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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental vol.14 no.25 Barbacena jan./jun. 2022

 

ARTIGOS

 

Entre aderir e resistir: uma reflexão sobre os usos do conceito de não adesão nos serviços substitutivos de saúde mental

 

Between join and resist: a reflection on the uses of the non-adhesion concept in substitute mental health services abstract

 

Entre unirse y resistir: una reflexión sobre los usos del concepto de no adhesións en servicios de salud mental de substitución

 

 

Clarissa Junqueira LopesI; Dra. Simone Mainieri PaulonII; Dr. Dário Frederico PascheIII

IMestranda do PPG Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
IIDocente do PPG Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
IIIDocente do Dpto. Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

 


RESUMO

O artigo relata um percurso de pesquisa realizado junto a usuários de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) em Porto Alegre, considerando o conceito analisador não adesão aos CAPS como estratégico no delineamento dessa proposta cartográfica. Em um primeiro momento da pesquisa, foi realizada uma análise documental do fluxo de acesso a um CAPS, referente ao período de 2015 a 2017. Em um segundo momento, foi feita uma busca ativa de usuários que faltaram aos acolhimentos agendados, sendo, então, realizadas entrevistas semiestruturadas com seis destes usuários. As análises indicaram uma unilateralidade na definição do usuário como não aderente que aponta a necessidade de revisão deste conceito, em direção a composição de um cuidado coproduzido através da regulação singular que o usuário aciona e dos itinerários de cuidado que desenha para si.

Palavras-chave: Saúde Mental. Reforma Psiquiátrica. Rede de Atenção Psicossocial. Acolhimento. Adesão


ABSTRACT

The article reports a research path carried out with users of a Psychosocial Care Center (CAPS) in Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil, considering the analyzing concept of non-adherence to CAPS as strategic in the design of this cartographic proposal. In a first moment of the research, a documental analysis of the flow of access to a CAPS was carried out, referring to the period from 2015 to 2017. In a second moment, an active search was carried out for users who missed the scheduled receptions, and then, semi-structured interviews were carried out with six of these users. The analyzes indicated a one-sidedness in the definition of the user as non-adherent, which points to the need to review this concept, towards the composition of a care co-produced through the singular regulation that the user activates and the care itineraries that he designs for himself.

Keywords: Mental health. Psychiatric Reform. Psychosocial Care Network. Reception. Adherence.


RESUMEN

El artículo relata un curso de investigación realizado con usuarios de un Centro deAtención Psicosocial (CAPS) de Porto Alegre, Río Grande del Sur, Brasil, considerando el concepto de análisis no adhesión al CAPS como estratégica en el diseño de esta propuesta cartográfica. En un primer momento de la investigación, se realizó un análisis documental del flujo de acceso a un CAPS, referente al período de 2015 a 2017. En un segundo momento, se realizó una búsqueda activa de usuarios que faltaron a las recepciones programadas, y luego, se realizaron entrevistas semiestructuradas con seis de estos usuarios. Los análisis apuntaron una unilateralidad en la definición del usuario como no adherente, lo que apunta a la necesidad de revisar ese concepto, hacia la composición de un cuidado coproducido a través de la regulación singular que el usuario activa y los itinerarios de cuidado que él diseña para sí mismo.

Palabras-clave: Salud mental. Reforma psiquiátrica. Red de Atención Psicosocial. Recepción. Adhesión.


 

 

1. Introdução

João é um homem acolhido no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e referência para sua região, na capital do extremo-sul do Brasil, onde ele viveu e trabalhou por 37 anos. Com a equipe multidisciplinar que o atende, tem um Projeto Terapêutico Singular (PTS), que inclui a sua participação em oficinas de geração de renda, grupos de apoio e outras atividades sistemáticas, entendidas como formas de cuidado à sua saúde mental, mas João só comparece ao serviço para as consultas de renovação de receita de medicamentos.

Elias, por sua vez, é um usuário que realizou o primeiro atendimento no CAPS para o qual foi encaminhado. Entretanto, mesmo trazendo uma demanda para cuidado em saúde mental, não quer ir aos atendimentos no CAPS e a equipe do serviço acaba por resolver que ele não é mais de sua responsabilidade.

Esses pequenos recortes demonstram modos de transitar pela rede de saúde mental que, em sua maior parte, diferem da lógica de regulação do acesso e consumo dos serviços, tal como pré-estabelecidas pelos fluxos ordinários do Sistema Único de Saúde (SUS). O que vemos aí são usuários que produzem outros caminhos possíveis a partir de suas experiências com o processo de adoecimento. O que esses caminhos outros - os fluxos singulares percorridos pelos usuários - podem nos dizer sobre o funcionamento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) estruturada para ofertar-lhes os cuidados necessários à sua saúde mental? E, até mesmo, que outras ofertas de cuidado se conformam no território?

Estas foram as questões norteadoras de um percurso de pesquisa de mestrado interessado em investigar o modo com o qual alguns dos usuários considerados não-aderentes aos serviços ofertados na Rede de Atenção Psicossocial de seus territórios produzem seus caminhos de afastamento dos serviços e/ou desenham outros percursos de cuidado que não os inclui. Seus pontos de partida foram resultados obtidos em uma pesquisa maior chamada Inquérito sobre o funcionamento da atenção básica à saúde e do acesso à atenção especializada em regiões metropolitanas brasileiras, registrada na plataforma Brasil 53935516.6.1001.5347, através da aprovação do mesmo no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), número 1.499.616.

