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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.4 n.6 Barbacena jun. 2006

 

ARTIGOS

 

Psicanálise e laço social - uma leitura do Seminário 17

 

Psychoanalysis and social bonds - a reading of XVII Seminar

 

 

Carolina Marra S. Coelho*

PUC-MG
FASEH

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com este artigo, pretende-se discutir as formas de laço social propostas por Jacques Lacan no Seminário 17, intitulado O avesso da psicanálise. Lacan apresenta as formas de vínculo social a partir da definição de quatro discursos: do mestre, universitário, da histérica e do analista.

A teoria dos discursos tem relevância teórica e clínica para a psicanálise, pois instaura novo modo de pensar as estruturas clínicas e o vínculo social ao articular os campos da linguagem e do gozo, o sujeito e o saber inconsciente. Com isso, abrimos caminho para trabalhar as formas de estabelecimento do vínculo social e das implicações clínicas deste seminário, uma vez que a psicanálise é uma práxis que tem a clínica como motor.

Palavras-chave: Quatro discursos, Vínculo social, Direção da cura.


ABSTRACT

In this article, the author holds the argument around the forms of social bond proposed by Jacques Lacan in his XVII Seminar, entitled The Underside of Psychoanalysis where Lacan demonstrates the forms of social bonds from his concepts of four discourses: the master, the university, the hysterical and the analyst. Lacan's four discourses has a theoretical and clinical relevance for psychoanalysis because it reveals a new way of thinking the clinical structure and the social bonds, articulating fields of speech and language with the jouissance, the subject and unconscious knowledge. Since psychoanalysis is a praxis that have the clinical enviroment as a motor, it is, then, possible to work the different forms of social bonds and the clinical implications that Lacan proposes in his seminar.

Keywords: Four discourses, Social bond, Psychoanalytic cure.


 

 

Psicanálise e laço social - uma leitura do Seminário 17

O seminário O avesso da psicanálise foi ministrado por Jacques Lacan, na Universidade do Panthéon, em 1969-1970, e ficou conhecido como Seminário 17. O objetivo de Lacan foi retomar o estatuto do sujeito dividido, tomando a psicanálise pelo avesso - pois o "avesso é assonante com a verdade" (LACAN, 1992, p. 53) - e propor uma nova forma de entender o estabelecimento do laço social entre os sujeitos, no qual há uma articulação inovadora entre o campo da linguagem e o campo do gozo.

A partir dessa articulação, Lacan nos propõe pensar a experiência analítica como experiência de discurso. E é o discurso, afirma Lacan, que faz laço. O avesso da psicanálise é um seminário com importantes implicações clínicas, uma vez que o motor da cura psicanalítica é a transferência e o vínculo entre analisante e analista.

Neste artigo buscaremos fazer uma leitura do Seminário 17, que certamente não pretende abordar todos os aspectos desse complexo texto de Lacan, mas apontar a importância desse trabalho no qual Lacan instaura nova e singular forma de se entender o laço social.

Os laços sociais são tecidos e estruturados pela linguagem e, portanto, denominados discursos. Analisaremos cada uma das quatro formas possíveis de vínculo social entre os sujeitos: o discurso do mestre, universitário, da histérica e do analista, buscando compreender sua importância na direção da cura e na experiência de análise.

Os discursos são, na interpretação de Lacan, os quatro modos de relacionamento apontados por Freud (1930) como fontes do sofrimento do homem: governar, educar, analisar e fazer desejar. Os estudos de Freud sobre a histeria também foram fundamentais para a construção do argumento de Lacan nesse seminário, conforme veremos no decorrer deste artigo.

 

Os quatro discursos

O discurso é um modo de relacionamento social representado por uma estrutura sem palavras. Lacan propõe os discursos como sendo modos de uso da linguagem como vínculo social, pois é na estrutura significante que o discurso se funda. É a articulação da cadeia significante que produz o discurso. Os quatro discursos (do mestre, universitário, da histérica e do analista, além do quinto discurso, o do capitalista) são quatro configurações significantes - embora nem tudo seja significante na estrutura do discurso - que se diferenciam e se especificam por sua distribuição espacial. O que está em jogo é aquilo que ordena e regula um vínculo social entre os sujeitos.

