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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.22 no.spe Rio de Janeiro  2022  Epub 27-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2022.71763 

DOSSIÊ PSICOLOGIA, POLÍTICA E SEXUALIDADES: CRISES, ANTAGONISMOS E AGÊNCIAS

Memórias de Mulheres Dissidentes na Ditadura Militar como Antídoto à Democracia em Ruínas

Memories of Dissident Women in the Military Dictatorship as an Antidote to Crumbling Democracy

Memorias de Mujeres Disidentes en la Dictadura Militar como Antídoto al Desmoronamiento de la Democracia

Raquel Gonçalves Salgado* 

Psicóloga, graduada pela UFRJ, Mestre em Educação pela PUC-Rio, Doutora em Psicologia pela PUC-Rio e Professora da Universidade Federal de Rondonópolis.


http://orcid.org/0000-0002-8730-3025

Dantiely Martins Ferreira** 

Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Rondonópolis.


http://orcid.org/0000-0001-5032-1505

Raquel Dias Amaro*** 

Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Rondonópolis.


http://orcid.org/0000-0002-9673-5946

*Universidade Federal de Rondonópolis - UFR, Mato Grosso, MT, Brasil

**Universidade Federal de Rondonópolis - UFR, Mato Grosso, MT, Brasil

***Universidade Federal de Rondonópolis - UFR, Mato Grosso, MT, Brasil


RESUMO

Este artigo trata das memórias de mulheres dissidentes na ditadura militar e da importância de seu aparecimento social como resistência à produção do apagamento. As dissidências, além de abarcarem a militância política à época, abrangem as experiências atravessadas por marcadores sociais de diferença, como gênero, sexualidade e raça, que, no regime militar, eram assumidas como ameaças ao projeto de nação. As memórias de mulheres militantes, em depoimentos que constam no Relatório da Comissão Nacional da Verdade, de mulheres lésbicas, nos boletins ChanacomChana, e de mulheres periféricas, negras e trabalhadoras, no jornal Nós, Mulheres, são discutidas a partir dos seguintes vieses: das violências praticadas contra essas pessoas por performarem uma feminilidade subversiva que ameaça as normativas de gênero como pilares do ideário de nação e família vigente à época; e da visibilidade de suas práticas de resistência. Entende-se que a produção dessas memórias ocorre nas articulações de experiências e posições sociais que enunciam diferenças nos modos de viver, pensar, sentir, narrar e resistir. Nesta perspectiva, a interseccionalidade é o aporte para as análises das memórias dessas mulheres.

Palavras-chave: memórias; mulheres; ditadura militar; democracia.

ABSTRACT

This article focuses on the memories of dissident women in the military dictatorship and the importance of their social appearance as a resistance to the production of erasure. The dissidences, in addition to encompassing political militancy at the time, cover the experiences crossed by social markers of difference, such as gender, sexuality and race, which, in the military regime, were assumed as threats to the nation project. Memories of militant women, in testimonies that appear in the Report of the National Truth Commission, of lesbian women, in the ChanacomChana newsletters, and of peripheral, black and working women, in the newspaper Nós, Mulheres, are discussed from the following perspectives: violence practiced against these people for performing a subversive femininity that threatens gender norms as pillars that sustain the ideology of nation and family in force at the time; and the visibility of their resistance practices. We argue that the production of these memories occurs in the articulation of experiences and social positions that enunciate differences in the ways of living, thinking, feeling, narrating, and resisting. In this perspective, intersectionality is the contribution to the analysis of these women's memories.

Keywords: memories; women; military dictatorship; democracy.

RESUMEN

Este artículo aborda las memorias de las mujeres disidentes en la dictadura militar y la importancia de su aparición social como resistencia a la producción de invisibilidad. Las disidencias, además de abarcar la militancia política de la época, reúnen las experiencias atravesadas por marcadores sociales de diferencia, como género, sexualidad y raza, que, en el régimen militar, fueron asumidos como amenazas al proyecto de nación. Las memorias de mujeres militantes, en testimonios presentes en el Informe de la Comisión Nacional de la Verdad, de mujeres lesbianas, en los boletines de ChanacomChana, y de mujeres periféricas, negras y trabajadoras, en el diario Nós, Mulheres, son discutidas desde las siguientes perspectivas: de la violencia practicada contra ellas por ejercer una feminidad subversiva que atenta contra las normas de género como pilares de la ideología de nación y familia vigente en la época; y la visibilidad de sus prácticas de resistencia. Se entiende que la producción de estas memorias ocurre en la articulación de experiencias y posiciones sociales que enuncian diferencias en las formas de vivir, pensar, sentir, narrar y resistir. En esta perspectiva, la interseccionalidad es la contribución al análisis de las memorias de estas mujeres.

Palabras clave: memorias; mujeres; dictadura militar; democracia.

Ditadura militar, gênero, sexualidade e racismo são signos que, nos tempos atuais, aglutinam sentidos de forte tensão política, muito marcada pela forma como estes temas têm sido expurgados do debate público pela via de políticas que, mesmo sem estarem institucionalizadas, são agenciadas pelo atual governo instaurado no Brasil e por movimentos de extrema direita que lhe dão sustentação. O presente da vida política brasileira, caracterizado pelo ressurgimento de políticas de exceção postas em curso por um governo de base militar, coloca-nos diante de discursos e cenas públicas de apelos ao retorno da ditadura militar, ao fechamento do Congresso Nacional e do Senado Federal, à volta do AI-5 1 e às censuras que miram o debate de gênero e sexualidade na sociedade. Trata-se de um conjunto de práticas que operam a favor da derrocada da democracia no país, mais especificamente, como afirma Flávia Biroli (2021), para a erosão dos avanços democráticos.

