crenças.

Quando elaboradas com o necessário cuidado e rigor científico, procuram abranger todo a rede de acontecimentos, estabelecer as conexões com os documentos oficiais e os materiais fornecidos pela personagem em foco e pelas pessoas com ela familiarizadas, os acontecimentos e lugares descritos, tais como fotos e vestígios. Uma vez documentada, a história de vida pode se tornar útil como pedra de toque teórica e abrir caminhos para aproximação do real e da verdade, tanto quanto para uma visão do lado subjetivo de personagens, instituições e processos de socialização.

Na história de vida, uma questão-chave para percebermos as mudanças de representações do indivíduo é a noção de resistência. É uma das manifestações do indivíduo que reage diante dos ordenamentos jurídicos, das regras, normas e costumes religiosos e civis. Ela consiste de uma tarefa que poderia ser“[...] não descobrir o que somos, mas recusar o que somos [...] imaginar e construir o que poderíamos ser [...] para promover novas formas de subjetividade”. Foucalt,M.,1995, p. 107). Diríamos, ainda, que a resistência produz, também, várias formas de aprendizagem.

Nesse contexto, a religião é também expressão da vida e ajuda a descobrir que mais do que filosofar é preciso viver. A convicção religiosa pulsiona as pessoas a um agir preso a uma certa moral, enquanto conduta. Os rituais religiosos traduzem um certo sentido para o existir humano, mesmo quando penetrados pela fantasia ou pelo mágico. (Bastide R. 1990, p. 41). A força da religião está na experiência de fé dos indivíduos. O encontro com Deus produz, em cada ser, representações que mudam o indivíduo e seu cotidiano.

A análise da história de vida levanta questões sobre a natureza das experiências de uma pessoa em processo de subjetivação/objetivação. A história de vida de José Joaquim reúne elementos que permitem compreender e avaliar o impacto da religião na construção de um tecido social. Uma discussão sobre este tema já se encontra nos clássicos da sociologia, Durkheim, Weber e Marx. Tomada com o sabor de um estudo de caso, quer ser observada como fonte de respostas às questões que desperta ou se propõe, sem a expectativa de fechar interrogações.

Nas práticas pedagógicas religiosas, a ressignificação das representações do fazer pedagógico do educador/catequista pode ajudá-lo a recuperar o desejo de saber ver, saber esperar, saber conversar, saber abraçar (Mariotti: 2000).

 

O impacto da religião na construção das representações

Para responder aos nossos objetivos e hipóteses, e continuar esta reflexão sobre o impacto religioso na construção do tecido social, do conhecimento e do processo de aprendizagem, apresentamos nossa personagem.

José Joaquim (1908-1983) nasceu em Trás-os Montes, Portugal. Emigrou com os pais para o Brasil, em 1913, aos oito anos de idade. Viveu no interior de São Paulo e, depois, num bairro da capital. Aprendeu a ler numa escola do interior e desenvolveu seus conhecimentos a partir de duas fontes, um manual de Geografia e uma Bíblia protestante, tradução de João Ferreira de Almeida.

Cresceu sob a rigidez da disciplina e do trabalho, imposta para garantir condições de sobrevivência restritas ao essencial. Ainda criança, trabalhou numa fazenda de café. Depois, foi balconista numa farmácia e fundidor numa ferrovia. Viu crescer em si um grande vazio, quando Jerônimo José, seu pai, abandonou o lar pressionado pelo ciúme da esposa, Ermelinda Augusta. Após uma formação autodidata, submeteu-se às provas necessárias e recebeu o reconhecimento dos órgãos oficiais que o credenciaram para o magistério.

De uma ou de outra forma, o motivo condutor de sua vida era sintetizado, por ele mesmo, na idéia de Cristo Mestre, único e sumo bem. Nada melhor do que deixá-lo falar de si.

“Eu desejava entender por que, quando adulto, gostava de me embrenhar pelo mato e ficar horas e horas rezando. Num dos meus passeios ao pico do Jaraguá, lembrei-me de que me consagrei a Deus por volta dos dezesseis anos. Foi num desses dias de lida com o café, que tive a inspiração de entregar a Deus a minha vida inteira, de nunca me casar, para ser só de Deus. Como a alma dos Cânticos encontra no campo seu esposo, meu ser recebeu entre as árvores da plantação de café a revelação daquele que seria o grande, único e sumo bem de minha vida. Quem sabe nasceu aí o meu encanto pelos cafeeiros. Foi assim que, por volta de 1924, comecei a dedicar-me de um modo particular ao serviço de Deus.

Antes disso, já tomava a iniciativa de afastar-me da companhia dos meninos de minha idade para entrar na capela da fazenda e me entregar à oração, espontaneamente, sem orientação de ninguém. Eu sentia que devia fazer isso. Algumas vezes se rezava o terço nas casas e éramos convidados. Eu prestava atenção em tudo, e não entendia muita coisa; mesmo assim, mantinha a atenção e o espírito de fé às orações que eram feitas, especialmente ao terço. Também em criança, quando minha mãe me fazia rezar o Credo, o Pai Nosso e a Ave Maria, eu não entendia nada, mas tenho lembrança de que se passava em mim um sentimento de respeito. Acabado o terço, havia uma comemoração, um cafezinho ou outras bebidas e eu me sentia impelido a retirar-me daquilo, não participava, talvez por causa da minha timidez.