O sujeito que interessa à psicanálise é o sujeito do inconsciente, é o sujeito clivado, sem qualidades, vazio, caracterizado pela possibilidade constante de vir a ser. Esse sujeito emerge da relação significante, pois um significante representa o sujeito junto a outro significante. Lacan (1992) ilustra tal argumento no seguinte matema:

 

 

Esse matema, juntamente com um segundo: $ <> a (o ser do sujeito é o objeto), delineia os contornos de uma teoria psicanalítica do sujeito, a partir da idéia lacaniana de subversão do sujeito. A articulação desses dois matemas nos leva àquele que representa a estrutura do discurso do mestre:

 

 

No entanto, é interessante notar que o discurso do mestre exclui a fantasia ($ <> a), interditando ( // ) a articulação entre o sujeito e o objeto a. Esta interdição é que faz com que o mestre seja "em seu fundamento, totalmente cego" (LACAN, 1992, p. 101).

Antes de considerar o discurso do mestre, precisamos entender a estrutura dos discursos para Lacan. Ele define estrutura como "um discurso sem palavras". As palavras são ocasionais; já o discurso é uma estrutura necessária que subsiste na relação fundamental de um significante com outro.

Os discursos nada mais são do que a articulação significante, o aparelho, cuja mera presença, o status existente, domina e governa tudo o que eventualmente pode surgir de palavras. São discursos sem palavras, que vêm em seguida alojar-se nele (LACAN, 1992, p. 158).

Assim, a formalização dos discursos respeita uma distribuição espacial que se dá em dois níveis: quanto às posições e quanto aos termos. As posições são permanentes:

 

 

O agente organiza a produção discursiva, domina o laço social, ao dar o "tom" ao discurso e possibilitar que haja alteridade. O outro é aquele a quem o discurso se dirige. O outro precisa do agente para se constituir. A produção é o efeito do discurso, é aquilo que resta. A verdade sustenta o discurso, mas é acessível apenas pelo "semi-dito". A verdade não pode ser toda dita, havendo uma interdição ( // ) entre a produção e a verdade.

Já os termos do discurso, embora apareçam numa seqüência fixa, ocupam alternadamente cada uma das posições estruturais. São eles:
S1o significante mestre, que representa o sujeito como atravessado e determinado pela ação significante. É a condição da articulação da cadeia, estando, de alguma forma, fora dela. É um significante vazio de significação;
S2 o saber, o significante ante o qual S1 representa o sujeito e em concatenação com o qual se estrutura a cadeia mínima para a significação. A psicanálise é o descobrimento de um saber que não se sabe - o inconsciente - cuja articulação é a do S2.
aobjeto "a", causa de desejo ou mais-de-gozar.
$o sujeito marcado pela barra, deixando aberta a possibilidade de vir a ser. O sujeito é, para Lacan, esvaziado de toda substância.

No momento em que o significante (S1) intervém no campo do Outro (A), campo estruturado por um saber (S2) em que outros significantes se articulam, surge o sujeito dividido ($). Nesse trajeto há também uma perda, que Lacan denomina objeto a. Essa operação pode ser representada nos seguintes termos:

 


Esta estrutura é chamada por Lacan de Discurso do Mestre:

[...] é fato, determinado por razões históricas, que essa primeira forma, a que se enuncia a partir desse significante, que representa um sujeito ante outro significante, tem uma importância toda particular na medida em que, entre os quatro discursos, ela se fixará no que iremos enunciar este ano como discurso do mestre (LACAN, 1992, p. 18).

