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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) v.6 n.1 Ribeirão Preto  2010

 

Trabalho em equipe na saúde mental: o desafio interdisciplinar em um CAPS

 

Trabajo en equipo en la salud mental: desafío interdisciplinar en un CAPS

 

Team work in mental health: interdisciplinary challenge in a CAPS

 

 

Vinicius Carvalho de Vasconcellos

Psicólogo organizacional, trabalhando atualmente na Petrobras. Mestre em Saúde Pública. e-mail v.v@click21.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo buscou investigar, à luz da psicossociologia francesa, as possibilidades e os obstáculos da integração interdisciplinar em um CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), mapeando também os arranjos/práticas organizacionais que proporcionam, de forma mais concreta, a interface entre disciplinas/profissões. Nesse estudo de caso, pautado pelo método qualitativo, as assimetrias entre as disciplinas e as dificuldades na comunicação e na demarcação de fronteiras profissionais surgiram como entraves para a integração. Apesar dessas dificuldades, o "grupo de referência", as "microrreuniões" e a reunião de equipe emergiram como mecanismos envolvidos pela proposta interdisciplinar, proposta essa que tem, no imaginário de transformação da reforma psiquiátrica, um aliado.

Palavras-chave: Saúde mental; Equipe de assistência ao paciente; Trabalho.


RESUMEN

Ese estudio de caso cualitativo investigó, a la luz de la psicosociología francesa, las posibilidades y obstáculos de la integración interdisciplinar en uno CAPS (Centro de Atención Psicosocial), siendo también investigados los arreglos/prácticas organizacionales que proporcionan el contacto más concreto entre las profesiones/disciplinas. Las asimetrías entre las disciplinas y las dificultades en la comunicación y en establecer fronteras profesionales aparecieron como impedimentos para la integración. A pesar de las dificultades, el "grupo de referência", las "microrreuniões" y la reunión del equipo surgieron como mecanismos involucrados en la propuesta interdisciplinar, que tiene, en el imaginario de transformación de la reforma psiquiátrica, un aliado.

Palabras clave: Salud mental; Grupo de atención al paciente; Trabajo.


ABSTRACT

This qualitative case study researched, under the light of the French psychosociology, the possibilities and obstacles of the interdisciplinary integration in a CAPS (Psychosocial Care Center), addressing also the organizational practices that provide the strongest interfaces among the professions/areas. The asymmetries among the disciplines and the difficulties in communication and in the establishment of the professional borders appeared as obstacles for integration. Despite the difficulties, the "grupo de referência", the "micro-reuniões" and the team meeting emerged as mechanisms related to the interdisciplinary proposal, which has an ally in the imaginary of the transformation of the psychiatric reform.

Keywords: Mental health; Patient care team; Work.


 

 

INTRODUÇÃO

A presença de múltiplos profissionais é realidade cada vez mais concreta no cotidiano dos serviços de saúde e, no fundo, remete ao processo de parcelamento do trabalho em múltiplos compartimentos, funções e profissões, vivenciado por essas instituições desde o século XIX(1). No Brasil, desde a década de 1970, o trabalho em saúde passou a priorizar a composição de equipes de profissionais com diferentes formações(2). Esse movimento traz inequivocamente a benesse de incrementar as possibilidades terapêuticas, mas traz consigo também o risco de fragmentação do trabalho, impondo assim a necessidade de integração verdadeiramente interdisciplinar.

A proposta interdisciplinar ganha força a partir da década de 1960, buscando superar a crescente fragmentação do conhecimento, estabelecida em um mundo cada vez mais complexo(3). O termo interdisciplinaridade não tem sentido único, mas, em geral, versa sobre a intensidade das trocas entre os especialistas e sobre o grau de integração das disciplinas em um projeto profissional, de ensino ou de pesquisa(4). Para fins deste estudo, assume-se a interdisciplinaridade como estratégia que envolve troca real de conhecimentos e uma integração mais profunda e coordenada entre disciplinas que a multidisciplinaridade, essa limitada à simples justaposição de várias disciplinas em função da realização de determinado trabalho(4).