Deus estava sempre em minha busca e eu em busca dele. Em cada acontecimento e manifestação da natureza, era como se ele estivesse falando comigo. Como a sarça se incendiou no encontro de Moisés com Deus, Deus falava comigo por meio de sinais. Alguns desses sinais, só entendi muito mais tarde. Outros continuam um mistério, e outros, que eu acreditava ter compreendido, um dia percebi que estava errado. Mas Deus, misericordioso, acolhe os nossos esforços, mesmo que não cheguemos a cumprir plenamente sua vontade.” (Souza Neto, J. C. e Schramm, Y., 2005, p. 36).

O que se observa nesse depoimento é que a representação religiosa de José Joaquim era sua própria casa, ou seja, podemos dizer que ela era o pastor do seu ser. Cuidava dele. Sem essa representação, ele estaria em pleno vazio. Muitas vezes, a experiência do abandono leva a pessoa a uma angústia tão profunda que, sem nada para substituir essa falta, ela não tem como se encontrar. Isto produz uma espécie de bloqueio do processo de assimilação do real e de si mesmo. A apropriação que José Joaquim faz da religião a favor de sua vida e de seus companheiros coloca sua prática religiosa numa dinâmica emancipadora.

O ideal religioso evita certos procedimentos, como as paixões desenfreadas, a preguiça, o desânimo e o desencantamento, e o impulsiona para a construção do conhecimento. As fraquezas humanas ganham sentidos positivos. A realidade e seu desejo de transformar o mundo para Deus mobilizam sua vida e acabam por ajudá-lo a aproveitar todas as oportunidades que encontra ao seu redor.

“À medida que se ampliava meu contato com a natureza, as pessoas e Deus, mais aumentava o meu desejo de me aprofundar nos conhecimentos bíblicos e vivê-los. Adquiri uma sede insaciável de esclarecimento religioso. Às vezes, encontrava um padre, um professor ou uma freira e começava a lhes fazer muitas perguntas para esclarecer minha fé. Também passei a perseguir a estrada das virtudes, principalmente das virtudes teologais. É verdade que eu não tinha clareza da fé, da esperança e da caridade, mas existia em mim uma grande intuição sobre elas.

projeto de Deus em minha vida não foi dado, e sim construído. A cada lance da história, ele ia sendo feito e tecido. Acredito que exista aí até uma certa semelhança com a vida dos profetas. Também para eles, a vocação não foi totalmente dada, mas construída junto com Deus. Quando damos nossa resposta a Deus, temos um presságio do que poderá acontecer, mas geralmente as coisas não ocorrem do modo como imaginamos. Na verdade, na hora de responder a Deus, o que existe é mais um conjunto de possibilidades de uma determinada condição do que uma outra coisa. Mas essa resposta é capaz de dar um direcionamento a nossa vida. É um ponto de partida que contém todo o nosso empolgamento. É algo extraordinário, mas que precisa ser construído e ganhar um sentido a partir da fé.

Sonhos, anseios e sentimentos religiosos povoavam minha imaginação adolescente. Eles viriam a ser o centro, a base, o alicerce de minha vida e dos meus relacionamentos futuros. Começava a ganhar contornos o propósito de toda a minha vida. O que me lembro é que, entre milhares de cafeeiros, envolvido no trabalho cotidiano, meu desejo era ser tão puro de corpo e alma, a ponto de esquecer que possuía um corpo e uma alma. Passei a sonhar com realidades que estivam acima de tudo que fosse terreno e mundano, além dos pensamentos e sentimentos, além das estrelas que piscavam naquelas noites sertanejas.” (Souza Neto, J. C. e Schramm, Y., 2005, pp. 36-37).

O conjunto da narrativa mostra que a fonte do sentido existencial para José Joaquim está numa cosmovisão religiosa. A experiência religiosa ecoa em todas as suas atitudes e diálogos. Seus próprios sonhos e estratégias de enfrentamento das adversidades estão impregnados de representações e convicções religiosas. São concepções e ações concretas de uma identidade que se constrói numa caminhada de fé, como alguém que se coloca, enquanto sujeito, no centro de uma estratégia de libertação orientada por uma perspectiva religiosa de presença e atuação.

Sua narrativa é fundada num discurso que leva em conta Deus, a realidade humana, os seres humanos, o próprio indivíduo e a comunidade, que não escapa e nem se desvia de suas convicções. Ao mesmo tempo, suas convicções não são produto de um espírito estático, mas dinâmico, a tal ponto que ele se embrenha em diferentes saberes, mesmo que seja com a finalidade de explicitar as razões de sua esperança.

Para José Joaquim, a vida se concebe e ganha sentido somente pelo referencial de um bem transcendente, belo e amável, que extrapola todos os limites e a finitude da existência individual, todas as suas formas visíveis e concretas. Desejo, sentido e motivação de vida, presença e atuação têm razão de ser unicamente porque se tornam história e cotidiano, ligados à fonte de um Deus transcendente, mas imanente na existência e na trajetória do universo e do ser humano.

Trata-se da capacidade de se manter o mais perto possível do infinito, tal como ele o entende, e do finito, para torná-lo expressão do sumamente transcendente. Essa concepção não se refere a um domínio naturalista, nem a um princípio animista ou espontaneísta. A matéria-prima de sua concepção se fundamenta na fé, na revelação bíblica, no auxílio permanente do Espírito Santo e nas orientações da comunidade de fé, produtoras de sentido para tudo e para todas as coisas.

