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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.4 n.1-2 São Paulo  1993

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Memória humana: aspectos clínicos e modulação por estados afetivos

 

Human memory: clinical aspects and modulation by affective states

 

 

Márcia L. F. Chaves

Departamento de Medicina Interna - Faculdade de Medicina - UFRGS

 

 


RESUMO

Neste artigo apresentam-se as formas de avaliação da memória humana usadas em contextos clínicos (testes de memória imediata, orientação, retenção de novas aquisições, etc.) e consideram-se as questões de validade e confiabilidade, tomando como caso particular o Mini Mental State Examination. Examinam-se também os processos pelos quais a memória é modulada por estados afetivos e as principais alterações da memória, incluindo a síndrome amnésica global, as síndromes parciais, a amnésia no delirium e na demência e a amnésia funcional

Descritores: Memória. Avaliação neuropsicológica. Distúrbios cerebrais. Amnésia. Estados emocionais.


ABSTRACT

Forms of evaluation of human memory used in clinical contexts (tests for immediate memory, orientation, retention of new acquisitions etc.) are presented and their validity and reliability are discussed using the Mini Mental State Examination as an example. The processes by which memory is modulated by affective states is examined, as well as the main alterations of memory - global amnesia syndrome, parcial syndromes, amnesia in delirium and in dementia and funcional amnesia.

Index Terms: Memory. Neuropsychological assessment. Brain disorders. Amnesia. Emotional states.


 

 

Definição de memória

Uma definição geral de memória é difícil, já que o processamento de informação não pode ser visto como um ato isolado, mas como dependente da percepção, influenciado pelas emoções e pela imaginação e situado em toda a sua seqüência entre percepção e ação. Existem diversas conceituações de memória; com este termo nos referimos ao processo de armazenamento de informações adquiridas ontogeneticamente, que podem ser evocadas em qualquer momento, isto é, podem estar disponíveis para um comportamento relacionado ao contexto. Spear & Mueller (1984) apresentaram de forma condensada uma definição de memória: " É uma representação multi-dimensional de um episódio em um organismo (e não um processo)" (p.111).

Do ponto de vista comportamental, a memória é definida como uma modificação mais ou menos permanente das relações do organismo com o seu meio, que ocorre como resultado da prática, da experiência e/ou observação. O aprendizado é a aquisição dessas modificações. Para se chegar à memória é preciso aprendizagem, e para que haja aprendizagem é necessário o envolvimento da capacidade de perceber. A percepção, por sua vez, não requer apenas mecanismos de coerência, mas também mecanismos de memória, memória aqui também definida como um saber prévio consciente do objeto, que provoca uma modificação duradoura no aparelho neural. Pode ser demonstrada pelo reconhecimento de eventos ou fatos prévios e pela sua recordação (evocação). As lembranças podem ser permanentes ou não; no entanto, não estamos sempre conscientes delas.

A representação de um episódio necessita que o mesmo seja "percebido", "codificado", "armazenado" e que possa ser "evocado" (por outro lado, que possa ser "esquecido"), para usar as expressões mais comuns nesta área. Todos estes termos implicam que o processo seja dependente ou controlado pelo tempo. O armazenamento é, em geral, dividido em seqüências de durações diversas que podem ser rotuladas de "memória icônica", "memória de curto prazo" (short-term), "intermediária" e "memória de longo prazo" (long-term) (Baddeley & Warrington, 1970; Squire, 1982).

Esta diferenciação baseia-se geralmente em mecanismos fisiológicos e psicológicos. A memória "icônica" ou "ecóica", ou ainda "imediata", tem uma duração de segundos ou menos, e depende da ativação ou inativação de receptores de um órgão sensorial periférico e está intimamente relacionada com a atenção. A memória de curto prazo (short-term) tem uma definição mais variável, às vezes com referência a elementos da psicologia cognitiva ou referência à neuropsicologia ou neurofisiologia, cobrindo, desta forma, a extensão temporal durante a qual vários processos ocorrem em seqüência para iniciar a consolidação da informação, representando um período no qual o traço de memória é ainda muito lábil. Na memória de "longo prazo" (long-term) apenas são representadas as informações processadas (já consolidadas) além da extensão de tempo pertinente ao processo de traço curto (Markowitsch & Pritzel, 1985).

Postula-se a existência de uma organização hierárquica da memória e sua relação com as lesões cerebrais, sendo a "automática", "motora" ou "de hábitos" a menos vulnerável das formas de memória aos comprometimentos do sistema nervoso. Esta distinção, já confirmada em vários testes durante os anos 60 (Milner, Corkin & Teuber, 1968), tem sido mais recentemente reavivada em diversos artigos experimentais ou teóricos.

Além da distinção entre memória "motora" versus "verbal", um número crescente de classes de memória separáveis está sendo estabelecido pela neuropsicologia cognitiva, tanto em humanos quanto em não-humanos. Entre estas distinções estão memória "operacional" (working) versus "de referência" (reference); "semântica" versus "episódica"; "declarativa" versus "de procedimento" (procedural); "saber como" (knowing how) versus "saber que" (knowing that); "automática" versus "de esforço" e "memória com registro" versus "memória sem registro" (Markowitsch & Pritzel, 1985).

 

Avaliação da memória

As avaliações neuropsicológicas descrevem a função cognitiva em termos dos comportamentos relevantes. Fornecem uma medida de como os indivíduos interagem com o ambiente para satisfazer suas necessidades. A inteligência é um aspecto importante nesta função adaptativa, mas ela é fortemente dependente da instrução e das experiências de vida. Em geral não é imediatamente influenciada por alterações cerebrais orgânicas, e, conseqüentemente, nem sempre pode predizer o funcionamento potencial de uma pessoa.

