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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2023  Epub 03-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.75302 

PSICOLOGIA SOCIAL

Onde Vivem os Monstros? Enlaces entre Cinema, Adolescência e Horror

Where do the Monsters Live? Links Between Cinema, Adolescence and Horror

¿Dónde Viven Los Monstruos? Vínculos Entre Cine, Adolescencia y Horror

Bruna Rabello de Moraes* 

Psicóloga, graduada pela Universidade de Passo Fundo, mestra em Psicanálise: Clínica e Cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


http://orcid.org/0000-0002-7814-8182

Alice Sippert** 

Psicanalista e psicóloga graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


http://orcid.org/0000-0003-4869-4585

Amadeu de Oliveira Weinmann*** 

Professor do PPG em Psicanálise: Clínica e Cultura / UFRGS.


http://orcid.org/0000-0002-4162-9660

*Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil

**Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil

***Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil


RESUMO

Partindo da ideia de Stephen King de que as produções de horror servem como um barômetro muito preciso que aponta aquilo que aterroriza uma sociedade, este artigo tem como objetivo propor uma reflexão acerca dos enlaces entre adolescência, cinema e horror, no momento em que a adolescência como categoria social se consolida, isto é, nos anos 1950. Para isso, realizamos uma revisão bibliográfica sobre a relação entre horror, monstruosidade e cultura, assim como sobre o desenvolvimento dos gêneros cinematográficos horror e teen movies. Também realizamos sucintas análises fílmicas de algumas obras importantes na história desses gêneros cinematográficos. Observamos que, se, por um lado, com o surgimento dos teen movies, as telas do cinema passam a ser habitadas por monstros adolescentes, por outro, os discursos com pretensão de cientificidade nos falam sobre uma adolescência monstruosa. A partir disso, concluímos que talvez haja uma intrigante equivalência cultural entre adolescência e monstruosidade: tanto monstros quanto adolescentes trazem à luz algumas questões fundamentais para o ser humano, encarnam aquilo para o que não temos resposta, apontam os limites do saber.

Palavras-chave: adolescência; cinema; horror; cultura.

ABSTRACT

Based upon Stephen King’s idea that the horror productions act as a barometer, pointing out what terrifies some societies, this article aims to propose some thoughts about the possible links among adolescence, cinema, and horror, around the time adolescence emerges as a consolidated social category (in the 1950s). In order to achieve that, we researched the relations between horror, monstrosity, culture, and the development of the horror and teen movies cinematographic genres. We also made a brief film analysis of some important works in the history of these cinematographic genres. We notice that two events occurred in parallel: the emergence of teenage monsters in teen movies on the cinema screens and the allegedly scientific discourses about a monstrous adolescence. We have concluded that perhaps there is a cultural equivalence between adolescence and monstrosity: monsters and teenagers bring to light some fundamental questions for the human being; they incorporate things to which we do not have an answer and point out the limits of our knowledge.

Keywords: adolescence; cinema; horror; cultura.

RESUMEN

Partiendo de la idea de Stephen King de que las producciones de terror sirven como un barómetro muy preciso que señala lo que aterroriza a una sociedad, este artículo pretende proponer una reflexión sobre los vínculos entre la adolescencia, el cine y el terror, en el momento en el que la adolescencia se consolida como una categoría social, es decir, en la década de 1950. Para ello, realizamos un repaso sobre la relación entre horror, monstruosidad y cultura, así como sobre el desarrollo de los géneros cinematográficos horror y teen movies. También hicimos un breve análisis fílmico de algunas películas importantes en la historia de estos géneros cinematográficos. Observamos que, por un lado, con la aparición de los teen movies, las pantallas de cine ahora están habitadas por monstruos adolescentes, por otro, los discursos con pretensión de cientificidad nos hablan de una adolescencia monstruosa. De esto, concluimos que puede haber una equivalencia cultural intrigante entre la adolescencia y la monstruosidad: tanto los monstruos como los adolescentes sacan a la luz algunas preguntas fundamentales para los seres humanos, encarnan aquello para lo que no tenemos respuesta, señalan los límites del saber.

Palabras clave: adolescencia; cine; horror; cultura.

Desde as exibições inaugurais dos irmãos Louis e Auguste Lumière, em 1895, o cinema se desenvolveu em constante enlace com a cultura. A sétima arte participa da construção da história, nos lembra do passado, colabora na criação de possíveis futuros e tem a potência de possibilitar olharmos para o mundo em que vivemos das mais diversas formas. Podemos pensar que as obras cinematográficas, assim como outras formas de arte, nos ajudam a construir narrativas para aquilo de atual que, conforme as elaborações freudianas sobre as neuroses atuais, “não encontra registro em nosso sistema de representações e, por esse motivo, o desorganiza” (Weinmann, 2016, p. 11). Nossa hipótese é de que, muitas vezes, as artes plasmam, discursivamente, o que uma cultura não consegue nomear - e, por isso, a assombra.

A partir disso, este artigo tem como objetivo propor uma reflexão acerca dos enlaces entre adolescência, cinema e horror, no momento em que a adolescência como categoria social se consolida, isto é, nos anos 1950. Para isso, realizamos uma revisão sobre a relação entre o horror, monstruosidade e cultura e sobre o desenvolvimento dos gêneros cinematográficos horror e teen movies (filmes destinados ao público adolescente). A escolha do material bibliográfico analisado se deu a partir da familiaridade dos autores. Destaca-se que esse material se circunscreve, especialmente, à adolescência e à filmografia dos EUA, pois este é o solo de nascimento de ambos (Savage, 2009; Passerini, 1996). Também realizamos ensaios sucintos de análise fílmica das seguintes obras: I was a teenage werewolf (Eu era um lobisomem adolescente, 1957), de Gene Fowler Jr.; I was a teenage Frankenstein (Eu era um Frankenstein adolescente, 1957), de Herbert L. Strock; O exorcista (1973), de William Friedkin; Carrie, a estranha (1976), deBrian de Palma; Crepúsculo (2008), de Catherine Hardwicke; e Raw (2016), de Julia Ducorneau. Em termos metodológicos, nos amparamos na proposta de Kuntzel (2019) de que, com o intuito de pôr em relevo a Outra cena (inconsciente), é preciso suspender a dimensão de espetáculo e rearranjar os significantes que permeiam o texto fílmico.