Quando diz que a vida tem três fases, a fase do estético, a da ética e a do religioso, Kierkegaard (1813-1855) nos ajuda a explicitar a perspectiva de José Joaquim. Uma fase aperfeiçoa a outra, e a religiosa é a mais completa. “A fé tudo suplanta. Ela está acima dos princípios da razão e da moral. A religião reina soberana sobre a ética. Só a fé pode resolver a única questão que se apresenta ao homem: a do mal. Ao indivíduo resta apenas escolher, decidir o que deverá fazer ou ser, sendo-lhe impossível fugir à liberdade dessa escolha.” (Penha,J., 1998, p.19).

Poderíamos dizer que fé, racionalidade e realidade são o tripé do processo de seu aprendizado e de sua forma de construir o conhecimento. Isto, a nosso ver, é importante, porque é um modo de evitar que as representações religiosas conduzam à barbárie. Nos depoimentos de José Joaquim, percebemos que a razão tem um papel fundamental, mas como guia. O que importa destacar é que sua fé não é irracional, é uma experiência ou uma vivência que produz conhecimento. Nesse sentido, ela não é soberana, mas orientadora, no processo de aprendizagem e na construção do conhecimento.

A sociedade brasileira do período em que viveu era marcada por transformações profundas e velozes, nos campos da política, da economia, da cultura, da religião, da educação e da tecnologia. Essas mudanças geraram uma classe dominante forte e suscitaram vários movimentos sociais reivindicatórios. À medida que se envolvia com o processo de aprendizagem e de construção do conhecimento, José Joaquim descobria que o analfabetismo e a ignorância religiosa prevaleciam nas diferentes relações.

Para transformar essa situação, fundou o Instituto Educacional São José e o Instituto Catequético Secular São José, instituições cuja finalidade era formar e orientar as comunidades para a redução das violações de direitos nos campos educacional e religioso, e das práticas de violência. As estratégias escolhidas foram a conscientização, a instrução catequética e a mobilização comunitária, ligada à religião, à ética, ao conhecimento racional e ao compromisso com a solidariedade e o coletivo.

Não há dúvida quanto ao fato de que sua vida e obra sofreram a influência do sistema religioso e cultural português. Mas sua infância pobre, o trabalho nas plantações de café e o sonho de ser educador marcaram profundamente sua visão social e humana. Como imigrante ou sujeito cultural em trânsito, pôde ocupar um lugar especial de observação e de assimilação dos costumes. Pertencer a duas culturas propiciou-lhe uma visão maior da realidade do que apenas o universo cultural em que veio se inserir e viver.

 

Representações religiosas, trabalho e aprendizagem

A visão de José Joaquim tem uma marca profunda na idéia de justiça, no desejo de transformar o mundo na Nova Jerusalém. Analisar sua vida, por meio de suas práticas, leva a perceber um tal poder de contemplação que dá a entender que estava próximo de tocar na Nova Jerusalém e de fazê-lo no seu cotidiano. Cada esquina, cada organização, cada manifestação humana deveria, na sua cosmovisão, ser manifestação do Reino de Deus presente no mundo, num misto da cidade dos homens e cidade de Deus.

Dentro do seu universo religioso, ele buscou, com profundidade, viver a humanidade tal como a contemplava na pessoa de Jesus. Em sua vida, o humano e o divino se interpenetravam. Às vezes, já não sabia quem era quem, num misto de homo demens e de homo sapiens. Talvez possamos compreender melhor a idéia de justiça presente na cosmovisão de José Joaquim, a partir de uma perspectiva de Certeau.

“A experiência individual e coletiva é definida por [...] uma organicidade que nasce, signo pessoal e coletivo de uma novidade do Espírito [...] A vida em espírito [...], o regime de Pentecostes que define a Igreja, atesta também a presença designada e vivida em relações fraternais e não apenas a submissão a um mestre.” (Josgrilberg, F. B. 2005, p. 41).

Seu modo de ser e de viver atingia as pessoas que conviviam com ele ou que participavam do seuhabitat, nas organizações, nas comunidades, nos locais de trabalho. O mundo do trabalho era um espaço privilegiado do processo de aprendizagem e, ao mesmo tempo, de realização de sua missão de ensinar e orientar. Sua práxis religiosa desfetichizava os espaços “sagrado” e “profano”, pois em ambos Deus está presente. É o Deus onisciente e onipresente. O vivido no seu cotidiano contribuía para a redução da violência e da exploração do trabalhador. José Joaquim não propunha apenas uma transformação das estruturas sociais, mas também uma mudança ética individual e social.

Acreditamos ser esse o antídoto contra as práticas de corrupção e de violação de direitos. Para nossa personagem, todo ser humano é templo do Espírito Santo, é a morada de Deus. Qualquer atentado contra o ser humano é contra o próprio Deus. Poderíamos afirmar que aqui se encontram as bases para a cidadania ou, melhor ainda, a contribuição da experiência católica para a construção da democracia e da cidadania, uma vez que a visão de justiça presente na doutrina católica e nos evangelhos é mais ampla do que a que está presente nas leis. Entretanto, segundo José Joaquim, o testemunho do cristão repercute não só nas relações pessoais, como também no ordenamento jurídico.

“Arrumei trabalho na seção de caldeiraria das oficinas da SPR, na Lapa. Foi lá que trabalhei até 1943. Minha mãe também controlava uma passagem de nível da ferrovia, em Vila Anastácio, e ali nos instalamos num vagão de trem.

