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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.4 n.7 Barbacena nov. 2006

 

ARTIGOS

 

Os termos 'Ética' e 'Moral'

 

The terms 'ethic' and 'moral'

 

 

Eduardo Dias Gontijo*

Universidade Federal de Minas Gerais - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo trata da questão da aplicação dos termos 'ética' e 'moral', comumente usados para se referir a um mesmo domínio de saber e um mesmo campo de fenômenos. Num primeiro momento, procura-se demonstrar a sinonímia original dos termos, a partir de suas respectivas raízes etimológicas. Em seguida, são exploradas algumas nuances de significação dos termos, a partir da crítica hegeliana da filosofia prática de Kant. Finalmente, é discutida a prevalência atual do termo - ética -.

Palavras-chave: Ética, Moral, Etimologia, Filosofia moral, Pós-modernidade.


ABSTRACT

The paper is concerned with the application of the terms 'ethics' and 'moral', which are often used to refer to the same field of knowledge and phenomena. Initially, we will try to demonstrate their original synonymy, based on their etymological roots. Afterwards, some nuances of meaning will be explored, regarding Hegel´s critique of Kant´s practical philosophy. Finally, the current prevalence of the term 'ethics' in the ethos of pos-modernity will be discussed.

Keywords: Ethics, Moral, Etimologia, Moral philosophy, After-modernity.


 

 

Introdução

Dada a grande confusão semântica atual em torno dos termos 'ética' e 'moral', minha modesta contribuição neste artigo versará sobre um problema de natureza estritamente terminológica, a saber, a questão do uso de dois termos de grafias distintas - 'ética' e 'moral' - para se referir a um mesmo domínio de saber e a um mesmo campo de fenômenos.

Num primeiro momento, procurarei demonstrar a sinonímia original dos termos 'ética' e 'moral' a partir de suas respectivas raízes etimológicas. Em seguida, explorarei algumas nuances de significação no uso desses termos que se originaram no início do século XIX, ao fim da Era Moderna, e se revelam no vocabulário ético atual. Concluirei meu trabalho discutindo a preferência atual do termo 'ética' sobre a palavra 'moral'.

 

Ética e Moral como sinônimos

A palavra 'ética' provém do adjetivo 'ethike', termo corrente na língua grega, empregado originariamente para qualificar um determinado tipo de saber. Aristóteles foi o primeiro a definir com precisão conceitual esse saber, ao empregar a expressão 'ethike pragmatéia' para designar seja o exercício das excelências humanas ou virtudes morais, seja o exercício da reflexão crítica e metódica (praktike philosophia) sobre os costumes (ethea)1. Com o passar do tempo, o adjetivo gradualmente se substantiva e passa a assinalar uma das três partes da filosofia antiga (logike, ethike, physike).

O adjetivo 'ethike', por sua vez, originara-se do substantivo 'ethos', que constitui uma transliteração de dois vocábulos gregos: éthos (com eta inicial - hqoV) e êthos (com epsilom inicial - eqoV). Éthos com eta (ç) inicial designa, em primeiro lugar, a morada dos homens e dos animais. É o éthos como morada que dá origem à significação do éthos como costume2, estilo de vida e ação. A metáfora contém a idéia de que o espaço do mundo torna-se habitável pelo homem por meio do seu éthos. Isto é, mais do que habitar a physis, a natureza, o homem habita o seu éthos: pois, diferentemente da physis, o éthos, como espaço construído e incessantemente reconstruído - e tecido pelo logos - é o seu abrigo protetor mais próprio3.

Êthos com epsilom (å) inicial refere-se primordialmente ao processo genético do hábito (hexis) como disposição estável para agir, que decorre do exercício dos atos. A partir daí, passa a significar o caráter pessoal como um padrão relativamente constante de disposições morais, afetivas, comportamentais e intelectivas de um indivíduo4.

O termo latino mos, de onde provém o termo moral, foi usado (provavelmente por Cícero) para traduzir o vocábulo ethos, o qual conhece, no mundo latino, quase idêntica história semântica ao termo grego ethos. Designando originariamente a morada dos homens e dos animais, amplia gradualmente seu significado para denotar, do ponto de vista coletivo, os costumes, e de um ponto de vista individual, o modo de ser - o caráter.

