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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental vol.13 no.23 Barbacena jan./jun. 2021

 

ARTIGOS

 

Psicanálise lacaniana e redução de danos: encontros e desencontros

 

Lacanian psychoanalysis and harm reduction: matches and mismatches

 

Psicoanálisis lacaniano y reducción de daños: encuentros y desencuentros

 

 

Anna Luiza Dantas SalimI; Rogério da Silva Paes HenriquesII

IPsicóloga (UFS, 2016), Doutoranda em Psicologia (PPGPPSI/UFS), Mestra em Psicologia (PPGPSI/UFS) e Especialista em Psicologia do Trânsito (Pio X). Também possui Formação Teórica em Psicanálise pela Associação Psicanalítica de Aracaju
IIPsicólogo (UFES, 1999), Mestre (IMS/UERJ, 2003) e Doutor (IMS/UERJ, 2008) em Saúde Coletiva, Pós-doutor em Teoria Psicanalítica (UFRJ, 2013), Pós-doutor em Psicologia (UFF, 2019), atua como docente na UFS

 

 


RESUMO

Na atualidade, a questão das toxicomanias é abordada por diversos saberes e práticas. Os tratamentos do gozo mortífero das toxicomanias também são plurais e neste artigo buscamos investigar as relações entre duas modalidades de tratamento das toxicomanias: a redução de danos e a psicanálise lacaniana. Para a coleta de dados foi efetuada uma revisão de literatura do tipo narrativa. O tratamento lacaniano das toxicomanias é estruturado pelo discurso do analista e pela ética do desejo, o que implica no enfoque dado ao falasser, e não à identificação "toxicômano"; na regra da abstinência do analista, que consiste na recusa ao exercício da mestria sobre o consumo de drogas do sujeito e na ausência de prescrições comportamentais. A redução de danos possui diferentes estratégias para minorar os danos relacionados ao uso de drogas, como a distribuição de insumos, a oferta de informações sobre um uso de drogas mais seguro e a escuta dos usuários. A Redução de danos possui caráter pedagógico, buscando reeducar o gozo dos sujeitos, concebidos a nível de Eu e da consciência, a partir de orientações comportamentais, e se utiliza da sugestão, buscando influenciar diretamente o comportamento do sujeito em prol da minoração dos danos, pela via do convencimento. A redução de danos vincula-se à ética do bem-estar e ao discurso do universitário. As duas modalidades de tratamento se aproximam por não exigirem abstinência do sujeito, e se distanciam tanto pelo discurso ao qual se vinculam quanto pelo manejo da transferência ou uso da sugestão.

Palavras-chave: Psicanálise lacaniana; Redução de Danos; Ética; Discurso


ABSTRACT

At present, the issue of drug addiction is addressed by various knowledge and practices. The treatments of the deadly enjoyment of drug addiction are also plural and in this article we seek to investigate the relationship between two types of drug addiction treatment: harm reduction and Lacanian psychoanalysis. For the data collection, a narrative literature review was carried out. The Lacanian treatment of drug addiction is structured by the analyst's discourse and by the ethics of desire, which implies in the approach given to the subjetct, not to the identification "drug addict"; in the analyst's abstinence rule, which consists in refusing to exercise mastery over the subject's drug use and in the absence of behavioral prescriptions. Harm reduction has different strategies to alleviate drug-related harm, such as distributing supplies, providing information about safer drug use and listening to users. Harm Reduction has a pedagogical character, seeking to reeducate the enjoyment of individuals, conceived at the level of self and consciousness, based on behavioral guidelines, and uses the suggestion, seeking to directly influence the behavior of the subject in favor of the reduction of damages, by the way of conviction. Harm reduction is linked to the ethics of well-being and to the university discourse. The two types of treatment approach because they do not require abstinence from the subject, and are distanced both by the discourse to which they are bound and by the handling of the transference or use of suggestion.

Keywords: Lacanian Psychoanalysis; Harm Reduction; Discourse; Ethics


RESUMEN

En la actualidad, la cuestión de las toxicomanías es abordada por diversos saberes y prácticas. Los tratamientos del goce mortífero de las toxicomanías también son plurales y en este artículo buscamos investigar las relaciones entre dos modalidades de tratamiento de las toxicomanías: la reducción de daños y el psicoanálisis lacaniano. Para la recolección de datos se efectuó una revisión de literatura del tipo narrativa. El tratamiento lacaniano de las toxicomanías está estructurado por el discurso del analista y la ética del deseo, lo que implica el enfoque dado al sujeto, y no a la identificación "toxicómano"; en la regla de la abstinencia del analista, que consiste en la negativa al ejercicio de la maestría sobre el consumo de drogas del sujeto y en la ausencia de prescripciones comportamentales. La reducción de daños tiene diferentes estrategias para mitigar los daños relacionados con el uso de drogas, como la distribución de insumos, la oferta de información sobre un uso de drogas más seguro y la escucha de los usuarios. La Reducción de daños tiene carácter pedagógico, buscando reeducar el goce de los sujetos, concebidos a nivel de Yo y de la conciencia, a partir de orientaciones comportamentales, y se utiliza de la sugerencia, buscando influenciar directamente el comportamiento del sujeto en favor de la minoración de los daños, por la vía del convencimiento. La reducción de daños se vincula a la ética del bienestar y al discurso universitario. Los dos modalidades de tratamiento se aproximan por no exigir abstinencia del sujeto, y se distancian tanto por el discurso al que se vinculan como por el manejo de la transferencia o uso de la sugerencia.