Testes neuropsicológicos colocam o indivíduo numa situação estruturada que requer a ativação de um processamento de informações novas que envolve "esforço". Ao examinar o aprendizado e o desempenho nestas tarefas, o examinador fica apto a direcionar questões relativas a como estes indivíduos desempenharão no cenário psicossocial ou em suas ocupações. Por exemplo, tem ainda um executivo as habilidades organizacionais complexas necessárias ao manejo de uma grande empresa com múltiplas e simultâneas necessidades? No outro extremo deste espectro, consegue uma senhora idosa, dona de casa e viúva, satisfazer suas necessidades numa situação de vida independente, ou precisa talvez ser colocada num ambiente estruturado?

Desta forma, a avaliação neuropsicológica pode fornecer uma descrição quantificada e abrangente do comportamento de solucionar problemas que pode confirmar e estender observações feitas pelos familiares e outras pessoas em contato com o indivíduo avaliado. Quando os déficits cognitivos são significativos, tais dados neuropsicológicos podem sugerir um diagnóstico clínico.

A alteração da memória é uma das queixas mais freqüentes feita por pessoas normais em todas as idades, mas especialmente nos mais velhos, naqueles que possuem um quadro demencial, nos deprimidos e nos familiares destes pacientes. Cabe ao profissional (neurologista, psiquiatra, etc.) determinar se o problema de memória se deve a um processo neuropatológico, um distúrbio funcional ou a uma variação da normalidade. A memória, como já exposto, é um processo complexo, e também é um processo reconstrutivo, i.e., influenciado pelo estado afetivo do indivíduo e pela congruência do evento com lembranças já estabelecidas.

 

A. Processos gerais de memória

A memória envolve um número de processos cognitivos seqüenciais. A informação inicialmente entra na memória sensorial, um armazenamento extremamente curto medido em centésimos de milisegundos. Desta memória sensorial, a informação é transmitida à chamada memória de traço curto ou curto prazo (também chamada memória primária, memória imediata e "span" de atenção) (Hunt, 1986). A memória de curto prazo é um sistema de capacidade limitada no qual a informação é mantida pela atenção sustentada e por repetição ("rehearsal"). Tem uma duração de 20-30 segundos, podendo a informação " debilmente" armazenada ser trocada por um material novo, a menos que repetições ou outras estratégias de retenção sejam utilizadas. A transferência de informação nova para memória de traço longo se inicia dentro dos primeiros segundos de exposição ao estímulo, ocorrendo uma sobreposição entre os processos de memória de curto prazo e de longo prazo. A consolidação do material de traço longo é um processo mais demorado e envolve um alongamento gradual do traço de memória durante um período de vários minutos a várias horas. Este traço é altamente instável e facilmente sujeito à perda, como observado na amnésia anterógrada da síndrome pós-concussiva. Uma vez que a informação tenha entrado para a memória de longo prazo (de capacidade virtualmente ilimitada), é mantida por repetição ou organização através de associações e sentidos (MacInnes & Robbins, 1987).

 

B. Evocação de memória

A evocação é o processo através do qual é localizada e acessada a informação decorrente de armazenamento prévio. A evocação pode ser de dois tipos: 1) acesso direto a traços de memória armazenados, e 2) acesso a uma idéia geral ou à essência de um material original e reconstrução do produto final (Russel, 1981). Uma outra distinção importante relativa à evocação, é entre "evocação livre" e "reconhecimento" . Os testes de evocação de dígitos (digit span) são de evocação livre, enquanto que a memória por reconhecimento é avaliada por testes de múltipla escolha. Esta distinção pode ser útil para diferenciar demência provocada por depressão de demência por outra causa (por exemplo: doença de Alzheimer). Geralmente, os portadores de Alzheimer apresentam dificuldades em ambas as formas de evocação, enquanto os deprimidos freqüentemente mostram mais alterações na evocação livre.

 

C. Testagens

Nenhuma das formas correntes de avaliação de memória acessa todas as dimensões desta função. Uma das medidas mais familiares, o Mini Mental State Examination (Folstein, Folstein & McHugh, 1975), não avalia apenas memória, mas também orientação, cálculo e linguagem. É provavelmente um dos testes mais utilizados e estudados para avaliação do estado mental, podendo-se encontrar várias investigações de diversos grupos em diferentes países avaliando seu valor diagnóstico como rastreador do déficit cognitivo (Tombaugh & McIntyre, 1992), inclusive no Brasil (Chaves & Izquierdo, 1992).

Num estudo brasileiro, com o objetivo de mensurar o valor do Mini Mental e de outros testes cognitivos para o diagnóstico sindrômico de demência produzida por Alzheimer e outras doenças, e de demência produzida por depressão, a sensibilidade determinada foi de 81% e a especificidade de 68% (Chaves & Izquierdo, 1992). Outros estudos apresentam sensibilidades do Mini Mental que variam de 20% a 100% e a especificidade de 46% a 100% (Tombaugh & McIntyre, 1992). Estes valores sofrem uma influência muito grande do objetivo do estudo, do tipo de amostra utilizada, do número de sujeitos da amostra e dos critérios diagnósticos empregados para as doenças ou condições dos estudos. A verdade é que a utilização do Mini Mental sozinho como rastreador de déficit cognitivo na comunidade tem um valor bem menor do que os índices observados em estudos com base não populacional, necessitando que se leve em consideração outras condições da população alvo, como nível sócio-econômico, escolaridade, condições gerais de saúde, etc. (Silberman, Souza, Diogo, Wilhems, Schmitz, Stein & Chaves, 1992).

O exame do estado mental diferencia orientação, memória remota e memória recente. Estas áreas são avaliadas por testes como os de eventos, fatos e datas importantes da vida do próprio indivíduo (Teste de Dados Autobiográficos), bem como de eventos públicos recentes e remotos. A memória remota visual pode ser avaliada pela evocação simples e/ou por reconhecimento através do teste das faces famosas (Chaves & Izquierdo, 1986; Chaves & Izquierdo, 1992).