Numa São Paulo agitada por constantes movimentos por melhores condições de trabalho e de vida, os operários se reuniam à hora do almoço, para discutir direitos trabalhistas. No que diz respeito à religião, a confusão era muito grande. Os protestantes faziam proselitismo, para aumentar o número de adeptos; a doutrina espírita kardecista se confundia com o Evangelho; o sincretismo religioso era camuflado pelas devoções aos santos. Isto tudo, sem falar no aumento do secularismo e do ateísmo.

Eu observava a superficialidade e a ignorância dos batizados sobre Deus e a doutrina da Igreja. Essa situação tornava mais difícil aos católicos a vivência do batismo. Sem o necessário conhecimento, eles acabavam na prática do sincretismo e da superstição, mais do que dos ensinamentos do Mestre e do Magistério da Igreja. Eu via nesses fatos um apelo de Deus e um clamor do mundo. Sentia que o Evangelho devia ser anunciado e explicado para todos, de forma a exigir a conversão e vida, e numa linha profética, para ajudar a avaliar a vida e levar à mudança de comportamento.

Na caldeiraria, eu me preocupava com a evangelização, com o melhor lugar e a melhor forma para anunciar Jesus Cristo. Minha idéia era de que o melhor espaço para isso não estava nas igrejas, mas ali mesmo. Aos poucos, comecei a explicar aos companheiros de trabalho que os direitos que eles reivindicavam já estavam organizados na Palavra de Deus. Passei a convidá-los para que se conscientizassem de sua fé e começamos a estudar religião, uma vez por semana. Eu almoçava em dez minutos e me reunia com alguns colegas num vagão de trem, para refletirmos sobre a Palavra de Deus.

Havia sempre alguns que eram contrários e procuravam me provocar, para que eu desistisse. Um dos chefes, sempre que estávamos reunidos, aparecia na porta do vagão e gritava: ‘Porca la madona!’ Com toda calma, eu lhe explicava que essas palavras eram uma blasfêmia contra Nossa Senhora. E aproveitava para orientar o grupo. Mas, seja por brincadeira, seja ou provocação, talvez até para se comunicar, ele gostava de repetir semanalmente esse mesmo gesto e palavras.

Um dos pintores das máquinas, que se tornou um dos membros do meu grupo de catequese, de vez em quando comentava algumas coisas do tempo de evangelização na oficina. Ele achava “fora de série”, quando alguém pegava um prego do chão da oficina para levar para casa, e eu lhe dizia que esse objeto não lhe pertencia, tanto fazia ser algo grande ou pequeno, não devíamos pegar o que não era nosso. Esse é só um entre muitos exemplos. O interessante é que alguns colegas de trabalho me respeitavam e passaram a se comportar de acordo com minhas orientações. Ganhei até o apelido de Zé Padre.

Alguém poderá considerar uma alienação essa forma de orientar operários. Eu diria que é uma postura ética. Assim como devemos lutar pelos nossos direitos, também não podemos pegar o que não é nosso. Não justifica a corrupção o fato de não termos nossos direitos respeitados. O Evangelho nos permite criar uma cultura do direito e expurga as práticas de corrupção. O homem público e o trabalhador devem viver do seu salário e lutar para conquistar o bem comum e a melhoria da qualidade de vida.

Na fundição, eu exercia grande influência. O número de companheiros que freqüentavam minhas reuniões de formação, apesar de pequeno, era bom e freqüente. Aí preparei muitas pessoas para a primeira Eucaristia. Outras, embora não se tenham convertido, tornaram-se melhores. E muitos, que insultavam a religião, passaram a respeitá-la. De fato, começou a se criar uma mentalidade diferente sobre religião e vida. Devagar, eu também me compenetrava de que os relacionamentos, pessoais, sociais, religiosos e profissionais, quando bem aproveitados, podem ajudar a realizar um excelente apostolado.” (Souza Neto, J. C. e Schramm, Y., 2005, pp. 342-43).

O espaço de trabalho de José Joaquim se convertia num centro de formação evangelizadora, um pouco no sentido bíblico do espírito paulino de anunciar o evangelho em todos os cantos do mundo. Entende nosso protagonista que deve anunciar o evangelho no seu local de trabalho, porque é nesse espaço que a vida acontece de forma especial. As

“[...] tradições clássicas da sociologia burguesa e da sociologia marxista compartilham a visão de que o trabalho constitui o fato sociológico fundamental; constroem a sociedade moderna e sua dinâmica central como uma ‘sociedade do trabalho’. [...] o modelo de uma sociedade burguesa gananciosa, preocupada com o trabalho, movida por sua racionalidade e abalada pelos conflitos trabalhistas constitui &– não obstante suas diferentes abordagens metodológicas e conclusões teóricas &– o ponto focal das contribuições de Marx, Weber e Durkheim”. Offe, C. (1988, p. 30)

O trabalho humano, para os clássicos da sociologia, é a chave da organização da sociedade. Nesse sentido, José Joaquim procurava atuar no coração da sociedade. Isso porque sabia que a partir do mundo do trabalho poderia atingir a todos. A importância do trabalho na realização humana, destacada por Weber, em aÉtica protestante e o espírito do capitalismo, é matéria de vários documentos eclesiásticos, como a encíclica Laborem exercens &– O trabalho humano, de João Paulo II, na esteira daRerum novarum, de Leão XIII. O trabalho, não é apenas fonte de exploração, mas um instrumento de realização pessoal e social, que faz do homem co-criador. José Joaquim buscava dar um sentido novo para o trabalho e, a partir dele, simultaneamente, construir uma noção de ética, fundada na religião.