Todas essas cenas posicionam-nos diante da necessidade de reminiscência, na esteira das análises de Benjamin (1985), dado o perigo de repetição do passado trágico. São as imagens deste tempo presente, em dialogia com as memórias do passado de exceção, que mobilizam este artigo cujo mote principal são as memórias de mulheres dissidentes, na ditadura militar, voltadas às experiências atravessadas por marcadores sociais de diferença, como gênero, sexualidade e raça. O ensejo deste artigo, portanto, é o trabalho com as memórias dessas mulheres, com suas histórias de resistência às crueldades de um regime totalitário e sangrento que consagrou a tortura como política de Estado e parte integrante da doutrina de segurança nacional (Napolitano, 2014; Joffily, 2010). Nesse esforço de rememoração, o passado sozinho não fala por si, ao contrário, atua para acender no presente o que tem sido fagocitado pelas políticas de apagamento social, ensejadas pelo neoconservadorismo hodierno.

As memórias em análise, neste artigo, advêm das seguintes fontes: depoimentos de mulheres militantes, que constam no Relatório da Comissão Nacional da Verdade e publicações do boletim ChanacomChana e do jornal Nós, Mulheres. Dos depoimentos de mulheres militantes, destacam-se aqueles que ressaltam o ódio misógino vertido sobre os seus corpos por performarem o avesso da feminilidade requisitada ao projeto de nação, família e sociedade em pleno vigor na ditadura militar. Não muito distantes disso, estão as publicações do boletim Chanacomchana, produzido por mulheres lésbicas, e do jornal Nós, Mulheres, composto por artigos escritos por mulheres, muitas delas negras e periféricas, que se dedicaram às denúncias do patriarcado racista estruturado na sociedade de classes brasileira, marcada por desigualdades sociais profundas que se faziam sentir em suas vidas cotidianas. Salienta-se o tom das violências praticadas contra essas mulheres que, resguardadas as suas diferenças, aglutinavam uma das ameaças de desestabilização da estrutura social que se pretendia fortalecer à época: o feminino subversivo como uma mácula no ideário da família como pilar de sustentação da nação em desenvolvimento.

Lembrar o passado não é simplesmente a recordação do que aconteceu, no recurso a um tempo pretérito e seguindo a ordem temporal da cronologia. Quando trazemos as memórias da ditadura militar no Brasil, esse movimento coloca-nos no tempo presente como aquele que nos convoca a olhar para esse passado, na escuta atenta das vozes pretéritas que ainda ressoam na atualidade, mesmo sendo elas alvos de apagamento social. A memória, nesta perspectiva, não é o reservatório ou o inventário de acontecimentos e bens culturais, mas um exercício crítico e político de interpelação mútua do passado e do presente (Benjamin, 1985; Gagnebin, 2014).

No trabalho de vasculhar os escombros da ditadura militar, deparamo-nos com as memórias de um dos momentos mais atrozes da história social e política do Brasil, que se caracterizou pelo terrorismo de Estado e por uma conjunção de violências que, paulatinamente, no decurso de 21 anos (de 1964 a 1985), foi imprimindo mais sofrimento a quem, direta ou indiretamente, viveu os seus efeitos.

O trabalho com as memórias implica no aparecimento social de vidas e histórias que, na maioria das vezes, tiveram visibilidade ofuscada na narrativa historiográfica (Leão et al., 2019), sobretudo quando remetem às narrativas de mulheres na ditadura militar. Convém destacar que a produção dessas memórias não se dá de forma uníssona, mas nas articulações de experiências, posições e lugares sociais que enunciam diferenças nos modos de viver, pensar, sentir, narrar e resistir. Nesta perspectiva, a interseccionalidade é o percurso teórico-metodológico para as análises das memórias de mulheres que compõem o escopo deste artigo, haja vista os seus atravessamentos por marcadores sociais de diferença que se articulam de modo a constituir experiências diversas, seja acentuando ou amenizando opressões, seja afetando diretamente as produções coletivas e históricas das memórias e o luto público de mulheres nesse contexto de exceção da ditadura militar (Crenshaw, 2002).

Na esteira das reflexões de Jeanne Marie Gagnebin (2014), o diálogo com essas memórias é movido muito mais pelas interpelações que o momento atual nos faz do que pelo esforço de saber o que o passado tem a nos dizer, já que o presente é o tempo das inquietações que nos mobilizam a escavar esses escombros. Nesse processo de escavação, faz-se importante pontuar marcadores históricos da ditadura militar que realçam como o conluio da elite empresarial, de setores religiosos, da classe média urbana e de representantes do capital estrangeiro com os militares estava articulado aos pilares ideológicos da família normativa como um dos pontos de apoio do projeto de desenvolvimento da nação e, por conseguinte, como núcleo de sustentação das desigualdades de gênero. Nosso ensejo, portanto, é discutir como esses pilares ideológicos forjam os sentidos de abjeção lançados às feminilidades dissidentes, no contexto das necropolíticas que operam na produção do “equívoco do humano” (Butler, 2019, p. 99) como a representação da dessubjetivação, deflagrada pela perda de direitos e da prerrogativa de proteção à vida, já que essas feminilidades estão encarnadas em corpos de mulheres marcados e decretados como inimigos da nação.