Essa pesquisa, doravante designada por Pesquisa Inquérito, buscou analisar o funcionamento, a utilização e a qualidade da Atenção Básica à Saúde, bem como o acesso à Atenção Especializada para usuários com quatro agravos tomados como traçadores, entre eles, os transtornos mentais graves em quatro regiões metropolitanas brasileiras: Campinas (SP), Fortaleza (CE), São Paulo (SP) e Porto Alegre (RS). O campo de Porto Alegre esteve sob responsabilidade do Laboratório de Apoio Integrado em Saúde Coletiva (LAISC), da UFRGS.

Os levantamentos realizados referentes à Saúde Mental na Pesquisa Inquérito identificaram um grande número de usuários que, mesmo sendo avaliados por algum serviço da rede que os encaminhou para atendimento especializado no CAPS, não acessam tal atendimento ou, quando o fazem, não chegam a se vincular ao referido serviço.

Os usuários que não se vinculam aos CAPS, comumente, são referidos pelos profissionais dos serviços da RAPS como pessoas que não aderem ao tratamento. Por averiguarmos a intensidade e a recorrência da não adesão, apontando para os fluxos e movimentos constituintes da RAPS da cidade, consideramos que tal acontecimento se mostra como dispositivo no sentido proposto por Foucault (1979) de "fazer ver e fazer falar". Neste sentido, rever a articulação dessa rede de cuidado em saúde mental, investigando como/onde esse usuário se perde são questionamentos que podem subsidiar análises e compreensões sobre seu funcionamento. Assim, a questão da adesão ou abandono aos cuidados ofertados pelo CAPS foi tomada como analisador, sendo que, na concepção do institucionalismo francês, analisadores são acontecimentos ou elementos capazes de suscitar a crise necessária para disparar um processo analítico, "que fazem aparecer, de um só golpe, a instituição 'invisível'" (LOURAU, 1993, p.35).

Neste trabalho, nosso enfoque foi o cotidiano de cuidado em saúde mental em rede na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, no intuito de investigar os modos de (não) vinculação dos usuários aos serviços especializados que a rede lhes oferta. Observemos, entretanto, que não intentamos aqui refinar mecanismos de controle sugerindo que há um único fluxo dado para acessar a RAPS. O propósito dessa pesquisa foi identificar quais modos, por vezes, invisíveis, pessoas em sofrimento psíquico encontram ou inventam para terem suas dores e demandas de cuidado acolhidas.

Pinheiro et al. (2016) propõem o uso dos itinerários terapêuticos como ferramenta teórico-metodológica, pela qual podemos analisar as redes de cuidado e atenção à saúde. Seguimos este caminho por acreditar no "potencial dos itinerários terapêuticos para evidenciar as fronteiras do cuidado em suas diferentes expressões" (PINHEIRO et al., 2016,p. 18), já que o que percebemos no cotidiano são diferentes modos de cuidado e percursos que podem indicar outros modos de produção de saúde que não se restringem aos serviços da RAPS.

Aspectos conceituais

Dada a elevada taxa de não comparecimento dos usuários indicados aos serviços da rede de saúde, é comum pairar nas equipes certo sentimento de impotência frente à recorrente pergunta: por que não aderem ao tratamento? (BORGES e PORTO, 2014). Observando, a partir do contexto em que essa nomenclatura vem sendo usada, percebe-se que tal situação é interpretada pelas equipes como resistência ou recusa do usuário a um ato de cuidado advindo de um trabalhador ou serviço da rede, caracterizando esse evento como um momento de negação ao que lhe é ofertado. Ou seja, há uma expectativa de que o usuário consinta ou aceite o que lhe é sugerido, o que pode incluir desde um tratamento medicamentoso até a participação em oficinas e a outros tipos de atendimentos individuais ou em grupo, compreendidas pela equipe técnica como terapêuticas (BRASIL, 2002). Poderíamos também pensar que, por vezes, a não adesão também pode tomar o sentido de fracasso terapêutico.

Para abordar este conceito comumente usado pelas equipes de saúde mental dos CAPS, realizamos uma pesquisa bibliográfica através da base Scielo. Entre os artigos encontrados, vê-se que as discussões sobre a vinculação ou adesão dos usuários de saúde mental têm sido permeadas por posições polarizadas ou unilaterais: ora culpabilizando o usuário, ora o trabalhador. Muitas vezes, parecem desconsiderar o contexto ea complexidade do tratamento oferecido, demonstrando desconhecimento da legislação de saúde mental em vigor e, assim, acabam por reforçar o modelo manicomial de assistência (SANZ DE ALVAREZ, ROSEND e ALCHIERI, 2016).

Algumas pesquisas propõem problematizar a adesão ao tratamento através de entrevistas com os pacientes, no entanto, focam suas análises relacionando a adesão estritamente a seguir ou não as prescrições medicamentosas feitas nos serviços de saúde mental (SOUZA et al., 2011; GOMES. MIGUEL e MIASSO, 2013). Em estudo de Ribeiro et al. (2008), o registro de comorbidade psiquiátrica e a abordagem exclusivamente farmacológica foram considerados associados ao não abandono do tratamento. Seria possível ainda, considerando que falamos em tratamento em saúde mental, sugerir que este se restrinja apenas à prescrição medicamentosa?