A Escala de Memória de Wechsler (Wechsler, 1987), recentemente revisada, com um estudo inicial de padronização no Brasil (Plass, 1991), avalia a maioria dos aspectos importantes da memória, mas não tem uma normalização para indivíduos com idade superior a 74 anos. O Teste de Aprendizado Verbal Califórnia ("California Verbal Learning Test", Delis, Kramer, Kaplan et al., 1987) permite uma avaliação bastante profunda da memória verbal, mas não avalia processos não-verbais de memória. Da mesma forma, o teste da Figura Complexa de Rey-Osterreith (Visser, 1985) tem sido utilizado para avaliar a memória visual. Infelizmente, poucos dados de normalização são disponíveis, e nenhum no Brasil. Este teste confunde habilidades motoras e visuais, porque requer que o indivíduo desenhe tão adequadamente quanto lembre a figura. O teste de Reconhecimento de Warrington (Warrington, 1984) é uma excelente medida de memória de reconhecimento, tanto na modalidade verbal quanto na não-verbal, mas como muitos outros testes, não possui padronização acima dos 70 anos. Existem várias outras medidas de memória que apresentam vantagens e desvantagens específicas dependendo do enfoque do estudo e de características da população estudada. Estas incluem o teste de memória de Randt (Randt, Brown & Osborne, 1980), Teste Seletivo de Lembrar (Buschke & Fuld, 1974), e subtestes das baterias de Luria-Nebraska e Halstead-Reitan (Golden, Purisch & Hammeke, 1985; Reitan & Wolfson, 1985), entre outras.

Existem outras tentativas de compor baterias intermediárias quanto ao tamanho, duração e modalidades de memória avaliadas, através da junção e adaptação de testes conhecidos, com o objetivo de acessar de forma breve e completa, com valor diagnóstico definido, as funções de memória (Chaves & Izquierdo, 1992).

Outro aspecto importante em relação à testagem é quanto à sua utilidade para fins de pesquisa ou para aplicação clínica, havendo claramente uma descontinuidade nesta área. Modelos de memória muito elaborados e sofisticados, bem como procedimentos de laboratório precisos e bem controlados montados com objetivo de investigação, contrastam com os conceitos e tarefas mais simples, menos específicos e disponíveis, modelados para a demanda prática que caracteriza as situações clínicas. As sugestões mais recentes são de utilizar esta tecnologia proveniente da pesquisa para preparar baterias de testes que sejam capazes de analisar os processos complexos de aquisição, armazenamento e evocação. Tal resultado poderia viabilizar a obtenção de informações mais refinadas sobre os déficits e poderia refletir muitas das distinções úteis e elegantes que têm sido propostas a nível experimental.

 

Exemplos de testes empregados na avaliação:

1. Memória imediata (atenção). Repetição de dígitos (digit span)

O nível basal de atenção pode ser prontamente obtido pela aplicação deste teste. O desempenho adequado garante que o sujeito é capaz de responder a um estímulo verbal e manter a atenção pelo período de tempo requerido para a repetição dos dígitos. Em pacientes com uma alteração significativa da função de linguagem (afasia) esta tarefa não deve ser utilizada.

Instruções: Diga ao paciente: "Vou lhe dizer alguns números simples. Ouça-os com atenção e quando eu terminar repita-os". Apresente os dígitos num tom de voz normal, no ritmo de 1 por segundo. Cuide para não agrupá-los em pares (i.e., 2-6, 5-9) ou em seqüências que possam ser utilizadas como dicas (i.e., na forma de números telefônicos: 376-839). Os números devem ser apresentados ao acaso, sem obedecer a nenhuma ordem natural (i.e., 2-4-6-8). Comece com uma seqüência de três dígitos e continue até que o paciente erre duas seqüências consecutivas.

7-4-9-1-7-2 8-5-2-7

9-7-5-3

2-9-6-8-3 6-3-8-5-1

5-7-2-9-4-6 2-9-4-7-3-8

8-1-5-9-3-6-2 4-1-9-2-7-5-3

Escore: Cada seqüência correta corresponde a 1 ponto. A versão validada (Wechsler, 1987; Chaves & Izquierdo, 1992) apresenta 14 seqüências, com escore máximo de 14. Sujeitos normais, com inteligência dentro da média, repetem seqüências de 5 a 7 dígitos sem dificuldades. O ponto de corte é 4 para identificação de déficits.

2. Orientação

A avaliação da orientação é importante, especialmente quanto ao tempo e ao espaço. Ela pode ser obtida através da aplicação do Mini Mental State Examination (Mini Exame do Estado Mental) (Folstein, Folstein & McHugh, 1975) e pelos seus dois primeiros sub-ítens:

• Orientação Temporal: Dia do mês, mês, ano, dia da semana, estação do ano

• Orientação Espacial: Cidade, estado, país, local, andar (se hospital, ou rua e número, se não hospitalizado)

Escore: Para cada resposta correta é atribuído 1 ponto, com máximo de 5 pontos para cada sub-ítem. Não existem pontos de corte para sub-ítens do Mini Mental, no entanto, espera-se que pessoas normais acertem todas estas questões. Escores incompletos são observados na orientação temporal de indivíduos normais, havendo uma correlação com a escolaridade.

3. Retenção de novas aquisições (novos aprendizados)

Estes testes avaliam a capacidade de o indivíduo aprender ativamente um novo material (adquirir novas memórias). Requer a integridade de todo o sistema de memória: reconhecimento, registro, retenção e armazenamento da informação, bem como evocação da informação já armazenada.

 

Teste das palavras não-relacionadas

Instruções: diga ao paciente: "eu vou lhe dizer quatro palavras que gostaria que pudesse lembrar. Em poucos minutos vou lhe pedir para repetir novamente as palavras." Diga as palavras e, para certificar-se que o paciente escutou adequadamente e reteve inicialmente, faça-o repetir imediatamente após, corrija os erros cometidos na repetição imediata. Pacientes idosos (acima de 75 anos) podem necessitar de diversas repetições até que aprendam corretamente as palavras, mas quando um sujeito necessita de 4 ou 5 repetições isso já indica uma alteração significativa da memória. Para evitar que ocorra treino mental, deve ser utilizada uma interferência entre a apresentação do material e sua evocação (uma outra tarefa deve ser aplicada entre as duas etapas). As palavras são selecionadas devido à sua diversidade semântica e fonêmica.