Palabras-clave: Psicoanálisis lacaniano; Reducción de daños; Discurso; Ética


 

 

1. Introduçao

Na atualidade, a toxicomania se tornou uma questão de primeira importância sobre a qual se ocupam os mais diferentes discursos. O discurso hegemônico define essa modalidade de gozo como condição de saúde crônica, caracterizando-a como um ônus para os sistemas de saúde públicos (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME, 2015). Decorrente da relevância atribuída à toxicomania, verifica-se a multiplicação e diversificação dos tratamentos destinados a essa modalidade de gozo. Narcóticos Anônimos, Comunidades Terapêuticas, Terapia Cognitivo-Comportamental, as diferentes orientações do fazer psicanalítico, Redução de Danos, entre outros... Esse aumento indica o desafio clínico das toxicomanias numa sociedade marcada pelo imperativo de gozo (LAURENT, 2008). Dentre a miríade de tratamentos disponíveis, predominam os tratamentos que exigem abstinência e reduzem o sujeito à figura do toxicômano. Nesse cenário em que predomina a "clínica segregativa" (BENETI, 2014) que representa o toxicômano como doente e a droga como flagelo social, a psicanálise lacaniana e a redução de danos se destacam das demais, por constituírem modalidades de tratamento que não exigem abstinência do sujeito, considerarem a existência de diversas relações possíveis com as drogas e não circunscrevem as tribulações subjetivas dos sujeitos às drogas que consomem.

Considerando o afastamento da psicanálise e da redução de danos dos tratamentos segregativos orientados pela abstinência e a complexidade do fenômeno da toxicomania, é clara a relevância de investigar as relações entre essas duas modalidades de tratamento das toxicomanias. Ademais, a psicanálise lacaniana possui o compromisso de compreender as questões relevantes do seu tempo (LACAN, 1953/1998), como é o caso da lógica da redução de danos, outrora adotada como paradigma de cuidado no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), através da " Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras drogas" (BRASIL, 2003) que recomendou a autorregulação do usuário de drogas e respeito a sua singularidade, sem exigir abstinência para iniciar o cuidado, ampliando o acesso desses usuários aos serviços de saúde (BASTOS, 2019).

Compreender o paradigma da redução de danos também auxilia a entender o processo nada casual de eliminação dessa lógica de cuidado das políticas públicas destinadas a questão das drogas em um momento de crescente autoritarismo e fragilização das instituições democráticas. Atualmente, o paradigma da redução de danos foi substituído pelo paradigma da abstinência- vinculado à clínica segregativa- consolidado pelo Decreto 9.761, de 11 de abril de 2019, que estabelece a "Política Nacional sobre Drogas" (BRASIL, 2019), a qual concebe a abstinência como meta única de tratamento e portanto, como aponta Bastos (2019), como norma. Ademais, tal política é norteada pela ideologia proibicionista de "buscar incessantemente atingir o ideal de construção de uma sociedade protegida do uso de drogas" (BRASIL, 2019, p.3). O uso do termo "consolidado" se vincula ao fato de que os retrocessos concernentes às políticas públicas de álcool e outras drogas- e à Reforma Psiquiátrica como um todo- iniciaram sua marcha em 2016 e prosseguiram em ritmo acelerado desde então (CRUZ; GONÇALVES; DELGADO, 2020; DELGADO, 2019). O atual governo consolidou o desmantelamento da Reforma Psiquiátrica, afetando as estratégias de tratamento ofertadas aos usuários de álcool e outras drogas, no âmbito do SUS, nos seguintes aspectos: aumento do financiamento público das comunidades terapêuticas, que consiste em um tratamento realizado entre muros, vinculado ao paradigma da abstinência, tendo assumido caráter religioso no Brasil e cujas instituições são frequentemente denunciadas pelos maus-tratos impingidos a seus pacientes (BASTOS, 2019); mistura de ideologia proibicionista e punitivista que contribui para a estigmatização do usuário de drogas, ao traçar um elo direto entre o uso de drogas e o financiamento do tráfico sem o menor índice de questionamento sobre as raízes históricas do proibicionismo e suas implicações sociais; estímulo à internação- inclusive de crianças e adolescentes- via incremento de financiamento destinado a hospitais psiquiátricos e aumento do número de leitos e a separação da política nacional de drogas da política de saúde mental (CRUZ; GONÇALVES; DELGADO, 2020).

Considerando o posicionamento da psicanálise dentro de uma clínica não- segregativa e sua possibilidade de dialogar com tratamentos da toxicomania que respeitem a liberdade do sujeito, este trabalho visou investigar as relações de aproximação e distanciamento entre esses dois tipos de tratamentos das toxicomanias distintos e irredutíveis entre si, a psicanálise lacaniana e a redução de danos. Utilizamos as ferramentas teóricas da psicanálise lacaniana para a consecução do nosso objetivo.

 

2. Método

O estudo realizado é do tipo teórico, de caráter qualitativo. A pesquisa qualitativa enfatiza a descrição dos fenômenos, considerando-os em sua complexidade e sobredeterminação, além de ser fundamentalmente interpretativa (BREAKWELL; ROSE, 2010). Para a obtenção de dados, foi realizada uma revisão de literatura do tipo narrativa. As buscas foram feitas no acervo pessoal, na Biblioteca Central da Universidade Federal de Sergipe e nas seguintes bases eletrônicas de dados: ScienceDirect, BVS-psi, Scielo(Scientific Library Online), BDTD (Base Digital de Teses e Dissertações e Portal Periódicos CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Foram utilizadas as seguintes palavras chaves e suas combinações nos idiomas português, espanhol e francês: "psicanálise lacaniana"; "toxicomania"; " redução de danos"; "toxicomanía"; "psicoanálisis lacaniano"; "psychanalyse lacanienne"; "réduction des risques". A análise de dados foi orientada pelo objetivo de tecer as relações entre estes dos eixos de tratamento das toxicomanias, a partir da ótica da psicanálise de orientação lacaniana. Foram utilizados como ferramentas analíticas os conceitos de "discurso", " ética", "necessidade", "desejo" e "demanda".