A busca ativa de pacientes referenciados por uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e que haviam, anteriormente, abandonado o tratamento em saúde mental, revelou que mais da metade dos pacientes afirmaram não ter voltado a procurar atendimento em saúde mental porque obtiveram melhora e/ou porque o tratamento não seria mais necessário. Além disso, em torno de 19% dos usuários consideraram que o tratamento oferecido havia sido inadequado ou era ineficaz (RIBEIRO e POÇO, 2006).

Em pesquisa de Matas, Staley e Griffim (1992), o maior preditor de não comparecimento às consultas da atenção especializada em saúde mental demonstrou relacionar-se ao tipo de serviço responsável pelo encaminhamento: 32,8% dos pacientes referenciados pelo setor de emergência não compareceu à consulta especializada, comparado com 11,2% e 8,6% daqueles referenciados, respectivamente, por serviços de atenção primária e secundária. Diante desses resultados, os pesquisadores sugerem identificar possíveis ações que visem a qualificar o processo de referência do usuário da atenção primária para a atenção especializada, já que a boa articulação entre os serviços demonstrou ter papel importante no acesso ao cuidado em saúde mental.

Para abordarmos como os usuários acessam os serviços de saúde, cabe-nos falar sobre a forma como se organiza o cuidado em saúde. A regulação denominada como governamental, considerada o que podemos chamar de regulação formal e pretendida como ordenadora do acesso aos serviços demonstra ser apenas uma das possibilidades de produzir saúde (CECÍLIO et al., 2014b). Esses mecanismos de regulação nem sempre respondem às necessidades do território, nem todos os atores sociais envolvidos (sejam eles trabalhadores, equipes, gestores, o próprio usuário e seus familiares) atuam de acordo com isso, quebrando ou mudando as regras do jogo e, assim, instituindo novos modos de regulação, novos itinerários antes impensados.

Consideramos que discutir o fenômeno da adesão engloba muitas dimensões que não se restringem à precisão com que o paciente segue as recomendações profissionais ou a regulação formal dos serviços, pois estaríamos reduzindo a vivência do usuário a simples submissão aos desígnios dos profissionais de saúde, vigilante biopolítico que alinha formas de experienciar o adoecimento (BORGES e PORTO, 2014). Diante disto, será viável continuar caracterizando como não aderente aquele que não cumpre integralmente a conduta prescrita pela equipe? Essa noção de adesão a um serviço não colocaria a perder o objetivo de ganho de autonomia do usuário? Não seria a adesão um efeito de um encontro que se dá na relação clínica?

Há que se perceber um elemento de tensão sobre a produção de atos de cuidado que conforma um processo no qual o usuário é simplesmente alvo do cuidado; quando, ao contrário, este usuário a que os atos do profissional de saúde se dirigem é efetivamente sujeito em ação (CECCIM, 2004). Partindo do pressuposto que o trabalho em saúde é sempre relacional, pois para além do conhecimento técnico, as práticas em saúde dependem do que Merhy (2002) chamou de "Trabalho Vivo em Ato", isto é, o trabalho no momento em que este está sendo produzido. Se relações durante o ato de cuidar são sumárias e burocráticas, a assistência se produz centrada em um ato prescritivo, constituindo um modelo de saúde baseado no saber médico hegemônico, produtor de procedimentos.

Por entendermos que saúde e subjetividade são necessariamente indissociáveis, a modalidade de subjetividade-saúde produzida aqui é similar ao assujeitamento e à alienação subjetiva e sociocultural (COSTA-ROSA, 2013). Interrogamo-nos, assim, sobre o modo como se opera o cuidado na rede de serviços implantados pelas políticas públicas e fora deles, pois vemos o trabalho em saúde como relacional e, portanto, importa olhar para a qualidade das relações que são produzidas. Que tipo de relações (re)produzimos?

Com esta discussão, abrimos um ponto importante sobre o cuidado em saúde mental: a produção de bons encontros. Para Espinosa (2009), o conhecimento parte do corpo, esse que sente, que é afetado, que está no mundo e se relaciona com outros corpos. Por isso, considera-se a importância de conhecer seus afetos e, através do conhecimento, poder lidar com eles de outra forma, mais capaz de agir no mundo.

Espinosa (2009) nos apresenta uma ciência dos afetos, em que nossa potência de agir e nossa potência de vida são aumentadas ou diminuídas a partir do que experimentamos nos encontros que temos. Assim, em um encontro, as relações podem se compor de modo a aumentar nossa capacidade de agir: um afeto de alegria acontece quando uma afecção nos leva para uma potência maior de ser e estar no mundo, quando encontramos um corpo que coloca em jogo características que compõem as nossas. Já um afeto de tristeza acontece quando um encontro nos leva para uma condição de menor potência, assim, "afecções à base de tristeza se encadeiam, portanto, umas nas outras e preenchem nosso poder de ser afetado. Elas o fazem, porém, de tal maneira que nossa potência de agir diminui cada vez mais e tende para seu mais baixo grau" (DELEUZE, 1992a, p. 166).