Ítens do Teste. 1. pente 1. branco 2. rua 2. vaso 3. azul 3. madeira 4. cavalo 4. carro

Escore: Quando um indivíduo não é capaz de lembrar uma palavra, podem ser utilizadas dicas (pré-ativação -priming), semânticas (e.g., "o nome de uma cor"), fonêmicas (e.g., "pen... [pente]") ou contextuais (e.g., "o animal utilizado para puxar carroças é___"). Sujeitos normais e abaixo de 60 anos de idade devem lembrar adequadamente 3 a 4 palavras após 10 minutos de intervalo. Existe uma variação significativa entre os indivíduos normais da população neste teste (desvio padrão de 0,8 palavras), no entanto, a implicação clínica de um escore baixo (i.e, 2 em 4) deve ser interpretada em função da história e do desempenho do paciente em toda a avaliação (Simpson, Black & Strub, 1986).

 

Validação de testes

Dois conceitos são usados para descrever a qualidade das aferições, independentemente da escala em que são expressas. Esses conceitos são a validade e a confiabilidade.

Validade

É o grau pelo qual os resultados de uma aferição correspondem ao estado verdadeiro dos fenômenos que estão sendo medidos. Outra palavra para validade é a acurácia. Observações clínicas que podem ser aferidas por meios físicos são relativamente fáceis de serem validadas. A aferição observada é comparada a algum padrão estabelecido. Existem três estratégias gerais para estabelecer a validade de aferições que não podem ser confirmadas diretamente a partir dos sentidos. Validade de conteúdo é a medida do quanto um determinado método de aferição abrange todas as dimensões da construção que está sendo aferida e nada mais. Por exemplo, uma escala para medir dor teria validade de conteúdo se incluísse perguntas sobre dor contínua, em cólica, em queimação ou em pontada, mas não sobre pressão, prurido, náusea, formigamento e assim por diante.

Existe validade de construção se os resultados de uma escala variam de acordo com a presença de outros indicadores estabelecidos que sabidamente estão associados à dor - por exemplo: sudorese, gemido, necessidade de medicação. Alternativamente, pode-se verificar se as respostas na escala têm relação previsível com dores de severidade conhecida: dor leve por escoriações superficiais, dor moderada por cefaléia comum e a dor severa da cólica renal.

A validade de critério é estabelecida mostrando-se que a medida prediz um fenômeno diretamente observável.

Com estas e outras estratégias indiretas, pode-se armar evidências para confirmar ou refutar a validade de uma escala ou teste, nas condições em que ela é usada. Portanto, uma escala não é simplesmente válida ou não-válida; pode-se, apenas, acreditar que uma escala seja mais ou menos válida, a partir do resultado das estratégias usadas. Embora o processo de validação de um instrumento possa não ser tão seguro quanto a confirmação da acurácia de um teste de laboratório, é melhor tentá-lo do que simplesmente supor que uma questão mede exatamente o que se deseja que ela meça.

O termo validação também se aplica à determinação do valor diagnóstico de uma escala ou teste. As medidas geralmente usadas para estimar este valor são especificidade, sensibilidade, valores preditivos negativo e positivo, taxa de falsos positivos e falsos negativos. Estes dados são obtidos através da comparação entre o resultado do teste com o de um instrumento reconhecidamente válido para diagnosticar a condição em estudo (chamado padrão ouro). Assim, pode-se julgar a sensibilidade de uma escala de depressão se a comparar-mos com os resultados da aplicação de critérios de diagnóstico para depressão, como os do DSM III-R, CID X, ou outro.

Para conseguirmos este tipo de informação é necessário que se estabeleçam pontos de corte para a escala ou teste em estudo, a fim de identificar os sujeitos positivos e negativos pelo instrumento. O estudo que define os pontos de corte também deve obedecer a uma série de cuidados metodológicos (características da população, número de sujeitos, variáveis de confusão - idade, sexo, escolaridade, etc. -"normalidade" dos sujeitos, avaliação de outros grupos de indivíduos portadores de alguma doença que interfira com o desempenho na escala ou teste, etc.) para que não se estabeleça um corte inadequado.

Confiabilidade

Confiabilidade é a extensão em que medidas repetidas de um fenômeno relativamente estável situam-se próximas umas das outras. Reprodutibilidade, precisão e fidedignidade são outros termos usados para esta propriedade. É possível ter um instrumento que seja válido (acurado) mas que não seja confiável, porque seus resultados são muito dispersos em torno do valor real. Por outro lado, um instrumento pode ser muito confiável, mas sistematicamente descalibrado (inacurado).

A confiabilidade também é estimada através da consistência interna que avalia a homogeneidade dos itens e da confiabilidade teste-reteste.

 

Avaliação da validade de um teste

O Mini Mental é o teste de triagem de alterações cognitivas mais amplamente utilizado (Tombaugh & McIntyre, 1992), inclusive em estudos epidemiológicos e de base comunitária, além de ter sido incorporado a diversas entrevistas padronizadas com o objetivo de avaliar desempenho cognitivo e auxiliar no diagnóstico das demências. Também é um dos testes recomendados pelo Instituto Nacional de Doenças Neurológicas e AVC (EUA) e pela Associação Americana de Alzheimer (NINCDS-ADRDA) (McKhann, Drachman, Folstein et al., 1984) para documentar o diagnóstico clínico de "provável" doença de Alzheimer.

Desta forma, pode-se encontrar um grande número de estudos sobre o valor deste teste. A seguir, serão comentados alguns destes estudos, de acordo com o tipo de análise realizada:

A. Confiabilidade

a. Consistência interna

Nos estudos de comunidade, os valores de alfa foram mais baixos do que os observados em grupos de pacientes. Como, no entanto, o teste visa avaliar diferentes processos cognitivos, a heterogeneidade dos itens foi intencionalmente criada. Os valores de alfa mais baixos podem ser, na verdade, mais desejáveis (Tabela 1).