A Ditadura Militar e a Feminilidade Subversiva como um dos Inimigos da Nação

Não foram poucas as mulheres que, com suas próprias vidas e corpos, enfrentaram as atrocidades perpetradas durante o estado de exceção implantado no Brasil a partir do golpe de 1964 contra o governo de João Goulart, cujas reformas sociais, principalmente as que avançavam no campo, ameaçavam o capital nacional e multinacional, em franco contexto de Guerra Fria. Violências, como prisões arbitrárias, execuções sumárias, torturas físicas e psicológicas, violações de gênero e sexuais, desaparecimentos forçados, censuras nas artes, nas ciências e na cultura em geral, nos movimentos sociais, entre outras atrocidades, assumem diversos matizes em diferentes momentos históricos da ditadura militar, bem como são reportadas e analisadas na historiografia brasileira. Entretanto, tratar das minúcias desses marcadores históricos escapa do escopo deste artigo, o que não significa descaracterizar a sua importância. Releva-se, inclusive, a própria terminologia do regime de exceção, marcada pelos contextos que deram o tom da correlação de forças entre os segmentos sociais que fomentaram as políticas em vigor. Fico (2014) defende a denominação de “golpe civil-militar” à produção de desestabilização social e econômica, levada a cabo por diversos setores das elites nacionais (empresariado urbano e rural), pela classe média conservadora, por líderes de movimentos religiosos, por empresários da mídia, por representantes do capital estrangeiro, sobretudo dos Estados Unidos, e por militares, resultando em uma “ampla coalizão civil-militar, conservadora e antirreformista” (Napolitano, 2014, p. 12) que culminou no golpe do governo de João Goulart, em 1964. No entanto, o acirramento do estado de exceção na sequência do golpe, marcado pelo protagonismo dos militares, foi, nas análises do historiador, indubitavelmente uma ditadura militar, em que pese a atuação dos demais segmentos sociais que não cessaram de atuar e investir, financeiramente e ideologicamente, na manutenção do regime. Fato este que corrobora com a afirmação de Melo (2012), na esteira das análises de René Dreifuss (1981 como citado em Melo, 2012), de que a denominação mais precisa para o regime de exceção é o termo “ditadura empresarial militar” (p. 53), dada a necessidade de posicionar o capital e seus sustentáculos no centro do debate sobre a ditadura.

Não menos importante foi a faceta político-ideológica da ditadura militar a começar pelas performances de mulheres que assumiram protagonismo, principalmente, no prenúncio do golpe de 1964. Em defesa dos valores conservadores da família e da moral cristã, atrelados à propriedade privada e à liberdade individual, mulheres da elite juntaram-se em marchas pelo Brasil afora no combate ao grande inimigo da nação à época, encarnado na ameaça comunista. Conhecidos como as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”, esses atos públicos foram liderados por mulheres conservadoras da elite que assentaram o terreno para o golpe e seguiram dando-lhe o tom moralista, notadamente marcado pelo ideário de segurança nacional associada ao desenvolvimento. A primeira Marcha ocorreu antes do golpe e reuniu milhares de pessoas nas ruas de São Paulo. Em seguida, aconteceram as Marchas no Rio de Janeiro e em outras regiões do país, com caráter comemorativo ao golpe.

Duas organizações fomentaram esses atos públicos de cunho conservador e religioso de mulheres da elite: o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), fundado em 1962 pelo general Golbery do Couto e Silva, e o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), fundado em 1959 também pelo general Golbery. Ambas as instituições congregavam empresários da elite e militares que, em articulação, gestaram o projeto de poder acionado a partir do golpe. Alicerçado em valores conservadores de indivíduo, família e sociedade e orientado para o desenvolvimento da nação, esse projeto efetivou-se com as estratégias de derrocada do governo de reformas sociais de Goulart, dentre as quais estavam os movimentos de mulheres conservadoras, para a formação de um novo cidadão e uma nova elite política aos moldes do capitalismo nacional (Codato & Oliveira, 2004; Napolitano, 2014).

Sob a coordenação do IPES, funcionaram três organizações de mulheres que tiveram destaque entre a elite e a classe média conservadora no período pós-golpe: a CAMDE (Campanha da Mulher pela Democracia), a UCF (União Cívica Feminina) e a LIMDE (Liga de Mulheres Democráticas). Há que se considerar as razões dos investimentos políticos em organizações de mulheres para desestabilizar um governo e implantar uma estrutura de poder notadamente conservadora em seus pilares, que tão logo mostrou a que veio ao assumir a sua faceta totalitária e repressora. As relações estreitas entre as organizações de mulheres da elite conservadora-cristã e o estado de exceção emergente constituem o amálgama da feminilidade normativa gestada como ideário indispensável para a educação das novas gerações de acordo com o projeto desenvolvimentista de nação em curso. O esforço para manter essa adesão tem como um de seus motes a preservação da mulher encerrada nos espaços e papéis sociais que competem aos seus desígnios de esposa, mãe e cuidadora da família. Escapar dessas funções femininas consideradas originárias, naturais e vitais significa abalar os alicerces da família, pondo em risco a estrutura e a ordem sociais.

Mesmo em tempos de repressão política, que, com o passar dos anos, se intensificou, e de ostensiva educação moral, muito ancorada no ideário da feminilidade normativa como pilar de sustentação da ordem social, mulheres atuaram em movimentos de resistência à ditadura militar, nos anos de 1960 e 1970, na militância de esquerda, algumas, inclusive, em guerrilhas urbanas e no campo. Não são poucos os registros de suas memórias sobre a luta de contestação às arbitrariedades e às violências do regime militar conjugada com as resistências contra as desigualdades de gênero estruturais na sociedade patriarcal brasileira, incluindo as que elas próprias viviam nas organizações de esquerda (Costa, 2010; Gianordoli-Nascimento et al., 2007; Leão et al., 2019; Teles, 2014). Apesar de termos os registros dessas memórias em depoimentos presentes nos relatórios produzidos pelas Comissões da Verdade (estaduais e nacional), em trabalhos acadêmicos, filmes, documentários, entre outros suportes que viabilizaram - e viabilizam nos dias de hoje - o debate público, faz-se ainda urgente promover o aparecimento social das memórias dessas mulheres, por vezes, ofuscadas nos significados e na importância de suas lutas para a resistência ao regime militar e nos dispositivos de violência que o Estado brasileiro acionou contra as suas vidas.