Para Pelbárt (2000), o desafio se constitui em sondar que trajetos a cidade produz ou captura, que forças são essas que se fazem presentes, que expandem ou capturam a vida. Para isso, coloca-se a importância do Projeto Terapêutico Singular (PTS) enquanto dispositivo de cuidado e produção de uma nova relação de cuidado, fundamentada em uma nova ética de cuidado, numa relação sujeito-sujeito, que implica em pensar modos de lidar com o sofrimento psíquico do usuário que proporcionem possibilidades de resgatar vínculos com a vida, construído de forma singularizada (PINTO et al., 2011). Este dispositivo foi pensado com a intenção de romper com as relações manicomiais e com as formas excludentes de tratamento antes estabelecidas, pressupondo que se trabalhe com uma concepção de sujeito que o considere em sua complexidade e contemple os aspectos biológicos, psicológicos, socioeconômicos e culturais que o constituem.

Pautados pela lógica do trabalho no território, a construção do PTS, nesta perspectiva, será composta por um plano de intervenções decididas em conjunto entre o usuário, família e equipes de profissionais que o acompanhem, no sentido de se construir um cuidado integral à pessoa. O PTS não deve estar limitado aos espaços dos serviços, pois significaria desconsiderar a potencialidade do território em que o usuário vive. "É fundamental considerar que a construção do PTS pressupõe o reconhecimento do território existencial e suas redes vivas de cuidado ou descuidado, assim como as linhas de fuga possíveis para a produção de novos modos de subjetivação" (FERREIRA et al., 2016).

O cuidado em rede no território implica em uma criação/invenção de formas de cuidado que não se limitam à vinculação de acesso a um equipamento de saúde ofertado pelo SUS, mas deve transcender os muros institucionais do CAPS (FERREIRA et al., 2016), considerando a corresponsabilização do sujeito na construção de seus itinerários de cuidado. Pensando a partir desta mudança de paradigma, como dialogar com uma política que propõe o cuidado em rede e continuar a avaliar o usuário unilateralmente como aderente ou resistente? Em que medida a não vinculação ao serviço de saúde mental dá pistas sobre como a rede de cuidado tem funcionado? E como esse usuário tem transitado nas redes de atenção à saúde pretensamente montadas para acolher suas demandas de cuidado?

 

2. Itinerários prescritos e realizados: percurso metodológico

Neste estudo de natureza qualitativa, tomamos como método a cartografia, que possibilita identificar possíveis conexões e articulações, para assim explicitar a rede de forças à qual o objeto ou fenômeno pesquisado se encontra conectado, levando em conta suas modulações e seu movimento permanente (BARROS e KASTRUP, 2012).

Buscamos identificar possíveis pontos de encontro e dispersão entre os itinerários de cuidado de si traçados pelos usuários para suas vidas e os fluxos a eles ofertados pela RAPS de Porto Alegre, tomando um CAPS II do município como unidade empírica de pesquisa. Em um primeiro momento, foi realizada uma análise documental do fluxo de acesso e atendimento de um CAPS da cidade de Porto Alegre, com base no registro que a equipe técnica mantém dos usuários encaminhados, no período de 2015 a 2017, pelos vários pontos da rede para o atendimento em saúde mental.

No segundo momento, a partir da identificação de usuários que não compareceram ao acolhimento agendado no CAPS, realizamos a busca ativa de algumas destas pessoas, sendo feitas seis entrevistas semiestruturadas. As perguntas feitas possibilitaram acompanhar os percursos que cada usuário constrói em seu itinerário terapêutico, por vezes utilizando os serviços da rede formal e, em outras, encontrando modos de cuidado alheios ou mesmo apesar deles.

As narrativas que surgiram nas entrevistas recontavam histórias de vida que diziam de dores, de fragilidades, de medos, mas também expuseram possibilidades criativas inventadas, novos modos de viver, de re-existir. Como bem disse Guimarães Rosa, "também as estórias não se desprendem apenas do narrador, sim o performam: narrar é resistir" (GUIMARÃES ROSA, 1952). Para manter a confidencialidade dos entrevistados, usamos nomes fictícios para identificá-los.

Esses encontros entre pesquisadores e usuários permitiram reconstituir os possíveis pontos de encontro e outros tantos de dispersão que foram compondo sentidos, produzindo conhecimentos acerca dos itinerários singulares que cada usuário construiu para si. Com a releitura do material e análise das entrevistas, foram sendo percebidos sentidos que se repetiam e se mostravam como pontos que os usuários consideraram como afirmativos de seu itinerário de cuidado ou como pontos que fizeram modificar tal percurso como se desenhava. Realizamos um processo de articulação que resultou na organização de eixos temáticos que, a partir daqui, serão descritos para sistematizar os principais dilemas, criações e modos de enfrentamento com o que as pessoas têm inventado seus itinerários de cuidado em saúde mental.

2.1 Encontro usuário-serviço

"eu já vinha me tratando com cardiologista pelo convênio, como ele tava acertando comigo, eu não quis trocar. Porque ele era uma pessoa assim [...] Ele era cardiologista, mas ele de longe notava se eu tinha qualquer coisa" (Participante Salete).

