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Estudos e Pesquisas em Psicologia
versão On-line ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. vol.3 no.2 Rio de Janeiro jul. 2003
ARTIGOS
No ensino, quem dança? Uma análise crítica sobre a criatividade no ensino da dança no Distrito Federal
In the teaching, who dances? A critical analysis of the creativity in dance in Distrito Federal
Suselaine Serejo Martinelli*; Silviane Barbato**; Albertina Martinez Mitjáns***
Universidade de Brasília (UnB)
RESUMO
O presente estudo, fruto de pesquisa realizada junto ao Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, teve como objetivo analisar criticamente o modo como tem sido tratada a criatividade no ensino da dança no Distrito Federal. É proposta uma reflexão sobre possíveis implicações deste ensino no processo de desenvolvimento dos alunos, especificamente em seus comportamentos criativos. Partindo da perspectiva histórico-cultural, foram utilizadas entrevistas com professores e alunos, filmagem de aulas e análise qualitativa. Em termos gerais, verificou-se que, dependendo do modo como a dança é ensinada, as aulas estimulam apenas o desenvolvimento de técnicas e habilidades específicas, e não a criatividade. Percebe-se a tendência de o ensino da dança ser considerado um aprendizado técnico, separado da criação e expressão artística. Propõe-se como fundamental a manifestação da criatividade no fazer/compor dança, no momento de apresentá-la, na apreciação e nas aulas de técnica. Considerando-se fundamental o papel do professor, são apontadas algumas possibilidades de atuação.
Palavras-chave: criatividade; ensino de dança; corporeidade; subjetividade.
ABSTRACT
This study aims at critically analyzing the creativity in dance teaching in Distrito Federal, Brazil. The implications of this teaching over students development process are analised, specially with respect to their creative behaviour. From a historical-cultural perspective, dance teachers and students were interviewed and classes were filmed, videotaped and submitted to qualitative analyses. It was observed that there was a tendency to teach dance techniques in a traditional way, keeping it separated from creation and artistic expression which would only happen in specific classes or at stage. It was noted that creativity may be considered only when the artistic product is being conceived. The results indicated that the presence of creativity in the process of composition is as fundamental as performance (interpretation) of dances, appreciation, and that creativity should be part of the technical classes. The role of the dance teacher is fundamental in that process and some ways of working in classes are suggested.
Keywords: Creativity; dance teaching; body; subjectivity.
Introdução
O presente trabalho é fruto de uma pesquisa realizada durante o Mestrado(1) em Psicologia, no período de 1998 a 2000, junto ao Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento da Universidade de Brasília. Aponta algumas das questões e relações culturais que têm influenciado a metodologia do ensino da dança erudita no Brasil, especificamente a que vem sendo praticada na cidade de Brasília: o balé clássico e a dança contemporânea.
Tratando dos aspectos históricos da prática e do ensino da dança, foi possível compreender as interferências nas concepções e os interesses socioeconômicos, artísticos e educacionais (nos contextos onde estas danças foram originadas) sobre os propósitos da prática e do ensino na atualidade. Além disso, foi analisado o modo como tem sido tratada a criatividade neste ensino ao longo da história.
Nossas experiências anteriores, tanto em aprendizagem quanto no ensino da dança, evidenciaram que as aulas de técnica de dança (clássica, moderna etc.) têm sido normalmente ministradas de maneira tradicional: ainda persistem métodos e conteúdos originados na Europa, no século XV, e que, importados, se firmaram educacionalmente no Brasil. Percebe-se que, por serem frutos de uma formação em dança extremamente rígida, os professores passam a ministrar aulas baseados na sua experiência como aprendizes e, deste modo, tendem a repetir o que aprenderam. Processo que ocorre, na maioria das vezes, sem qualquer reflexão crítica sobre as implicações corporais e personológicas ao desenvolvimento dos alunos, além da postura passiva que este tipo de formação pode lhes estimular.
Os alunos submetidos a este ensino, quando não desistem de sua prática, demoram a expressar-se – ou quase nunca conseguem – através da linguagem da dança, uma vez que não são exploradas suas possibilidades criativas nos distintos momentos inerentes a esta arte: preparação técnica, composição coreográfica, interpretação e apreciação.