Com a criação da Ética como ciência do ethos no mundo grego - como aplicação do logos demonstrativo à reflexão crítica sobre os costumes e modos de ser dos homens - a palavra 'ética' passou a designar, na tradição filosófica, tanto o objeto de estudo de uma disciplina quanto o estudo do objeto. 'Ética' significa, portanto, tanto a disciplina que reflete criticamente sobre o saber ético encarnado nos costumes e modos de ser, como esse próprio saber. O mesmo se verifica com a palavra 'moral', que servirá para designar tanto o objeto de estudo - a mo- quanto o estudo crítico do objeto - a Filosofia Moral.

No que respeita a tradição filosófica, os termos 'moral' e 'ética' designam, portanto, o mesmo campo de fenômenos e o mesmo domínio de reflexão. Isto é, são sinônimos. Posição esta que pessoalmente assumo e que, igualmente, é assumida pela maior parte dos filósofos e está plenamente de acordo com a organizadora do principal dicionário de ética de nossa época - Dicionário de Ética e Filosofia Moral - Monique Canto-Sperber. Eis, com todas as letras, o que ela afirma, de forma inequívoca, em outra obra, A inquietude moral e a vida humana, publicada recentemente no Brasil:

Vou decepcionar o leitor dizendo que em geral me sirvo dos termos 'moral' e 'ética' como sinônimos.[...] não há nenhuma dúvida sobre o fato de que os termos 'moral' e 'ética' designam o mesmo domínio de reflexão. E para nos referirmos ao tipo particular de atitude que é a reflexão sobre a ação, o bem ou o justo podemos nos servir indiferentemente de qualquer um dos dois termos5.

 

Nuances de significação dos termos 'ética' e 'moral'

Apesar da sinonímia de origem, que recomenda empregar indiferentemente os termos 'ética' e 'moral' para designar o mesmo campo de fenômenos, observamos, atualmente, diferentes nuances de significação no uso dos termos. Nesta parte do trabalho, explorarei alguns exemplos de usos diferenciados dos termos 'ética' e 'moral'.
a) Moralidade e eticidade em Hegel

O que denomino aqui "nuances" de significação começaram, provavelmente, a introduzir-se no vocabulário filosófico, no início do século XIX, por meio da célebre distinção hegeliana, na dialética do Espírito Objetivo, tanto na Enciclopédia das Ciências Filosóficas, como na Filosofia do Direito, entre o domínio da Moralität (moralidade) e da Sittlichkeit (eticidade). Moralität compreendia o domínio kantiano-fichtiano da moralidade interior, e Sittlichkeit conotava o campo da eticidade social e politica6.

Com efeito, na Enciclopédia, Hegel afirma que, na moralidade "a determinidade da vontade está assim posta no interior [...] moral aqui tem o sentido de uma determinação da vontade, na medida em que ela está no interior da vontade" (§ 503). Enquanto que "a eticidade é a plena realização do espírito objetivo, a verdade do espírito subjetivo e do espírito objetivo mesmos" (§ 513).

De certo modo, podemos dizer que, para a dialética de Hegel, a eticidade é a verdade da moralidade, isto é, constitui a sua realização concreta, sem a qual a segunda permaneceria puramente formal ou ao nível de uma particularidade abstrata. Longe de se opor estruturalmente à Eticidade - é evidente que, enquanto momentos da vida do Espírito, elas se opõem dialeticamente - a Moralidade representa para Hegel um estágio elevado do pensamento da Liberdade, tal como ele se exprimiu na Ética de Kant e de Fichte. Já a passagem da Moralidade para a Eticidade significa o início da vida propriamente ética - o campo das virtu- e da realização efetiva da liberdade na esfera prática7. Nas palavras de H. C. Lima Vaz, magistral leitor de Hegel: "Existindo na substância ética, o indivíduo se submete livremente ao sistema de seus deveres dando à sua ação, ao cumpri-los, a qualidade de virtude e participando, assim, do universo ético dos costumes (Sitten)"8.

b) Ética e moral em Paul Ricoeur

Alguns autores atuais, na esteira do pensamento de Paul Ricoeur, consideram que a palavra "moral" sugeriria, fundamentalmente, a presença da obrigatoriedade das normas, dos deveres, das obrigações; seu domínio semântico pertenceria, primordialmente, ao registro do imperativo categórico e à filosofia kantiana. A ética, por sua vez, estaria associada ao bem viver, às virtudes ou às práticas efetivas concretas, e expressar-se-ia no optativo9. Torna-se, pois, relevante rever o que nos diz o ilustre filosofo francês neste contexto:

É preciso distinguir entre moral e ética? A dizer a verdade, nada na etimologia ou na história do uso das palavras o impõe: uma vem do grego, outra do latim, e ambas remetem à idéia dos costumes (ethos, mores); pode-se, todavia, distinguir uma nuance, segundo se ponha o acento sobre o que é estimado bom ou sobre o que se impõe como obrigatório. É por convenção que reservarei o termo 'ética' para a intenção da vida boa realizada sob o signo das ações estimadas boas, e o termo 'moral' para o lado obrigatório, marcado por normas, obrigações, interdições caracterizadas ao mesmo tempo por uma exigência de universalidade e por um efeito de constrição. Pode-se facilmente reconhecer na distinção entre intenção de vida boa e obediência às normas a oposição entre duas heranças: a herança aristotélica, na qual a ética é caracterizada por sua perspectiva teleológica (de télos, fim); e uma herança kantiana, na qual a moral é definida pelo caráter de obrigação da norma, portanto por um ponto de vista deontológico10.

c) Moral como objeto de estudo e ética como estudo do objeto

Para outros autores, a exemplo de Adela Cortina11, grande pensadora espanhola, a palavra 'moral' deve ser usada preferencialmente para denotar o objeto de estudo, enquanto a palavra 'Ética' - ou Filosofia Mo- deveria reservar-se à disciplina filosófica que busca refletir criticamente da moral.

Esse uso encontra apoio na linguagem corrente. De fato, o termo 'moral' é muitas vezes usado como substantivo, em suas diversas acepções, para designar âmbitos que constituem o objeto de estudo da Ética ou da Filosofia Moral: (1) ou um modelo de conduta socialmente estabelecido em uma sociedade concreta ("a moral vigente"); (2) ou um conjunto de convicções morais pessoais ("fulano possui uma moral rígida"); (3) ou tratados sistemáticos sobre as questões morais ("Moral"), sejam doutrinas morais concretas ("Moral católica" etc.), sejam teorias éticas ("Moral aristotélica" etc., embora o mais corrente seja "ética aristotélica" etc.); (4) ou uma disposição de espírito produzida pelo caráter e atitudes de uma pessoa ou grupo ("estar com o moral alto" etc.); (5) ou uma dimensão da vida humana pela qual nos vemos obrigados a tomar decisões ("a moral"). Como adjetivo, em usos que interessam à Ética, o termo moral é preferencialmente usado em contraposição à "imoral", ou em contraposição à "amoral".

Já o termo 'moralidade' é muitas vezes usado, seja como (a) sinônimo de "moral", no sentido de uma concepção moral concreta (p. ex. quando dizemos "isso é uma imoralidade" = "isso não é moralmente correto"), seja como (b) sinônimo de "a moral", isto é, uma dimensão da vida humana identificável entre outras e não redutível a nenhuma outra, e que se manifesta no fato de que emitimos juízos morais; (c) ou na contraposição filosófica de cunho hegeliano entre "moralidade" e "eticidade", já discutida antes.

 

Ética sem Moral?

No uso dos termos ética e moral, a sinonímia original deve prevalecer como pano de fundo para as diversas nuances de significação. E isso, antes de mais nada, porque a idéia de um bem desejado remete sempre a uma certa normatividade, e, por outro lado, toda normatividade sempre faz referência a uma certa idéia de bem. Em termos gerais, se quero algo, devo algo; se devo algo, quero algo.

O que não se pode é tratar os termos como antônimos. Tal uso é superficial e contraditório: é contraditório defender, por exemplo, uma ética sem moral, ou uma moral sem ética. Enquanto a sinonímia é, em geral, mais adequada: é perfeitamente legítimo falar, por exemplo, de uma ética universal de Kant ou uma moral das virtudes de Aristóteles.

Quando filósofos utilizam distintas nuances de significação, geralmente o fazem para denotar diferentes aspectos da vida moral ou da reflexão moral, isto é, diferentes dimensões de um mesmo fenômeno. É evidente que uma parte considerável da vida em comum exprime-se mais adequadamente através das idéias de obrigação e do dever, enquanto outra se expressa por aspirações. Devo, por exemplo, respeitar os direitos do outro, devo honrar os contratos, devo ser justo etc. Por outro lado, a generosidade não se pode obrigar: ela expressa um dom gratuito.