Mesmo tendo uma notável diferença temporal - com o cinema de horror surgindo no final do século XIX e os teen movies em meados do século XX -, quando esses gêneros cinematográficos passam a coexistir, têm sua união frequente em diversas produções. Com relação a isso, Bueno (2005) observa: “os filmes juvenis desde muito cedo estabeleceram um relacionamento com o universo do horror” (p. 143).

Questionamo-nos sobre a forma com que os filmes podem trazer às telas do cinema algo que pertence às sombras de nosso tempo. Stephen King (2012), por exemplo, ao teorizar sobre o gênero de horror define-o como um barômetro muito preciso daquilo que perturba o sono de toda uma sociedade. As tramas aterrorizantes de horror e os monstros que nelas habitam vão se transformando em consonância com o tempo de sua produção.

Com respeito à adolescência, o cinema se configura de forma importante para a história dos discursos que delineiam o conceito. Consideramos a ideia de adolescência como algo mutável conforme as transformações da cultura e cuja emergência histórica precisa ser situada. A adolescência surge como conceito em 1904, a partir da famosa obra intitulada Adolescence,do psicólogo Stanley Hall, mas será apenas a partir dos anos 1950 que sua definição irá se popularizar e ganhar valor midiático (Passerini, 1996). Desde então, é possível observarmos uma grande proliferação discursiva sobre o tema.

Tal como as produções de horror servem como um barômetro que aponta aquilo que aterroriza uma sociedade, o debate a respeito dos jovens muitas vezes indica as questões que estão interpelando a cultura. E quando a adolescência e o horror se encontram no cinema? O que isso pode nos dizer acerca da relação existente entre cultura e adolescência? A partir desses questionamentos, supomos a existência de uma intrigante equivalência cultural entre adolescência e monstruosidade.

Sobre o Horror: uma Introdução

Delumeau (2001), em sua obra A história do medo no ocidente, afirma que as coletividades e as próprias civilizações estão comprometidas em um constante diálogo com o medo. Segundo Cánepa (2008), medo e horror são coisas diferentes; para que se constitua o horror, é necessário que ao medo se alie outro sentimento: o de aversão. No que concerne a esse sentimento, a autora refere-se ao texto Purity and danger (Pureza e perigo) da antropóloga norte-americana Mary Douglas, de 1966, que postula que a aversão estaria relacionada ao nojo diante do que nos parece sujo, abjeto ou impuro. Pensar sobre essa impureza implicaria assimilar a noção contrária de pureza e, assim, observar fenômenos de poluição que podem representar perigo às estruturas de um sistema social.

Além dessa diferenciação proposta por Cánepa (2008), alguns autores propõem uma diferenciação entre o que poderia ser classificado como terror ou horror. Para King (2012), no terror há um tipo de apreensão do desconhecido, mas sem a presença de algo monstruoso. Tudo fica por conta da imaginação. Já no horror, há algo monstruoso que provoca uma reação física negativa. Carroll (1999) constrói uma definição parecida, estabelecendo uma relação entre horror e fantástico. Segundo o autor, na Modernidade muitas histórias de horror tratam de situações de medo e abjeção protagonizadas por indivíduos com características monstruosas, mas não sobrenaturais. Schneider e Penner (2017) afirmam que o horror é o que viria depois do terror. O terror seria o suspense, o medo quando nos preocupamos com a possibilidade de algo terrível acontecer. Para os autores, enquanto o terror é aquilo que está à espreita atrás da porta, o horror é o seu medo realizado, a promessa cumprida. Freud (1920/1989), em sua obra Além do princípio do prazer, também postula uma distinção entre terror (Schreck) e medo (Furch), na qual o terror estaria no campo de uma vivência experimentada pelo sujeito sem uma preparação, sem algo que permita a antecipação de um perigo iminente.

Segundo o teórico francês Lenne (1974), há sempre oposições fundamentais nas figuras que nos provocam horror, como morto/vivo, bestial/racional, humano/mecânico, natural/artificial. Podemos observar isso em vários exemplos de figuras tradicionalmente vistas como horroríficas, tais como mortos vivos, lobisomens ou insetos humanos. Também há a incompletude categórica que ganha vida através da imagem de seres vivos sem olhos, braços, pernas ou pele, ou que estão num estado avançado de decomposição e podem causar repugnância e abjeção. Além dessa existência de oposições nas figuras monstruosas, Carroll (1999) observa que há uma espacialização oferecida pelas histórias clássicas de monstros: os monstros provêm geralmente de lugares marginais, como esgotos, cemitérios e casas abandonadas. Nessa perspectiva, o que horroriza é o retorno dos dejetos sociais.

O curioso sobre as figuras monstruosas é que, ao lado do horror e da abjeção, caminha um certo fascínio e uma necessidade de criá-las e recriá-las, ao longo dos séculos. Precisamos da ideia de monstruosidade, porque ela é a reafirmação da ordem que almejamos e, por isso, o que mais nos horroriza não é a aberração em si, seja ela física ou mental, mas a desordem que tais aberrações parecem implicar (King, 2012). Com sua simplicidade e repetição, as melodias das histórias de horror são melodias de ruptura e desintegração, ao mesmo tempo em que o extravasamento ritualizado dessas emoções parece trazer as coisas de volta a um estado mais estável e constitutivo.

Tal como sublinha Carroll (1999), as figuras interpretadas como fontes de horror vão sofrendo mudanças ao longo da história. Este efeito reflete também em suas definições, tanto como gênero literário quanto cinematográfico. Sua constante mutação faz com que o gênero, além de ser um dos mais prolíficos da indústria cinematográfica, seja particularmente hostil a definições (Cánepa, 2008). Pensamos que essa constante mutação demonstra a potência da ficção de horror, pois, se isso ocorre, é porque essas produções estão, constantemente, capturando o Zeitgeist.