A literatura especializada buscou nos últimos anos caracterizar pontos críticos para a integração interdisciplinar em saúde: o poder da tradição positivista e biocêntrica, a ausência/presença de um projeto comum, o confronto entre especificidade e flexibilização na realização do trabalho, a comunicação e a existência de concepções de integralidade imprecisas e/ou equivocadas entre profissionais de saúde(5-7). Outros pesquisadores ressaltam o alto grau de diferenciação dos diversos trabalhos existentes nos serviços de saúde(8), a transposição automática, para o campo de trabalho compartilhado, das teorias/práticas de cada profissão/saber(2) e a estrutura das instituições de ensino, geralmente sem nenhuma comunicação entre as disciplinas, o que se reflete na formação profissional(3).

No dia a dia dos serviços, a demanda pela interdisciplinaridade confronta-se continuamente com tais questões, gerando implicações importantes para a organização do trabalho, como na difícil demarcação de fronteiras entre as profissões. Confronte tal imbróglio, uma proposta é o estabelecimento de um espaço mais geral - o campo de competência/responsabilidade - que não se oferece ao monopólio de nenhum saber ou prática e funciona como uma área de confluência, e de um espaço mais restrito - o núcleo de competência/responsabilidade -, que estaria reservado às atribuições exclusivas de cada profissão(9).

Em meio a esse cenário, a proposta de equipe interdisciplinar não se furtou a aparecer na Saúde Mental, desvelando, além das questões supracitadas, alguns pontos específicos. Desde o final do século XVIII, a assistência à loucura no Ocidente teve no modelo manicomial sua principal referência, modelo esse que se apoiou na exclusividade do discurso médico na condução dos casos, no isolamento social dos loucos, na internação em instituições totais e no padrão disciplinar da assistência, entre outros elementos(10-11). A partir de meados do século XX, emerge, no entanto, um período de questionamento, o que levou à emergência de diversas propostas de reforma psiquiátrica pelo mundo(11-12).

Os ecos da reforma psiquiátrica internacional começaram a reverberar com mais força no Brasil na década de 1970. Desde então, a reforma psiquiátrica brasileira promoveu importantes mudanças na assistência, entre as quais a valorização da inserção social e cidadania dos usuários, a assunção de instituições extra-hospitalares como os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) à posição de sustentáculos da rede de serviços e a própria defesa da interdisciplinaridade. De outra parte, alguns autores assinalam as dificuldades enfrentadas para implantar a reforma, tais como o imenso desafio para mudar práticas de saúde até então hegemônicas(13) e a persistência de representações sociais típicas da lógica manicomial(14).

De toda forma, no rastro da reforma psiquiátrica, a defesa da interdisciplinaridade e a exigência das equipes multiprofissionais nas políticas públicas transformam-se em estratégia de superação do modelo manicomial, posto que a exclusividade da narrativa biomédica sobre a loucura e a noção de doença mental, enquanto categoria tão somente médico-científica, foram problematizadas(12).

Nesse processo de transformação, a convivência entre os diversos profissionais na Saúde Mental parece ser marcada por grande discordância entre as disciplinas, não apenas no que se refere à natureza e às origens das psicoses e das neuroses graves, mas também sobre as práticas ou técnicas terapêuticas apropriadas para conduzir os casos. Afigura-se, então, a realidade institucional pautada por uma mescla de princípios ontológicos, metodológicos e teóricos.

A fim de compreender o trabalho multiprofissional na Saúde Mental, este artigo apoiar-se-á prioritariamente na leitura organizacional da psicossociologia francesa. Filiada ao campo maior da psicossociologia, a Psicossociologia francesa contemporânea é uma vertente teórico-prática que tem como campo privilegiado de estudo os grupos, as organizações e as comunidades em situações cotidianas. Partindo da teoria psicanalítica de Freud e de elementos da sociologia e filosofia, esse marco teórico debruça-se sobre a natureza do vínculo que liga os indivíduos entre si e os indivíduos aos grupos sociais, priorizando os processos intersubjetivos ali vigentes(15-16).