Olivia Joffily (2010) destaca o quanto esse lugar revolucionário assumido pelas mulheres militantes de esquerda esteve na mira do ódio misógino do Estado, posto que elas se rebelavam contra as relações de dominação política de modo articulado com as desigualdades de gênero reproduzidas pelo regime da ordem e da segurança nacionais. “A militante de esquerda, no seu sistema de referências, não está associada à figura mais próxima da mãe, esposa, filha ou irmã, ela ocupa um lugar que se encontra na margem oposta, o de puta, vaca, vadia.” (Joffily, 2010, p. 230).

O depoimento de Izabel Fávero à Comissão Nacional da Verdade 2 mostra a dimensão da violência brutal contra o seu corpo dilatada pela feminilidade transgressora que ela encarnava.

Eu fui muito ofendida, como mulher, porque ser mulher e militante é um karma, a gente além de ser torturada física e psicologicamente, a mulher é vadia, a palavra mesmo era “puta”, “menina decente, olha para a sua cara, com essa idade, olha o que tu está fazendo aqui, que educação os teus pais te deram, tu é uma vadia, tu não presta”, enfim, eu não me lembro bem se no terceiro, no quarto dia, eu entrei em processo de aborto, eu estava grávida de dois meses, então, eu sangrava muito, eu não tinha como me proteger, eu usava papel higiênico, e já tinha mal cheiro, eu estava suja, e eu acho que, eu acho não eu tenho quase certeza que eu não fui estuprada, porque era constantemente ameaçada, porque eles tinham nojo de mim. [Izabel Fávero, depoimento à CNV, em 27 de abril de 2013. Arquivo CNV, 00092.000088/2014-91.] (Comissão Nacional da Verdade [CNV], 2014, p. 400).

A nomeação de “vadia” e “puta” marca a abjeção que as mulheres militantes representavam para o conjunto da sociedade patriarcal que escancarava, pela tortura, a sua necropolítica (Mbembe, 2018). Essas mulheres, por estarem longe da conformação com a feminilidade normativa da “menina decente” e atuarem nas entranhas da vida política com vistas ao desmantelamento de sua estrutura fascista, foram eleitas como inimigas do Estado. Sobre os seus corpos incidiram os dispositivos mais precisos de injúrias e violências misóginas, como expressão do ódio do Estado na mesma proporção da abjeção que lhes era imputada.

O depoimento de Rose Nogueira, mulher e mãe militante política, presa e torturada cerca de um mês após o nascimento de seu filho, é outra evidência do patamar desmedido a que as violências do terrorismo de Estado podiam atingir.

Veio um enfermeiro logo depois, pra me dar uma injeção pra cortar o leite. Porque esse Tralli [torturador] dizia que o leite atrapalhava ele. Então, essa foi também uma das coisas horríveis, porque enquanto você tem o leite, você está ligada com o seu filho, né? Me deram uma injeção à força, eu não quis tomar, briguei e tal, empurrei, aquela coisa. [...] Ele me pegou à força e deu injeção aqui na frente, na frente da coxa. [...] Depois que ele me falou: “Cortar esse leitinho aí, tirar esse leitinho”. Realmente, acabou o leite. (CNV, 2014, p. 408).

Não menos estarrecedor, o depoimento de Rose ressalta a maternidade como experiência interrompida e interditada para as mulheres militantes, já que não cumpriram o papel social que, na lógica patriarcal, confere sentido às suas existências femininas. A tortura de cortar o leite arranca o fio que liga essa mulher ao filho, interditando a maternidade na sua manifestação tanto simbólica quanto somática mediante a adulteração da fisiologia do corpo materno.

Ainda na Contramão da Abjeção e do Equívoco, as Memórias de Feminilidades Subversivas nos Boletins ChanacomChana

Circulando nas brechas da ditadura militar - mesmo sendo em seus anos finais -, os boletins ChanacomChana deixam os rastros das experiências de mulheres cujos gêneros e sexualidades escaparam da feminilidade normativa vigente à época, consagrada como um dos mais valiosos bastiões da família patriarcal. Esses boletins, organizados por mulheres lésbicas, na década de 1980, têm lugar importante nas memórias de mulheres cujas existências expuseram os avessos das políticas de repressão acionadas contra os corpos femininos que não se encaixavam nos enquadres dos gêneros normativos. Viver na contramão do esquecimento das violências foi o lema que as mulheres lésbicas, na década de 1980, assumiram ao se conscientizarem da importância política de “dar condições para que as mulheres homossexuais pudessem falar publicamente da marginalização a que eram submetidas'' (Grupo de Ação Lésbica Feminista [GALF], 1981, p. 4).

Naquele contexto, do regime militar em curso, a existência de uma mídia exclusiva de e para as mulheres lésbicas foi, sem dúvida, uma ação de fissura nas zonas de invisibilidade produzidas pelas normas de vigilância e controle da vida, no interior das instituições sociais e conforme aos padrões de reprodução da ordem social vigente. As lésbicas atuantes do GALF (Grupo de Ação Lésbica Feminista) 3, ainda na edição 0, constataram que as tentativas de questionar e romper os padrões sociais monogâmicos e cisheteronormativos eram, igualmente, fonte de conflitos entre elas, mulheres. Com isso, passaram a investir na visibilidade de histórias e posicionamentos de mulheres que, até então, estavam destinadas ao apagamento social, sob vários espectros e nuanças, tendo em vista que não apenas o patriarcado vigente operava o expurgamento de suas vidas, mas também a militância de esquerda pouco inseria, em sua pauta de lutas e resistências, as denúncias das mulheres lésbicas e feministas: “não poderia ser diferente numa sociedade falocrata onde as mulheres nunca tiveram direitos, só deveres.” (GALF, 1983, p. 3). Diante desses problemas, alguns grupos passaram a se organizar, como alternativa política, trazendo à baila a questão das mulheres, das pessoas LGBTI, das pessoas negras e ecologistas como questões políticas diretamente ligadas às estruturas patriarcais e ao funcionamento opressivo da sociedade como uma crítica da cultura e resistência ao desaparecimento e esquecimento sociais dessas vidas.

