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Mental
versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X
Mental v.3 n.5 Barbacena nov. 2005
ARTIGOS
Clínica e reabilitação psicossocial: práticas feita por muitos
Clinic and psychossocial rehabilitation: pratic made by many
Ronaldo de Oliveira ZenhaI, II*; Regina M. B. Cunningham (tradução)**
I UFMG
II CERSAM
RESUMO
Com esse artigo levanta-se a polêmica discussão entre clínica e reabilitação psicossocial. Pretende-se, por meio dele, estimular o debate em relação à importância da clínica no processo de assistência em saúde mental, principalmente relacionado a portadores de sofrimento mental graves, como psicóticos egressos de longas internações e/ou crônicos, neuróticos renitentes e que trazem riscos para si e/ou terceiros, alcolistas e usuários de substâncias psicoativas.
Palavras-chave: Clínica feita por muitos, Reabilitação psicossocial, Direito a desrazão, Cidadania, Ser falante.
ABSTRACT
This article brings the controversial discussion between clinic and psicossocial reabilitation. We intend to stimulate the debate related to the importance of the clinic in the mental health assistence's program, mainly related to the serious mental patients, as psychotics who came from long interments or chronic, obstinate neurotics, the ones considered danger to themselves and to the others and alcoholic and psychoactive's substances users.
Keywords: Clinic mad by many, Psychosocial rehabilitation, Right to reasonless, Citizenship, Talking human being.
O direito à desrazão significa poder pensar loucamente, significa poder levar o delírio à praça pública, significa fazer do Acaso um campo de invenção efetiva, significa liberar a subjetividade das amarras da verdade, chame-se ela identidade ou estrutura, significa devolver um direito de cidadania pública ao invisível, ao indizível e até mesmo, por que não, ao impensável (Peter Pal Pelbart).
Introdução
Falar de Clínica e Reabilitação não é e nem será, por muito tempo, tarefa fácil. Não só pelo que caracteriza cada uma dessas ações como também pela dificuldade em articulá-las. Mas, quem se propõe a trabalhar com psicóticos, neuróticos graves, alcoolistas e toxicômanos não pode recuar diante de questão tão complexa, mesmo porque são essas ações os pilares da nova maneira de conceituar e lidar com os fenômenos da loucura.
Se por um lado a Clínica é uma prática antiga, que nos remete a gregos e árabes da Antigüidade, mesmo que a ciência médica, como nos alerta Foucault (1987), queira atrelar a Clínica a uma certa fundação científica da medicina datada no final do Século XVIII, por outro lado, parece ser a Reabilitação invencionice recente (de pouco mais de 30 anos), que veio com Basaglia e sua crítica ácida à instituição psiquiátrica (BASAGLIA, 1985). Porém, não podemos atribuir, de forma categórica, à Psiquiatria Democrática a paternidade do que se pode chamar de Reabilitação Psicossocial, pois, correríamos o risco de desconsiderar as diversas tentativas de reorganizar as práticas psiquiátricas, mesmo que não venham sob essa denominação, tais como: a Psicoterapia Institucional, as Comunidades Terapêuticas, a Antipsiquiatria, entre outras. Experiências que serviram de referência para que Basaglia viesse a formular a sua teoria de desinstitucionaliação, esbarrando, assim, em questões políticas, sociais e culturais, que trouxeram à baila a questão da Reabilitação.
Não se pode deixar de reconhecer a importância de Basaglia e de sua "Psiquiatria Democrática", cujas críticas e práticas influenciaram a ciência e a sociedade na maneira de encarar e tratar a loucura. Mas, se por um lado, Basaglia e seus seguidores tiveram a responsabilidade de apontar o caráter desumano da assistência psiquiátrica, denunciando o preconceito, a discriminação e a exclusão dos alienados; por outro, não se empenharam o suficiente para repensar o caráter clínico da assistência a eles. Ao contrário, alguns chegaram a acreditar que a saída era mesmo o da politização da questão, reduzindo a problemática à operação de uma ação reabilitadora.
Foi no contexto da "Psiquiatria Democrática" que o conceito e a ação da reabilitação psicossocial ganhou corpo e força. Sem dúvida, um dos grandes feitos desse movimento foi chamar a atenção para as atitudes de desrespeito aos direitos humanos cometidas pelo modelo de assistência asilar, que exclui o sujeito do jogo social.