Nessa abordagem, assume-se que toda a dinâmica do trabalho em grupo (padrões de comunicação, modo de organizar o trabalho, relações interpessoais) expressa processos inconscientes e experiências afetivas, como exemplificado na dificuldade para lidar com o sentimento de ameaça/medo, despertado pela presença do outro, ou na existência de mecanismos de defesa nas formações grupais, fenômenos apontados em outras pesquisas(17-18).

No exame das formações grupais, um ponto de destaque é o conflito estrutural entre o reconhecimento do desejo e o desejo de reconhecimento(19). De uma parte, o indivíduo almeja o reconhecimento de seu desejo e de sua singularidade frente ao grupo, com vistas a submeter esse aos seus próprios desígnios e concepções. Em paralelo, o indivíduo anseia ser reconhecido como membro do grupo, comungar com seu objeto de idealização e com seu projeto comum, fundindo-se à identidade grupal.

Ao se debruçar no estudo dos grupos de trabalho nas organizações, convém realçar também o papel dos desejos, imagens e representações psíquicas presentes no imaginário social, entendido aqui como uma maneira de representar aquilo que somos e que queremos vir a ser, aquilo que queremos fazer e em que tipo de sociedade/organização desejamos intervir(19). O investimento psíquico dos indivíduos em um determinado imaginário social embasa a constituição do grupo e favorece a efetiva realização de um projeto comum(19). Nesse sentido, o imaginário na Psicossociologia francesa exprime-se como força produtiva capaz de influenciar a dinâmica social, na medida em que representa o grupamento social nas suas aspirações, tornando os indivíduos fiadores de algo que os transcende.

Nesse sentido, o objetivo deste artigo foi investigar, no contexto da reforma psiquiátrica e à luz da psicossociologia francesa, as possibilidades e os obstáculos da integração interdisciplinar do trabalho em um CAPS, destacando também as práticas organizacionais nas quais a relação de equipe se manifesta de forma privilegiada. O material empírico que será apresentado adiante advém de uma dissertação de mestrado(20) que buscou compreender a dinâmica intersubjetiva do trabalho em Saúde Mental. Tal empreitada mostra sua relevância dado que a integração interdisciplinar influencia sobremodo o exercício das práticas assistenciais, de forma que conhecer suas possibilidades e obstáculos é um passo importante para propiciar uma assistência adequada aos usuários dos serviços de saúde mental.

 

CASUÍSTICA E MÉTODO

A pesquisa pautou-se pela abordagem qualitativa, assumida neste artigo como "aquela capaz de incorporar a questão do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações e às estruturas sociais"(21). Mais especificamente, a pesquisa em questão delineou-se como estudo de caso, que tomou como universo de investigação o Centro de Atenção Psicossocial Arthur Bispo do Rosário. Esse CAPS se localiza no município do Rio de Janeiro e atende, em geral, casos de psicose e neurose grave sob a perspectiva psicossocial.

Realizada no segundo semestre de 2007, a pesquisa de campo contou com 20 visitas ao CAPS, valendo-se da observação participante e de entrevistas semiestruturadas como estratégias de investigação. A observação participante endereçou-se a compreender o cotidiano de trabalho dos profissionais, cotidiano esse que envolve uma série de atividades, entre as quais consultas individuais, várias oficinas e outras atividades em grupo. O foco da observação recaiu sobre a atuação dos profissionais no fluxo de usuários, no brechó do serviço, na assembleia de usuários, no grupo de referência e na reunião de equipe/supervisão.

Já as entrevistas foram individuais e realizadas no próprio local de trabalho, com duração média de uma hora. A equipe técnica do CAPS, cerne dessa investigação, era composta por psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, musicoterapeutas e estagiários. Foram entrevistados profissionais de diferentes formações, tanto de nível superior quanto de nível médio. A seleção dos entrevistados respeitou dois critérios: estar envolvido diretamente nas práticas assistenciais e trabalhar há pelo menos um ano no serviço. Salvaguardadas essas condições, oito profissionais foram entrevistados.