Ainda que já existente nas produções culturais, o horror somente é nomeado como gênero específico no século XVIII. Cánepa (2008) nos propõe uma divisão cronológica do horror como gênero em três fases: o horror gótico do século XVIII, o horror romântico do século XIX e o horror moderno do século XX. Daremos ênfase ao horror do final do século XIX e início do século XX, por se tratar do momento histórico em que o conceito de adolescência começa a tomar forma.

No início do século XX, a cultura de massas já havia absorvido as imagens e histórias de horror. Veiculado por vários meios artísticos, o horror começou a se desdobrar em subgêneros e estilos específicos, distanciando-se de sua origem gótica. Podemos relacionar esse distanciamento às mudanças culturais do século XX, que teriam seu reflexo no imaginário social e nas artes. Neste século, ocorre uma massificação do horror e a incorporação de outros conceitos além do “sobrenatural” (Cánepa, 2008). Após várias manifestações de barbárie social e de grandes transformações nas relações de produção, alguns medos, como o risco da violência inesperada, o estranhamento do outro - que pode, a qualquer momento, se revelar como inimigo - e uma pressão cada vez maior pelo consumo passam a habitar os pesadelos da sociedade.

Hallberstan (1995) nos aponta a diferença crucial entre o horror do século XIX e o horror que se desenvolveu ao longo do século XX. A autora sustenta o argumento de que os monstros do século XIX metaforizavam a ambiguidade da subjetividade moderna, neles ficava exposta a existência e a possibilidade de desequilíbrio entre os “lados de dentro e fora” (p. 2) do ser humano, seus aspectos feminino/masculino, corpo/mente, proletário/aristocrata, nativo/forasteiro, etc. Já no século XX, a monstruosidade encontra seu lugar no que pode ser chamado de “frenesi do visível” (Hallberstan, 1995, p. 2), se tratando de uma experiência cada vez mais sensorial pautada na nova subjetividade da vida moderna urbana que, como observa Singer (2004), implicou em um mundo marcadamente “mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que as fases anteriores da cultura humana” (p. 94).

Singer (2004) observa que, no final do século XIX e início do XX, a imprensa, a literatura e os espetáculos mais populares faziam uma tematização distópica e constante de uma esfera pública radicalmente alterada. Na passagem para o novo século, havia diversas ilustrações que tratavam, especificamente, das transformações da experiência de um estado pré-moderno de estabilidade para uma crise moderna de instabilidade e choque. Um cartum de 1900, na Life, intitulado “Broadway - Passado e Presente”, por exemplo, contrastou uma cena pastoril com uma visão de um bonde aproximando-se rapidamente de pedestres apavorados.

Segundo a autora, essa colisão entre duas ordens de experiência também figurou em diversas imagens que representavam colisões reais entre carroças (meio tradicional de transporte) e o bonde elétrico, seu substituto moderno. Essas figuras “comunicavam uma ansiedade com relação à periculosidade da vida na cidade moderna e também simbolizavam os tipos de choques e sobressaltos nervosos aos quais o indivíduo estava sujeito no novo ambiente urbano” (Singer, 2004, p. 101). Podemos pontuar que essas transformações tomaram esses sujeitos de soslaio, sem algo que possibilitasse uma antecipação do que viria a seguir e, dessa forma - conforme a definição dada por Freud para o que seria o terror -, aterrorizando-os. Assim como os choques representados pelas ilustrações citadas anteriormente, o atual está constantemente em colisão com o já estabelecido, desorganizando o que está instituído e fazendo uma exigência de trabalho ao aparelho psíquico (Weinmann, 2016).

Havia um contexto cultural de construção do apetite do olhar pela realidade, fazendo com que o cinema fosse bem aceito pelo gosto popular e participasse da construção de uma cultura de massa. Rivera (2008) cita como exemplo a Paris do final do século XIX, que “estava tomada por vitrines de apresentação da vida ‘como ela é’, testemunhando (e construindo) uma busca popular por espetáculos de realismo extremo” (p. 13). Uma dessas “vitrines” era a exposição de cadáveres no necrotério de Paris, sob a justificativa de busca de identificação dos corpos encontrados pela cidade. Os cadáveres eram expostos e atraiam multidões.

É nesse contexto, na passagem do século XIX para o XX que, segundo Cánepa (2008), várias tendências do gênero de horror passaram a ser desenvolvidas na literatura e nos mais diversos meios de espetáculo, como o teatro, a televisão e o cinema:

[...] a do horror sobrenatural, ligado principalmente às raízes góticas, mas também a uma série de contribuições derivadas das descobertas da arqueologia, da genética e da paleontologia; a do horror ligado à ficção científica, que discute o poder das máquinas (humanizadas ou não) e dos seres biologicamente modificados ou extra-terrestres; a do horror psicológico, baseado nas descobertas da psiquiatria e da psicanálise, que traz personagens mentalmente monstruosos e enigmáticos, que não têm poderes ou origens sobrenaturais, mas cometem atos violentos inexplicáveis; a do horror escatológico, voltado aos temas da violência física extrema e detalhada, não necessariamente causada por “agentes” sobrenaturais, mas ocorrida de maneira surpreendente e com resultados chocantes (p. 41).

Do horror sobrenatural no século XX emergiram inúmeros monstros, saídos do imaginário europeu, assim como de contribuições africanas, americanas e asiáticas (Cánepa, 2008).

Desenvolvimento do Cinema de Horror

Nos primórdios da sétima arte, os irmãos Louis e Auguste Lumière, utilizando um cinematógrafo (máquina de filmar e projetar), deram o que pode ser considerado o primeiro susto no público do cinema. No dia 28 de dezembro de 1895, no subterrâneo do Grand Café, em Paris, os irmãos Lumière realizaram a primeira exibição pública e paga de cinema, na qual foram exibidos uma série de dez filmes. Dentre esses, estava a película responsável por chocar o público, devido ao estranhamento provocado pela confusão entre as imagens provindas da realidade e as reproduzidas pelo dispositivo - A chegada de um trem à estação Ciotat (L’arrivée d’un train en gare de La Ciotat). Portanto, o cinema começou com sustos, correria e cadeiras derrubadas na plateia. A partir de então, o sujeito da sétima arte tem explorado o reino desconfortável e fascinante do horror (Silva, 2013).