No discurso do mestre, podemos ver a relação dialética entre o senhor e o escravo introduzida por Hegel em A Fenomenologia do Espírito, que foi a base para o desenvolvimento da teoria dos quatro discursos. Não retomaremos aqui a parábola proposta por Hegel; vamos nos ater apenas em uma análise feita por Lacan, na qual ele discute a idéia de que o escravo se libertará pelo trabalho:

Sem prejudicar a dialética hegeliana por uma constatação de carência, há muito levantada a propósito da questão do vínculo da sociedade dos senhores, mestres [...]. O trabalho, diz-nos ele, a que se submete o escravo, renunciando ao gozo por medo da morte, será justamente a via pela qual ele realizará a liberdade. Não há engodo mais manifesto politicamente e, ao mesmo tempo, psicologicamente. O gozo é fácil para o escravo e deixará o trabalho na servidão (grifo nosso) (LACAN, 1998, p. 825).

O trecho aponta para as reflexões lacanianas sobre a questão do vínculo. E Lacan, conforme já citado, propõe os discursos como sendo um modo de uso da linguagem como vínculo social, uma vez que o discurso se funda na estrutura significante. O discurso passa a ser produzido pela articulação da cadeia significante.

A partir do discurso do mestre, podemos obter outras três, e somente três, estruturas discursivas, visto que a cadeia simbólica não pode ser desarrumada (com exceção, como veremos, do discurso do capitalista). Cada uma das estruturas desses discursos é diferente da outra pela posição dos termos. Lacan chama seus discursos de "pequenos quadrípodes giratórios", definindo "quatro discursos radicais". Esses discursos dão sustentação ao mundo, fazem parte de seus pilares. A cada um quarto de giro dos termos pelas posições, obtemos cada um dos quatro discursos, que se seguem:

 

 

 

Além dos quatro discursos há, ainda, o Discurso do Capitalista, que quebra a ordem lógica dos discursos:

 

 

O Discurso do Capitalista, ao qual Lacan faz alusão no Seminário 17, não é propriamente um outro discurso, mas uma forma mais contemporânea de pensar o Discurso do Mestre. Note-se que as posições mudaram e apenas o lugar da verdade permanece o mesmo, mas não há qualquer relação entre o agente e o outro: não há laço social no discurso do capitalista, não há vínculo entre o capitalista e o proletário.

Seguindo a proposta de Lacan, veremos, em primeiro lugar, o Discurso do Mestre:

 

 

Lacan, ao dialogar com Hegel, posiciona S1 (o significante mestre) como o "senhor" e mostra a suposta identidade entre o sujeito e o S1. O mestre tenta sustentar-se no mito ultra-reduzido de ser igual a seu próprio significante. S2 (o saber) aparece como o "escravo". O que se produz nessa relação é gozo, e é disso que Lacan fala: "o gozo é fácil para o escravo..." A verdade do mestre é que ele é castrado. O escravo tem algum saber sobre a castração do senhor, pois o $ no lugar da verdade mostra que não existe essa identidade ôntica e que o sujeito não é unívoco, mas, sim, dividido.

 

 

Lacan mostra-se bastante preocupado com esta forma do laço social, o que em parte se justifica por ser considerado o alicerce da ciência e pelo contexto histórico pelo qual a França estava passando. O Seminário 17 foi ministrado nos anos de 1969 e 1970 e é marcado pelos acontecimentos de 1968, o que fica claro desde a escolha da foto de Gilles Caron para a capa do livro. Aqui, o saber ocupa a posição dominante; o sujeito sapiente é o agente. O professor veiculará o ensino. O "a", como outro, representa o estudante (ou "a"-estudante, como prefere Lacan) que, causado pelo desejo, realiza o trabalho de escrever, sendo explorado pelo discurso universitário. O produto da universidade é um $, um sujeito barrado, incompleto, que terá desejo de saber mais. Lacan diz que o estudante entra na universidade achando que sabe tudo e sai consciente de que não sabe nada. O S1 aparece no lugar da verdade, que ordena: "- Vai, continua. Não pára. Continua a saber sempre mais" (LACAN, 1992, p. 98).