Humanizar o trabalho e suas relações significa humanizar as pessoas e o mundo. Um educador/catequista apaixonado pelo mundo e encantado com Deus não teria outra saída a não ser educar e orientar os trabalhadores para a cidadania. Aqui, não se trata de um conceito piegas, de um conteúdo que fortaleça relações de alienação, mas de uma reflexão que assume uma perspectiva emancipadora.

As práticas de solidariedade abrem caminho para impedir a barbárie e implantar a paz. Elas ajudam a resistir às diferentes manifestações de crueldade presentes no mundo.“Somos verdadeiramente cidadãos, dissemos, quando nos sentimos solidários e responsáveis, [...] sentimento matripatriótico que deveria ser cultivado de modo concêntrico sobre o país, o continente e o planeta.” (Morin, E., 2000, p. 74) O testemunho pedagógico de José Joaquim nos ajuda a acreditar que o amor é o remédio para a angústia e a resposta ao sofrimento humano.“Ame para viver e viva para amar. Ame o frágil e o perecível, pois o mais precioso, o melhor, inclusive a consciência, a beleza, a alma, são frágeis e perecíveis.” (Morin, E. , 2005, p. 202)

As dimensões do amor, da ética e da fé ajudam a humanidade a aprender a lidar com o sofrimento e com a dinâmica do trabalho, num mundo de certezas e incertezas. O testemunho nos diferentes territórios, na família, na política, na cultura, no trabalho, é próprio do educador/catequista. Mas este deve cuidar para não ceder à tentação de reduzir suas ações e seu processo de aprendizagem a uma racionalidade instrumental ou burocrática, descomprometida com a vida.

A sociologia brasileira coloca como dilema a compreensão do homem comum.( Martins, J.S.,2000, p. 11). José Joaquim é um desses homens simples, tocados pela justiça, que vive numa realidade de injustiça. Deseja profundamente compreender a vida e transformá-la em experiências de justiça, assumir o destino em suas mãos e escapar das armadilhas que desviam a humanidade de sua vocação verdadeira. Seu fazer pedagógico e seu processo de aprendizagem nos questiona o tempo todo sobre como formar o homem novo pela perspectiva do Novo Testamento e como combater o homem velho, que alimenta a corrupção e a exploração.

Dentro do contexto de miserabilidade e de exploração, como viver a autenticidade humana e realizar o sonho de um dia todos os seres humanos serem respeitados em sua dignidade, num mundo em que falamos e imitamos muito, e pouco testemunhamos? Quantas vezes as palavras e a linguagem não correm pelo vazio, sem encontrar pontos efetivos para tomar forma. Vejamos a situação brasileira. O político que ganha espaço e avança é aquele que sabe fabricar a melhor imagem de si, sem importar o que faz ou tenha feito. É o máximo de um mundo virtual e fantasioso, que consegue se alimentar de aparência e do falseamento dos dados. Até alguns movimentos religiosos já incorporaram esse mecanismo. Desviam as doações do povo, enganam os fiéis e se apresentam como verdadeiros seguidores de Jesus. Até parece que acreditam nisso.

É importante destacar que a atividade laboral é uma das formas de influenciar a formação da consciência e o processo de aprendizagem do indivíduo. Talvez seja nesse sentido que Marx acreditasse que, para se libertar, o trabalhador precisava libertar-se da exploração do trabalho. José Joaquim acreditava que, para mudar a sociedade, era necessário existir um laicato e uma classe trabalhadora fortes, que pudessem reivindicar e propor novos direitos. Com isso, seria possível erradicar as diferentes formas de injustiça e exploração.

Talvez estejam aí a aproximação e o distanciamento dos construtos sociológicos. Enquanto o forte do processo de transformação marxista está na economia, José Joaquim vê a economia como um meio e não como um fim, deslocando para a religião o motor das transformações individuais e sociais. A essência das mudanças está na conversão. Se existe alguém que explora e que produz a miséria, é porque não entendeu as leis da natureza e de Deus. Os desrespeitos e desequilíbrios contra a natureza, o indivíduo e a sociedade repercutem na humanidade como um todo. Não se pode aceitar que uns tenham tanto e outros nada tenham.

 

Representações religiosas e o processo de intervenção

A presença cristã é um modo de ler, escutar e compreender a realidade social à luz do Evangelho e, ao mesmo tempo, de ajudar os políticos e responsáveis a encontrarem soluções para as questões sociais, dentro de uma ética evangélica. Esse espírito comandava José Joaquim e era a base de suas representações. Se na empresa dava testemunho de Jesus e da Igreja, seu ardor missionário levava-o a formar comunidades, como descreve em seus depoimentos. Depois do dia de trabalho na oficina e, mais tarde, na escola, não deixava de atuar na comunidade de fé.

“Durante a semana, ocupava as noites de segunda-feira com aulas de religião para adultos, com cerca de 25 homens e 30 senhoras e moças; as noites de quinta-feira com o catecismo de perseverança para jovens de ambos os sexos, geralmente com uma média de 35 rapazes e 50 moças; as noites de sexta-feira com Via-Sacra para o povo em geral, e as tardes de sábado e domingo com catequese para crianças, num total de 30 meninos e 60 meninas.