Porém, para esse sujeito que sofre com o turbilhão causado pelo discurso que lhe invade, procurando saídas com seus sintomas, o respeito aos direitos humanos inalienáveis não é o suficiente. É nesse ponto que incide a ação da clínica. É no tencionamento entre essas duas ações contidas na assistência que foi desenvolvida esta reflexão.
Da clínica à reabilitação psicossocial
Não é por acaso que esse tópico é iniciado com uma questão. Como foi dito, existem segmentos que acreditam ser a reabilitação um estágio de evolução acima da clínica, ou seja, que a reabilitação, por si só, desempenhará tanto o papel de inclusão social, como o de reorganização psíquica.
Entendemos que se trata de ingenuidade e também de um equívoco lidar com a questão desse modo, pois, se assim for, a reabilitação terá conotação de adaptação social e de conformismo, ao utilizar os dispositivos de vigilância e de punição, criando-se um outro tipo de manicômio, sem muros, mas que continua a segregar e a excluir.
Por essa lógica, a loucura retoma seu curso inicial antes do século XVIII, quando era considerada forma de erro e/ou de ilusão. Pensamos que não deve ser essa a direção a ser tomada; pelo contrário, o importante não é a adaptação do sujeito, mas sim, o fato de se oferecer a ele, que emerge de seus sofrimentos e conflitos, um suporte a partir de ações reabilitadoras.
Não se trata, também, como nos diz Saraceno (1996), de uma operação técnica, pois reabilitação não é uma nova tecnologia, da qual lançamos mão, para fazer de um paciente "desabilitado" um cidadão habilitado, para passar o indivíduo de um estado de incapacidade para um estado de capacidade. Dessa forma, mantemos o risco de reproduzir processos de condicionamento e adaptação.
Saraceno se refere à reabilitação como uma abordagem; porém, ainda assim, os riscos se mantêm, agora na produção de uma nova cronicidade. Quer dizer, a medida que a reabilitação passa a ser um dispositivo primordial no embate ao sofrimento mental, uma avalanche de programas sociais passa a impor ao sujeito um modelo de vida, cuja adesão é decidida fora de qualquer expressão subjetiva, passando-se do risco da exclusão para o da segregação.
Podemos dizer que se trata de um processo em que as ações terão de estar a serviço do que Viganò (1999) chama de construção do caso clínico - uma reabilitação que leve em conta o sintoma como expressão da tentativa do sujeito de dar significação ao sofrimento, tendo-o como parceiro e não como o mal que deve ser eliminado. Nesse sentido, Viganò nos lembra da proposição de Lacan, quando esse apresenta o psiquiatra1 como secretário do alienado, e acrescenta: "Aquele que reabilita deve ser, não tanto testemunha do desejo do sujeito, como na neurose, mas testemunha de sua existência subjetiva, de sua habilidade para trabalhar." (VIGANÒ, 1999: 53). Rotelli lembra que este vai propor, como função da reabilitação:
"A reabilitação, em psiquiatria, pode ser identificada como um programa de restituição, reconstrução e, às vezes, construção do direito pleno à cidadania e da construção material de um direito como tal." (VIGANÒ, 1999: 53).
Podemos levar a cabo uma proposição como essa se pensarmos que para tal investimento seria necessário abarcar tanto a clínica como a reabilitação como uma prática feita por muitos, como nos diz Laurent (2000) e Zenoni (2000).
Enquanto Laurent aborda a dimensão institucional dessa prática feita por muitos, que articula o sujeito do inconsciente com o sujeito do direito, em que a regra tem de se haver com a exceção, ou seja, a instituição da assistência à saúde mental é o lugar onde se cria uma nova ficção jurídica fundada na expressão da diferença, onde a tolerância e a singularidade irão dar o tom dessa ficção, onde a regra deverá ser negociada caso a caso, respeitando-se a expressão sintomática de cada sujeito. E tudo isso numa dimensão institucional, em que o sujeito será "amparado" pelas mais variadas disciplinas e profissionais.