Por outro lado, atualmente têm surgido correntes da dança contemporânea que trabalham com técnicas de consciência corporal e laboratórios de improvisação, buscando diferentes formas de treinar e ensinar. Nessa vertente, os alunos são valorizados em suas criações. No entanto, tais trabalhos encontram dificuldades evidentes em relação à preparação técnica, pois, ao mesmo tempo em que se quer formar intérpretes com corpos aptos à expressão artística, não se deseja que estes sejam marcados por técnicas específicas. Nesse caso, o desafio maior seria combinar uma variedade de estratégias para auxiliar na formação física do dançarino, o que implicaria em anos de estudo de diversas modalidades técnicas, aliadas à formação interpretativa e apreciação estética.
Deste modo, pareceu-nos de fundamental importância uma reflexão sobre o fato de as aulas de dança desconsiderarem o "pensar sobre" e a expressão subjetiva dos alunos, além de excluírem a criatividade nas aulas de aprimoramento técnico, que só se faz presente nas aulas de criação, durante a construção de coreografias. Tal tratamento dificulta a participação do educando na construção do seu desenvolvimento técnico, no fazer criativo – que é fruto da sua expressão subjetiva – e no pensar artístico e estético.
Estudos com enfoque histórico-cultural levam à constatação de que todos somos portadores da energia criativa, que se concretizaria através de nossas interações com o meio sociocultural. Isso nos permitiu tratar a criatividade como uma possibilidade a ser construída com/através das aulas de dança.
Deste modo, temos como referências norteadoras de nosso trabalho as questões teóricas levantadas e discutidas nestas perspectivas histórica e cultural, ampliadas por estudos de pesquisadores que, na atualidade, têm tratado do tema criatividade, considerando-a um fenômeno complexo, com seus determinantes socioculturais, biológicos, personológicos (aqui incluídas as motivações), sistemas de atividade-comunicação, entre outros (MITJÁNS, 1997; REY, 1995).
Utilizamo-nos das contribuições da Psicologia do Desenvolvimento e da Criatividade para analisarmos as possíveis implicações do ensino da dança no processo de crescimento dos alunos, especificamente no comportamento criativo dos mesmos. Considerando fundamental o papel do professor de dança neste contexto, propomos possibilidades e alternativas de atuação.
Por fim, apresentamos os resultados obtidos a partir das entrevistas realizadas com professores e alunos, bem como da análise de vídeos das aulas, fazendo uma breve discussão a partir das interpretações dos resultados e das considerações teóricas relevantes que trazem maiores reflexões sobre o assunto. Sugerimos, ainda, caminhos que possam dar continuidade à investigação do tema examinado.
Método
Considerando que este estudo abrange processos complexos e dinâmicos em desenvolvimento, principalmente a criatividade analisada no ensino de uma linguagem artística específica – a dança –, optamos pela utilização da metodologia qualitativa, enfatizando a condição do pesquisador como sujeito e a importância do seu diálogo com o momento empírico no processo de produção do conhecimento (REY, 2002).
Partindo da abordagem qualitativa, realizamos duas entrevistas semi--estruturadas com cada um dos quatro professores de dança(2) sujeitos desta pesquisa (num total de oito entrevistas) e uma entrevista semi-estruturada com dois alunos de cada professor (totalizando oito alunos pesquisados e 16 entrevistas). Também foram feitos a observação e a filmagem em vídeo de oito aulas (sendo duas de cada professor), a análise qualitativa de todo o material e contatos para dialogar sobre os resultados da pesquisa com todos os sujeitos envolvidos.
Optamos pela utilização de entrevistas semi-estruturadas, considerando que, em sua realização, a investigação adquire um sentido interativo, uma vez que o entrevistado não é considerado um simples "reservatório de respostas", à medida que realiza verdadeiras construções baseadas nas trocas dialógicas (REY, 2002). Também o pesquisador, além de ser sujeito participativo no campo da investigação, se converte, ao mesmo tempo, em sujeito intelectualmente ativo durante mais este momento.
Na tentativa de minimizar as limitações espaço-temporais impostas pela entrevista, possibilitar um tipo diferenciado de interação entre entrevistador-entrevistado e, também, para permitir a análise entre ação e discurso, optamos por filmar duas aulas de cada um dos quatro profissionais artistas-educadores sujeitos desta pesquisa. Além disso, o recurso audiovisual permite que se capte movimentos, sendo o mais adequado para registrar a dança.