Nas entrevistas foram descritos o que podemos chamar de bons e maus encontros com os serviços e com alguns de seus profissionais. Como falamos anteriormente, partimos do pressuposto que o trabalho em saúde é iminentemente relacional, portanto, a forma como tais relações são produzidas pode nos indicar se produzimos saúde ou assujeitamento. Com a fala acima, Salete demonstrou como a produção de bons encontros surge como fator importante sobre o caminho de cuidado em saúde mental que construímos, pois foi ponto decisivo para dar continuidade ao tratamento com o mesmo profissional que já vinha lhe atendendo. "Foi uma coisa bem complicada a última vez que eu estive ali no posto e que estava em crise e a enfermeira da triagem ali 'ah, mas tu não pode desistir'. Mas se eu estou aqui no posto, eu estou procurando ajuda, acho que não faz sentido" (Participante Anna).

Neste relato de Anna, o que configurou-se num mau encontro ou momento de expulsão significou também barreira de acesso ao cuidado no serviço mais próximo em seu território. Quando a participante teve alguma demanda de saúde, devido à experiência relatada, a mesma não se sentiu segura para buscar atendimento nos serviços em seu território, e buscou um serviço de atenção hospitalar público.

A aposta na produção de saúde e autonomia do usuário envolve a possibilidade de negociação que se faz num contexto cogestivo, no fazer com o outro, em que o que está em jogo atravessa um limite tênue entre o empoderamento e a captura. Daí convém dizer que o significado de autonomia que usamos refere-se ao que Kinoshita (1996) propõe, em que é autônomo aquele que tem pontos de vínculo e redes de relações, aquele que tem com quem contar. Esse conceito de autonomia envolve uma perspectiva coletiva de compartilhamento e negociação entre diferentes pontos de vista envolvidos.

Nesse sentido, sem um pouco de disposição para a escuta, os profissionais podem produzir maus encontros, em que a potência de agir é diminuída e a produção de autonomia pode se tornar precária ou mesmo inexistente. Se não há disposição para a escuta, não se valoriza "o que os usuários trazem de novidade, e, o que é central, corremos o risco de ficarmos prisioneiros de pressupostos que, afinal, apenas fazem confirmar tudo o que nós [profissionais de saúde] pensamos sobre como deve funcionar o 'sistema' de saúde" (CECÍLIO, 2014, p. 9).

Muitas vezes, nos estabelecimentos de saúde vemos imperar a fragmentação das necessidades e das demandas, a privatização e solidão do sofrimento cotidiano, o peso dos vínculos e procedimentos burocráticos, respostas institucionais que cristalizam as necessidades, a expropriação e o empobrecimento da vida que a condição de usuário comporta. O que nos deixa diante de histórias semelhantes às do manicômio (ROTELLI et al., 1990). Por entendermos que produzir saúde envolve aumentar nossa capacidade de criar novas normas para a vida (CANGUILHEM, 2002), efetuando a potência de ser e estar no mundo, é natural que busquemos modos de aumentar essa potência por meio de bons encontros, de expandir nossas possibilidades de conexão.

Inspirados por Espinosa (2009), podemos refletir que a produção de saúde passa, então, por buscar os bons encontros que irão compor um caminho de melhora ou reabilitação, um caminho que não está dado, precisa construção, o que implica um campo de disputa, de negociação entre as pessoas envolvidas.

Andrius fora atendido em uma unidade de urgência em saúde mental, porém conta que não continuou o acompanhamento com a psicóloga que atendia no serviço, "porque ela saiu dali, aí não pude mais marcar consulta. [...] Eu estou fazendo consultas com outra psicóloga, ela é particular". Sheila relatou que, por ter problemas cardíacos e também as questões de saúde mental, necessitando de cuidados especializados frequentemente, concordou com a orientação de seu filho de que "sem convênio não dá pra ficar".

Os percursos desses dois usuários demonstraram ser um misto entre público e privado, operando ativamente diversos arranjos para superar lacunas do acesso e da integralidade da atenção em saúde. Os nós e bloqueios do sistema de saúde ganham visibilidade quando percebemos outras lógicas de regulação que são colocadas em ação (MENESES et al., 2017).

2.2 Acolhimento e suas consequências

Os participantes foram desvelando ao longo das entrevistas algumas das angústias que atravessam seu cotidiano e que, talvez, mais obstaculizem do que contribuam para a produção de seus itinerários de cuidado, sendo o tema acolhimento nos serviços e a percepção que têm deste o norteador de tais histórias. Durante uma das entrevistas, ao perguntar se Andrius gostaria de retomar os atendimentos no CAPS, este questionou: "eu tenho que pegar isso agora? Ou poderia ser depois?". Yara falou com certa desesperança sobre sua vontade de retomar os atendimentos no CAPS: "Porque eu não sei se eu for lá remarcar eles vão querer [...] sempre deixei claro que se eu não fosse era por causa do meu filho, mas nunca só abandonei, muito pelo contrário. Eu sempre avisei, tanto que eles viram que eu estava grávida e minha gravidez foi de risco também".