 

 

b. Confiabilidade teste-reteste

Para que o efeito da progressão da doença em si não produzisse mudanças no desempenho do teste e, conseqüentemente, na avaliação da confiabilidade, apenas estudos com intervalos de no máximo dois meses foram considerados. Os estudos mostram que tanto para pacientes cognitivamente comprometidos como para os intactos, os resultados ficam entre .80 e .95 (Tabela 1). Escores mais altos na segunda avaliação (reteste) têm sido relatados por vários estudos, o que deve expressar um efeito de treinamento.

B. Validade

a. Sensibilidade e especificidade

Uma maneira de obter a validade do Mini Mental é determinar o que ele identifica corretamente em indivíduos normais e comprometidos. A sensibilidade do Mini Mental se refere à sua habilidade em identificar corretamente os sujeitos que foram classificados como cognitivamente comprometidos por algum critério amplamente aceito ou gold standard (padrão ouro), isto é, verdadeiros positivos/número total de casos identificados.

A especificidade se refere à habilidade do Mini Mental para identificar corretamente os indivíduos que previamente foram classificados como tendo um funcionamento cognitivo normal (i.e., verdadeiros negativos/número total de casos cognitivamente intactos).

Também é importante determinar o quanto um resultado positivo ou negativo realmente prediz a presença ou ausência de alteração (valores preditivos do teste). Se alguém obtém um resultado 22 no Mini Mental, qual a probabilidade de que o comprometimento cognitivo realmente exista? O valor preditivo de um teste positivo é a razão dos casos corretamente identificados como positivos para o número total de casos positivos (i.e., verdadeiros positivos/[verdadeiros positivos + falsos positivos]), enquanto que o valor preditivo negativo é a razão dos casos corretamente identificados como negativos para o número total de casos negativos (verdadeiros negativos/[verdadeiros negativos + falsos negativos]).

Diversos estudos apresentam este tipo de análise do Mini Mental, sendo que no trabalho original do teste (Folstein, Folstein & McHugh, 1975) a sensibilidade entre os sujeitos sem alteração cognitiva e entre os demenciados foi de 100%, a especificidade de 100% e valores preditivos de 100%. O critério empregado para as classificações foi o estabelecimento de diagnóstico psiquiátrico. Outro estudo realizado pelo mesmo autor, em 1985, comparou sujeitos sem alterações cognitivas com pacientes com quadros demenciais, utilizando o DSM-III como padrão ouro; obteve-se sensibilidade de 100%, especificidade de 62%, valor preditivo positivo de 44% e negativo de 100%. Mais recentemente, O'Connor, Pollitt, Hyde et al. (1989) utilizaram o CAMDEX como padrão ouro e obtiveram, numa amostra comunitária e em maior número, sensibilidade de 86%, especificidade de 92% e valor preditivo positivo de 55%. Em estudo realizado no Brasil, utilizando uma amostra de pacientes com quadros demenciais, pacientes deprimidos e um grupo de sujeitos com doenças clínicas, e empregando como critérios o DSM-III e NINCDS-ADRDA (McKhann et al., 1984) para doença de Alzheimer, foi observada uma sensibilidade de 81%, especificidade de 68%, valor preditivo positivo de 71% e negativo de 78% para o Mini Mental (Chaves & Izquierdo, 1992). Propõe-se, neste estudo, que a combinação deste teste com outros, de forma paralela, aumenta a sensibilidade, a especificidade e a eficiência do diagnóstico de forma global, sem aumentar excessivamente o tempo de avaliação.

Na tentativa de avaliar a capacidade do Mini Mental de identificar as alterações cognitivas, não em função do diagnóstico, mas em função de testagens neuropsicológicas mais complexas (Faustman, Moses & Csernansky, 1990), a sensibilidade foi de 21%, a especificidade de 96%, valor preditivo positivo de 50% e negativo de 87%. Estes resultados são consistentes com um estudo feito com análise fatorial de diversos testes neuropsicológicos e mostram que estes testes apresentam carga em três diferentes fatores, enquanto o Mini Mental tem carga igual em todos os fatores.

 

Modulação da memória por estados afetivos

A importância do humor ou afeto sobre os fenômenos da memória tem sido bastante salientada (Freud, 1901; Teasdale & Fogarty, 1979; Teasdale & Russell, 1983). O desempenho de indivíduos com depressão em diferentes tarefas de memória pode ser influenciado pelo seu estado afetivo. Parece que eles apresentam uma melhor aquisição para informações negativas quando comparados a controles normais (Jorm & Henderson, 1992). No entanto, outros resultados têm mostrado que indivíduos normais apresentam uma melhor evocação de material com conteúdo afetivo negativo do que positivo e neutro (Ceitlin, Santos, Parisotto, Zanata & Chaves, 1993).

O conteúdo afetivo das informações de uma tarefa ou da tarefa propriamente dita tem sido considerado em poucos estudos ou na aplicação clínica de testes de memória, e é mais focalizado em investigações sobre os efeitos da depressão sobre o desempenho cognitivo (Breslow, Kocsis & Belkin, 1981; Ceitlin et al., 1993).

As teorias sobre a modulação da memória pelo afeto dividem-se em dois grupos: dependência de estado e congruência de afeto. A hipótese da dependência de estado sugere que a codificação da memória é influenciada pelo humor durante a sessão de aprendizado: um estado semelhante no momento da tarefa de evocação pode produzir um melhor desempenho (Weingartner, Miller & Murphy, 1977; Teasdale & Fogarty, 1979). O conteúdo da informação não seria tão importante, e o estado de ânimo atua como o estado ou contexto relevante. A hipótese da congruência do humor assume que a informação é mais facilmente armazenada se o conteúdo afetivo da tarefa corresponde ao estado afetivo do sujeito (Jorm & Henderson, 1992).

As evidências para a hipótese da congruência do humor provêm de estudos com voluntários normais submetidos experimentalmente a alterações induzidas do humor (Teasdale & Russel, 1983) e também de pacientes com diagnóstico de depressão maior ou com altos níveis de sintomatologia depressiva medidos por escalas (Jorm & Henderson, 1992).