A análise do material empírico centrou-se na abordagem psicossociológica, unindo-se a outros trabalhos realizados no campo da Saúde Pública(22-23). Nessa perspectiva, a entrevista é uma forma de impelir o entrevistado a construir reflexões sobre os sentidos da experiência laboral e assume-se que as falas expressam não apenas a individualidade do entrevistado, mas o colocam também na condição de porta-voz daquela formação social.

Baseado no referencial teórico, dois grandes eixos de análise foram privilegiados na "escuta" do empírico: o primeiro perscrutava as possibilidades e os obstáculos da integração de equipe no que toca, particularmente, à comunicação, às fronteiras entre as disciplinas e suas assimetrias de poder e status. O segundo eixo buscou mapear as práticas/arranjos organizacionais que proporcionam, de forma mais concreta, a interface entre as disciplinas/profissões, analisando a dinâmica dessa interface nas mesmas.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Fiocruz e do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira (IMASJM), e todos os envolvidos na pesquisa apresentaram seu consentimento para participar da mesma por escrito.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O CAPS Bispo do Rosário situa-se no Complexo Juliano Moreira, instituição que agrega atualmente vários serviços de Saúde Mental. Na época da pesquisa, a frequência diária do CAPS oscilava entre 20 e 35 usuários, em geral diagnosticados como psicóticos ou neuróticos graves. A assistência no CAPS inclui uma série de práticas, entre as quais se destacam os grupos de referência, grupos esses que operam como polos de responsabilização e acompanhamento dos casos, de modo que os usuários sempre estão vinculados a um grupo. Na ocasião, existiam três grupos de referência, cada qual com três técnicos de diferentes formações. Frente à composição da equipe técnica, essa apresentava, em seu quadro funcional, as seguintes profissões: assistente social, auxiliar de enfermagem, enfermeira, musicoterapeuta, psicólogo, psiquiatra e terapeuta ocupacional.

Durante as entrevistas, os profissionais eram instados a se manifestar sobre a comunicação entre os diversos tipos de profissionais no dia a dia do serviço.

As pessoas respeitam muito as diferenças de olhar, não só respeitam, mas entendem como contribuição e não como afronta. Eu não sinto atrito (na comunicação) não (PROFISSIONAL A).

Alguns profissionais naturalmente se colocam na posição de não dividir nada, têm uma qualidade péssima no trabalho. Mas acho que nessa equipe atual são poucos (PROFISSIONAL B).

Claro que existem coisas específicas de cada uma dessas disciplinas, mas a gente tenta interagir, conversar, trocamos saberes. Nem sempre é fácil, nem sempre é sem conflito (PROFISSIONAL C).

De modo geral, o primeiro trecho aduz uma boa comunicação da equipe, percepção que ecoa na maioria dos profissionais entrevistados. Como contraponto, os dois trechos seguintes registram que o esforço de integração não está isento de complicações, que podem se manifestar tanto na forma de conflitos na comunicação ou, simplesmente, na não comunicação; em especial, esse silêncio assume caráter assaz crítico, visto que o encobrimento dos conflitos dificulta o seu manejo.

A existência dessas dificuldades pode ser compreendida por questões já expressas na introdução. Por exemplo, a tendência para o individualismo, a ampla autonomia e mesmo as representações dos outros profissionais/saberes na forma de ameaça favorecem a não comunicação e a posição de "não dividir nada". Similarmente, a transposição inflexível das teorias/práticas de cada saber para o trabalho coletivo pode alimentar os conflitos profissionais.

Uma das formas mais concretas na qual essa problemática se desdobra ocorre no estabelecimento da demarcação das esferas de atuação entre os profissionais, imbróglio que conjuga, em uma mesma equação, a demanda pela interação das diferentes profissões com o respeito a suas especificidades, contenda que é candente na área da Saúde Mental. Essa convivência, muitas vezes, caracteriza-se por confusões e tensões, uma vez que a fixação dessas delimitações pode se tornar enevoada:

Nos CAPS, em geral, por ter toda essa política de equipe multidisciplinar, arbitrariamente se prescreve sem ser médico, às vezes se atende em psicoterapia sem saber fazer isso, mas não acho que isso seja bom não. Cada um tenta ir além do que sabe fazer, por toda a política "temos que trabalhar em equipe", mas com certa impropriedade nisso (PROFISSIONAL D).