A percepção de impossibilidade de acolhimento ao seu sofrimento por parte da rede de serviços envolve um medo de perder lugar, ser interpretado como evasor ou não aderente, usando o termo desse estudo. O que se constrói aí parece ser uma relação de dívida com os serviços. Uma relação que inverte a noção de direito ao acesso e torna o usuário incapaz de se sentir cidadão de direito. Para Deleuze (1992b), o homem confinado da sociedade disciplinar passou a ser o homem endividado da sociedade de controle. Nesta passagem, os mecanismos de sujeição permanecem, mas de forma mais sutil; a passagem de uma sociedade disciplinar a uma sociedade de controle tem como estratégia fundamental esvaziar a imagem da sua virtualidade para torná-la pura informação, parte dos dispositivos de vigilância. A lógica do confinamento persiste em toda a sociedade sem que haja a necessidade da existência de muros para isso, a estratégia atual é construir subjetividades que se enquadrem no modo de vida oferecido pela sociedade, assim, o poder exerce-se na produção e na repressão.

Cabe pontuar que transitar, de forma mais ou menos livre por estas redes, desconhecendo o direito a ser acolhido nos serviços que encarnam as políticas públicas de saúde são ideias que se contrapõem. Ao usar o termo não adesão não se estaria também negando ao usuário o direito ao cuidado em liberdade? A sociedade de controle, seguindo ainda a leitura de Deleuze (1992b), passou a ganhar mais presença nos modos de viver na atualidade, tendo proeminência face às outras maneiras de organizar um campo de práticas, sendo movida pela dívida infinita, atravessando os territórios do trabalho da educação, da saúde e das relações familiares e de amizade. Pagar o que nunca cessa de ser cobrado é uma busca que leva a processos de intenso sofrimento e, até mesmo, adoecimento. No caso das falas acima, vemos o quanto se produz sentimentos de culpa e endividamento por não cumprir certas agendas ou cumprir o que achamos que o outro espera, cobranças essas infindas e continuadas que funcionam como opressoras e podem significar bloqueios e nós ao acesso à saúde mental. Diminui-se a possibilidade de produzir diferentes repertórios de cuidado e de produção de uma vida mais autônoma.

Nessa relação entre clínica e vida é necessário, sobretudo, refletir sobre a política e os mecanismos cada vez mais sutis de dominação e de poder que gerenciam o cotidiano das subjetividades em todos os domínios (ROMAGNOLI, 2009).

Para que o princípio do cuidado em liberdade se realize concretamente, precisa ser colocado em ação no cotidiano dos serviços, precisa atravessar a prática dos profissionais no encontro com os usuários e suas questões de vida (ONOCKO-CAMPOS e CAMPOS, 2006). A autonomia não pode ser tomada como um valor em si, mas como um princípio do cuidado em liberdade que embasa o modo de cuidado psicossocial, que é a proposta a partir da Reforma Psiquiátrica (AMARANTE e NUNES, 2018). A autonomia como relação e prática social será sempre o produto de uma conjuntura histórica e nunca a resposta definitiva para contradições e conflitos sociais, insondáveis e imprevisíveis. Nesse sentido, o fato de uma pessoa não poder escolher e singularizar sua forma de relacionar-se com o CAPS, criando com o outro seus itinerários de cuidado, fere o princípio do cuidado psicossocial. O cuidado em rede no território pressupõe sua constituição por relações de corresponsabilidade e produção de autonomia.

2.3 Rede de saúde leiga

Anna relatou que tem dificuldades de sair de casa, o que gera crises de ansiedade e lhe deixa mais retraída. Ao mesmo tempo, conta com a animação de junto ao marido dar aulas de dança tradicional gaúcha gratuitamente - isto é parte do seu cuidado, é algo que lhe faz muito bem: "é engraçado dizer que parece que somos duas pessoas diferentes, a pessoa que tá em casa é uma, e a pessoa que tá fora, é outra. [...] eu sou mais fechada, mais quieta. Mas quando eu tô lá, eu me sinto melhor, me sinto mais animada, brinco".

Andrius contou que praticar jiu-jitsu foi algo que o ajudou a lidar com suas questões de saúde mental, pois "estar naquele lugar ensinou que todo mundo tá no mesmo nível e que é o respeito acima de tudo. Eu já ganhei o respeito dos meus pais e agora tô ganhando respeito lá, sabe".

Na construção de redes no cuidado em saúde, não nos limitamos a falar de conexões que se dão com trabalhadores ou serviços da rede de serviços das políticas públicas. Os itinerários incluem os tantos vínculos possíveis no cotidiano do território de vida das pessoas, pois, como sugere Teixeira (2004), o cuidado consonante com a Reforma Psiquiátrica pressupõe a construção de redes por meio de encontros que permitam ao homem agir no mundo em sua plena potência.

No cuidado psicossocial, a cidade se presentifica como matéria da clínica e pode aparecer muitas vezes como agente de intervenção, pois possibilita a emergência de encontros que autorizem ou reconheçam a escolhas do sujeito em sofrimento psíquico, reconheçam sua palavra (embora, também possa acontecer o contrário) e apontem para outros enlaces possíveis (COSTA, 2011).

Anna revelou que tem medo de andar pela cidade sozinha, por medo de se perder. Porém, através de um aplicativo que colocou em seu telefone, encontrou um modo de se sentir um tanto segura a ponto de transitar por onde quiser: "baixei um aplicativo de telefone assim, o Mobi, que diz qual é o ônibus, quanto tempo tu leva, sabe, tudo já pré-calculado". Assim, um aplicativo no celular é tomado como facilitador para transitar no terreno vivo e cambiante da cidade, terreno fértil de possibilidades de trocas sociais que se estabelecem em comunidade (PALOMBINI, 2004), contribuindo, em alguma medida, para a construção de uma vida mais autônoma.