Após quatro anos do boletim ChanacomChana, já na edição 8, as editoras trouxeram a lesbianidade e o feminismo lésbico como uma pauta, definiram que “a palavra ‘lésbica’ significava uma mulher comprometida com a luta das mulheres por seus direitos, sua autonomia e autodeterminação” (GALF, 1985, p. 10) e assumiram como objetivos informar e conscientizar as mulheres lésbicas de seus direitos e a importância de apoiar e criar organizações que defendessem seus interesses, bem como desenvolver uma rede de contatos entre as organizações e as mulheres lésbicas, com o propósito de quebrar o isolamento a que muitas delas estavam sujeitas como forma de obter apoio afetivo e político.

Um dos obstáculos salientados pelas editoras foi a família, como o claustro privilegiado para os ensinamentos e as aprendizagens das normas de gênero que sustentam essa instituição.

[...] fazem da família um lugar de adestramento para a adequação social e uma fonte inesgotável de neuroses, culpas e baixa autoestima. O sistema patriarcal não é apenas uma dominação, é também um sistema que utiliza de forma sutil todos os mecanismos institucionais e ideológicos ao seu alcance (o direito, a política, a economia, a moral, a ciência, a medicina, a moda, a cultura, a educação, os meios de educação e etc.) para reproduzir essa dominação dos homens sobre mulheres. (GALF, 1985, p. 6).

O reposicionamento da família no centro do debate público sobre o que se identifica como problemas sociais, faz-se notar em contextos políticos de retração de direitos, sobretudo aqueles que tocam no campo das relações de gênero e da sexualidade. Não é mera coincidência depararmo-nos, na ditadura militar, com discursos familistas muito próximos aos que, nos dias atuais, de franca ascensão dos movimentos políticos neoconservadores, têm ganhado circulação social e sustentado práticas de censura e perseguição política. Biroli (2021), em suas análises sobre esses movimentos no Brasil e na América Latina, destaca que o familismo, impulsionado por alianças de grupos ultraconservadores e ultraliberais em escala transnacional e respaldado na ideia da família e da infância ameaçadas pelos avanços do debate de gênero na sociedade, é um dos principais motes para levar a cabo a erosão da democracia. Mulheres e crianças são personagens centrais desse enredo tecido sob a égide de normas de regulação do corpo, da sexualidade e das relações de gênero e encerrado dentro de uma família “vivípara e pedófila” que existe apenas para pôr em funcionamento a biopolítica e a reprodução social da cisheteronormatividade (Preciado, 2013, p. 98).

Se viver as sexualidades não normativas implicava em uma relação conturbada com a família à época da ditadura militar, então, quem atuava na rede de apoio dessas mulheres, visto que viviam em um estado de extermínio e em uma família de rechaço e desamparo? Como e por que, em nome do conservadorismo patriarcal, as violações contra esses corpos femininos dissidentes se tornavam regras, muitas das vezes, tácitas? Dentre essas mulheres perseguidas à época, estão as que foram presas em batidas policiais truculentas, comandadas por José Wilson Richetti, delegado da Delegacia Seccional de São Paulo, que decidiu “higienizar” a cidade em 1980.

As possibilidades de aparecimento social são postas pelas relações entre as esferas pública e privada, demarcadas pela sexopolítica e conforme a regulação dos sujeitos segundo critérios de aproximação e afastamento de seus corpos às normas de gênero que lhes conferem inteligibilidade e a chancela para o reconhecimento social (Butler, 2018). O efeito de resistência do aparecimento social de corpos abjetos, assim nomeados a partir da captura normativa, está nos modos de aparecer no instante e no lugar onde o apagamento insiste em fazê-los desaparecer. Trata-se de um movimento insistente e persistente por habitar o mundo e agarrar-se à vida. É a materialidade da crítica aos governos normativos das zonas de visibilidade social, delimitadas por uma inteligibilidade que legitima a distribuição desigual de poder e da precariedade (Butler, 2018). Nesse escrutínio, demarcam-se a validação e o reconhecimento das vidas: as que importam e são amparadas em seu direito de existirem e as que estão destituídas dessas prerrogativas.

Encontrar as condições de aparecimento certas é uma questão complicada, uma vez que não é só uma questão de como o corpo se apresenta diante de um tribunal de justiça, mas como alguém consegue um lugar na fila que pode possivelmente levar a um comparecimento no tribunal. (Butler, 2018, p. 48).

Os corpos das mulheres reivindicados e visibilizados pelo boletim ChanacomChana atuavam como políticas de aparecimento social - e, certamente, ainda atuam - ao estarem nas disputas por espaços e sentidos por esse “lugar na fila” que causa ruídos nas normas, para serem corpos que resistem e existem.

A história de SandraMara, registrada e rememorada no boletim ChanacomChana, faz jus a essa reivindicação do aparecimento social, tendo em vista, inclusive, que em várias edições muito se discorria sobre a (r)existência dos corpos de mulheres lésbicas, na tentativa de ocupação dos diversos espaços, tanto públicos quanto privados. É na edição número 1 do boletim, em 1982, que as editoras trazem a história de SandraMara, paranaense de 20 anos, que passou boa parte da sua vida na FEBEM (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor) 4, onde conheceu todos os castigos e arbitrariedades reservados às crianças e adolescentes que lá foram reclusos. Ela era uma mulher lésbica assumida, conhecida como “Bigode”. Saiu da FEBEM e foi trabalhar na Assembleia Legislativa de São Paulo, onde o estranhamento ao seu corpo que performava uma masculinidade percebida como “fora de lugar” passou a ser a justificativa para os diversos problemas que lhe foram causados. Um deles foi a reprovação no concurso de efetivação do cargo público. “A perda do emprego, o preconceito e o conjunto de circunstâncias infelizes que experimentou em vida, levaram-na ao suicídio” (GALF, 1982, p. 6).