 

 

O discurso da histérica tem grande importância para a psicanálise. Foi na escuta desse discurso que Freud fundou a psicanálise e o seu produto central: o inconsciente. O S2 aparece, portanto, na posição de produção. A histérica sabe-se dividida ($ como agente), o sintoma aparece como dominante e solicita interpretação. Ela reconhece sua falta e procura, incessantemente, preenchê-la. Para tanto, constitui alguém como mestre, como quem supostamente detém o significante mestre. É nessa posição, de mestre, que ela tentará colocar e, em seguida, tirar o analista quando demanda uma resposta dele. O objeto "a" está na posição da verdade, em disjunção com o saber: "Sua verdade é que precisa ser objeto a para ser desejada" (LACAN, 1992, p. 167).

Para Lacan (1992, p. 87), o mérito do discurso da histérica está "em manter na instituição discursiva a pergunta sobre o que vem a ser a relação sexual, ou seja, de como um sujeito pode sustentá-la, ou, melhor dizendo, não pode sustentá-la". E a resposta a essa pergunta, afirma Lacan, é a verdade que está recalcada.

Ao trabalhar o discurso da histérica, Lacan (1992, p. 90) nos chama a atenção para os estudos freudianos sobre a histeria, afirmando que "é preciso ler Dora". Assim, retomaremos brevemente o trabalho publicado por Freud, em 1905, no qual ele apresenta o Caso Dora. O atendimento de Dora levou Freud (1905) a construir hipóteses para explicar as causas dos sintomas histéricos, relacionando-os com a excitação sexual, que seria seu motor. O objetivo prático do tratamento conduzido por Freud, neste caso, era remover todos os sintomas possíveis, substituí-los por pensamentos conscientes e reparar todos os danos causados à memória da paciente.

A partir do caso Dora, Freud foi levado a fazer mudanças na técnica psicanalítica, firmando a importância da transferência e dos sonhos para o tratamento:

Os leitores familiarizados com a técnica de análise como foi exposta nos Estudos sobre a histeria [BREUER e FREUD, 1895], talvez se surpreendam que não tenha sido possível, em três meses, encontrar uma solução completa pelo menos para aqueles sintomas que foram abordados. [...] Naquela época o trabalho de análise partia dos sintomas e buscava esclarecê-los, um após o outro. Desde então, abandonei essa técnica por achá-la totalmente inadequada para lidar com a estrutura mais delicada de uma neurose. Agora deixo ao próprio paciente o assunto do trabalho do dia, e desta forma parto de qualquer aspecto que seu inconsciente esteja apresentando à sua percepção no momento. Mas neste plano, tudo que tem a ver com o esclarecimento de um determinado sintoma, emerge pouco a pouco, entrelaçado em vários contextos e distribuídos por períodos de tempo grandemente apartados. Apesar dessa visível desvantagem, a nova técnica é superior à antiga e, na verdade, não pode subsistir dúvida de que é a única possível (FREUD, 1905, p. 10).

Assim, a associação livre torna-se a regra fundamental da psicanálise e a interpretação dos atos falhos e dos sonhos passou a ser peça chave do tratamento. A Interpretação dos sonhos, publicada em 1900, foi considerada por Freud seu mais importante trabalho, sua descoberta mais valiosa. A análise do sonho de Dora levou Freud a refletir sobre a relação dela com sua amiga, a Sra. K, e a levantar questões fundamentais para a psicanálise: "o que é a feminilidade?" "O que quer uma mulher?"

"O que a histérica quer", afirma Lacan:

[...] é um mestre. A tal ponto que podemos indagar se a invenção do mestre não partiu daí [...] Ela quer que o outro seja um mestre, que saiba muitas e muitas coisas, mas mesmo assim, que não saiba demais, para que não acredite que ela é o prêmio máximo de todo o seu saber. Quer um mestre sobre o qual ela reine (LACAN, 1992, p. 122).

Então, o que o analista fará quando inquirido? Irá questioná-la, no sentido de fazê-la pensar o que do desejo dela está na pergunta que ela fez. Desse modo, a histérica colocará em questão sua própria posição de sujeito e transformará seu desejo em agente do discurso. Assim, podemos entender o porquê da importância da histericização do discurso no percurso analítico: o sujeito precisa se confrontar com sua falta de saber e demandar: "Quem sou eu?" e "Qual é o meu desejo?". Segundo Serge André:

[...] a histeria constitui bem a neurose de base, da qual as outras são apenas variantes ou dialetos, a única, aliás, que Lacan vai elevar ao nível de estrutura de discurso (ANDRÉ, 1986, p. 15).