 

3. Resultados e Discussão

3. 1 Éticas, discursos e tratamentos das toxicomanias

As diferenças entre as terapêuticas se devem à heterogeneidade das éticas que as orientam, as quais variarão consoante aos discursos (LACAN, 1969-70/2008). O discurso constitui a estrutura básica do laço social, consistindo numa tentativa de ordenar o real, identificável à pulsão e ao gozo, pela via da linguagem, a qual pertence ao registro simbólico (LACAN, 1969-70/2008). Uma relação terapêutica, portanto, poderá ser atravessada por mais de um discurso, mas terá prevalência de um dos quatro discursos: do mestre, da histérica, do analista ou do universitário. A ética, assim como o discurso, consiste numa operação simbólica que tenta dar conta do real, determinando os gozos aceitos em determinado estilo de laço (BISPO; COUTO, 2011). O campo da ética constitui-se na reflexão sobre a ação humana (LACAN, 1959-1960/2008), sendo central para qualquer tratamento anímico, pois este detém como objetivo compreender as ações e escolhas humanas que engendram sofrimento, com o escopo de modificar essas ações ou de minorar o sofrimento do indivíduo, tendo como foco do tratamento a vida mental (MILLER, 1996). Cada práxis de tratamento das toxicomanias é orientada por uma ética diferenciada, o que resulta em diferentes enfoques na terapêutica e no manejo da demanda, assim como em concepções distintas do bem em questão, que é a saúde (BISPO; COUTO, 2011).

De acordo com a perspectiva lacaniana, a toxicomania será definida como uma modalidade de gozo- ou seja, de satisfação pulsional- do objeto droga. A toxicomania consiste num tipo de relação com a droga na qual esta se torna a parceira exclusiva ou principal do sujeito, permitindo ao sujeito neurótico ser infiel ao gozo fálico (LACAN,1975/2016), que é o gozo sexual e da palavra, sendo identificável ao gozo reconhecido como legítimo e valorizado em determinada sociedade (MELMAN, 1992; MILLER, 2016). Ressalte-se que podem haver usos da droga em que ela participe do gozo fálico, como ocorre com o uso de maconha, frequentemente utilizada como parte da interação social e sexual (MILLER, 2000). A definição de toxicomania indica que o fundamental é a modalidade de relação com a droga. Tal definição é congruente com a psicanálise e com a redução de danos, as quais, diferindo da clínica segregativa não enfocam o objeto, e sim a modalidade de relação com ele.

3.2 Redução de danos

A redução de danos teve como marco inicial o ano de 1926, na Inglaterra e consistiu na autorização governamental, após a elaboração do Relatório Rolleston pelo Ministério da Saúde desse país, para que os médicos prescrevessem opiáceos e cocaína para os adictos que não conseguiam manter-se abstinentes e que não poderiam funcionar normalmente sem a prescrição de uma dose mínima do seu pharmakon. Essa política de saúde foi revogada após a Primeira Guerra Mundial e ressurgiu somente com a rápida proliferação do HIV entre os usuários de drogas injetáveis. A redução de danos consiste numa modalidade de tratamento pragmática e despida do acento condenatório característico dos tratamentos regidos pela abstinência. Esta, assim como a política proibicionista que a embasa, possuem inúmeras limitações, como a alta taxa de recaída, os altos custos para a administração pública e a segregação dos usuários (CONTE, 2004; POLLO-ARAUJO; MOREIRA, 2008).

A redução de danos compõe uma clínica ampliada que se orienta pela diretriz de reduzir os danos biológicos, sociais e econômicos relacionados ao uso de drogas e de não exigir a abstinência de drogas, respeitando a liberdade de escolha do sujeito em relação àquilo que consome (CONTE, 2004; RIBEIRO, 2012; POLLO-ARAUJO; MOREIRA, 2008). A redução de danos (RD) é vinculada à saúde pública, tendo sido adotada até um passado recente pelo SUS, e ampliada para além da questão das drogas. O exercício da clínica ampliada implica no uso de estratégias variadas, as quais abarcam a prestação de informações acerca dos danos vinculados ao uso, orientações de profilaxia de overdose, orientação sobre os direitos humanos, distribuição de insumos, escuta do usuário, realização de terapia de substituição, encaminhamento para oferta de assistência social e de saúde nos serviços (BRASIL, 2005). Em países como Suíça, Bélgica, França, Portugal e Alemanha estão presentes outras estratégias como salas de consumo/ narcossalas, coffee shops e centros de urgência (CONTE, 2004).

É necessário frisar que as intervenções da Redução de Danos não se limitam nem à terapia de substituição, ou seja, não se circunscrevem à troca de uma droga mais danosa por outra que acarrete menos danos, nem à mera redução do uso. Por conseguinte, a redução de danos, ao menos em teoria, não é sinônimo de tratamento pelo objeto, configurando-se numa novidade ética para lidar com a questão das drogas através da consideração do uso de drogas como parte da experiência humana e enfocando em diminuir os riscos vinculados à essa realidade (NASPARTEK, 2014; TORRES; VIDAL, 2016).

A redução de danos é orientada pelos princípios do pragmatismo, da acessibilidade, da flexibilidade e do respeito ao usuário. Consiste numa modalidade de tratamento pragmática por trabalhar com metas possíveis, geralmente subótimas. Esse pragmatismo decorre da constatação da ineficácia de exigir abstinência para iniciar o tratamento e da consciência da necessidade de intervir junto à essa população (POLLO-ARAÚJO; MOREIRA, 2008). A acessibilidade traduz-se na busca em cuidar do usuário de drogas no campo, indo até o território que o usuário frequenta, incluindo as cenas de uso, facilitando o acesso ao cuidado em saúde, o que abarca serviços e informações.