Zenoni, evocando Lacan, lembra que no segundo tempo do seu ensino sobre as psicoses, passou-se de uma perspectiva em que neurose e psicose se constituíam enquanto opostos, colocadas em descontinuidade, para uma perspectiva em que são colocadas um pouco mais em continuidade, ou seja, Lacan apontará um ponto comum, que é também comum a todos os seres falantes, que é a ausência de um significante último: "[...] um ponto da linguagem onde o significante não corresponde a uma significação, onde o significante é enigmático" (ZENONI, 2000: 33).
Nesse sentido, Zenoni propõe o afastamento da noção da psicose como deficiência, ou seja, a descontinuidade existente na concepção binária, em que a psicose surge como oposição à neurose, dá lugar a uma concepção continuísta, igualando psicose e neurose, porém sem prejudicar o que Lacan denominará de diagnóstico diferencial. O que estará em jogo não é tanto o código de classificação dos sintomas, enquanto modo diferenciador das doenças, mas o modo com que cada estrutura opera diante de determinada situação. Entende-se que esse ponto comum, que se trata de um significante enigmático e encontra-se inscrito na gramática discursiva do ser falante, dará a dimensão dessa clínica como trabalho feito por muitos, na medida em que ambas, neurose e psicose, inscrevem-se e desencadeiam-se no universo da linguagem diferentemente do deficiente mental, que está preso no lesionamento orgânico, esse sim, marcado pela descontinuidade, estará em oposição às estruturas psíquicas.
Voltando à questão proposta, acreditamos que não se deve pensar a reabilitação como dimensão de superação da clínica, pois ao se desconsiderar os aspectos sintomáticos como manifestos discursivos do sujeito, corre-se o risco de fazê-lo um autômato, diferentemente do que se deseja, que é dar-lhe a autonomia versejada pela cidadania. Por isso mesmo, concorda-se com os dizeres de Pelbart, mencionado na epígrafe desse texto: não basta oferecer uma infinidade de equipamentos de reabilitação, se eles não estiverem sustentados por uma proposta que acolha a "desrazão" como possibilidade de significação, tanto no campo do direito, quanto no campo da clínica.
Referências
BASÁGLIA, Franco. A Instituição Negada: relato de um hospital psiquiátrico. Tradução de Heloísa Jahn. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. [ Links ]
FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1987.
LAURENT, Eric. Psicanálise e Saúde Mental: a prática feita por muitos. Curinga - Periódico Semestral da Escola Brasileira de Psicanálise - Sessão Minas Gerais, Belo Horizonte, nº14, 2000.
PELBART, Peter Pal. Manicômio Mental: a outra face da clausura. In: LANCETTI, Antônio. Saúde Loucura. n.º 2. São Paulo: Ed. Hucitec, 1990.
SARACENO, Benedetto. Reabilitação Psicossocial: uma estratégia para a passagem do milênio. In: PITTA, Ana (Org.). Reabilitação Psicossocial no Brasil. São Paulo: Editora Hucitec, 1996.
VIGANÒ, Carlo. A construção do caso clínico em Saúde Mental. In: Curinga - Periódico Semestral da Escola Brasileira de Psicanálise - Sessão Minas Gerais. Belo Horizonte, nº 13, 1999.
ZENONI, Alfredo. A Clínica da Psicose: o trabalho feito por muitos. In: Psicanálise e Instituição: a Segunda Clínica de Lacan. Belo Horizonte, ano I - n.º 0, junho de 2000.
Endereço para correspondência
Ronaldo de Oliveira Zenha
Rua Paulo Diniz Carneiro, 469 - apto. 102 - Buritis
30575-820 Belo Horizonte - MG
Tel.: 55-031 3378-2963 / Cel.: 55-031 9128-7778
E-mail:roz.zen@uol.com.br
Regina M. B. Cunningham
rrboratto@yahoo.com.br
Artigo recebido em: 22/9/05
Revisado para publicação em: 6/10/2005
Aprovado para publicação em: 7/10/2005
* Psicólogo clínico, Mestre em Psicologia Social pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, profissional da equipe do Centro de Referência em Saúde Mental - CERSAM Suzana Nara Ozólio (CAPS III) em Betim, Minas Gerais.
** Regina M. B. Cunningham (tradução)
1 Podemos nos referir aqui, também, ao profissional de referência, denominação dada ao responsável pelo tratamento do paciente nos serviços substitutivos ao manicômio.