A histeria está no alicerce da psicanálise e tem lugar fundamental na teoria dos discursos, pois o discurso histérico é chave do processo de cura psicanalítico:

Freud deu lugar e direito à histeria como vínculo social; a escrita freudiana é o saber da verdade da histeria finalmente advinda. E Lacan a nomeia como tal. A verdade se diz por e nas formações do inconsciente: sintoma, sonho, ato falho, chiste. Assim retorna no discurso histérico o que o discurso do mestre recalcou. Daí a invenção de Freud: a regra fundamental da associação livre no analisando permite a produção de um saber sobre esse dizer da verdade - saber novo, inteiramente diverso do saber universitário (JULIEN, 1996, p. 251).

O discurso da histérica é o modelo, por excelência, do discurso do analisando. Retomaremos adiante este argumento.

 

 

O psicanalista está, conforme aponta Rabinovich (s/d), "entre o mestre e o pedagogo", renunciando a todo o discurso do domínio. Nesse sentido, Lacan afirma que o discurso do mestre é o avesso da psicanálise. O contraponto do discurso do mestre é o discurso do analista; um se encontra no pólo oposto do outro.

O agente, no discurso do analista, é o desejo inconsciente, um questionamento dos significantes mestres. A posição do analista é feita substancialmente do objeto "a", causa de desejo, a partir do qual é possível a associação livre; assim, "o analista se faz causa do desejo do analisante" (LACAN, 1992, p. 36). O saber inconsciente (S2) ocupa, no discurso do analista, o lugar da verdade. E estando no lugar da verdade, é um enigma, um dito pela metade. Segundo Serge André (1986), o saber como se decifra do inconsciente, assegurando a pertinência da intervenção analítica. É preciso entender que, para a psicanálise, não é possível saber tudo, pois o inconsciente é o "não todo". O produto desse discurso será o S1.

Diana Rabinovich nos presenteia com uma bela definição da função do psicanalista:

Nossa função, enquanto analistas, é colaborar no advento e no reconhecimento do desejo inconsciente, função que se indica no discurso do analista, através desse impossível que, no manifesto, articula a sua primeira linha: $ <> a, a fórmula da fantasia, através da qual o "a" lhe chega ao sujeito. [...] Fazer surgir o objeto causa de desejo do dizer do analisante nada tem a ver com uma suposta adequação do paciente à 'realidade', no sentido habitual do termo; não implica qualquer juízo sobre qual seja o melhor objeto para o sujeito, a não ser a recuperação da sua dignidade enquanto sujeito. (RABINOVICH, s/d, p. 17).

A experiência analítica é, para Lacan, "uma experiência de discurso", uma experiência da ordem do saber, que liga S1 a S2. O saber é posto na berlinda pela psicanálise, impondo-nos um dever de interrogação. O que o analista institui como experiência analítica é a histerização do discurso. Este ponto nos leva a trabalhar a respeito das implicações clínicas da teoria dos quatro discursos.

 

Os discursos e a direção da cura

A construção do saber psicanalítico só é possível como práxis, pois a partir da clínica nos deparamos com os limites da teoria e somos impelidos a produzir. Portanto, a psicanálise contribui com esse novo - e ampliado - discurso da ciência, quando coloca a noção de sujeito como aquele que tem infinitas possibilidades de vir a ser. A análise é uma experiência da ordem do saber. O saber, posto na berlinda pela psicanálise, "nos impõe um dever de interrogação" (LACAN, 1992, p. 28).