Do ponto de vista prático, a diferença entre as duas teorias é que na dependência, aquilo que o sujeito aprende enquanto em estado normal não pode ser lembrado quando seu humor está deprimido; e na congruência, os estímulos que chamam a atenção do indivíduo e podem produzir aprendizado têm a mesma valência afetiva que o seu humor.

 

Outros mecanismos de modulação

Existe uma série de formas de afetar o processamento de informações a nível de sistema nervoso central. Estas formas são chamadas de " tratamento" e incluem manipulações comportamentais, que obviamente produzem modificações neuro-humorais responsáveis pelas mudanças da memória, bem como a administração de fármacos e hormônios. Estas modificações podem produzir melhora no desempenho de tarefas envolvendo qualquer fase do processamento (atenção, evocação imediata, registro e evocação recente, evocação remota, etc.) ou prejudicá-lo.

As formas de intervenção no processamento de informações podem ser aplicadas em vários momentos relacionados com a tarefa, mas estão melhor estudados no período chamado "pós-treino", que compreende o espaço de tempo imediatamente e até 1 -2 horas após o contato com uma tarefa de aprendizado; ou no período conhecido como "pré-teste", ou seja, imediatamente antes do teste que avalia o aprendizado prévio.

 

Influências pós-treino

As influências pós-treino sobre a memória têm sido tradicionalmente explicadas por efeitos na consolidação pós-treino de cada traço de memória, que passa de uma condição inicialmente instável, lábil a um estado posterior "sólido" e estável (Muller & Pilzecker, 1900; Hebb, 1949; McGaugh, 1983). Não há prova fisiológica de que traços de memória se solidifiquem após aquisição, mas há provas de que os estímulos empregados na aquisição de experiências têm efeitos prolongados, que podem durar segundos, minutos ou horas. Respostas de unidades sensoriais off (respostas ao cessar de um estímulo) são conhecidas há muito tempo e mesmo respostas off a um comportamento condicionado. Descreveram-se alterações neuro-humorais prolongadas como a liberação de catecolaminas, B-endorfinas cerebrais e hormonais como ACTH, vasopressina e catecolaminas plasmóticas (Izquierdo & Netto, 1985) e as conseqüências neuroquímicas destas alterações, como sobre o AMPc, fosforilação de proteínas nucleares, RNA cerebral e síntese de proteínas decorrentes de exposição a estímulos usados em procedimentos de treino.

Algumas drogas atuam como estímulos condicionados e tornam-se potentes como dicas de evocação. Este fenômeno se chama dependência de estado. Hormônios ou neurotransmissores podem induzir dependência de estado atuando após o treino e requerendo sua presença novamente no momento do teste, para que o desempenho de retenção não fique prejudicado. Assim, as substâncias não interferem com a durabilidade do traço de memória; seus efeitos podem ser unicamente explicados pela indução de dependência de estado (Izquierdo & McGaugh, 1985). A depressão de memória pela B-endorfina administrada pós-treino e sua reversão pela readministração pré-teste, foi observada em todas as tarefas estudadas (Netto, Dias & Izquierdo, 1986).

Foi posteriormente demonstrada a ocorrência de dependência de estado pós-treino produzida pela B-endorfina de forma fisiológica (Izquierdo, Netto, Chaves, Quillfeldt, Gianlupi & Oliveira, 1986). A B-endorfina cerebral é liberada apenas quando o indivíduo é exposto à experiência pela primeira vez, independente do tipo de estímulo, presença de dor, nível de alerta, exigências de resposta, duração ou tipo de aprendizado, associado com cada tarefa. A liberação é então uma resposta à novidade, não é dor, estresse ou alerta. Não se sabe se isto reflete a mera percepção da novidade, uma reação à ela, ou habituação a esta reação. É abolida por secção do fórnix, sugerindo que a novidade é reconhecida pelo hipocampo, o qual se projeta para a região do hipotálamo que contém os corpos celulares do sistema B-endorfínico, através do fórnix.

Ao contrário da B-endorfina, as catecolaminas periféricas, ACTH e vasopressina são secretados em resposta e relacionam-se à quantidade de estresse e/ou alerta, e não à novidade da exposição.

É claro que algumas drogas podem se somar às tarefas após o treino como estímulos condicionados, podendo ser utilizadas como dicas de evocação quando administradas novamente no momento do teste. A facilitação pós-treino pode ser obtida com substâncias que são normalmente liberadas pelo estímulo condicionado ou por drogas que as liberam. Neste caso, seus efeitos não são distinguíveis dos produzidos pelo aumento da intensidade ou o número de reforços. Noradrenalina, adrenalina, tiramina e guanitidina (liberadores periféricos de catecolaminas), ACTH e vasopressina administrados pós-treino facilitam a retenção.

Apesar das similaridades superficiais entre as influências dos tratamentos facilitatórios pós-treino sobre a memória e às dos acréscimos de reforço, observações recentes sugerem que o efeito dos primeiros não pode ser explicado por uma simples adição aos efeitos do reforço. Se os tratamentos facilitatórios pós-treino se incorporam ou se somam ao reforço, sua repetição no momento do teste poderia agir como um fator "relembrador", porque se reestabeleceria como parte da resposta não condicionada.

As facilitações pós-treino e pré-teste produzidas por ACTH, adrenalina, vasopressina ou choques de baixa intensidade são efeitos diferentes. O efeito pré-teste é explicável pela liberação de B-endorfina cerebral que os hormônios produzem (Izquierdo & Netto, 1985), e não por uma reestruturação da resposta não condicionada ou de suas conseqüências; e a facilitação pós-treino produzida por estes hormônios é melhor explicada por uma influência na durabilidade do traço de memória, e não por um acréscimo à resposta não condicionada.

Informações podem ser somadas a nível de pós-treino sem ser classificadas como estímulo condicionado ou não-condicionado, podendo, contudo, alterar a memória de forma considerável. São enquadradas na classe geral de "informação pós-evento" (Loftus & Palmer, 1974; Izquierdo & Chaves, 1988).