Segundo Nogueira (2010), por ser herdeiro de uma tradição literária que antecedeu o surgimento do cinema, o filme de horror encontrou um lugar privilegiado desde cedo na produção fílmica. Isto pode ser observado em títulos fundamentais do Expressionismo Alemão, como O gabinete do Dr. Caligari (1920), de Robert Wiene, e Nosferatu (1922), de Friedrich Murnau (adaptação da obra Drácula, de Bram Stoker).

Cánepa (2008) afirma que o cinema de horror, mesmo tendo sido um dos mais populares de Hollywood desde os anos 1930, foi, ao mesmo tempo, um dos mais desqualificados e, por isso, passou à pauta das discussões sobre cinema de gênero apenas na década de 1980. Sua impopularidade vinha de uma situação peculiar: “ela costumava ser restrita a aficionados, cujas opiniões e preferências acabavam sendo descartadas ou ignoradas pela maioria dos críticos” (p. 50). Somente na metade dos anos 1970 o gênero de horror passou a fazer parte do estudo fílmico de mais de uma dezena de autores. Jankovich (2002)relaciona esse interesse súbito pelo horror cinematográfico a uma percepção do horror como um gênero que é, ao mesmo tempo, comercial e subversivo, o que permitiria a observação de uma série de contradições na indústria cultural.

Atingir um consenso definitivo sobre os critérios e fronteiras que permitem identificar um gênero cinematográfico é algo complicado, pois sua delimitação está sujeita à constante mutação e hibridismo. No entanto, Nogueira (2010) pontua que podemos afirmar que um gênero cinematográfico é “uma categoria ou tipo de filmes que congrega e descreve obras a partir de marcas de afinidade de diversa ordem, entre as quais as mais determinantes tendem a ser as narrativas ou as temáticas” (p. 3). No que diz respeito ao filme de horror, podemos começar apontando que o fascínio do espectador, ironicamente, provém da incomodidade e do desconforto que provoca, como se o prazer fosse encontrado no próprio sofrimento. A tipologia dos efeitos provocados por esse gênero cinematográfico pode ser bastante diversa, como o medo, o terror, a repulsa, o choque, o horror e a abjeção. Em alguns momentos, esses efeitos podem revelar-se quase insuportáveis e levar o espectador a diversas reações, como desviar o olhar, sentir náuseas, gritar ou abandonar a sala de cinema. Podemos citar como exemplo o que ocorreu na exibição do filme Raw (2016), de Julia Ducournau, no Festival de Toronto, em 2016, em que algumas pessoas passaram mal. Outra característica do gênero de horror cinematográfico são os vários agentes do mal comumente encontrados: “dos lobisomens e vampiros aos zombies e aliens, dos demônios e fantasmas aos monstros e serial killers” (Nogueira, 2010, p. 37).

O Expressionismo Alemão - momento chave no desenvolvimento do filme de horror - teve como central a atenção ao mundo da imaginação e também contribuiu para a concepção do gênero de horror. Entretanto, esse movimento não teria sido, segundo Jankovich (2002), concebido como forma de entretenimento popular, mas como uma tentativa de tornar o cinema respeitável para o público burguês e dar-lhe status de arte. Sua característica principal era uma estética antirrealista, que buscava seus efeitos principalmente a partir da iluminação e da cenografia.

Esse período foi seguido pelas produções de Hollywood da década de 1930. Os principais filmes foram produzidos pela Universal Pictures: Frankenstein (1931), de James Whale, A noiva de Frankenstein (1935) e Drácula (1931), de Tod Browning. Esses filmes teriam tido como inspiração algumas técnicas do Expressionismo Alemão e, apesar de serem constantemente associados a uma aproximação entre o horror e a tradição da literatura gótica, inicialmente eram produzidos e consumidos como versões cinematográficas de hits teatrais contemporâneos. Tendo os monstros como sua preocupação central, essas películas estabeleceram as imagens de Drácula e Frankenstein hoje familiares. Cánepa (2008) afirma que foi nessa década que iniciou o processo que deu origem ao gênero de horror no cinema americano. A popularidade das histórias e imagens de horror crescia a ponto de gerar uma indústria destinada a produzi-las para diversos meios de comunicação: “a face mais característica dessa indústria acabou sendo uma linhagem de filmes de horror que começou a ser produzida pela Universal numa categoria de mercado chamada de ‘Cinema B’” (Cánepa, 2008, p. 56). Os filmes B costumavam obedecer a algumas características formais, como duração bem definida e ritmo ágil. Devido à grande rentabilidade dessas produções, alguns estúdios, como a Universal e a R.K.O, se especializaram nesse cinema de segunda linha.

Nas produções de Val Lewton pela RKO, na década de 1940, observam-se algumas semelhanças às produções dos anos 1930. Porém, elas se destacam por outra razão: apesar de seus elementos góticos, suas narrativas muitas vezes se localizam em um mundo reconhecivelmente moderno, questionando certezas das quais a sociedade acreditava depender: o horror não acontece mais em alguma terra do nunca, exótica, mas surge no cotidiano das pessoas. Um exemplo é o filme Sangue de pantera (1942), de Jacques Tourneur, que apresenta um conflito entre uma América racional moderna e um velho mundo tradicional e supersticioso.