Uma análise implica que o sujeito seja posto frente à sua própria pergunta, seja porque o sujeito já vem nessa posição, seja porque o analista lhe propicie que entre nela: "Quem sou eu?", "Qual é o objeto do meu desejo?" A análise tem início, segundo Vegh (1999, p. 169), quando "[...] o analisante se encontra a si mesmo dividido entre o que diz e o que sabe disso que diz" (trad. nossa), quando o sujeito se pergunta: "Por que tenho eu que sofrer esse sintoma?" Em outras palavras, a análise começa quando o $ está no lugar de agente:

 

 

O analista institui a histerização do discurso, faz uma "introdução estrutural, mediante condições artificiais, do discurso da histérica" (LACAN, 1992, p. 31). Lacan afirma que o fundamento da experiência analítica é a histerização do discurso, pois possibilita a associação livre:

Não estará aí, afinal, o próprio fundamento da experiência analítica? Pois digo que ela dá ao outro, como sujeito, o lugar dominante no discurso da histérica, histeriza seu discurso, faz dele um sujeito a quem se solicita que abandone qualquer referência que não seja a das quatro paredes que o envolvem, e que produza significantes que constituam a associação livre soberana, em suma, do campo (LACAN, 1992, p. 32).

Toda análise passa pelo discurso histérico, nesse sentido que dizemos que o discurso da histérica é o modelo por excelência do discurso do analisando. Os discursos são um novo modo de Lacan apresentar as estruturas clínicas.

A noção de estruturas clínicas diz da "[...] posição do sujeito, basicamente em relação à castração do Outro e à própria castração" (PALONSKY, 1997, p. 20). Então, quando falamos em estruturas clínicas estamos falando não de sintomas, mas da posição do sujeito frente à castração. Lacan chama de castração a falha que existe na estrutura, sendo que toda estrutura tem, por definição, uma falha.

A estrutura histérica tem como mecanismo o recalque da castração do Outro, e a histérica1 se apresenta sempre como insatisfeita. A insatisfação resulta do recalque bem-sucedido da castração do Outro. "O recalque consiste em que determinado significante passe para o inconsciente e, no lugar, fica uma falta, a falta de um significante" (PALONSKY, 1997, p. 70). Com o recalque algumas frases não são traduzidas em palavras e surgem como sintomas. Mas precisamos lembrar que não são os sintomas que definem a estrutura clínica, mas a posição do sujeito frente à castração.

Segundo Palonsky (1997), a histeria se estrutura em torno de algumas condições: ausência de objeto sexual previamente marcado; estrutura do desejo como desejo do Outro; ausência de complementaridade entre os sexos; características do Édipo na mulher.

Essas condições de estrutura levantam perguntas que vão estabelecer a histeria: o que desejar? O que é ser mulher? O que os homens desejam nas mulheres? O que as mulheres desejam no homem? "Essas perguntas básicas", afirma Palonsky (1997, p. 46), "vão funcionar como eixo e guia da vida da histérica, que vai se dedicar a tentar achar uma resposta para elas, mas com a particularidade de que ela não sabe que o que ela procura é um saber". A busca do saber define o discurso da histérica, sendo fundamental na clínica psicanalítica.

Assim, no Seminário 17, Lacan propõe nova maneira de apresentar as estruturas clínicas e qualifica a histeria como modo de vínculo social:

Com isso, a histeria não dá nome a uma neurose, à maneira da interpretação médica, nem a uma cumplicidade culposa com o mal, à maneira da interpretação teológica. O que está em jogo é de ordem estrutural: escrever aquilo que ordena e regula um vínculo social (JULIEN, 1996, p. 249).

Quando um sujeito procura uma análise, o analista propicia a conversão desta procura em uma demanda de análise. O sujeito irá situar-se, então, como a histérica com seu sintoma: diz seu sintoma, mas ignora sua razão, dirigindo ao outro a pergunta por seu sofrimento, supondo a produção de um saber (S2).

O S2 é um conjunto de significantes que forma uma rede e essa rede forma um saber, um saber sem sujeito. O inconsciente é uma cadeia significante que não pertence a ninguém; o sujeito só pode existir em relação ao Outro, que lhe é prévio. A histérica procura um saber. De um lado ela quer saber, mas de outro não quer chegar a saber, pois esse saber é sobre o gozo. O gozo, afirma Serge André (1998), faz barreiras ao saber. Se chegasse às últimas conseqüências na procura do saber, apareceria a castração do Outro, o encontro com o objeto causa de desejo (a) e a angústia inevitável.