Sujeitos
Para este estudo, utilizou-se um número de 12 sujeitos (quatro professores-coreógrafos e oito alunos de dança). Os professores escolhidos são todos profissionais reconhecidos no meio artístico-educativo em questão, produzindo coreografias e espetáculos de dança (quer seja criando ou dirigindo) e, ao mesmo tempo, atuam no ensino da dança no Distrito Federal há mais de 15 anos. Inicialmente, não estabelecemos um tempo (limite de anos) em que estes profissionais deveriam estar trabalhando com o ensino da dança. Mas, por se tratar de uma pesquisa que visa a análise da criatividade no processo de ensino da dança, adotamos o critério de experiência didática, pois, num segundo momento, entrevistamos alunos destes profissionais, tentando visualizar neles os resultados dessa prática. Portanto, na seleção dos sujeitos para esta pesquisa, foram priorizados os seguintes critérios: reconhecimento no meio artístico-educativo e experiência didática (tempo médio de 17 anos).
Foram escolhidos dois profissionais que trabalham com dança clássica e outros dois com dança contemporânea, em função de serem as áreas mais presentes na cidade de Brasília. Os quatro professores selecionados são do sexo feminino, com idades entre 38 e 60 anos, pertencentes à classe social média alta. Todas cursaram o Ensino Superior e tiveram – e ainda têm freqüentemente – experiências em cursos de dança no exterior.
Foram selecionados dois alunos de cada um desses sujeitos, que deveriam estar praticando dança com este mesmo professor há, pelo menos, um ano; a fim de possibilitar a observação e análise dos resultados das estratégias didático-metodológicas utilizadas pelo professor, em decorrência do tempo mínimo necessário à apropriação da técnica. Um dos alunos era indicado pelo professor (aluno considerado "modelo") e o segundo era escolhido pela pesquisadora no processo de observação das aulas (ela selecionou aquele que apresentou o maior número de dificuldades na execução dos exercícios durante as aulas).
Resultados e discussão
Em nossa sociedade, tem sido comum encontrarmos arte e criatividade diretamente associadas. Assim, muitas pessoas procuram o aprendizado das artes como forma de desenvolver sua expressão criativa através da linguagem artística, o que de fato nem sempre ocorre.
Observamos em nossos estudos, de acordo com o modo como é ensinada, a arte da dança pode estar favorecendo o desenvolvimento de habilidades físicas, técnicas, cognitivas e sociais do aluno sem, no entanto, contribuir para o aprimoramento de suas possibilidades criativas ou mesmo de recursos personológicos associados diretamente ao comportamento criativo, como motivação, independência, segurança e audácia.
Assim, muitos alunos praticam a dança durante anos, tendo acesso ao aprendizado de diferentes técnicas e estilos, sendo capazes de executar diversos passos ou movimentos, mas sem nunca se expressarem através da linguagem da dança. Nas palavras de um dos alunos desta pesquisa: "É um corpo mudo, que não comunica, não se expressa." Tal fato é confirmado nas entrevistas com os sujeitos alunos e professores envolvidos neste estudo, quando criticam este sistema de ensino, e também durante a observação de algumas aulas, principalmente as de preparação técnica.
Barbosa (1999), Soares (1998) e Matos (1998) ressaltam que o ensino de arte, educação física e dança tem sido permeado, muitas vezes de forma sutil, por uma idéia de "modelagem" e "adestramento". Nessa perspectiva, as aulas constituem-se como espaços de aprimoramento técnico, onde os professores reproduzem as concepções, as representações e os métodos aprendidos em suas vivências práticas enquanto alunos. Nesse contexto, os alunos passam a reproduzir os modelos sem que haja ressignificação ou reconstrução dos movimentos e das formas, os quais não adquirem um sentido personalizado, o que os impossibilita a uma contextualização histórica de suas práticas e de si mesmos, enquanto sujeitos do próprio corpo e da própria história.
A principal crítica ao tradicional sistema de ensino de dança, presente nas análises dos sujeitos alunos desta pesquisa, se refere ao fato de não favorecer a consciência do corpo, a descoberta de possibilidades de movimentos e a construção de uma linguagem própria, de uma identidade e de um estilo pessoal. A técnica estaria sendo utilizada nas aulas de dança como um fim, e não como um meio, para se atingir a expressão através dessa linguagem artística.