SandraMara foi alvo de múltiplas violências legitimadas pelo Estado desde criança. Existir em um corpo que não se encaixava dentro da esfera da inteligibilidade cultural (Butler, 2015) fez com que a sociedade a conduzisse à morte, na tentativa de normatizá-la e subjetivá-la conforme os enquadres da sexopolítica. Publicara um livro, “A queda para o alto”, e suicidou-se meses depois da publicação do volume em 1982. O livro retratava um pouco sobre sua vida e, consequentemente, as violências que sofrera.

[...] seu pai foi assassinado, sua mãe, prostituta, morreu numa operação. Fora adotada por tios que moravam perto, onde houve muitos conflitos que ela não se calou, como a tentativa de estupro do padrasto para com ela e a infidelidade da mãe. Foi mandada para a FEBEM. [...] havia um caderno de escritos em que Sandra se referia sempre no masculino. Para Sandra, havia apenas duas possibilidades: ou era uma mulher bem “feminina”, passiva e frágil, ou era homem, forte, ativo e bravo: talvez pensasse que para ser lésbica teria que optar: ou ser o “homem” e seguir seu “modelo” ou ser “mulher” e seguir seu consequente “modelo”. A partir destes escritos, SandraMara trouxe várias denúncias que nunca tivera antes da FEBEM como, por exemplo, a tortura que “Bigode” sofria por causa de seu estereótipo [...]. (GALF, 1983b. p. 6)

Outro direito negado, à época, era o de maternar como mulher lésbica, interdição semelhante à empreendida sobre as mulheres militantes presas e torturadas. As editoras, na sexta edição do boletim, denunciaram que: para a mãe heterossexual, que performa a maternidade normativa, a guarda da criança sempre lhe era concedida, caso ela tivesse condições, porém, no caso das mães lésbicas, com experiências dissidentes de maternidade, a decisão era afastá-las da condição materna, delegando a guarda da criança ao pai, independentemente das condições econômicas da mãe. Circunscritas, também, no lugar do feminino abjeto, como forma de fazer valer o ideário de conservação da moral e da família, essas mulheres lésbicas tinham o direito à maternidade arrancado de suas vidas. Desse modo, procede-se, nos rastros da análise de Butler (2019), uma desrealização da maternidade que se efetiva na sua suspensão da vida dessas mulheres pelo fato de representarem o equívoco do feminino.

A necessidade política e ética da rememoração coloca-nos diante da importância da história dos movimentos LGBTI no Brasil, sobretudo em tempos de exceção, como é o caso do contexto da ditadura militar. Nesse trabalho de rememoração, o dia dezenove de agosto, eleito como o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, tem relevo histórico graças ao movimento de resistência de grupos de mulheres lésbicas que reinventaram a política e enfrentaram a carga simbólica da abjeção social que lhes foi imputada como justificativa da retirada de direitos. As editoras que estavam à frente desses movimentos disseram que: “todos os sábados quando íamos vender o boletim ChanacomChana no Ferro’s Bar, éramos agredidas pelo porteiro, com ameaças ou puxões de braço para que nos retirássemos” (GALF, 1983a, p. 1). Nos dias atuais, o boletim ChanacomChana consolida-se como uma importante fonte jornalística e de pesquisa, posto que, a cada ano, o seu alcance tem sido ampliado à rede de mulheres lésbicas, atingindo, inclusive, abrangência internacional, a ponto de se configurar como um movimento de resistência em destaque na contramão do esquecimento das violências históricas contra as vidas de mulheres que seguem na contramão dos ditames patriarcais da feminilidade normativa.

A Interseccionalidade nos Movimentos de Resistência de Mulheres Negras na Ditadura Militar: o Jornal Nós, Mulheres

Durante o estado de exceção implantado na ditadura militar brasileira, compunham o rol dos “inimigos da nação”, além das mulheres e homens militantes que resistiram diretamente ao regime de repressão política, pessoas LGBTI, indígenas, pretas e da classe trabalhadora urbana e do campo, sujeitos estes cujas memórias ainda requerem maior visibilidade na esfera da historiografia da época.

Na contramão das políticas de apagamento social das memórias de mulheres, com destaque àquelas atravessadas por marcadores sociais de raça/etnia e classe, reportamo-nos ao jornal Nós, Mulheres como um acervo também importante de memórias da ditadura militar, por ter sido organizado por um coletivo de mulheres preocupado com as vidas de “operárias, negras, faveladas ou moradoras das periferias, trabalhadoras das áreas urbanas e rurais.” (Teles, 2014). Destaca-se, ainda, o seu caráter de documento de resistência à frente de seu tempo, com críticas sociais contundentes, entrelaçando experiências e epistêmicas na vida social como forma de produzir conhecimentos sobre a ocupação de lugares que não foram projetados para essas mulheres, que viviam também, no contexto da ditadura militar, sob o risco iminente de terem suas vidas sequestradas pelo Estado. A interseccionalidade dá o tom no jornal ao se dedicar a tratar de questões que afetam as vidas das mulheres e das crianças pelo viés dos diversos marcadores sociais de diferença, o que o torna representativo e espaço social de reverberação das vozes de pessoas e grupos marginalizados pelo Estado, dando visibilidade às causas das pessoas pretas, indígenas, pobres, periféricas, das crianças e de diferentes infâncias.