Nos segundos, quartos e quintos domingos do mês, formava as catequistas, em número de dez. As aulas, em geral, constavam de cânticos e orações iniciais e finais, verificação do aprendizado, instrução, leitura espiritual e conselhos práticos. Sempre fiz questão de que houvesse algum material e ser estudado, principalmente de doutrina cristã, e de verificar a assimilação dos conteúdos.

Durante o mês de Maria, havia reza com oferta de flores e cânticos, levada a efeito pela seção feminina do catecismo de perseverança, com uniforme branco e uma fita estreita azul com a medalha de Nossa Senhora Aparecida. Constava de orações preparatórias, terço, ladainha cantada, orações finais e, sempre que possível, explicação de um ponto de doutrina ou uma leitura espiritual comentada, seguida de conselhos práticos e cânticos. No mês do Coração de Jesus, além das orações preparatórias, havia a coroinha do Sagrado Coração de Jesus, ladainha cantada e meditação, e, às vezes, explicação doutrinal. Um sacerdote fazia o encerramento do mês de Maria e do mês de junho. Com a organização desses diferentes grupos, os jovens e adultos que não freqüentavam a Capela passaram a zombar de mim.

Os jovens e adultos que não freqüentavam a Capela, ao verem a organização desses diferentes grupos, passaram a zombar de mim. Alguns rapazes me agrediam com pedradas pelas costas, desaforos e escárnios. Até no rosto me chegaram a cuspir. Meu sofrimento aumentava muito mais, por causa da timidez e dos escrúpulos que ainda não tinham desaparecido totalmente. Devagar e com muita paciência, fui vencendo os obstáculos que não eram poucos. Para enfrentar os desafios, muitas vezes me ajoelhei aos pés deles e lhes disse: -

‘Se vocês quiserem, podem me matar, mas não ofendam a Jesus, que Ele perdoa tudo que vocês fazem, pois não é a mim que ofendem. Jesus também sofreu, bateram-lhe, escarraram-lhe no rosto e tantos outros sofrimentos ele por nós passou. E eu também devo passar, pois sou sua imagem e semelhança. Para merecer a coroa da vida eterna, assim devo proceder’.” (Souza Neto, J. C. e Schramm, Y., 2005, pp. 53-54).

Na sua prática, poderíamos dizer que há o desenho de uma espiritualidade do conflito. Apesar das adversidades da vida e da pastoral, não se deixou vencer, porque sua fé era mais forte do que tudo. A representação de Deus e da Igreja, na ação missionária, fornecia-lhe os elementos para a superação de todas as dificuldades. Jesus Cristo não poderia ser desconhecido, ofendido, negado ou traído. Seria melhor morrer, do que viver sem ele. Ai daquele que conhecesse Jesus e não anunciasse a palavra de Deus. Essa é uma condição do batizado. Não há canseira, sofrimento ou doença que impeçam aquele que acredita de anunciar.

Autores como Habermas e Morin entendem que os pequenos trabalhos comunitários ajudam a combater s violência. Talvez o maior aprendizado humano esteja em saber conviver em grupo. Este ganho é maior do que todas as outras formas de aprendizagem. É o ser humano aprendendo a respeitar o outro e, ao mesmo tempo, a partilhar suas angústias, decepções, frustrações, esperanças, sonhos, alegrias e conquistas, sem, com isso, precisar humilhar nem destruir o outro. A vida em comunidade ajuda cada indivíduo a construir sua identidade e aprender a viver a experiência de ser-para-o-mundo, para-a-vida e para-a-morte. Isso significa realizar projetos.

“As únicas resistências residem nas forças de cooperação, de comunicação, de compreensão, de amizade, de comunidade e de amor, na condição de serem acompanhadas pela perspicácia e pela inteligência, cuja ausência se arrisca a favorecer as forças da crueldade. Aquelas são sempre mais fracas, mas é graças a elas que existem sociedade onde é possível viver, famílias que amam, amizades, amores, dedicações, caridade, compaixão, impulsos do c oração, e que, por entre solavancos e desordem, o mundo avança sem submergir total ou permanente na barbárie.” Morin,E., 1995, p. 232).

À medida que testemunhava sua fé, José Joaquim fazia repercutir o espírito evangélico nos sindicatos, nos órgãos públicos e nas organizações não-governamentais. Quando orientava os trabalhadores, destacava seus direitos, a idéia de direitos humanos, presente na doutrina social da Igreja. Sua vida demonstrava a importância das pequenas práticas de justiça e de solidariedade como estratégia de superação do mal-estar individual e social. No decorrer do século XX, enquanto a sociedade parecia à deriva e as instituições tradicionais, Igreja, família e escola, pareciam não já não responder às demandas sociais, José Joaquim empenhava-se para ler e interpretar as mudanças de valores e condutas pela ótica da religião.

Por esse olhar, contribuía para criar um tecido social pautado na cooperação, na amizade, na solidariedade e na comunicação, a partir da convivência de pequenos grupos em torno da religião. Foi a melhor forma que ele encontrou para amortecer as conseqüências das injustiças sociais. Depois de ter trabalhado no campo, como bóia-fria, morou durante muitos anos num vagão de trem, com a mãe e os irmãos. A partir do esforço pessoal, com trabalho, economia e estudo pesado, conseguiu o diploma de professor, adquiriu uma boa casa e uma pequena escola, que chegou a ser considerada a melhor do local.