Outra inovação da RD consiste na flexibilidade com relação ao tratamento do usuário, por considerar a variabilidade de recursos técnicos, populações, drogas e usos. Tal flexibilidade articula-se com o respeito às modalidades de uso que o sujeito queira fazer. O objetivo é de reduzir os danos do consumo de acordo com as possibilidades do sujeito, sendo o objetivo final do tratamento elaborado em colaboração com o usuário, de acordo com sua demanda. O respeito ao usuário reflete-se na disposição em escutá-lo, valorizando a fala deste como ator social que usualmente sofre exclusão; no respeito àquilo que demanda do redutor de danos; e na abstenção do profissional de fazer julgamentos sobre o consumo de drogas do usuário (CONTE, 2004).

A redução de danos tem seus princípios vinculados aos da Reforma Psiquiátrica e da Luta Manicomial. A Reforma Psiquiátrica e a Luta Antimanicomial foram movimentos sociais que buscaram restituir a cidadania dos sujeitos considerados desviantes, dentre os quais se destacam a figura do "louco" e do toxicômano, pleiteando o fim da segregação desses sujeitos em manicômios (BENETI, 2014). A influência desses ideais na redução de danos comparece no enfoque dado à promoção de direitos dos toxicômanos, buscando fornecer-lhe acesso a bens, serviços e insumos. O trabalho no "campo", onde os usuários vivem, é também uma maneira de romper com a lógica manicomial, de caráter segregativo.

Uma limitação da RD como prática de saúde advém da forte aderência aos ideais da Reforma Psiquiátrica, favorecendo uma tendência a enfocar na dimensão social das toxicomanias e relegar a segundo plano a escuta do sujeito dessa prática de gozo. Não obstante esse viés inclusivo evite os problemas inerentes à lógica manicomial, como a segregação, a cronificação e o agravamento do quadro psíquico devido à violência institucional, é necessário salientar que há uma tendência na redução de danos a relegar a escuta clínica a segundo plano, fenômeno que enseja o questionamento acerca da existência de uma forma de demissão subjetiva vinculada à determinação social, retirando a implicação do sujeito frente a seu gozo (CONTE; 2004; RIBEIRO, 2012).

Outra característica da Redução de Danos é seu caráter pedagógico. Suas práticas visam a auxiliar o sujeito a domesticar seu gozo, minorando os danos relativos aos excessos e o fazem mediante instruções sobre como gozar de uma maneira mais segura e menos mortífera denominadas "educação em saúde", que consiste na orientação sobre um uso limpo e seguro. Portanto, a Redução de Danos enfoca a dimensão egóica, a qual seria capaz de gerenciar o próprio gozo a partir de uma consciência doravante informada. O caráter fundamentalmente desarmônico e conflituoso da satisfação humana não é considerado por essa prática (MILLER, 2011), que se filia ao ideal de bem-estar ao visar à promoção de um uso ordenado de drogas (CONTE, 2004; RIBEIRO, 2012; TORRES; VIDAL, 2016). Na condição de prática de saúde, a Redução de danos pode ser vinculada à aposta na prevalência do princípio do prazer no psiquismo (HENRIQUES, 2014). É possível afirmar que a redução de danos tem como cerne a reeducação do gozo, na medida em que, buscando reduzir os danos, instrui o sujeito em direção ao ideal do equilíbrio e do bem-estar. O enfoque na promoção do bem-estar é consistente com uma prática ortopédica em relação ao sujeito, buscando reforçar seu Eu (LACAN, 1958/1998).

A domesticação do gozo operada pelas práticas de redução de danos pode ser ilustrada pela experiência das narcossalas na Suíça, relatada por Feldman (2014). Nestas salas, instaladas em centros de tratamento localizados em áreas estratégicas da cidade, são fornecidas aplicações de heroína, realizadas sob os cuidados de um profissional de saúde, que estará presente durante todo o período da trip1, com um horário regular previamente agendado e com regularidade também no que concerne à veia e ao profissional que aplica a injeção. As salas podem ser partilhadas com outros toxicômanos. Estas narcossalas constituem um procedimento que visa a aproximar o toxicômano do gozo fálico, sem retirar-lhe a droga. A ordenação do uso através da regularidade e do Outro da instituição, assim como as relações construídas com a equipe e com outros usuários possibilitam reintroduzir o sujeito no gozo limitado do laço social que ele buscara ofuscar com o mais-de-gozar da droga. O uso pode, inclusive, permanecer inalterado, mas ocorrer uma modificação na posição subjetiva com relação à droga (MELMAN, 1992). As narcossalas suíças realizam a medicalização do consumo de heroína, procedimento que Melman (1992) já indicara como resposta social para um problema social. Nestes centros, a heroína prescrita possui um grau de pureza elevado, muito superior ao da rua. Tal estratégia possui o objetivo de retirar o gozo suplementar da transgressão vinculado à obtenção da droga junto ao tráfico, aproximando o toxicômano dos serviços de saúde. Um fato que se destaca é que, não obstante o menor grau de pureza da heroína das ruas, há usuários que relatam preferirem essa heroína impura, indicando que o mais-de-gozar da transgressão, somado ao mais-de-gozar inerente à droga, participa da economia psíquica do toxicômano (FELDMAN, 2014).

A redução de danos situa historicamente a guerra às drogas, ressaltando serem os discursos predominantes de uma determinada época que determinam os gozos prescritos e proscritos. Logo, a redução de danos questiona o proibicionismo e sua estipulação do gozo da droga como inaceitável, aproximando-se do raciocínio de Charles Melman (1992, p.82), que se questiona "De que gozo podemos dizer que é uma doença? Será que estamos em condições de falar de uma normalidade em matéria de gozo?". Reconhecendo que o gozo é a modalidade de satisfação dos seres falantes, constitutivamente desarmônica, e que todos estruturam parcerias de gozo, só é possível entender os tratamentos regidos pela abstinência ao situá-los a serviço do discurso do capitalista, como novo mestre, que segrega aqueles que não podem gozar de modo fálico pela via da competição social (SOLER, 1998).