"O cuidado e a promoção de saúde precisam do componente do espaço público, da horizontalidade na dissimetria, da pluralidade das vozes, do exercício da liberdade" (SIMONI e CABRAL, 2018, p. 194). Araújo, Bellato e Hiller (2009) apontam que as redes de apoio social são vividas e movimentadas conforme a necessidade do momento, a partir de movimentos mais individuais, reticulados, que acontecem dentro e entre redes próprias e próximas, pondendo potencializar o cuidado familiar.

É impossível olharmos para as redes que se produzem sem entender que a própria vida não cabe num ordenamento pré-concebido de cuidado à saúde! Os itinerários, ao revelarem certo ordenamento de serviços e/ou profissionais que podem ser acionados pelos usuários a partir de suas necessidades, trazem à tona as dinâmicas dos percursos dos usuários e do seu agir leigo na tentativa de produzir esquemas estáveis e confiáveis, não delineando um desenho lógico ou necessariamente coerente com uma hierarquia de serviços (MENESES et al., 2017).

As entrevistas nos revelam o protagonismo dos usuários na construção ativa de itinerários terapêuticos, produzindo uma complexa articulação entre os serviços e outros pontos da rede no território com o seu agir leigo. Em pesquisa de Cecílio et al. (2014b), similar à que descrevemos aqui, as entrevistas desvelaram diferentes sistemas de saúde nos interstícios do sistema de saúde formal, evidenciado pela centralidade de um agir leigo presente para além da regulação sistêmica governamental. Presentificam-se no cotidiano de saúde reinterpretações das redes hierarquizadas e crescentes de cuidados como concebidas pelos gestores públicos.

Testemunhamos, nos discursos dos usuários, grande diversidade de composições e itinerários onde as relações familiares e com vizinhos/conhecidos aparecem nas entrevistas como importante vínculo de conexão com a vida. Júlia revela que o vínculo com seu filho é algo que lhe incentiva em seu cuidado de si, pois fica "pensando nele: 'bah, eu tenho que me manter porque eu tenho o guri, eu tenho que ficar bem por causa do guri, eu tenho que cuidar do meu filho. Isso me ajuda bastante".

As narrativas dos entrevistados reafirmam a existência de outras lógicas de regulação para além da governamental, que resultam na produção do cuidado. Tomamos a regulação como campo de conflitos e disputas, extrapolando a ideia de um simples ordenamento burocrático-administrativo. Nesse campo de disputas, os usuários vão compondo seus itinerários de cuidado através de redes de apoio que nem sempre coincidem com as redes formais que os serviços de saúde ofertam em seus territórios. As implicações clínicas, éticas e políticas dessa clínica nos remetem a seu sentido de produzir um desvio para criar outras histórias, outras possibilidades de existência (BENEVIDES e PASSOS, 2001).

Nos caminhos do pesquisar vimo-nos diante de um problema que comparece por meio da tensão entre a pretensão de se produzir um usuário disciplinado, guiado pelos procedimentos padronizados e previsíveis - o usuário ideal - e o usuário real, que é autônomo, nômade, que faz escolhas e, muitas vezes, subverte a racionalidade planejada pelos administradores (CECÍLIO et al., 2014b, p. 53). Em outras palavras, não estaríamos aqui observando o que há entre aderir e resistir? Observando o que cada sujeito consegue compor como cuidado de si a partir dos serviços ofertados na rede e, muitas vezes, apesar deles?

Em pesquisa sobre itinerários terapêuticos, Burille e Gerhardt (2016) relatam que as redes de apoio informais, por sua própria natureza e proximidade, se sobressaíram às redes formais. As autoras complementam que as redes informais são responsáveis por disponibilizar ajudas frequentes e colocam em circulação bens materiais e imateriais que, em determinados momentos, supriram lacunas de atuação do Estado.

O que queremos dar visibilidade aqui também diz respeito a estratégias utilizadas pelos usuários em seu dia a dia, criadas nas malhas das redes de conversações, que vão possibilitando a construção de novas ferramentas para lidar com momentos ruins ou dificuldades encontradas no cotidiano. Andrius relatou que algumas atividades normalmente lhe ajudam quando se sente ansioso: "eu toco violão [...] e procuro fazer outras coisas no meu dia a dia, eu pratico atividade física, faço vôlei, mais na escola mesmo". Desta forma, conta-nos sobre as estratégias de produção de vida e saúde que se constituem a partir do reconhecimento e legitimação de atividades como passíveis de aumentar sua potência de vida.

 

Considerações Finais

"Eu comecei a usar outras alternativas [...] vamos dizer assim, eu tava tentando pelas minhas próprias pernas [...] aprender a lidar com o cotidiano, alguma coisa pra poder entender as consequências do que eu me tornei e porquê" (Relato da participante Anna).

Resistir pareceu ser o verbo principal neste trabalho, pois quando os usuários inventavam outras formas de cuidado de si, mais do que se afastar do cuidado prescrito, foi-se desenhando como que um aproximar-se de si mesmo. Para cada usuário, para cada momento do processo de cuidado de si, construir itinerários de cuidado mais afeitos às suas vidas se apresentava, na escuta propiciada por essa pesquisa, como um exercício possível de autonomia.