O trabalho em equipe traz todos esses desafios para a gente como quando a gente ouve: "Ah, não é meu trabalho, é seu". Até acho que é uma frase que a gente escuta muito pouco aqui, não é tanto, mas a princípio, a gente pensa que no CAPS nem deveria existir uma frase assim (PROFISSIONAL E).

Essas duas falas facultam afirmar que os profissionais, ainda que de modo intuitivo/informal, vislumbram a existência de áreas exclusivas e não exclusivas de atuação, dado que aludem a situações que geram desconforto tanto nas primeiras quanto nas últimas. A primeira citação expõe os riscos da invasão de práticas profissionais exclusivas e a segunda exprime afetos negativos causados pela recusa de um profissional em agir em uma zona coletivizada. Na pesquisa, essa zona compartilhada apareceu marcada por práticas assistenciais passíveis de serem efetuadas por todas as profissões, como no caso de prover o acolhimento a uma emergência.

De modo antitético, ambos os trechos tratam do grau de porosidade das práticas e das diferenças de funcionamento entre as zonas reservadas e as compartilhadas. Tal delineamento parece guardar relação com o conflito entre o reconhecimento do desejo e o desejo de reconhecimento já citado. Na dinâmica grupal, ao mesmo tempo em que o indivíduo anseia pelo reconhecimento de seu desejo e de sua singularidade (preservação de uma zona exclusiva), ele almeja ser reconhecido como membro do grupo e fundir-se a uma identidade grupal (estabelecimento de uma zona compartilhada). Está na capacidade da equipe em negociar seus papéis a chave para delimitar áreas exclusivas que não engessem a atuação de fato interdisciplinar.

No jogo que envolve a fluidez ou rigidez dessas fronteiras, bem como na definição do papel de cada profissional no serviço, um dos fatores relevantes refere-se às assimetrias entre as disciplinas, notadamente no que toca à psiquiatria, profissão hegemônica no campo da Saúde Mental:

As pessoas aqui costumam dizer que não, mas a coisa do poder médico deixa as pessoas meio melindradas às vezes. Alguns médicos não se colocam também na posição de dividir (PROFISSIONAL B).

Acho que existe uma briga aí entre a psicologia e a psiquiatria organicista que hoje está em voga (PROFISSIONAL D).

A condição da psiquiatria é sui generis na Saúde Mental, seja porque está envolta em críticas seja porque está cercada de enlevo. As críticas, explica-se, advêm de setores do campo da Saúde Mental preocupados com o excesso de medicalização dos usuários e com a concepção biológica que advoga a loucura como doença mental, pontos que são extremamente sensíveis, especialmente após a valorização de variáveis sociais e psicológicas na esteira da reforma psiquiátrica. Por outro lado, o psiquiatra, além de carregar o prestígio social e a tradição da medicina, é o profissional comumente chamado para intervir nos casos mais graves, envolvendo-o em um imaginário de potência e colocando-o na condição de não só equacionar as crises, mas de aplacar, por meio de tal delegação, a angústia dos demais profissionais diante dessas.

Desse modo, a posição diferenciada da psiquiatria figura como variável que deve sempre ser considerada na busca por uma equipe efetivamente interdisciplinar. Se, por um lado, a atuação dos psiquiatras deve estar sempre aberta ao diálogo com os demais profissionais, por outro, reconhecer as diferenças de poder e status entre as disciplinas é o primeiro passo para manejar as assimetrias de modo a favorecer o cuidado ao usuário.

Mesmo tendo como pano de fundo as assimetrias de poder e as zonas de conflitos na demarcação das atribuições profissionais, a pesquisa de campo mapeou no CAPS três formas de interface entre as diversas profissões: dentro de uma mesma prática assistencial, entre práticas assistenciais e no espaço institucional da reunião de equipe. Ainda que essa tipologia assuma um tom bastante esquemático, a mesma pode contribuir para fornecer mais inteligibilidade à dinâmica de interação entre as disciplinas.