Além disso, de acordo com os alunos entrevistados e as análises das aulas filmadas, as emoções são pouco enfatizadas no ensino da dança, estando praticamente inexistentes nas aulas de aprimoramento técnico. Lembrando as considerações de Vygotsky (1999), com as quais compartilhamos, a forma não deve vir por si só, como algo independente das idéias e emoções que lhe integram a composição. Assim, a fim de que não sejam incentivados os automatismos e movimentos mecanizados, faz-se necessário o desenvolvimento da "emoção da forma" como condição fundamental para um ensino de dança que possibilite a expressão criativa.
Foram apontados (por alunos e professores) como benefícios da prática da dança clássica: postura, disciplina, desinibição, concentração, memorização, agilidade, socialização, cultura, coordenação motora, alongamento muscular, ritmo, consciência do espaço físico, consciência do corpo, respiração, condicionamento físico e respeito.
Como pode ser observado, são enfatizadas as vantagens físicas da prática da dança e também questões da socialização, nos aspectos da disciplina e da ordem. A criatividade do aluno e do professor não foi citada por qualquer dos sujeitos que trabalham com este estilo de dança.
Os sujeitos que praticam dança contemporânea destacam o desenvolvimento da consciência corporal, a criatividade e a expressividade. Apesar de abordarem a criatividade no processo de ensino-aprendizagem, apresentam algumas ambigüidades evidenciadas em nossas análises entre discurso (entrevistas) e prática (aulas filmadas). O objetivo das aulas, principalmente as de técnica – as quais foram registradas em vídeo –, é assim descrito por uma aluna: "A aula dá uma formação, que é a formação técnica do bailarino. Nem sempre é uma formação para sua expressão criativa."
Os desafios de uma formação voltada para a criação são de diversas ordens. Além dos aspectos referentes à preparação técnica, outro ponto abordado (tanto por alunos quanto por professores) diz respeito ao fato de que esta formação nem sempre possibilita ao bailarino estar preparado para dançar coreografias previamente criadas ou entrar "no movimento do outro", o que estaria alterando a tradicional definição de intérprete.
Em seus questionamentos, os professores que trabalham com a dança contemporânea tentam buscar meios de formar corpos versáteis, que não tenham códigos marcados ou que sejam restringidos pelas diversas técnicas. Estas considerações aproximam-se do "corpo tecnicamente disponível" (BATALHA, 1998) e das pesquisas de Fortin (1998), que analisam a possibilidade de uma técnica de dança sem estilo, fundada em princípios anatômicos funcionais, na qual é priorizada a sensação do corpo através do trabalho de educação somática. A ampliação de tais estudos, sem a pretensão de prescrever modelos ou ditar novas regras para o ensino da dança, pode ser adaptada para atender às necessidades do ensino das diversas técnicas codificadas.
Salientamos que, independentemente do estilo de dança adotado, precisamos estar conscientes de que um ensino entendido como desenvolvimento não apenas de conteúdos técnico-expressivos, mas também da personalidade dos educandos, tem sido desconsiderado em nosso sistema de dança. Tal fato, conforme analisado em nossas pesquisas, tem implicações diretas tanto no desenvolvimento dos alunos quanto na qualidade de suas criações artísticas.
Outra constatação refere-se ao problemático sistema de comunicação das aulas. Os alunos consideram como uma das dificuldades o fato de muitos professores terem um vocabulário bastante impreciso para descrever os movimentos a serem executados. Isso dificultaria a compreensão dos princípios do movimento: de que parte do corpo este é originado, em qual dinâmica etc. Além disso, o fato de o professor apenas mostrar como se faz também dificultaria uma aproximação da compreensão do movimento no próprio corpo.
Aproveitando os estudos de Rey (1995), que apontam a importância da comunicação para o desenvolvimento da personalidade dos sujeitos, e analisando as aulas de dança dos sujeitos pesquisados, nos defrontamos com um processo de comunicação unidirecional, onde a voz do aluno não se faz presente (MATOS, 1998). A relação existente na comunicação professor-aluno se manifesta com ênfase na atividade do professor, sujeito do processo. O aluno não é estimulado a tornar-se sujeito ativo de seu processo de aprendizagem, restando-lhe um papel passivo frente aos conteúdos, às estratégias e aos temas das criações que são trazidos/transmitidos pelos professores-coreógrafos. Conseqüentemente, nem sempre o professor torna-se um facilitador da aprendizagem do aluno e o clima das aulas, apesar de ser descontraído (em alguns casos), não é emocionalmente positivo e motivador para o desenvolvimento do aluno, principalmente dos recursos de sua personalidade favorecedores do comportamento criativo.