Uma separação excessiva no uso dos termos implicaria um uso avaliativo da distinção, subentendendo, grosso modo, que a ética vale mais que a moral, ou seja, que a aspiração e o desejo valem mais que o dever e a obrigação. Essa prevalência do termo 'ética' em relação ao termo 'moral' serviria, finalmente, para expressar aquele novo ethos denunciado por Gilles Lipovetsky, num livro que se tornou célebre - O crepúsculo do dever. A ética indolor dos novos tempos democráticos12, que poderia ser também traduzido com outro título: O crepúsculo da moral. A ética indolor dos novos tempos.

Para Lipovestsky - recordemos que trata-se aqui de uma análise sociológica - a era da moral se apagou para dar lugar à era da ética, que se instalou com todo seu brilho. Fruto do novo ethos individualista e do narcisismo dos tempos atuais, essa nova ética é indolor, foge da dor do dever, na medida em que "não ordena nenhum sacrifício maior, nenhuma separação de si mesmo". A pós-modernidade é, pois, nessa perspectiva, uma era "pós-moralista", que consagra a saída da forma-dever, de devoção a fins superiores, transcendentes. Para Lipovetsky, com efeito, apesar da secularização em marcha na era moderna, a moral se encontraria demasiado próxima do espírito religioso, da qual preserva "a noção de dívida infinita, de dever absoluto [...] da imperatividade ilimitada dos deveres", como conjunto de "obrigações supremas em relação ao que nos ultrapassa" e fundamento das obrigações morais e coletivas.

Em relação às palavras finais de Lipovestsky, é forçoso nos interrogarmos se, de fato, existiu, um dia, tal moral incandescente, em que tal dever infinito vibraria nos corações.

O que parece certo, entretanto, é que não podemos abrir mão das aspirações por uma vida melhor, dos deveres para com o outro, nem de ética e nem de moral.

 

Referências

CANTO-SPERBER, Monique. A inquietude moral e a vida humana. São Paulo: Loyola, 2005.        [ Links ]

CORTINA, A. e Martinez, E. Ética. São Paulo: Loyola, 2005.        [ Links ]

HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas. São Paulo: Loyola, 1995, v. III, p. 295.        [ Links ]

LIMA VAZ, Henrique C., Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica. São Paulo: Loyola, 1999.        [ Links ]

LIPOVETSKY, Gilles. O crepúsculo do dever. A ética indolor dos novos tempos democráticos. Lisboa: Don Quixote, 1994.        [ Links ]

HOUAIS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.        [ Links ]

RICOEUR, Paul. Ética e Moral. In: Leituras 1: Em torno ao político. São Paulo: Loyola, 1995.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Francisco Deslandes, 780 / 602 - Bloco 1 - Bairro Anchieta - 30310-530 &– Belo Horizonte - MG - Brasil - Tel: (31) 3284-0913
E-mail: edgontijo@ufmg.br

Artigo recebido em: 16/6/2006
Aprovado para publicação em: 11/7/2006

 

 

*Professor do Departamento de Psicologia da UFMG.Doutor em Psicologia pela United States International University of San Diego. Pós-doutor pela Pontificia Universidad de Comillas. Atual vice-diretor da FAFICH-UFMG.
1Ver H. C. Lima Vaz, Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica, São Paulo, Loyola, 1999.
2No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, éthos significa "o conjunto dos costumes e hábitos fundamentais, no âmbito do comportamento (instituições, afazeres etc.) e da cultura (valores, idéias ou crenças), característicos de uma determinada coletividade, época ou região".
3Como afirma Heráclito: éthos anthrôpo daímôn (o ethos é o gênio protetor do homem) (D.-K., 22, B, 119).
4Ver Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
5Canto-Sperber, Monique. A inquietude moral e a vida humana. São Paulo: Loyola, 2005.
6Ver Ver H. C. Lima Vaz, op. cit.
7Ver H. C. Lima Vaz, op. cit.
8Ver H. C. Lima Vaz, op. cit., p. 397.
9A saber, à tradição aristotélica, da qual Hegel é um dos mais ilustres representantes.
10Ver Ricoeur, P. Ética e Moral. In: Leituras 1: Em torno ao político. São Paulo, Loyola, 1995.
11Ver Cortina, A. e Martinez, E. Ética. São Paulo, Loyola, 2005.
12Lisboa, Don Quixote, 1994.

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