Talvez por essas experiências, acreditava que a educação era um valor e uma política essencial para alterar a vida das pessoas. Assim como vários pensadores, entendia que a educação era um meio de ascensão social. Só que acrescentava que este não seria apenas um beneficio pessoal; deveria também influenciar os espaços sociais. As mudanças profundas e verdadeiras da sociedade, do indivíduo e da ação social vêm da adesão ao Reino de Deus, anunciado no Evangelho, e seus conflitos são decorrentes da falta de Deus. Todos os males individuais e sociais têm origem na ruptura de uma relação amorosa e harmoniosa com o Criador e seu Filho Salvador.

Lembramos que Durkheim acreditava que a idéia de Deus ajuda a sociedade no processo de coesão social. A religião produz no indivíduo uma certa moralidade que evita a criminalidade. O indivíduo é produto de uma socialização numa comunidade que se reúne para o seguimento de Cristo. Daí a necessidade de autenticidade, de identidade do sujeito como afirmação de si numa comunidade.

Esse dinamismo levou José Joaquim a estabelecer uma rede de serviços, constituída por núcleos de formação humana e cristã, com uma certa identidade coletiva, uma certa veneração e valorização de símbolos e empenho na continuidade do grupo. Uma identidade caracterizada por meio de interações e procedimentos, configurada estrutural, funcional e territorialmente, com a possibilidade de se expandir do local ao global. Como resultado dessa concepção, fundou várias comunidades que, com o passar do tempo se transformaram em paróquias.

Também fundou um Instituto de leigos com a missão de catequizar. Foi membro ativo da Ordem Terceira de São Francisco de Assis. Sem qualquer dúvida, quem conheceu as periferias de São Paulo em que ele atuou pode dizer que contribuiu para a formação de um processo civilizatório como antídoto à barbárie. Conseguiu atrair a juventude e impregnou a vida dessa população com uma ética evangélica. Por meio dela, modificou o tecido social, repercutindo até na formulação de políticas sociais.

Suas convicções religiosas, traduzidas num conjunto de representações, o impulsionaram a construir uma rede de solidariedade que tivesse por finalidade a formação religiosa dos indivíduos, para consolidar um processo civilizatório, pela perspectiva daquilo que Paulo VI denominou de civilização do amor. Os grupos, comunidades e a Instituição que fundou se originaram a partir de suas concepções e atividades, segundo a lógica do Reino de Deus, que deve impregnar todo o sistema social. Deste modo, o paradigma de ação social não é determinado somente por um sistema racional, mas também vem carregado da convicção do indivíduo. No caso de nosso protagonista, por uma convicção religiosa.

José Joaquim se esforça por difundir sua fé e, com isso, agrega uma coletividade empenhada em construir uma sociedade cujo sentido de vida venha à luz a partir de crenças e práticas comuns, em meio à diversidade. Esta construção da experiência coletiva visa agregar indivíduos em torno de um projeto comum. Este modo de construir o mundo é tanto de ordem subjetiva, enquanto representação individual e coletiva do vivido, quanto ganha objetivação e racionalidade por se fazer acompanhar de uma construção crítica do real, um trabalho reflexivo dos indivíduos que julgam sua experiência e a redefinem.

No final de sua vida, deixou uma orientação:

“O conselho que deixo aos meus amigos é de se lançarem com toda confiança nos braços de Jesus Cristo, com toda a fé e com toda a certeza de que hão de ficar renovados. E de todos o que desejo é que sejam fiéis, como eu fui fiel. Espero e conto que façam isso, sem vacilar. Que aquele que estiver mais animado anime o desanimado. Se somente queremos o bem das pessoas, até dos adversários, quanto mais, com maior razão, devemos querer o bem dos amigos. Se o Senhor manda amar os inimigos, com mais razão devemos amar os amigos.

É preciso buscar relacionamentos humanos, mesmo com dificuldades, partilhar alegrias e tristezas, aceitar a própria realidade e a realidade dos outros, manter o diálogo, ter paciência e calma, ver os erros com amor. Quem tem caridade tudo suporta. Tenha coragem para que lhe digam as próprias faltas, saiba aceitá-las e analisá-las. A confiança em si mesmo e nos outros ajuda a pessoa a aceitar-se, com todas as suas limitações, e a aceitar ou a suportar os outros com as falhas que possam ter. É bem verdade que Jesus é o único que pode satisfazer todos os nossos anseios. Ele é o único em quem podemos confiar plenamente e a quem podemos nos entregar sem reserva alguma. Deus é o nosso tudo, o infinito, o único, diante do qual somos nada, o infinitamente nada. Mesmo assim, ele teve um João e a família de Lázaro em quem procurou confiar e amar. Nem por isso deixou de viver unido o mais intimamente ao Pai. Eis aí o que também devemos fazer.

Na compreensão profunda, na união da amizade em atos de adoração ao Pai celeste, está a felicidade. O que o Pai celeste une, ele não separa, porque não corrige o que faz. E nem pode. Alegro-me de poder escrever estas coisas. Nunca pude esquecer a amizade sincera de quem me quis bem. Jamais de minha parte isto aconteceu, e assim permaneci até o fim. Quanto a mim, procuro submergir na imensidade do Senhor, mergulhar na infinitude de seu ser, apagar-me na eternidade de sua existência.” (Souza Neto, J. C. e Schramm, Y., 2005, pp. 132-133).