Exemplos claros de modificação de memória pós-treino resultando em "interferência retroativa" foram demonstrados (Loftus & Palmer, 1974; Chaves, Pezzin, Jardim & Izquierdo, 1990). Loftus e Palmer mostraram filmes de acidentes de trânsito a voluntários normais, e então perguntaram a eles qual a velocidade que os carros estavam quando eles se tocaram, bateram ou chocaram (em inglês: contacted, hit, collided, bumped on smashed). A palavra smashed evocou uma estimativa de aproximadamente 41 milhas/hora; collided, 40; bumped, 38; hit, 34; e contacted apenas 31 milhas/hora. Uma semana mais tarde, os indivíduos foram perguntados se lembravam de terem visto qualquer vidro quebrado no filme; o maior número de respostas positivas foi obtido pelo grupo que recebeu o questionário com a palavra smashed. A informação fornecida após o filme (a palavra contida no questionário) foi claramente integrada à informação adquirida durante o filme para construir "uma única memória" ou um "arquivo".

Estes estudos têm demonstrado que as informações armazenadas (aprendizados) podem sofrer influências qualitativas e quantitativas produzidas por outras informações ou experiências que ocorram imediatamente após o treino do aprendizado. Esta segunda informação modula e pode modificar a qualidade da memória (transformar numa lembrança boa/ruim, acrescentar ou retirar detalhes da experiência, etc), bem como sua quantidade (aumenta/diminui a importância/intensidade do estímulo, gerando uma melhor/pior aquisição).

 

Principais alterações da memória

As alterações da memória são conhecidas pelos termos " amnésia" e " dismnésia". Existe uma discussão quanto à manutenção dos dois termos, e seus significados estariam relacionados com a intensidade a do comprometimento da memória, sendo a dismnésia relativa a perturbações variáveis e amnésia a perda global das funções de memória. Por outro lado, o termo amnésia pode ser empregado, assim como o termo afasia para as alterações de linguagem, para toda e qualquer forma de alteração da memória, não havendo uma relação com a severidade ou qualidade. Estas devem ser expressas através de adjetivos que seguem o termo amnésia, como por exemplo, amnésia global transitória, amnésia anterógrada, amnésia retrógrada, etc.

As amnésias são síndromes clínicas de perda de memória desproporcional a qualquer outro comprometimento cognitivo generalizado. Podem ser divididas em quatro categorias: (1) "Síndrome Amnésica", uma alteração de armazenamento e evocação de memória; (2) " Amnésia Parcial", na qual apenas determinadas modalidades ou sub-funções da memória estão comprometidas; (3) Amnésia como parte de uma alteração cognitiva mais generalizada ou demência; e (4) as "Amnésias Funcionais" ou "Psicogênicas". Dentro destas categorias, amnésias podem ocorrer de forma temporária ou permanente. Como em outros distúrbios neurológicos comportamentais, a disfunção da memória é primeiramente caracterizada de forma comportamental pela avaliação neuropsicológica de rastreamento, após a qual o processo diagnóstico diferencial se inicia.

1. Síndrome amnésica

Se refere a uma perda seletiva da função de memória recente na ausência de distúrbio cognitivo generalizado. As principais características clínicas estão na Tabela 2. O déficit envolve os mecanismos de " curto-prazo" e recente da memória, em seus aspectos retrógrados e anterógrados. O comprometimento é global, ou não é restrito a nenhuma classe ou modalidade de itens. A memória imediata é a mais preservada nesta síndrome. Memórias remotas estão, pelo menos, parcialmente preservadas. Dois outros aspectos da síndrome amnésica são a desorientação (no tempo e no espaço, mas praticamente nunca em relação a pessoa) e a confabulação, uma tendência a "preencher" lapsos de memória com informações inventadas pelo sujeito. Estas características do déficit de memória, especialmente a preservação de outros aspectos cognitivos, deve ficar evidente na avaliação de beira-de-leito. A seletividade da síndrome amnésica em relação às alterações da memória é bem exemplificada por pacientes com Korsakoff, os quais apresentam um desempenho em níveis normais em testes de inteligência, mas não são capazes de lembrar que realizaram as tarefas dez minutos depois.

 

 

 

 

O mecanismo neuropsicológico da síndrome amnésica é baseado numa transferência deficiente de itens da memória imediata (atenção) para o armazenamento de curto-prazo. A habilidade imediata da memória é normal (span), mas retardos de até poucos segundos bloqueiam a evocação posterior. O paciente é efetivamente preso ao presente, esquecendo eventos tão logo tenham ultrapassado a atenção imediata. O paciente pode manter informações na memória imediata por poucos minutos às custas da manutenção da atenção de forma voluntária, mas qualquer distração interrompe o traço de memória, fenômeno conhecido por "interferência pré-ativa".

1.1. Síndromes amnésicas transitórias

A Síndrome Amnésica pode ocorrer de forma transitória ou permanente. Os achados familiares de amnésia anterógrada e retrógrada, preservação da memória remota e da inteligência, desorientação, as vezes acompanhada por confabulação, estão presentes durante um episódio. Características adicionais da amnésia transitória incluem a diminuição da amnésia retrógrada e a recuperação da função anterógrada. Após a recuperação, persiste uma lacuna permanente, igual à soma da amnésia anterógrada mais o período de amnésia anterógrada após o início.

As causas de amnésia transitória são várias (Tabela 4). Todas têm em comum um comprometimento temporário do processo de armazenamento produzido por disfunção cerebral difusa ou alteração focal do circuito região medial do lobo temporal-diencéfalo. O traumatismo craniano tem sido considerado também causa de amnésia transitória. Crises epilépticas, principalmente do tipo parcial complexo que envolve estruturas temporais mediais, freqüentemente produzem alterações da memória.