Foucault (1979) definiu a resistência como uma força inventiva, uma força propulsora de vida e produtiva na luta contra a submissão das subjetividades. Desta forma, tomamos o conceito de resistência em sua potência de produzir novas formas de subjetividade, pela recusa das individualidades que foram impostas historicamente, da imposição de modos de vida enrijecidos e tutelados.

Falar em adesão implica em decisões terapêuticas sobre um plano de cuidado que, muitas vezes, é proposto a priori por uma equipe ou profissional a partir de um pacote de ofertas em que o sujeito a ser cuidado tem de se encaixar. Propor esta discussão implica em resgatar o conceito de adesão e transpor essa representação que exclui comportamentos diversos ao prescrito. É necessário contemplar aspectos da subjetividade dos usuários, em suas necessidades e dificuldades como forma de legitimar a autonomia dos usuários em seus itinerários terapêuticos.

Nesse sentido, o uso do termo não adesão ao CAPS coloca em cheque a proposta do trabalho em rede no território, pois desconsidera o papel do usuário como corresponsável na construção de seu cuidado, que é a própria definição de como deve ser construído um PTS (PINTO et al., 2011). A noção de adesão a um serviço, ou seja, se o usuário cumpre ou não o que lhe é prescrito, inviabiliza o olhar para o usuário como sujeito desejante e o cuidado como produtor de autonomia, reafirmado pelas lutas da Reforma Psiquiátrica (AMARANTE, 2019).

Consideramos a vinculação aos serviços de saúde mental como efeito de encontros que se produzem na relação clínica; é no como ocorrem tais encontros que poderemos ter pistas do que pode esse contrato terapêutico.

Ressaltamos a importância de um cuidado que emerge na multiplicidade dos encontros entre os diferentes atores que circulam pelos serviços de saúde e o território de vida das pessoas. Em processos de cuidado que reforçam a ideia de uma relação em que o outro é percebido como legítimo, podemos produzir saúde como relação dialógica, quando a construção das redes inclui um regime de trocas e disputa de cuidado entre os envolvidos. Nesse terreno de disputa de cuidado, as negociações que podem surgir colocam em jogo a irredutível tensão entre a imposição das normas de regulação de uma rede ideal e a singularidade do usuário. É necessário discutir a importância do agir leigo (CECÍLIO et al., 2014a) na construção dos itinerários de cuidado, pois essa noção tem implicações diretas na clínica que colocamos em ação. Por mais que existam fluxos preconizados e ordenados de funcionamento das redes de serviços, o próprio usuário é coprodutor de sistemas de saúde através da regulação singular que ele aciona e dos itinerários de cuidado que desenha para si.

Essa reexistência do usuário como corresponsável pela construção de seu cuidado implica também a possibilidade de reexistência do trabalhador e de sua equipe. É necessário reconhecer que meu saber como profissional de saúde é limitado, o que implica em buscar práticas em saúde híbridas de saberes e valores trazidos pelos diversos atores sociais nelas envolvidos, trabalhando com a perspectiva da intersetorialidade para, assim, contemplar a singularidade dos sujeitos.

Supor saber de antemão o que é melhor para o outro pode implicar um exercício de poder sobre ele, em que o cuidado se perde na linha tênue entre produção de padecimento e produção de saúde (ALBERONI, 2014). Quanto mais se exerce essa posição, mais precária é a possibilidade de vinculação com esse usuário que busca a escuta naquele profissional de saúde ou equipe. Proporcionar uma escuta sensível é puro exercício de alteridade, em que acolher o outro compreende a experiência de lidar com as diferenças.

Na perspectiva da Reabilitação Psicossocial, o que motiva os usuários a manter um plano de cuidado está relacionado ao quanto às atividades do seu cotidiano estão ligando esses usuários à vida. Nossas ofertas deveriam se conectar com os regimes ordinários da vida, para que a demanda não esteja desconectada da necessidade das pessoas que buscam os serviços.

Os desvios feitos no trajeto curto, linear, que a RAPS traça para os sujeitos em sofrimento têm demonstrado o quanto essa norma de regulação pode funcionar como limitante dos movimentos de um navegar que é da própria vida. Temos muito a aprender com itinerários terapêuticos que podem ser tão mais imprecisos e diversos do que a tríade casa-Unidade de Saúde-CAPS.

Nesta direção, podemos afirmar a possibilidade e potência de uma clínica que produz desvios onde emergem novos sujeitos nas relações, novos trabalhadores e novos usuários, onde cada encontro transforma os modos de agir no sistema de saúde, seus modos de trabalhar, de adoecer, de viver (BARROS e GOMES, 2011).

Refletir acerca de nossas práticas e a forma com que temos produzido como trabalhadores as redes de produção de saúde pode ajudar no reposicionamento dos CAPS e outros serviços da RAPS, como espaços de criação de vida e de saúde. Aproximar-nos- íamos de uma proposição de Foucault (1979) ao questionar: "não poderia a vida de todos se transformar numa obra de arte? Por que deveria uma lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte, e não a nossa vida?" (p.261).

 

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