Ao retomar a história de José Joaquim, apesar de tudo que ela possa conter de semelhante a tantas outras, buscamos evidenciar o eixo condutor de sua vida. Sua trajetória foi alimentada pela religião e pelo ideal de melhorar a Igreja e a sociedade. Nessa andança, muitas vezes sentiu-se incompreendido e teve que encarar o dilema de decidir se não era nele que se encontrava a incapacidade de compreender o que se passava em sua vida. Como novo D. Quixote, caminhou alimentado pelo sonho, o “cavaleiro da triste figura, em guarda contra moinhos de vento”. Fascinado pela Igreja, diríamos que ela foi sua “amada Dulcinéia de Toboso”, na qual sempre esperou encontrar toda beleza e perfeição, mas que nem sempre o reconhecia. Assim, buscava a Igreja que amava e não conseguia perceber e entender algumas das fragilidades de sua face visível.

No jogo da vida, foi, muitas vezes, como uma das peças de um tabuleiro. Um xadrez de 64 casas, sobre o qual estão um rei, uma rainha, duas torres, dois bispos, dois cavalos e oito peões, para cada um de dois parceiros que desejam vencer. E seu coração “sangrava e se fazia em pedaços”, segundo suas palavras, ao resvalar pelo terreno pantanoso do conjunto de regras, perdas e ganhos, presentes nas relações humanas. Pelos labirintos da história, se a burocracia engole a amizade e o respeito, pessoas se desfazem e nadificam, morrem os sentimentos, a poesia e a paixão. Esta pode ser uma situação difícil e penosa, reincidente na caminhada das instituições. Na Igreja, por vezes, a tensão que se estabelece entre carisma e poder, batizados e hierarquia, bastante tangível no cotidiano de nosso protagonista, pode até ultrapassar, por vezes, a interdependência entre a sociedade e o Estado.

Mesmo que fosse tratado com dureza, tudo vencia pela força da fé e do amor: “É melhor errar com a Igreja do que acertar sozinho”, repetia sempre. De fato, é a Igreja que garantiu e garante o amor ao Evangelho. Ela não apenas civilizou os bárbaros como também impediu e tem evitado que a humanidade descambe para a barbárie. Mesmo que alguns de seus representantes possam, por vezes, falhar, e se, embebidos por uma certa crença, possam negar ao suspeito a possibilidade de tomar consciência de seus erros e deles se corrigir, em que pesem seus limites históricos, é sempre melhor errar com a Igreja do que acertar sem ela. Suas representações lhe propiciavam elementos para lidar com os conflitos e com as adversidades, sem perder a esperança e a crença no ser humano e num mundo melhor.

Poderíamos terminar a primeira tentativa deste estudo, retomando uma idéia de São João da Cruz de que no espírito permanece“a nuvem obscura de onde vem toda claridade”. Na trajetória de José Joaquim, é da espiritualidade que provém toda a claridade que justifica e dá sentido à vida. Por isso, podemos continuar afirmando que o mistério do espírito humano ganha evidência a partir dos projetos e realizações de cada indivíduo.“O mistério humano está ligado ao mistério da vida e ao mistério do cosmo, pois carregamos em nós a vida e o cosmo.” (Morin,E. 2002, p. 29) A dimensão da aprendizagem deve contribuir para compreendermos o sentido da vida humana e da natureza, e para descobrir nelas a felicidade e o encantamento da existência.

 

Desafios do processo de aprendizagem

O processo de aprendizagem não é mera transmissão de conhecimentos ou de informações. É criar condições interiores profundas que modifiquem a própria existência humana. É encontrar e construir novos sentidos. Viver não significa tão-somente reproduzir conhecimentos e representações. É adquirir a sapiência. É criar a vida a cada dia. A aprendizagem é“[...] transformar informações em conhecimentos e conhecimentos em sapiência”. (Morin,E. 2000, p. 41)

Com base na perspectiva de Morin e da história de vida de José Joaquim, percebe-se que a aprendizagem nunca se pode concluir. Ela é um permanente recomeçar. Isto faz com que o conhecimento não se imobilize nem congele, mas sempre se abra para acolher o novo. A história de vida de José Joaquim nos permite perceber que o sujeito tende a escolher seus projetos e construir sua história em circunstâncias dadas. Apesar de as escolhas serem individuais, nós não estamos sozinhos.

O sujeito é um ser complexo, um comunicador que, ao mesmo tempo, se perde em seus mistérios e se torna incomunicável. Em contrapartida, é esse mesmo mistério que o ajuda a enfrentar a dramaticidade da vida e viver solidariamente. Na trajetória de José Joaquim, três desafios para o processo de aprendizagem vêm à tona. O primeiro é a magnitude do perdão. O segundo é o desejo de perseguir a ética do bem e nela perseverar. O terceiro é a paciência, saber esperar o desabrochar do novo.

 

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Endereço para correspondência
João Clemente de Souza Neto
e-mail: j.clemente@uol.com.br


Yara Schramm
e-mail: yaraschramm@yahoo.com.br

 

 

Notas

1 Artigo apresentado originalmente no IX Congresso Luso-Afro Brasileiro de Ciências Sociais, “Dinâmicas, mudanças e desenvolvimento no Século XXI., realizado em Luanda, Angola, na Universidade Agostinho Neto, em 2006. Nesta publicação, recebeu algumas modificações, para incluir as sugestões feitas pelos colegas
2 Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Educacional no Centro Universitário FIEO Universidade Presbiteriana Mackenzie
3 Graduada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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