Para os sujeitos professores dessa pesquisa, a concepção de que existiriam talentos, pessoas com o dom natural para a dança, constantemente se confunde. Este dom está associado a facilidades anátomo-fisiológicas somadas a fatores motivacionais. Assim, denotando a importância do professor na formação do aluno, mesmo nos casos de talentos genéticos extraordinários, o trabalho do professor é fundamental para auxiliar este aluno a se desenvolver tanto interpretativamente quanto tecnicamente, além da dimensão motivacional. As crenças de que a dança é para pessoas fisicamente dotadas e de que a criatividade é atributo de alguns poucos privilegiados, que nascem com um talento ou dom, dificultam e inviabilizam possibilidades de desenvolvê-las e ensiná-las.
De modo geral, os professores envolvidos neste estudo confessam sua preferência em trabalhar com alunos "naturalmente mais talentosos". Os professores somam às características físicas os fatores subjetivos, considerando que estes facilitariam o desenvolvimento técnico-expressivo do aluno, e apontam "flexibilidade interna" e autoconfiança como fundamentais. Quando questionados sobre a possibilidade de construir o dom ou o talento artístico, todos a consideram como real. No entanto, um dos professores nos lembra que o talento para a dança inclui tanto habilidades/facilidades físicas quanto interpretativas, sendo que os aspectos físicos são, em sua opinião, mais facilmente trabalhados.
É consenso entre os sujeitos professores envolvidos nesta pesquisa que o talento não se concretiza sem a técnica, apontando para a necessidade de um sistema de ensino onde estes sejam conjuntamente desenvolvidos. Ora, se as aulas de técnica de dança trabalham as formas e minimizam os conteúdos (idéias/emoções) inerentes a estas formas, torna-se difícil a visualização de possibilidades de desenvolvimento e formação de alunos talentosos que tenham acesso apenas a este tipo de aulas.
A constatação – principalmente através do estudo das obras de Vygotsky (1999), Mitjáns (1997), Alencar (1995) e Wechsler (1993) – de que a criatividade não é um "acaso divino" ou simples determinação biológica, permitiu-nos tratá-la como uma possibilidade a ser construída através das aulas de dança.
Aproveitando as contribuições da bibliografia da área de Psicologia do Desenvolvimento e da Criatividade, bem como da pesquisa empírica e da análise documental, pareceu-nos fundamental a presença da criatividade além do momento da composição coreográfica: também na apresentação, apreciação e apropriação da técnica. A nosso ver, tal tratamento pode funcionar como estímulo à participação ativa do aluno em seu processo de aprendizagem, lhe possibilitando o fazer-descoberta, o "pensar por movimentos", indo além da realidade construída, mas transformando-a e construindo-a através da criação (LABAN, 1978).
Deste modo, apontamos como um importante caminho para o ensino da dança na atualidade o resgate da criatividade para as aulas (principalmente as de técnica), como uma possibilidade de torná-las espaços de desenvolvimento da subjetividade dos sujeitos, tanto de professores quanto de alunos envolvidos no processo.
Conclusões
Ao entendermos a dança como linguagem artística, um conjunto de signos estéticos nos quais o sujeito, por meio de seu sentimento-idéia, forma-conteúdo, se constitui e interage com o outro numa relação intercomplementar de troca (VYGOTSKY, 1999), somos direcionados a procurar maneiras de ensinar que explorem a criatividade dos sujeitos envolvidos no processo.
De acordo com os profissionais aqui envolvidos, a criatividade do aluno é apenas enfatizada nas aulas de criação e nos processos de composições coreográficas. Os professores de dança clássica criam as coreografias que serão interpretadas pelos alunos-bailarinos e os professores de dança contemporânea concebem as idéias que serão transformadas em movimentos por seus alunos-intérpretes-criadores. Os temas a serem trabalhados, tanto em aula quanto em produtos coreográficos, são trazidos pelos professores. Desta forma, os alunos não têm autonomia sobre o pensar e criar idéias, mas apenas, em alguns casos, sobre o fazer.
Em função de acreditarmos que o aluno deve ter autonomia em seu processo de aprendizagem, estando ativamente envolvido no mesmo, lembramos que os conteúdos e temas abordados devem ter, antes de tudo, um sentido para ele. Assim, os objetivos do professor-coreógrafo-diretor devem favorecer tal envolvimento (MITJÁNS, 1997).