 

 

1.2. Amnésia global transitória

Após a exclusão de todas as causas conhecidas de síndrome amnésica, um grande grupo de casos inexplicados ainda permanece. Bender, em 1956, e Fisher e Adams, em 1964, descreveram uma síndrome de "amnésia global transitória" (TGA) em pacientes de meia-idade e velhos. A amnésia tipicamente se inicia de forma súbita e dura de uma a vinte e quatro horas. Eventos precipitantes como baixa temperatura, relação sexual e situações estressantes têm sido relatados em alguns casos. Quando se avalia o paciente durante o episódio, ele costuma fazer uma série de perguntas (onde se encontra, porque está neste local, etc.), mas não se lembra das respostas, e torna a fazer as mesmas perguntas segundos após. Lembranças mais remotas e o conhecimento de si permanecem intactos, embora possa surgir inicialmente um lapso de memória que abranja alguns anos. Esta amnésia retrógrada tende a encurtar na medida em que as alterações anterógradas vão desaparecendo. Sinais neurológicos focais não são encontrados durante o episódio.

A etiologia da amnésia global transitória não é conhecida. Alguns autores a têm atribuído a uma causa epiléptica, mas outras manifestações epilépticas não são observadas durante ou após o ataque. A baixa recorrência destes episódios também fala contra esta hipótese, e os estudos eletroencefalográficos de alguns casos não têm mostrado alterações durante estes períodos. Uma segunda hipótese seria a vascular, baseada na conhecida associação da amnésia transitória com enxaqueca e com ataques isquêmicos transitórios. A amnésia global transitória costuma ocorrer em indivíduos de meia-idade ou idosos, os quais freqüentemente apresentam fatores de risco para doença cérebro-vascular; no entanto, estudos de seguimento não têm mostrado uma incidência aumentada de isquemias transitórias ou ictus completos. Além destas evidências, a ausência de sinais neurológicos focais (por exemplo, alterações de campo visual) durante os episódios de amnésia transitória também falam contra a hipótese vascular. A etiologia da amnésia transitória pode envolver mais de uma causa, e certamente as causas conhecidas listadas na Tabela 2 devem ser cuidadosamente excluídas.

2. Síndromes amnésicas parciais

As amnésias parciais diferem das amnésias " globais" pela restrição do déficit de memória a uma classe de memória ou a uma modalidade sensorial. A lobectomia temporal unilateral em pacientes epilépticos, com retirada do hipocampo e amígdala, produz uma alteração de memória verbal nos sujeitos que tiveram o lobo temporal esquerdo removido e de memória não-verbal nos do lado direito. Lesões corticais que não envolvem estruturas mais internas relacionadas com a função de memória também provocam déficits de memória seletivos. Em muitos casos estes déficits parciais parecem estar mais intimamente ligados a alterações de funções corticais específicas (afasia ou agnosia) do que à síndrome amnésica global.

Amnésia para palavras, ou memória verbal alterada, é uma característica das afasias. A memória imediata para dígitos ou palavras está tipicamente reduzida nos afásicos, e este déficit provavelmente contribui para muito da dificuldade de repetição encontrada nas síndromes afásicas. Alguns investigadores consideram que a afasia de condução representa uma alteração seletiva da memória verbal auditiva, restrita não apenas a palavras mas também à modalidade auditiva. Uma grande parte dos afásicos apresenta uma redução na memória recente verbal, isto é, na habilidade de apreender e reter palavras, junto com comprometimento da capacidade de memória para seqüências verbais, além dos déficits nos spans verbais imediatos.

Déficits de memória podem também ser restritos a uma única modalidade sensorial. Existem descrições de alterações parciais de memória nas formas visuais e táteis, tendo sido postulada uma desconexão bilateral das áreas visuais cerebrais do circuito temporal medial da memória para os déficits visuais de memória; e uma desconexão unilateral entre córtex somato-sensorial no lobo parietal e o sistema de memória temporal medial.

As descrições e os métodos de testagem destas síndromes amnésicas que atingem seletivamente modalidades sensoriais são ainda ingênuos. São principalmente de interesse teórico visando o entendimento da organização de sistemas sensoriais e a função de memória no cérebro.

3. Amnésia no delirium e na demência

Classicamente a amnésia resulta de lesões focais do circuito lobo temporal medial-diencefálico da memória, mas a memória é também severamente afetada em distúrbios cerebrais difusos como no delirium e na demência. Pacientes em episódios de delirium, em geral não conseguem processar informações em termos de memória, mas o diagnóstico é freqüentemente óbvio devido à presença de outros déficits comportamentais e sinais de hiperatividade fisiológica (agitação, taquicardia, hipertensão, sudorese, tremor e febre). No caso da demência estes sinais fisiológicos em geral não são observados. A avaliação mostra alterações de outras funções cognitivas, como afasia, acalculia, déficits viso-espaciais, perda do juízo crítico, que não estão presentes nas síndromes amnésicas puras. Déficits de memória recente na doença de Alzheimer podem ser tão severos quantos os observados na síndrome amnésica, provavelmente devido à tendência de esta doença afetar o hipocampo.

Em geral, a avaliação de triagem (Chaves & Izquierdo, 1992) prontamente diferencia síndrome amnésica de delirium e de demência. Apenas em algumas situações ocasionais pode ocorrer uma dificuldade diagnóstica maior, como no caso de pacientes em fases muito precoces de quadros demenciais, nos quais as alterações de memória recente são mais evidentes do que as de outras funções cognitivas.

4. Amnésia funcional

Em algumas situações, encontram-se pacientes nos quais a amnésia parece ser resultado de uma alteração funcional, isto é, sem qualquer evidência de alteração orgânica subjacente. Estas síndromes são geralmente transitórias, embora existam relatos de casos de amnésia psicogênica permanente.

Dentro das formas psicogênicas pode-se identificar subgrupos de alterações: amnésia de identidade, perdas transitórias de memória, estados de fuga e as síndromes raras de dupla ou múltiplas personalidades (que estão intimamente ligadas aos estados de fuga).

Estas alterações devem ser cuidadosamente avaliadas, com o objetivo de afastar completamente a possibilidade de alteração orgânica, como, por exemplo, epilepsia temporal, blackouts de memória produzidos pela ingestão de álcool, entre outras causas.

 

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