A criação de vínculo entre o redutor de danos e o usuário é uma parte essencial do tratamento, ligada a uma ética de tratamento que concebe o usuário como sujeito de direitos e em sua singularidade. O vínculo é construído processualmente, mediante aproximação gradual que se inicia a partir da distribuição de insumos, sendo regida pelo respeito ao tempo e às escolhas do usuário. Esse vínculo é caracterizado pela proximidade com o toxicômano, sendo estimulado, por exemplo, o conhecimento das gírias e costumes do campo como parte do trabalho. Outros traços norteadores dessa relação são a prioridade concedida pelo redutor de danos ao acolhimento das demandas do usuário, o enfoque na promoção do bem-estar e o fortalecimento do Eu do usuário. Redutor de danos e usuário possuem uma relação em que prevalece a dimensão egóica, na qual o redutor de danos reconhece as limitações inerentes à sua prática, não se colocando - ao menos em tese - na condição de detentor de um saber acabado sobre a saúde e a doença, haja vista que o Projeto Terapêutico Singular será construído em colaboração com o usuário. Essa relação possui efeitos terapêuticos na medida em que permitirá ao sujeito investir um terceiro, para além da sua parceria de gozo com a droga, reinserindo-o no laço social, do qual se encontrava apartado (CONTE, 2004; RIBEIRO, 2012).

É possível afirmar que a relação com o redutor de danos, como uma relação de cuidado, será permeada por elementos transferenciais, em que o sujeito reproduz seu modelo infantil de relação com o outro (FREUD, 1912a/2010). A redução de danos não analisa nem sequer considera os elementos transferenciais presentes nesse vínculo, mas utiliza-se deles para influenciar diretamente o comportamento do usuário em direção ao uso menos danoso, ainda que pelo viés pedagógico-sugestivo, e não-coercitivo.

No fenômeno da toxicomania, o registro da demanda parece ter se colado ao da necessidade, pois o sujeito circunscreve àquela a um objeto de satisfação, que foi transmutado em objeto de necessidade. Por isso, na relação inicial com o redutor de danos, as primeiras demandas do toxicômano costumam concernir à droga, seja a um uso menos danoso, seja à abstinência, configurando uma significantização da necessidade ainda precária, por não haver deslizamento metonímico entre os objetos da demanda (CONTE, 2003; MELMAN, 1992; MILLER, 2016).

A ida a campo em busca dos usuários origina-se do reconhecimento de que há um número significativo de toxicômanos que se mantém afastado das instituições de tratamento e que não o buscam por iniciativa própria. A redução de danos atribui esse afastamento à exclusão social dos toxicômanos, devido à sua estigmatização, e, de fato, tal dimensão não está ausente. Todavia, é necessário considerar como um motivo igualmente importante para explicar essa relação com o tratamento a ausência inicial de demanda de tratamento. A busca do sujeito no território visa a catalisar a criação de uma demanda (CONTE, 2003; 2004; MELMAN, 1992).

Após estabelecido o vínculo, as demandas de cuidado em saúde podem ir além do campo da necessidade, conquanto este campo permaneça em foco em muitas ações da redução de danos, como, por exemplo, facilitar o acesso aos serviços de saúde e aos insumos. O cuidado psicossocial gera uma postura de pronto atendimento à demanda, que dificulta o aparecimento do desejo como falta, o qual ensejaria a emergência do questionamento sobre o que se quer e sobre o significado do próprio uso de drogas. A resposta à demanda, sob a forma de ortopedia ao sujeito de direitos fragilizado naquilo que se denomina de reabilitação psicossocial, atesta um furor sanandis bastante particular atrelado ao ideal de um uso ordenado de drogas para todos, que dificulta a escuta clínica do sujeito. Ocorre uma nova demissão subjetiva na Redução de Danos, que visa a promover uma domesticação do gozo pela via da sugestão, utilizando-se do vínculo para indicar caminhos, ainda que pactuados, a seguir (LACAN, 1958/1998; RIBEIRO, 2012). Tal dietética pactuada entre usuário e redutor de danos costuma preconizar uma espécie de 'boa transgressão', conquanto não deixe de consistir numa prescrição de como agir para gerir o próprio gozo.

A redução de danos é uma prática que faculta atuar em três dimensões: a política (ligada à promoção de cidadania, visando à garantia de direitos), a clínica (responsabilização do sujeito por suas eleições de gozo) e a educativa (mobilizada pelo saber a priori e generalizado acerca das práticas de uso de drogas consideradas menos danosas). Como prática de saúde pública e, de acordo com essa condição, a redução de danos está atrelada à ética do universal, a ética do para todos cujo escopo é a produção de saúde. Quando a prática da redução de danos enfoca na educação em saúde, destaca-se a prevalência do discurso do universitário, via transmissão de um saber acabado e independente do sujeito acerca das práticas ordenadas do uso de drogas (S2) visando ao cuidado em saúde do usuário do serviço (a), que figura como objeto de cuidado, gerando como produção o tamponamento da singularidade do sujeito via saber ($) e como verdade escamoteada o redutor de danos como efetivo portador do saber (S1) (RIBEIRO, 2012). Portanto, consideramos que a proposta da redução de danos se aproxima de modo prevalente do discurso do universitário, efetuando uma demissão subjetiva, decorrente da ênfase nos saberes universalizantes de um uso ordenado de drogas (MILLER, 1996; 2011; RIBEIRO, 2012).