São muitos os temas abordados no jornal Nós, Mulheres, dentre os quais, ressaltam-se: a participação das mulheres na vida política e na economia do país, já que são elas que gerem a casa, cuidam da alimentação e conhecem o peso do custo de vida, além de serem as que estão mais sujeitas ao desemprego e às condições precárias de trabalho e com baixas remunerações; as estreitas relações entre racismo e patriarcado, estruturais no Brasil, e a importância da visibilidade histórica de mulheres marcadas por essas relações; as críticas aos modos como estava acontecendo a transição democrática no país; o aumento da prostituição na ditadura militar devido ao acirramento das desigualdades sociais; o aparecimento das vozes sociais de mulheres no trabalho, no espaço familiar, na experiência da maternidade, no direito ao corpo; as condições sociais de vida e os direitos das mulheres articulados aos das crianças (a reivindicação por creches e a denúncia da institucionalização da infância como reclusão das crianças pobres); e a participação político-sindical das mulheres nos debates sobre a democracia.

O jornal Nós, Mulheres aparece em uma época na qual a imprensa alternativa tinha imenso valor de resistência para os movimentos sociais, uma vez que abria canais para outras perspectivas ideológicas sobre a situação política no Brasil. Sua primeira edição foi lançada em junho de 1976, na cidade de São Paulo, contando com o financiamento da atriz Ruth de Souza, sob circunstâncias altamente repressivas. Foi estruturado e publicado pela Associação de Mulheres, circulou no período de 1976 a 1978 e teve como principais responsáveis as jornalistas Marisa Correa, Laís Antonio do Nascimento e Anamárcia Vainsencher. Tratava-se de uma imprensa inteiramente artesanal, com lançamentos bimestrais e edições coletivas, que somaram, ao total, 8 edições e 204 textos, que variavam entre crônicas, matérias, editoriais, charges, fotografias, notas e cartas (Martins & Nunes, 2019). Atualmente, o periódico encontra-se disponível na íntegra pelo site 5 criado com o propósito de acervo histórico e, portanto, de produzir memórias de resistência contra a ditadura militar.

No primeiro editorial do periódico, aparece o campo político em que atua:

Desde que nascemos, NÓS MULHERES, ouvimos em casa, na escola, no trabalho, na rua, em todos os lugares, que nossa função na vida é casar e ter filhos. Que NÓS MULHERES não precisamos estudar nem trabalhar, pois isto é coisa de homem. [...] Achamos que NÓS MULHERES devemos lutar para que possamos nos preparar, tanto quanto os homens, para enfrentar a vida. Para que tenhamos o direito à realização. Para que ganhemos salários iguais quando fazemos trabalhos iguais. Para que a sociedade como um todo reconheça que nossos filhos são a geração de amanhã e que o cuidado deles é um dever de todos e não só das mulheres. [...] Mas não é só. NÓS MULHERES queremos, junto com os homens, lutar por uma sociedade mais justa, onde todos possam comer, estudar, trabalhar em trabalhos dignos, se divertir, ter onde morar, ter o que vestir e o que calçar. E, por isto, não separamos a luta da mulher da de todos, homens e mulheres, pela sua emancipação. NÓS MULHERES decidimos fazer esse jornal feminista para que possamos ter um espaço nosso, para discutir nossa situação e nossos problemas. E, também, para pensarmos juntas nas soluções. (Editorial, 1976)

Ainda na primeira edição do jornal, encontramos uma matéria, intitulada “Essa nêga falou”, sobre o depoimento de Estela, uma jovem mulher negra, proferido em assembleia, no auditório da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), no Rio de Janeiro, em 02 de junho de 1975, na semana de homenagem ao Ano Internacional da Mulher, organizado pela ONU (Organização das Nações Unidas) e por um grupo de feministas do Rio de Janeiro. Estela era professora, formada em Pedagogia, atuava no IPCN (Instituto de Pesquisas de Culturas Negras), no Rio de Janeiro, e, à época, tinha 23 anos (“Essa nêga falou”, 1976).

Na verdade, como mulher, você está um pouquinho abaixo na escala social. Como negra, nem se discute: você nem existe. Enquanto entidade Mulher Negra, percebe? Você está dentro dos estereótipos que fazem da negra: você é cama, cozinha e babá dos filhos da mulher branca. No Brasil, o auge do destaque que deram a ela foi aquela estátua que tem em São Paulo. A mãe preta, conformada com seu destino. Uma coisa chorosa e macia. O grande útero do brasileiro. Por outro lado, você é uma mulher negra e quentíssima. Só porque é preta, entende de sexo. Já nasceu sabendo. No carnaval só ouve falar: “mulher preta é comigo, sangue quente é comigo.” Se o branco discrimina a mulher, como preta é pior ainda. Em termos gerais, ele nem te vê como mulher e sim como negra. É outro departamento. Se a mulher tem direitos a só duas palavras, a negra não pode nem abrir a boca. [...] Por causa disso, acho a liberação feminina importante. Você vê, em termos da lei, a mulher não existe. No mercado de trabalho também tem uma série de problemas. Por isso, eu acho que a mulher negra vai participar muito deste movimento, pois ela é a maioria das empregadas domésticas, da mulher na lavoura e das fábricas. (“Essa nêga falou”, 1976)

Estela denuncia os estereótipos voltados às mulheres negras, de forte circulação e aderência social naquela época marcada pelo conservadorismo moral alicerçado na estrutura patriarcal racista da sociedade brasileira, que forjam a imagem da mulher negra associada à objetificação sexual e aos cuidados. Não faz isso sem denunciar as desigualdades no tratamento de mulheres negras e brancas, ainda que pese o sexismo que recai sobre as vidas de ambas, o que põe em evidência a necessidade de, já naquela época, dar visibilidade para a distribuição diferencial do poder que demarca modos de perceber, viver e resistir contra essas discriminações e violências. Nessa perspectiva, mais do que desigualdades no campo dos direitos das mulheres, mesmo sob notórias restrições, Estela declara que, para as mulheres negras, o que fica é a suspensão absoluta desses direitos.