Sobre a interface dentro de uma mesma prática, ainda que existissem várias atividades passíveis de análise, a pesquisa de campo privilegiou o grupo de referência, mormente em função de sua centralidade na organização do trabalho no CAPS:

O grupo de referência tem uma visão mais multidisciplinar, mais visões diferentes. Esse grupo de referência não é apenas a medicalização do paciente, mas é ouvir esse paciente, seus problemas e como eles estão enfrentando seus problemas (PROFISSIONAL C).

Começamos uma experiência, que é o fato das referências serem por grupos, o que acarreta que as consultas médicas sejam interdisciplinares. Os outros técnicos podem inclusive contribuir para que o médico tenha uma visão diferente daquele paciente (PROFISSIONAL A).

Esse grupo representava uma experiência relativamente nova no serviço e, sua iniciativa, benquista pelos profissionais. De fato, os grupos, ao deslocar a referência de um profissional para um conjunto de técnicos, proveram cobertura assistencial mais completa, tanto por abrir um lugar de interação entre os saberes, quanto por evitar a centralização do caso em uma única pessoa, que pode, por exemplo, estar ausente em um momento de crise. Por outro lado, essa avaliação positiva não disfarça o predomínio do poder médico. A última fala, mesmo evocando um discurso em prol da interdisciplinaridade, parece expressar inconscientemente a hegemonia da psiquiatria nas práticas, colocando as outras profissões na posição coadjuvante de "contribuir com o médico". Nessa mesma linha, a denominação de cada grupo no CAPS traz consigo o nome do psiquiatra que o compõe, de sorte que esses são batizados como o "Grupo do (nome do psiquiatra)", demarcando posição simbólica para o médico, profissional que efetivamente nomeia o grupo.

No que se refere ao diálogo dos saberes entre diferentes práticas, alguns aspectos foram levantados nas entrevistas, mostrados a seguir:

Eu acho que seria completamente esquizofrênico se o grupo de referência pensa em inserir um usuário em uma atividade e nem sabe o que está acontecendo lá, nem sabe como é, quais os propósitos. Mas acho que as pessoas têm aí um diálogo (PROFISSIONAL E).

A gente troca muito fora das reuniões de equipe, os técnicos fazem suas microrreuniões e trocam muito sobre as atividades. Acontece às vezes certo isolamento de uma ou outra oficina, mas a gente está sempre problematizando isso (PROFISSIONAL A).

Como mecanismo para favorecer as trocas entre as práticas, as "microrreuniões" versam sobre uma instância informal que deita suas raízes na cotidianidade da interação entre os técnicos, estando amparadas na lateralidade e no ajuste mútuo entre os mesmos. Mesmo reconhecendo algumas dificuldades, as falas desvelam a importância da integração das práticas, em especial no liame entre o grupo de referência, instância formal de acompanhamento, e as demais atividades.

Esse espaço corriqueiro não desautoriza nem compete com a reunião de equipe, ao contrário, complementa-a, posto que nem todos os assuntos podem ser contemplados no tempo da reunião de equipe. A reunião de equipe surge como instância de comunicação e discussão institucional.

A gente tem o espaço da reunião de equipe que é o espaço oficial para a costura entre os profissionais (PROFISSIONAL A).

O lugar central para o diálogo é a reunião de equipe[...] Lá discutimos casos clínicos e outras questões sobre o cotidiano do CAPS mesmo (PROFISSIONAL F).

A reunião de equipe semanal manifesta-se como instância formal de coordenação do trabalho, não apenas por sua regularidade, mas também por propiciar um local para o consórcio de todos os técnicos e por promover discussões que resultam em arranjos organizacionais que pautam a realização das atividades. Outro ponto relevante sobre a reunião de equipe é sua conformação como espaço para a difusão da reforma psiquiátrica, notadamente em função dessa última fornecer um imaginário de transformação que dá significado ao trabalho:

As discussões da reforma aparecem mais nas reuniões de equipe/supervisões e a gente tenta adequar a teoria ao nosso cotidiano de trabalho (PROFISSIONAL B).