Em consonância com a ideia de que as produções de horror seriam um barômetro muito preciso sobre o que estaria tirando o sono de uma sociedade, nos anos 1950 surgiram diversos monstros associados a uma América científica assombrada pela Guerra Fria. Os filmes dessa década frequentemente envolviam forças alienígenas invasoras, como em O monstro do Ártico (1951), de Christian Nyby (e Howard Hawks como co-diretor não creditado), e Vampiros de almas (1956), de Don Siegel, ou alguma horda de invasores criados pela própria ciência, como O mundo em perigo (1954), de Gordon Douglas, e Tarântula (1955), de Jack Arnold, nos quais animais que seriam normalmente inofensivos tornam-se gigantes, devido à radiação nuclear ou por experimentos científicos, e ameaçam destruir a humanidade. Em função da popularidade desses filmes entre os adolescentes, nos seus primeiros anos, a American International Pictures (AIP) produziu uma série de narrativas de invasão alienígena voltadas ao público adolescente (Jankovich, 2002).

Os Teen Movies

O cinema é particularmente importante para a história do discurso sobre a juventude (Passerini, 1996). Pouco a pouco, a partir da década de 1950, as salas de cinema foram constituindo-se cada vez mais como um espaço para os jovens. Santos (2014) nos propõe uma reflexão sobre este contexto em que a indústria cinematográfica americana direcionou sua atenção para os adolescentes. Segundo o autor, na década de 1940 Hollywood havia se tornado o centro da indústria do entretenimento dos Estados Unidos. Em 1945, a indústria cinematográfica era a sexta mais importante do país.

Porém, no final dessa década, teve início uma crise que colocou em xeque o rentável sistema hollywoodiano. Em 1947, a prática instituída, em que os estúdios controlavam os diversos estágios da produção cinematográfica (produção, distribuição e exibição), foi considerada ilegal pela Suprema Corte, por formar oligopólios. Com isso, os grandes estúdios foram intimados a abrir mão da propriedade de suas cadeias de salas de exibição e de parte da distribuição dos filmes. Quando o prazo concedido pela ação chegou ao fim, em 1954, a medida judicial representou uma significativa queda nos lucros obtidos pelos estúdios. Paralelamente, outras questões colocavam em risco a posição privilegiada do cinema no negócio do entretenimento: “se, por um lado, a indústria da Califórnia acabou por enfrentar os obstáculos políticos erguidos pela histeria anticomunista, a qual representou sérias limitações às possibilidades de produção, teve, por outro lado, de lidar com o surgimento da forte concorrência televisiva” (Santos, 2014, p. 29). Junto com o grande aumento de bairros suburbanos que ficavam longe dos locais em que se situavam as salas de exibição, a televisão também foi responsável pelo esvaziamento dessas.

Esses tempos de crise tornavam necessárias medidas de renovação para tentar reduzir o impacto negativo que incidiu sobre a indústria cinematográfica. O surgimento do gênero teen ocorre como um movimento dos estúdios de Hollywood para absorver as demandas em formação na sociedade, operando transformações de gênero e temáticas em suas produções. A indústria cinematográfica volta suas atenções aos jovens, em uma atmosfera em que uma cultura representativa da juventude estava tendo seus contornos definidos e que, devido à grande atenção social para a delinquência juvenil, tinha um grande potencial midiático. Ou seja, o gênero teen surge em um ambiente de transformações nas definições sociais sedimentadas sobre os jovens e de crise financeira que demandava uma reinvenção dos estúdios para continuarem existindo e competindo no mercado de entretenimento.

Referente a isso, nos chama a atenção que, ao longo de sua história e desde cedo, a adolescência é associada a um comportamento delinquente que gera temor e motiva as produções dos especialistas sobre o tema. Segundo Le Breton (2017), a preocupação a respeito da criminalidade entre os jovens começa a ser compartilhada por médicos, psicólogos e juristas na passagem para a sociedade industrial. No século XIX, “a medicina traz sua caução inventando personagens chamados por uma longa posteridade de mulheres histéricas, frígidas, homossexuais, perversos, masturbadores, etc., e figuras temíveis às pulsões deletérias para o laço social” (Le Breton, 2017, p. 60). Os jovens não ficam de fora desse discurso. A sexualidade adolescente passa a inquietar os especialistas e esse momento de transição começa a ser visto como algo perigoso e repleto de tentações que, na sua visão, demanda vigilância e controle.

No início do século XX, os Apaches (termo usado para designar jovens com espírito contestador e delinquente) ganham lugar de evidência nos jornais europeus: eles passam a simbolizar uma juventude rebelde. Para esses seres temidos delineia-se uma nova espacialidade: “o ensino médio, as universidades, os estabelecimentos penitenciários, as oficinas são lugares intensos para uma juventude que se sente explorada e injustamente constrangida pela sua maneira de ser pelos mais velhos” (Le Breton, 2017, p. 63). Tal como os monstros da ficção que trabalhamos anteriormente, aos jovens também se destinavam lugares específicos.

As transformações culturais ocorridas durante a Primeira Grande Guerra (1914-1918) fazem com que se rompa a possibilidade de obediência automática esperada dos jovens pelos mais velhos (Savage, 2009). Nesse momento, também ocorre a consolidação do discurso da psicologia da adolescência. César (1999) observa que, nos textos de psicologia e educação produzidos nas primeiras décadas do século XX, o comportamento delinquente era uma possibilidade incorporada de maneira constitutiva à definição de adolescência.

Para Passerini (1996), “segundo diversos intérpretes, o processo que conduz à codificação da adolescência como fase em si atingiu a maturação plena logo após a Segunda Guerra Mundial” (p. 352). Em 1945, Elliot E. Cohen publica um artigo que usa o termo teenager como parte da linguagem corrente, mas apenas na década de 1950 o debate sobre o termo se generalizou.

A partir dos anos 1950, a definição do que seria um adolescente ganha mais solidez. Na França, a adolescência adquire uma dimensão sociológica. Nos Estados Unidos, em um contexto de ruptura entre gerações, é a geração baby boomer que inaugura o confronto com as questões que envolvem sua entrada na maturidade social: o saber dos mais velhos passa a ser questionado e a proximidade entre pares irá prevalecer (Le Breton, 2017). Talvez a consolidação da adolescência nos anos 1950 tenha se dado como uma metáfora para esse abismo entre gerações. Dessa forma, começa a se delinear uma cultura adolescente que, já não tendo as gerações anteriores como ponto de referência, passa a ter seu próprio ritmo - embalado ao som do rock n´roll -, seus símbolos, roupas, gírias e filmes.