As críticas de Gonzales (1984), intelectual e escritora brasileira, preta, feminista, ativista antirracista e antissexista durante a ditadura militar, ao mito da democracia racial, sobretudo quando se debruça sobre as condições sociais das mulheres negras no Brasil, afirmam a necessidade de realçar os efeitos violentos do sexismo sobre as suas vidas. Da “mulata, doméstica à mãe preta”, estamos diante de discursos, argumenta Gonzales (1984, p. 224), que carregam a violência simbólica projetada às mulheres negras, com o propósito de dessubjetivá-las e encerrá-las na condição de objeto.

Considerações Finais

A díade mulher-política, em uma sociedade patriarcal e, especialmente, no contexto de um estado de exceção, é um fato que não ressoa sem fortes ruídos e incômodos, exatamente por realçar o avesso do modelo de feminilidade acionado por processos educativos em diversas instâncias, que encerra a mulher dentro do ambiente doméstico, dedicada aos cuidados e zelo da família. No contexto da ditadura militar, esses ruídos causavam abominação e rechaço aos diversos setores sociais que mantinham esse regime político.

Tratamos, neste artigo, do processo de dessubjetivação de mulheres dissidentes na ditadura militar - militantes políticas, lésbicas e negras -, nos marcos temporais desse estado de exceção em cotejamento com os dias atuais. Nesse processo, a preservação da família como célula mater do status quo patriarcal opera, também, como um projeto que sequestra as memórias dessas mulheres, haja vista que o aparecimento social de suas histórias de resistência macula as racionalidades econômica, moral e institucional que balizam essa estrutura social.

O debate sobre a democracia não se faz sem incluir em sua pauta o trabalho com as memórias, principalmente quando o contexto requer profundas indagações sobre a racionalidade e a moralidade que conferem inteligibilidade aos enquadramentos do que deve ou não ser rememorado. Em contextos expressamente autoritários, como foi o Brasil sob o regime militar, e de políticas de ataque aos processos democráticos, como é o Brasil nestes últimos quatro anos, faz-se urgente questionar esses enquadres que, na medida em que as reivindicações por direitos avançam, mais se acirram os matizes violentos dos enquadramentos raciais, de gênero e sexuais.

A violência do enquadramento faz-se na produção do “outro” como inimigo, nas esferas social e política, em uma arena que dispensa a disputa porque a ordem é o extermínio. Na condição de inimigo, o “outro” é diferença a ser destruída; é ameaça a ser fagocitada. Para validar esses enquadres, a racionalidade do progresso da nação e a moralidade conservadora da ditadura militar legitimaram as violências praticadas contra as mulheres que escaparam das redomas da família patriarcal. Não à toa, mulheres militantes políticas, lésbicas, bissexuais, negras, indígenas foram perseguidas, silenciadas, presas, sequestradas, torturadas, assassinadas e violentadas de diversas formas. Por outro lado, esses enquadres não apenas operam sobre os corpos viventes, mas também - e com intensidade - sobre as suas representações. Para Butler (2019), a violência do enquadramento incide sobre a forma como certas vidas e mortes são mantidas como “irrepresentáveis” (p. 179). Esse mecanismo da irrepresentação faz-se notar na interdição do luto público, que força um povo a esquecer ou, pior do que isto, não ter o que lembrar diante da ausência de memória.

A vida em democracia, no Brasil, segue em disputas acirradas, sentidas nas mais diversas instituições sociais. Nesse terreno, ainda movediço, a educação ganha relevo ao responsabilizar-se por dar o pontapé inicial na crítica cultural aos enquadramentos que forjam e legitimam ataques racistas, sexistas e LGBTIfóbicos e à moralidade privatista neoliberal que se alimenta da corrosão da coletividade. A democracia não se faz com a fagocitose das diferenças, mas na polifonia das vozes que ressoam na vida social.

Notas

1 Ato Institucional no. 5, assinado pelo General Costa e Silva, em 1968, que autorizou censuras, demissões arbitrárias de servidores públicos, perseguições políticas, prisões arbitrárias, a suspensão do habeas corpus e de vários outros direitos civis, marcando a história como um dos momentos de recrudescimento da ditadura militar.

2 Trata-se do relatório produzido pela Comissão Nacional da Verdade, criada pela Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, da Casa Civil da Presidência da República, durante o governo da Presidenta Dilma Rousseff, com o objetivo de validar o direito à memória por meio da reconstrução e da análise histórica de crimes praticados por agentes do Estado, como prisões arbitrárias, desaparecimentos de pessoas, torturas etc. (CNV, 2014).

3 O Grupo de Ação Lésbica Feminista (GALF) atuava dentro do gueto de lésbicas, vendendo boletins e panfletando folhetos de conscientização sobre discriminação e violência contra as lésbicas, como forma de divulgar, também, as suas atividades. Atuou fortemente contra a onda de prisões arbitrárias, de torturas e de extorsão comandadas pelo delegado José Wilson Richetti, da Delegacia Seccional, do Centro de São Paulo, a partir de abril de 1980. Os alvos da violência estatal eram homossexuais, travestis, prostitutas, pessoas negras e desempregados/as. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/mulheres-lesbicas-feministas-brasil/. Acesso em: 15 fev. 2021.

4 A FEBEM compunha o Sistema de Bem-Estar do Menor, política de internação das crianças e dos adolescentes pobres que vigorou durante a ditadura militar, cujas instituições funcionavam sob a ordem da disciplina, da vigilância e dos castigos físicos (Rizzini, 1993).

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada por duas bolsas do Programa de Iniciação Científica (PIBIC) concedidas pelo CNPq (para a segunda autora) e pela Universidade Federal de Rondonópolis (para a terceira autora).

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Recebido: 15 de Maio de 2022; Revisado: 08 de Agosto de 2022; Aceito: 15 de Agosto de 2022

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