Trabalhar aqui significa trabalhar em um serviço de ponta da reforma psiquiátrica, uma instituição alternativa que é de extrema importância para que se possa substituir o modelo manicomial (PROFISSIONAL C).

O âmbito grupal das reuniões de equipe, ao discutir a reforma, ativa o imaginário de transformação, afigurando-se como um espaço institucional capaz de apoiar o trabalho psíquico demandado pela substituição do modelo manicomial. Para a psicossociologia francesa, esses espaços de discussão são locus privilegiados para o compartilhamento do imaginário, propiciando ao grupo o papel de fiador de um projeto que o transcende(16). Durante a pesquisa de campo, a presença desse imaginário de transformação da reforma pareceu amortecer as dissonâncias entre as disciplinas, posto que se traduziu como mecanismo que aglutina os profissionais em torno de um mesmo eixo de cuidado.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A atuação da equipe multiprofissional na Saúde Mental traz consigo atravessamentos complexos. Por um lado, ressalta-se a dificuldade para estabelecer um solo epistemológico comum entre as disciplinas, o que decorre das grandes diferenças conceituais, metodológicas, práticas e terminológicas acerca do cuidado à loucura. Por outro, emerge a força da diretriz multiprofissional e interdisciplinar propugnada pela reforma que, em essência, carrega nos ombros a responsabilidade de mudar radicalmente um modelo de assistência, tarefa decerto árdua.

Diante da complexidade dessa tarefa, lança-se aqui a hipótese, a ser investigada futuramente, que parte dos conflitos entre disciplinas podem, no fundo, se explicar a partir de mecanismo de defesa que protege a equipe de conflito maior e compartilhado por todos, qual seja, a dificuldade de pôr em marcha os próprios ambiciosos ideais da reforma.

De todo modo, uma efetiva interdisciplinaridade fornece o passaporte para um cuidado plural, no qual, com efeito, o usuário é o denominador comum do entrelace de várias disciplinas e práticas assistenciais. Essa linha de ação faz o serviço caminhar na direção da integralidade, afastando-se da assistência reducionista que desconsidera a subjetividade e/ou variáveis sociais. Como contrapartida, a presença de amplo sortimento de práticas e saberes exige uma composição organizacional capaz de manejar os problemas que brotam do ventre dessa pluralidade, como as dificuldades na comunicação, na demarcação das fronteiras profissionais e nas assimetrias entre as disciplinas. Dessa feita, a ampliação do leque assistencial suscita a necessidade de aprimoramento dos mecanismos de diálogo entre os profissionais e de tornar os espaços coletivos favoráveis à elaboração dos conflitos afetivos e inconscientes, posto que, do contrário, avoluma-se o risco de fragmentação.

Os arranjos institucionais do Bispo do Rosário denotam esse esforço. O grupo de referência, ainda que sujeito à preeminência do poder médico, abre espaço para maior participação dos demais profissionais no acompanhamento dos casos. Outrossim, as "microrreuniões" sinalizam a possibilidade de fomentar, com base em procedimento de ajuste mútuo, a troca de informações sobre os usuários. Por fim, a reunião de equipe mostra força ao ativar o imaginário de transformação da assistência. A potência desse imaginário pode operar como limitador de concepções profissionais inegociáveis, projetando um horizonte de trabalho compartilhado. Em última análise, todas essas práticas se desenvolvem na esteira da reforma, ao mesmo tempo em que reforçam seu projeto de mudança.

Para ser efetivo, contudo, o imaginário de transformação não pode estar acompanhado de um discurso ingênuo e encobridor, que simplesmente exorta as pessoas a trabalhar em equipe. É necessário abdicar da miragem de uma organização plenamente harmoniosa para ceder espaço para o reconhecimento e para o manejo das divisões e fissuras que a perpassam. Dessa feita, a assistência pode se valer da pluralidade para introduzir a diferença, desencadeando processos criativos e de mudança nos serviços.

 

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Recebido em: 10/2009
Aprovado em: 11/2009

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