Na dança, atualmente, a criatividade vem sendo abordada apenas no processo de composição do produto artístico, normalmente pelo professor-coreógrafo. A visualização desta arte como forma de conhecimento construído em movimentos que vão além da mera imitação reprodutiva e do aprender/executar passos implica no fato de a expressão criadora intencional, implícita na composição de um produto coreográfico, também se fazer presente nos distintos momentos inerentes a essa prática artística e seu ensino. Neste sentido, torna-se de fundamental importância refletirmos sobre modos de desenvolvermos a criatividade nas aulas de preparação técnica, nos processos de criação/composição coreográfica, nas apresentações ou performances (interpretação), bem como nas apreciações estéticas.
Considerando que existe uma multiplicidade de caminhos, formas e conteúdos possíveis de exploração, faz-se continuamente necessária a criatividade, tanto do professor quanto do aluno. Com esta visão, as diversas técnicas de dança a serem trabalhadas não devem ser apresentadas aos alunos-dançarinos como um conjunto de movimentos (passos) sistematizados, que devem simplesmente ser aprendidos/dominados.
Acreditamos que as aulas, tanto de técnicas estruturadas (balé, dança moderna etc.) quanto de técnicas para criação (improvisação, composição coreográfica etc.), devem ter diferentes momentos, com estratégias e métodos distintos. Por exemplo, o professor pode (e deve), criativamente, se utilizar dos movimentos dos alunos e de suas descobertas corporais para instrumentalizá-los em suas criações, como também direcioná-los para exercícios da técnica específica. Além disso, fazem-se necessários momentos de apreciação, visualização das criações dos colegas e de escuta e avaliação das próprias dificuldades.
Desta forma, os sujeitos funcionariam como co-participantes do processo de ensino-aprendizagem, considerando-se claro que as relações professor-alunos não são simétricas, uma vez que o professor possui maior vivência e conhecimento sistematizado.
Merece destaque a iniciativa de um dos professores desta pesquisa. Este, percebendo uma necessidade de envolver seus alunos no processo de ensino-aprendizagem e, numa tentativa de minimizar as lacunas deixadas pela formação centrada apenas na técnica, introduziu em sua escola de dança clássica um concurso de coreografias. Tal iniciativa, sem dúvida, é um avanço na busca por formas de ensino onde a criatividade esteja presente. No entanto, conforme abordamos em nossa pesquisa teórica, as ações devem ser sistêmicas e não apenas iniciativas isoladas.
Lembramos que o desenvolvimento da criatividade no ensino da dança pressupõe, também, que se trabalhe de forma a estimular a diversidade e não apenas a reprodução de modelos, e que os alunos não necessitam realizar os mesmos movimentos o tempo todo, como tradicionalmente ocorre nas aulas de técnica. Além das ações "demonstrar", "imitar" e "repetir" que têm sido utilizadas nas aulas de técnica, aproveitando as contribuições das aulas ou dos laboratórios de criação, existem inúmeras outras que podem (e devem) ser incluídas em sala de aula. Alguns dos profissionais tratados em nossa pesquisa vêm aplicando outras, como "criar", "construir", "explorar", "assistir", "mostrar" e "comentar", que certamente ampliam as possibilidades da manifestação criativa do aluno.
Frisamos que são inúmeras as estratégias que têm sido exploradas/criadas e que estes são apenas alguns exemplos, que ficam como sugestão para pesquisas futuras. Consideramos fundamental que os educadores-criadores envolvidos no processo utilizem sua criatividade também no processo de ensino-aprendizagem da dança e não apenas em suas composições coreográficas, tornando-se, assim, educadores-criadores-criativos.
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Endereço para correspondência
Suselaine Serejo Martinelli
Endereço eletrônico: susi@unb.br
Silviane Barbato
Endereço eletrônico: barbato@unb.br
Albertina Martinez Mitjáns
Endereço eletrônico: amitjáns@mymail.com.br
Recebido em: 17/03/2003
Aceito para publicação em: 11/02/2004
Notas
* Doutoranda da Universidade de Brasília (UnB).
** Doutora. Professora Adjunta da Universidade de Brasília (UnB).
*** PhD. Professora Titular da Universidade de Brasília (UnB).
1 Mestrado da primeira autora, sob orientação e co-orientação das outras duas autoras.
2 Professores das técnicas clássica e contemporânea, apontadas, em pesquisas anteriores, como as de maior relevância na formação dos profissionais da cidade de Brasília/DF.