 

 

3.3 A Psicanálise lacaniana

Diferentemente da redução de danos que enfoca o Eu (instância imaginária e palco das identificações) e a consciência, no tratamento das toxicomanias a psicanálise lacaniana enfoca o falasser, o qual é definido pelo desejo inconsciente e por um gozo onipresente que o perturba, que se vincula aos registros do real e do simbólico. A práxis lacaniana enfoca o sujeito a partir da ética do desejo, a qual orienta sua direção do tratamento e seu particular manejo da demanda, diferindo da redução de danos, regida pela ética do bem-estar, a qual se caracteriza pelos procedimentos terapêuticos generalistas ante os diferentes sujeitos agrupados na categoria de toxicômanos (CONTE, 2004; RIBEIRO, 2012).

A psicanálise lacaniana é regida pela ética do desejo, que difere radicalmente da ética do bem-estar que orienta a redução de danos. A ética do desejo não parte de definições, as quais são preconizadas em cartilhas do governo, de como o sujeito deve proceder para atingir o Bem que vem demandar ao tratamento, que é a felicidade (LACAN, 1958/1998). O desejo inconsciente é uma falta constitutiva que impulsiona o parlêtre na metonímia eterna entre uma diversidade de objetos de satisfação. Esse desejo pode ser conhecido a partir das fantasias do sujeito, especialmente a fantasia fundamental, que encenam as relações do parlêtre com o objeto a específico - seja ele a voz, o olhar, o seio, as fezes, etc. - que singulariza sua falta. Contudo, o analista não conhece as fantasias e os objetos a que especificam o desejo, que estruturam essa lei mais particular que rege aquele sujeito que o procura para iniciar o tratamento, logo seria incongruente trabalhar com diretrizes, como o faz a redução de danos, ainda que flexibilize as estratégias de cuidado de acordo com o caso (LACAN, 1959-1960/2008).

A psicanálise lacaniana coloca pelo avesso o discurso do mestre, pois só há análise do singular (TORRES; VIDAL, 2016), portanto, como já assinalara Freud (1912b/2010; 1913/2010), não é possível nem formular regras técnicas, mas tão somente recomendações, e nem buscar orientar o sujeito de forma pedagógica, como o faz a redução de danos. A ética da psicanálise lacaniana orienta que o analista se cale, como emissor - pagando com palavras - e como Eu- pagando com sua pessoa - para que o desejo do sujeito compareça (MILLER, 1996). Os pagamentos do analista articulam-se com a posição assumida por ele de objeto a no tratamento, viabilizando que o sujeito compareça produzindo seus significantes-mestres (S1), conforme é esquematizado no discurso do analista. Ao afirmar que o analista paga com palavras, Lacan (1958/1998) adverte para a necessidade de que o analista seja prudente com cada significante que emite, cabendo-lhe principalmente a escuta e o silêncio para que o sujeito possa associar livremente. Na clínica das toxicomanias, o analista defronta-se com a dificuldade de que o parlêtre está fechado num gozo Uno com seu objeto de satisfação, tendo afrouxado sua relação com o Outro da linguagem (TOROSSIAN, 2004). Melman (1992) e Salamone (2014; 2015) destacam o mutismo inicial do toxicômano em análise, assim como a predominância de referências à droga, ao corpo e as estereotipias verbais.

A psicanálise, a talking cure, pode ser vinculada à ética do bem-dizer. Da parte do analista, o bem-dizer relaciona-se à oferta de um espaço em que o discurso possa ser libertado das censuras que sobre ele incidem, e no fato de que a analista marca, com a interpretação, determinados significantes para que o dizer seja eficaz no sentido de propiciar a mudança de posicionamento subjetivo, pois o sujeito fala aquilo que deveria saber (MILLER, 1996) e a interpretação deve fazer com que o sujeito, efetivamente, se escute. Do lado do analisante, a ética do bem-dizer consiste na obediência à regra fundamental da associação livre que faculta a manifestação dos tropeços no discurso que marcam a irrupção do desejo inconsciente (PEREIRINHA, 2011). A ética do bem-dizer será obstruída constantemente ao longo de qualquer tratamento analítico pelo surgimento de resistências, não sendo tal dificuldade limitada às toxicomanias.

É através da própria palavra que o sujeito poderá se confrontar com o real do qual tentou se defender com as drogas e buscar outra saída para esse real, agora pela via do simbólico (SALAMONE, 2015), conquanto de maneira sempre insuficiente, posto que "as palavras faltam, pois são um lençol demasiado curto para dar conta do real" (MARTINHO, 2012, p. 84). Especialmente no caso das toxicomanias, a ética do bem-dizer revela as dificuldades da operação de transmutar o empuxo ao gozo corporal em gozo da palavra, pois a parceria com a droga fecha o sujeito num gozo Uno, que parece completo, podendo prescindir do Outro (LEVATO; SALAMONE, 2008; MILLER, 2016). Considerando o inicial enrijecimento das associações dos toxicômanos, é necessário que o analista lance mão de outras estratégias além da interpretação, que visa ao significante, recorrendo a atos e ditos que assinalem o real, como o corte da sessão, por exemplo (SALAMONE, 2015).

Outro aspecto da direção do tratamento apontado por Lacan (1958/1998) consiste em que o analista pague com sua pessoa, fazendo-se o mais opaco possível para o analisante e colocando-se como suporte da transferência. A opacidade do analista consistirá em esterilizar a análise contra as impurezas do seu Eu e do seu supereu, a partir do desejo do analista. O desejo do analista é o de favorecer a irrupção do desejo do analisante, de levá-lo a ocupar-se de suas questões. É o desejo do analista que sustenta aquilo que é a pretensa neutralidade do analista e que permite ao analista mortificar sua subjetividade na medida do possível (LACAN, 1960-1961/1992), não deixando que os inevitáveis sentimentos despertados pelo analisante interfiram na condução do caso. No manejo dos casos de toxicomania, o analista deve ter cuidado com o furor sanandis e as expectativas de abstinência do sujeito que dela podem resultar. A operação toxicomaníaca pode colocar muitos analisantes em situações devastadoras, devido à predominância da pulsão de morte (LEVATO; SALAMONE, 2008), e isso pode estimular no analista a fantasia de salvar o sujeito.