Para Lacan, o objetivo do Seminário 17 é pensar sobre o quanto de saber é preciso, na experiência histérica, para que esse saber possa ser questionado no lugar da verdade, como podemos observar em suas palavras:

Para o analisante que está ali, no $, o conteúdo é seu saber. A gente está ali para conseguir que ele saiba tudo o que não sabe, sabendo-o contudo. O inconsciente é isso. Para o psicanalista, o conteúdo latente está do outro lado, em S1. Para ele, o conteúdo latente é a interpretação que vai fazer, na medida em que esta não é aquele saber que descobrimos no sujeito, mas o que se lhe acrescenta para dar-lhe um sentido (LACAN, 1992, p. 106).

Portanto, na clínica da histérica podemos notar sua posição constante de inquiridora, ou seja, tem sempre algo que ela quer que alguém (o analista) responda. Em última instância, a pergunta fundamental da histérica seria: "o que quer uma mulher?" O analista não responderá às questões de sua paciente. Dizer ao cliente o que ele deve fazer - ficando na posição de senhor - é tentar impor os nossos desejos para o outro. Responder a demanda da histérica provoca um quarto de giro no discurso, colocando o S1 como agente, caindo na maestria. Como discutimos anteriormente, o que a histérica fará é, em seguida, destituí-lo desse lugar. É bom lembrarmos, entretanto, que no manejo da clínica, em algumas situações calculadas, é importante "passear", vamos dizer assim, por outros discursos, sem nunca excluir o sujeito.

Finalmente, gostaríamos de salientar duas contribuições do seminário O avesso da psicanálise. A primeira é o aprofundamento da discussão sobre o objeto a, considerado pelo próprio Lacan como a sua contribuição mais relevante e original à psicanálise. A segunda é, como vimos, suas implicações clínicas. A psicanálise é construída no entrelaçamento entre teoria e clínica, é uma práxis. Assim, discussões teóricas, como a realizada por Lacan nesse seminário, são movidas pela clínica, contribuindo para o desenvolvimento da psicanálise. A teoria dos discursos nos mostra que psicanálise é a possibilidade de o sujeito mudar de posição frente ao Outro, recuperar sua dignidade e ser infinitamente diferente do que é.

 

Referências

ANDRÉ, Serge. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. (1905) Fragmento da análise de um caso de histeria. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. VII.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. (1930) Mal-estar na Civilização. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. XXII.        [ Links ]

JULIEN, P. Histeria. In: KAUFMANN, Pierre. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise: o legado de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. p. 245-252.        [ Links ]

LACAN, Jacques. Seminário 17 - o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.         [ Links ]

LACAN, Jacques. Subversão do Sujeito. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

PALONSKY, Cíntia. Estruturas clínicas na clínica: a histeria. Belo Horizonte: PUC - Minas, 1997.        [ Links ]

RABINOVICH, Diana. O psicanalista: entre o mestre e o pedagogo. Reorganizado por Luís Flávio Couto: mimeo. s/d.        [ Links ]

VAZ, H. Senhor e Escravo: Uma parábola da filosofia ocidental. In: Síntese. Nova Fase: Rio de Janeiro, 1981.        [ Links ]

VEGH, Isidoro (Org.). Los discursos y la cura. Buenos Aires: ACME, 1999.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Antônio de Albuquerque 1628 / 601 - Lourdes
30112-011 Belo Horizonte - MG
Tel.: 55-31 3337-6084 / 55-31 9654-6084
E-mail: carolinamarra@gmail.com

Artigo recebido em 6/1/2006
Revisado para publicação em 29/3/2006
Aprovado em 3/4/2006

 

 

* Psicóloga, Mestre em Psicologia Social, professora da PUC-Minas e da Faculdade de Saúde e Ecologia Humana - FASEH. Coordenadora do Benvinda - Centro de Apoio à Mulher.
1 Usaremos o feminino quando nos referirmos à histeria, mas na clínica também aparecem, embora com menor freqüência, homens histéricos.

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