Segundo Passerini (1996), o sociólogo James Coleman, em um estudo de 1955, trabalhou a ideia de uma “subcultura adolescente” que se distinguiria da cultura dominante por ter uma simbologia própria. Nesse estudo, o autor faz observações preocupadas, afirmando que os jovens falariam outra língua. Termos como “tribo” passaram a ser frequentes para se referir aos jovens. Essas terminologias acentuavam a estranheza da adolescência. O adolescente era, de certa forma, o monstro que incorporava os horrores da época. Esse ser estranho, perigoso, com atitudes rebeldes e inesperadas, que habita espaços próprios e fala uma língua que é parcialmente incompreensível. Um ser que, ao mesmo tempo, gera fascínio e medo, um estranho (Freud, 1919/2014) que, de tão familiar, denuncia o infamiliar que habita o corpo social.

Este período foi marcado por uma série de filmes que refletiam um discurso social sobre a adolescência e que contribuíam para a construção da imagem do adolescente da época: “a cultura jovem [...] é absorvida pela indústria midiática do período em um processo de midiatização das demandas da juventude, sendo formulado um arquétipo juvenil que termina por ser integrado àquela cultura que motivou sua construção” (Santos, 2014, p. 8). Segundo Passerini (1996), nessa década começou a existir uma produção cinematográfica que, além de adotar os jovens e adolescentes como protagonistas e seus problemas como centrais na narrativa, dirige-se, diretamente, ao público teenager: são os teen movies. Até a metade da década, ir ao cinema era um ritual para famílias e os filmes eram destinados a um público mais heterogêneo e multigeneracional, o que justificava um controle maior sobre a moralidade das películas. Com a “adolescentização” do conteúdo dos filmes e do público, o cinema tornou-se um mediador juvenil, enquanto os adultos passaram a consumir espetáculos televisivos e, algumas décadas mais tarde, videocassetes.

Diversos autores (Doherty, 2002; Le Breton, 2017; Santos, 2014; Passerini, 1996) fazem referência a alguns filmes que se destacaram no início da produção cinematográfica teen. Dentre eles, estão Sindicato de ladrões (1954), Vidas amargas (1955) e Boneca de carne (1956), de Elia Kazan, O selvagem (1953), de László Benedek, e Juventude transviada (1955), de Nicholas Ray. Nesses filmes, alguns pontos que delineiam a adolescência daqueles anos capturam nosso olhar, principalmente no que diz respeito ao estilo das roupas, que explicita uma diferenciação em relação aos adultos, à inconformidade com as posições sociais demandadas, aos conflitos geracionais e também às transformações no que diz respeito aos lugares de homens e mulheres na sociedade.

Mesmo tendo a figura de jovens rebeldes como central - e dirigindo mensagens significativas principalmente para os teenagers -,esses filmes ainda se dirigiam a públicos de várias gerações: “produzidos e lançados sob a perspectiva de ‘filmes adultos’; no entanto, atraíram a atenção de adolescentes e jovens, que imprimiram [a posteriori] a essas produções a classificação de filmes juvenis” (Bueno, 2005, p. 25). Porém, já havia filmes sendo produzidos exclusivamente para a exploração do mercado teen. Segundo Bueno (2005), eles eram mais voltados para a distração do que para a problematização da juventude. Essas produções, que envolviam ficção científica, seriados de ação e musicais de rock’n’roll, passaram a ser chamadas de teen movies. Passerini (1996) afirma que esses filmes pareciam abomináveis e incompreensíveis para muitos adultos.

Notamos aqui a diferença entre os filmes direcionados para o público “adulto”, ou seja, que retratavam a imagem que os adultos possuíam dos adolescentes, e os filmes que dialogavam diretamente com os adolescentes. O primeiro grande sucesso deste segundo estilo foi Ao balanço das horas (1956), dirigido por Fred F. Sears e homônimo à canção de Bill Haley, Rock around the clock, explorando o rock’n’roll como atrativo para a audiência teen. O filme foi sustentado apenas pelo mercado adolescente e não causou agitação apenas nos Estados Unidos: “o aparecimento de um filme desse gênero numa sala do centro legitimava a subcultura adolescente, era uma ocasião para a demonstração pública de presença, identidade e solidariedade dos adolescentes” (Passerini, 1996, p. 373). No Brasil, o filme chegou causando grande preocupação às autoridades e, no dia seguinte à sua estreia, já foi proibido para menores de 18 anos (Genestreti, 2016).

Segundo Bueno (2005), nos anos 1950 os realizadores dos filmes B - categoria que também subsumia os teen movies - viram o declínio do cinema clássico como oportunidade para explorar um grande negócio. Enquanto dominaram os grandes estúdios, os Bs tiveram a função econômica de manter a indústria cinematográfica ativa no tempo entre uma e outra superprodução. Porém, as “funções” do cinema B mudaram, significativamente, com a transformação das produções dos estúdios em função da ascensão da televisão - que absorveu gêneros e formatos até então explorados pelas produções B. Sendo condenados pelo mainstream, os Bs passaram a se consolidar como produções autônomas, voltadas a um público pré-determinado. Dessa forma, o filme B associou-se à definição de exploitation.

A expressão exploitation passou a ser empregada de forma negativa em meados dos anos 1950 e, conforme afirma Doherty (2002), pode ser associada a três significados distintos e, por vezes, sobrepostos. O primeiro refere-se à divulgação para aproximar o público do filme; nesse sentido, o filme seria objeto de “exploração” da publicidade. A segunda definição associa-se à maneira pela qual o filme direciona-se à sua audiência: de forma passiva, como objeto de “exploração” e como um produto a ser anunciado e comercializado; e, de forma ativa, como um agente que atende seu público-alvo, “explorando” um determinado público. Em seu terceiro sentido, significa um tipo particular de filme, realizado em torno de um assunto qualquer que pode ser considerado oportunista, bizarro ou sensacionalista.