Outro cuidado consiste em não se posicionar sobre o consumo de drogas do sujeito, pois isso consistiria num erro técnico e ético para a orientação lacaniana, haja vista que a imposição de abstinência ou o aconselhamento ao uso moderado estariam veiculando os ideais de cura do analista, o qual estaria situando sua prática no campo da sugestão, utilizando-se do poder que lhe é conferido pela transferência para dirigir o sujeito (LACAN, 1958/1998), colocando-se como Outro não-barrado, detentor do saber suposto que lhe é conferido pelo sujeito. Uma dietética comportamental é um produto superegóico, típico do discurso do mestre, destoando da regra da abstinência, que deve ser do analista no que concerne à imposição de ideais ao sujeito (CONTE, 2004). Neste ponto há um afastamento entre a psicanálise e a redução de danos, considerando que uma das estratégias da redução de danos é a orientação sobre um uso menos danoso das drogas.

A análise é o avesso de uma prática de tutela, pois visa ao oposto, que é a responsabilização do sujeito pelos seus modos de gozo. Ademais, a práxis analítica possui consciência do caráter selvagem do gozo e da impossibilidade de adestrar o Eu do sujeito para praticar um consumo x ou y. Destaque-se também que num primeiro momento o analista ignora a função psíquica da droga, a qual opera, com maior ou menor precariedade, uma estabilização psíquica e, portanto, a abstinência é capaz de promover o caos subjetivo, com acessos de angústia e dores generalizadas, como apontado por Conte (2003) e Miranda (2004). Portanto, o trabalho do analista concerne somente à desintoxicação com o significante toxicômano, cabendo ao sujeito a decisão sobre como dispor de seu pharmakon (CONTE, 2004; RIBEIRO, 2012; SALAMONE, 2015).

Os toxicômanos fazem transferência com o analista, a qual caracteriza-se pela mesma intensidade e dependência com que o sujeito investira o tóxico, possuindo um caráter predominantemente imaginário e real. Por sua vez, Lacan vinculará a transferência à suposição de saber destinada ao analista, que é erigido erroneamente como Outro, um mestre que deteria as verdades mais íntimas sobre o sujeito. A maneira como o sujeito se relaciona com este Outro revela muito de sua posição subjetiva (LACAN, 1964/1998). A transferência na toxicomania se caracteriza pela impossibilidade de lidar com a falta e com sentimentos intensos dirigidos ao analista, pois o modo passional do sujeito se relacionar com os objetos reaparece na transferência, assim como um modo de relação com o Outro baseado no distanciamento e na incerteza (MELMAN, 1992; MIRANDA, 2004).

A psicanálise se diferencia da redução de danos por seu manejo da demanda. Para a efetiva entrada em análise, é necessário que o paciente faça do seu pedido ao analista uma interrogação pelo saber. Nesse aspecto, a demanda da análise difere da demanda no sentido mais geral, pois esta implica somente a significantização da necessidade. A demanda no sentido mais geral pode ser aproximada do conceito de pedido, enquanto a demanda que dá ensejo ao trabalho analítico relaciona-se ao questionamento acerca da própria existência, estando vinculada ao enigma, o que pode envolver ou não a problematização do uso de droga (RIBEIRO, 2012).

É usual na clínica das toxicomanias que o toxicômano não tenha propriamente escolhido o tratamento, mas tenha sido compelido a isso, seja pelo encaminhamento de uma instituição ou por pedido de pessoas próximas, ou ainda por ter sentido atingir o limite, chegando ao analista com uma urgência subjetiva de mudança (MELMAN, 1992; SALAMONE, 2015). Aponta-se na literatura uma dificuldade inicial de formular demanda ao analista que se articula ao modo como costumam chegar ao setting analítico e explica-se pela parceria de gozo exclusivo com a droga. O toxicômano possui o saber sobre como gozar, estando colado ao objeto do qual extrai satisfação, logo, não há espaço na sua economia psíquica para o analista na condição de Outro do qual demandar um saber (INEM, 1998). Ribeiro (2012) assinala a diferença entre queixa e demanda própria à análise, referindo que o toxicômano chega ao consultório com uma queixa relativa à droga - seja de interromper ou de ter controle sobre o uso - ou seja, ele apresenta-se principalmente no registro da necessidade e posiciona-se como se o problema fosse exterior a si próprio. Onipresente em sua fala, a droga acompanha o sujeito até à sessão, não havendo um espaço entre o falasser e seu objeto de gozo que possa motivar a demanda de tratamento (GUEDES, 2014).

Num primeiro momento, portanto, o sujeito pode até frequentar o consultório, mas não entrou em análise. Para a formulação da demanda analítica, será necessário que o analista problematize o enunciado, tornado certeza, "eu sou toxicômano", viabilizando a emergência de um questionamento do sujeito acerca de si, uma busca de saber junto ao analista que diga respeito à subjetividade, mediante algum grau de distanciamento da droga, seja para compreender o uso ou historicizá-lo. A análise começa quando o sujeito entra no discurso histérico (LACAN, 1969-1970/1992), sendo precisamente a dificuldade inicial de histericização do discurso dos toxicômanos que embasa as assertivas acerca das limitações da psicanálise no manejo das toxicomanias (CONTE, 2004; TOROSSIAN, 2004; RIBEIRO, 2012).