Os teen movies podiam ser considerados filmes exploitation por corresponderem aos vários sentidos comentados anteriormente: eles eram explorados pela publicidade, voltando-se diretamente para o segmento juvenil do público cinematográfico e abordavam temas relacionados à sexualidade, violência, monstruosidades e assuntos controversos que envolviam a juventude dos anos 1950 e 1960. Esse novo gênero cinematográfico causou grande impacto no mercado norte-americano,transitando entre vários formatos que incluíam de musicais a filmes de horror, sempre articulados em torno de personagens jovens (Doherty, 2002).

Teenage Monsters

Seguindo uma lógica exploitation, os teenpics estabeleceram desde cedo uma proximidade com o universo do horror, produzindo uma das vertentes do filme juvenil. Dessa forma, o universo dos colegiais e adolescentes norte-americanos foi combinado a vampiros, zumbis, múmias, lobisomens e outros monstros. Dentre as primeiras produções, pode-se citar filmes de menor repercussão, como Teenage zombies (Zombies adolescentes, 1957), de Jerry Warren, e Teenage monster (Monstro adolescente, 1958), de Jacques R. Marquette, ou filmes de maior repercussão como I was a teenage werewolf (1957) e I was a teenage Frankenstein (1958), todos filmados pela AIP, sob o comando de Herman Cohen, um experiente produtor de teenpics da época (Bueno, 2005).

Em I was a teenage werewolf, um jovem colegial com pavio curto se envolve numa série de brigas até que acaba sendo suspenso da escola. Isso faz com que ele comece a consultar um psiquiatra que o vê como uma regressão a um estágio anterior do desenvolvimento humano (jargão psicanalítico clássico da época). A partir disso, o psiquiatra resolve usar a hipnose para fazer com que ele regrida totalmente a um estado animal, deliberadamente tornando o problema pior, em vez de tentar solucioná-lo. O sucesso do experimento vai além do que se poderia esperar, fazendo com que o jovem se transforme em um lobisomem. Pelos começam a crescer por todo seu rosto e presas enormes aparecem em sua boca. Ao analisar o filme, King (2012) afirma que o personagem principal transforma-se na personificação de tudo “o que você não deve fazer se quiser ser um bom rapaz” (p. 45).

Este filme parece apontar para o atravessamento do discurso dos especialistas sobre a concepção social da adolescência: o jovem, diagnosticado como doente pelo médico, passa por um tratamento que o transforma em um monstro irracional. A tentativa de controle do incontrolável promovida pelo doutor é escancarada ao espectador. Como adolescente, o jovem é provido de desejos que lhe são próprios e que assinalam os limites do saber do especialista. Uma vez monstro, este mesmo jovem não mais ameaça o médico em seu saber; ele é um ser desprovido de desejo; tal como um animal, age por puro instinto. De um sujeito que interroga e aponta a falha, o adolescente transforma-se em um monstro previsível, passível de ser dominado e matável.

Em I was a teenage Frankenstein, um cientista, assim como o Dr. Frankenstein criado por Shelley (1818/2011), decide construir uma criatura a partir de partes de cadáveres. Diferentemente da história original, os corpos usados como matéria prima são unicamente de adolescentes. Impossibilitado de sair à rua devido a sua aparência monstruosa, o adolescente Frankenstein passa a demandar de seu criador que lhe dê um rosto normal. Reafirmando sua posição de controle sobre sua criação, o doutor posterga a entrega do presente indefinidamente. Revoltado, o jovem resolve fugir de sua prisão. Há um detalhe nesta fuga: sempre que em contato com pessoas externas, estas julgavam-no, diretamente, por sua aparência, antecipando perigo em sua pessoa unicamente por sua imagem monstruosa.

Diversos pontos chamam nossa atenção ao analisarmos essa película. Tal como no filme anterior, percebemos uma tentativa de controle do adolescente por parte do especialista - negar aquilo que permitiria ao jovem sair de sua casa coloca o adolescente em uma eterna submissão aos caprichos do adulto. Outro detalhe importante: a sobreposição do valor outorgado pela sociedade à imagem em detrimento da fala parece retratar com exatidão o espírito da época, no que tange a adolescência - algo a ser temido e potencialmente perigoso.

Ao fazermos, anteriormente, uma revisão acerca do desenvolvimento do horror como ficção, foi possível observar como os monstros e as tramas aterrorizantes foram se transformando, conforme o contexto de sua produção. A partir disso, é interessante que esse encontro entre adolescência e monstruosidade, no cinema, tenha ocorrido em um momento em que os debates sociais haviam colocado a posição do jovem como radicalmente diferente - como um monstro frente ao qual era necessário cautela e distanciamento. Além disso, esses filmes retratam o caráter monstruoso que o corpo pode ter para o adolescente (e para o adulto, frente ao estranho familiar da adolescência), no momento em que é invadido por mudanças incontroláveis. Aludem a esse fenômeno a transformação em um lobisomem, ou a sensação do corpo ser a união de várias partes novas e desconhecidas, como no caso de Frankenstein, no que pode ser compreendido como um retorno à experiência do corpo fragmentado, a partir das transformações da puberdade.

Os adolescentes monstruosos ou monstros adolescentes que entraram em cena nessas películas inaugurais continuam presentes nas telas dos cinemas. Nos anos 1970, por exemplo, podemos citar os filmes O exorcista, de William Friedkin (1973) e Carrie, a estranha, de Brian de Palma, 1976). Se os filmes de horror são um barômetro muito preciso do que aterroriza uma sociedade, esses clássicos do cinema de horror surgem em um contexto social embalado por diversas transformações culturais referentes a conflitos entre gerações, liberação sexual e movimentos de libertação feminina.

Em Carrie, a estranha, acompanhamos a jornada da protagonista atravessada por sua entrada na puberdade e o despertar de sua sexualidade, que ocorre acompanhado do surgimento de poderes telecinéticos. Em casa, Carrie sofre uma grande repressão de sua mãe religiosa, enquanto na escola tem que conviver com o bullying dos seus colegas. Stephen King (2012), autor do livro homônimo que deu origem ao filme, ao analisar sua própria obra, afirma que Carrie tem origem no horror dos homens ao movimento de libertação feminina. Afinal, até onde poderia ir o poder das mulheres sem o controle ao qual são submetidas?

No filme O exorcista, também vem à cena o incontrolável do despertar da sexualidade feminina. Nele, assistimos às tentativas de dois padres de expulsar um demônio que se apoderou do corpo da jovem Regan MacNeil. Podemos pensar que esse filme traz à luz os efeitos de explosivas mudanças sociais: “um enfoque exaustivamente refinado por toda aquela explosão de juventude que aconteceu no final da década de 1960 e início de 1970” (King, 2012, p. 153). Em alguns países, como os Estados Unidos, O exorcista tornou-se um fenômeno social com filas que davam voltas em quarteirões onde era exibido: “o país, na realidade, ficou possuído por dois meses” (King, 2012, p. 153). Segundo Stephen King (2012), foi um filme para todos os pais que sentiram que estavam perdendo seus filhos e não conseguiam entender o que estava acontecendo. O autor relaciona o filme com uma história de médico e monstro, na qual a amável Regan se transforma num monstro de boca suja, presa a sua cama e grunhindo palavrões: “todo adulto dos Estados Unidos compreendeu o que o poderoso subtexto do filme estava dizendo; compreendeu que o demônio em Regan MacNeil teria respondido entusiasticamente ao banho de lama em Woodstock” (King, 2012, p. 153).

E quais seriam os monstros de hoje? Talvez possamos afirmar que uma das sagas de filmes com maior repercussão, a partir dos anos 2000, foi Crepúsculo, baseada nos livros de Stephenie Meyer. A narrativa conta a história de amor entre Bella, uma jovem adolescente, e o vampiro Edward. Diferentemente dos clássicos do horror, Edward e sua família são vampiros abstinentes que não bebem sangue humano e censuram qualquer tipo de descontrole que possa colocar os humanos em perigo. Estaria Crepúsculo colocando em cena algo da ideologia vigente em nosso tempo - trabalhada por Zizek (2003) -, onde “encontramos no mercado uma série de produtos desprovidos de suas propriedades malignas: café sem cafeína, creme de leite sem gordura, cerveja sem álcool...” (p. 27)?

No avesso da saga Crepúsculo, encontra-se o filme Raw, que ficou conhecido por fazer as pessoas passarem mal no festival de Toronto de 2016 devido ao efeito abjeto de suas cenas de canibalismo. Em Raw, acompanhamos a incursão da jovem Justine na faculdade de veterinária. Lá, a protagonista é recebida por sua irmã mais velha, Alexia, e passa por uma sequência de trotes viscerais tais como banho de sangue e ter que comer carne crua. Aos poucos, Justine começa a despertar para as estranhezas em seu corpo, ao mesmo tempo em que percebe crescer um desejo voraz de consumir carne humana. A protagonista, que parece pertencer a uma família tão abstinente quanto os vampiros de Crepúsculo - logo no começo do filme, descobrimos que são vegetarianos -, passa a percorrer um caminho cada vez mais descontrolado, voraz e insaciável. Raw relança a equivalência entre adolescência e monstruosidade, que abordamos neste artigo. O que isso diz dos temores das sociedades contemporâneas?

Considerações Finais

Este artigo se propôs a um questionamento acerca dos possíveis enlaces entre adolescência, cinema e horror, no momento em que a adolescência se consolida como uma categoria social, ganhando cada vez maior popularidade e sendo ponto de partida para diversos debates. Para isso, realizamos uma revisão sobre a relação entre o horror, monstruosidade e cultura e sobre o desenvolvimento dos gêneros cinematográficos horror e teen movies, além de algumas breves análises fílmicas de obras do subgênero teenage monsters.

Instigou-nos a necessidade da criação de figuras monstruosas ao longo dos séculos. Aquilo que é considerado monstruoso vai se transformando conforme o que horroriza cada sociedade, podendo ter origem sobrenatural ou não. Um exemplo disso é como algumas formas de horror vão se desenvolvendo junto com as descobertas da ciência: o horror sobrenatural e as descobertas da arqueologia, genética e paleontologia; o horror ligado à ficção cientifica, relacionado ao poder das máquinas e dos seres biologicamente modificados; o horror psicológico e as descobertas da psiquiatria e psicanálise. De novos saberes também nascem novos monstros - como bem ilustra a obra de Frankenstein -, ou, em outras palavras, a própria luz resulta em sombras.

Nesse sentido, é interessante observar que as elaborações dos especialistas sobre a adolescência - que vão contribuindo para a construção do conceito - enfatizam a ideia do sujeito adolescente como alguém perigoso e delinquente, que deve ser vigiado e controlado. Essas formulações aproximam a figura do adolescente e a do monstro: assim como os monstros clássicos de horror, os jovens têm sua familiar estranheza; por segurança, é melhor tentar cercá-los com o máximo de saber possível.

Tanto monstros quanto adolescentes trazem à luz algumas questões fundamentais para o ser humano, encarnam aquilo para o que não temos resposta, apontam os limites do saber. Nessa perspectiva, monstros e adolescentes são a representação de algo muito íntimo e estranho, simultaneamente. No momento em que essas questões que nos concernem (e, por isso, nos perseguem) ganham corpo em figuras monstruosas, podemos de alguma forma fugir delas - pelo menos na ficção.

Assim como os monstros clássicos ocupavam lugares marginais nas histórias de horror, os adolescentes vão ganhando uma espacialidade própria na sociedade: esses seres estranhos, com uma língua, estilo, música e filmes próprios, compõem outra “tribo”, preocupando diversos especialistas, como juristas, médicos, pedagogos e psicólogos. Se, por um lado, com o surgimento dos teen movies, as telas do cinema passam a ser habitadas por monstros adolescentes, por outro, os discursos com pretensão de cientificidade nos falam sobre uma adolescência monstruosa.

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Recebido: 10 de Novembro de 2020; Revisado: 08 de Fevereiro de 2022; Aceito: 26 de Julho de 2022

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