Ao analista, cabe não recusar nem atender qualquer que seja a demanda, para não sufocar a irrupção do desejo. Colocar em suspenso a demanda viabiliza que o desejo que permanecia eclipsado pela droga volte a se manifestar, revelando os significantes-mestres que governam o falasser (INEM, 1998; LACAN, 1958/1998). O desejo é frequentemente da ordem do insuportável e, por conseguinte, a análise caracteriza-se pelo desprazer de recordar muito do que se gostaria de esquecer com a finalidade maior de poder controlar parcialmente os malefícios do recalcado (FREUD, 1910/ 2010). Logo, a partir do início efetivo da análise, o sujeito passa a se confrontar com questões angustiantes vinculadas ao desejo, que buscara silenciar com o uso da droga (SALAMONE, 2015), o que pode agravar temporariamente o quadro, levando o sujeito a recorrer ao seu remédio, se estava em abstinência (INEM, 1998), ou a intensificar seu uso. A referida piora temporária consiste numa limitação da psicanálise lacaniana no manejo das toxicomanias, pois se trata de um gozo mortífero cujo agravo pode gerar consequências sérias.

Nos casos de toxicomania, a retificação subjetiva ocorrerá quando o sujeito deixar de imputar todos os seus problemas à droga, como um objeto maligno, e passar a se implicar no próprio gozo, assumindo seu papel na desordem da própria existência e responsabilizando-se pelos próprios atos (LACAN, 1958/1998; LEVATO; SALAMONE, 2008; RIBEIRO, 2012). Com a retificação subjetiva, o sujeito assume a autoria de seus erros, facultando-o sair de uma posição de adictu, servo, na relação com o Outro. A partir deste momento lógico, poderá ser modificada a relação de gozo com a droga, pois a droga poderá deslizar na cadeia significante e a parceria poderá então ser, em alguma medida, interpretada.

A clínica lacaniana é baseada na relação dissimétrica entre analista e analisante, pois cada um conduz-se de acordo com um discurso diferente. O sujeito, aí incluído aquele que se queixa de sua toxicomania, entra em análise pelo discurso histérico, mas o analista atua no processo analítico através do discurso do analista. Há um mal-entendido fundamental, pois o analisante, na condição do sintoma ($) que o define, demanda do analista um saber pronto, colocando-o no lugar de mestre (S1). O analista, por sua vez, não pode assumir esse lugar de mestria, se não estaria resvalando para a sugestão. No discurso do analista, este deve colocar-se no lugar de (a), mortificando sua subjetividade e assumindo o lugar de objeto para que o desejo do analisante compareça. Ou seja, o analista remete ao sujeito a demanda a ele endereçada, para que este associe livremente (LACAN, 1958/1998; 1969-1970/1992). Portanto, na clínica psicanalítica não será enfocada a questão do consumo, nem o analista orientará o toxicômano em nome do ideal do bem-estar, como ocorre na redução de danos.

 

4. Conclusão

O estudo realizado permite traçar as relações entre psicanálise lacaniana e redução de danos, seus encontros e desencontros. Constatou-se que a psicanálise lacaniana e a redução de danos se aproximam na abstenção de julgar o sujeito quanto ao uso de drogas e na ênfase dada à relação de "cuidado", ainda que a redução de danos conceba tal relação a partir do registro imaginário, enquanto na psicanálise a relação é estruturada pelo registro simbólico, não comportando nada da simetria característica do imaginário. A psicanálise lacaniana e a redução de danos também se aproximam por conceber a toxicomanias como um fenômeno sobredeterminado e que consiste numa modalidade de relação com a droga, não considerando a droga como periculosa per se. A psicanálise e a redução de danos se desencontram no que concerne às éticas e aos discursos pelos quais se orientam, pois, a psicanálise se orienta pela ética do desejo e do bem-dizer e estrutura-se pelo discurso do analista e a redução de danos se orienta pela ética do bem-estar e pelo discurso do universitário. Outra diferença notória é a importância conferida à clínica no tratamento das toxicomanias. Na psicanálise lacaniana, a escuta clínica é central, diferindo da redução de danos na qual a escuta é apenas uma dentre uma série de estratégias possíveis. O foco clínico na psicanálise determina seu enfoque na singularidade, enquanto a redução de danos, embora considere a variabilidade entre populações e usos, tenda ao universal do uso menos danoso de drogas. A redução de danos faz uma aposta bastante diversa da psicanálise ao acreditar na possibilidade de domesticar o gozo pela via da conscientização, pois para a psicanálise lacaniana o gozo é sempre da ordem do transbordamento.

Embora haja diferenças éticas e discursivas entre a psicanálise lacaniana e a redução de danos, sobressai-se a possibilidade de diálogo entre essas práticas devido à postura não-segregativa de ambas frente ao consumo de drogas. O diálogo e a crítica entre práxis distintas é sempre produtivo para o aprimoramento das mesmas, na condição de que tal crítica não seja meramente ideológica. Conquanto este seja um trabalho de ótica lacaniana, indicando uma implicação com essa teoria, buscou-se não incorrer em tal equívoco e salientar as limitações e potencialidades de cada tipo de tratamento. Uma indagação suscitada pelo presente trabalho foi como operacionalizar a colaboração entre essas modalidades de tratamento para propiciar ao sujeito um atendimento que respeite sua singularidade e suas escolhas.

Considerando o momento histórico presente, de retrocesso das políticas públicas brasileiras em relação à questão das drogas, é importante frisar o amplo distanciamento tanto da psicanálise lacaniana quanto da redução de danos do paradigma da abstinência e da clínica segregativa na qual este se insere, especialmente de um paradigma da abstinência que ao conferir tamanha ênfase ao papel da internação nas comunidades terapêuticas e nos hospitais regride, em muitos aspectos, a lógica manicomial.

 

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