SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.7 número1A clínica em gestalt-terapia: a gestalt dos atendimentos nos transtornos depressivosO núcleo especializado de atenção ao homem - relato de experiência índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.7 no.1 Belém  2015

 

Artigo

 

Antropologia do cotidiano e da experiência envelhecente ou para se pensar "homosexualidade masculina" e envelhecimento gay" a partir de soure (Marajó/Pará)

 

Everyday anthropology and oldering experience or to think " male homosexuality" and "gay aging" from soure (Marajó/Pará)

 

Antropología de la vida cotidiana y experiencia envelhecente o pensar en "la homosexualidad masculina" y "envejecimiento gay" el soure de (Marajó/Pará)

 

 

Wladirson Cardoso

Universidade do Estado do Pará (UEPA)

 

 


RESUMO

Este artigo é uma síntese de minha tese de doutoramento, na qual realizei uma possível etnografia das práticas e do(s) modo(s) de vida gay, objetivando discutir, em particular, os limites e as marcas diacríticas e transversais existentes na comparação entre a questão do envelhecimento e a problemática da homossexualidade masculina, em vista do ethos sócio-antropológico de homens maduros em processo de envelhecimento que fazem ou praticam sexo com outros homens no contexto das relações homoafetivas e sexuais da Cidade de Soure (Marajó/Pará). O entrecruzamento de temas, a partir da coorte geracional de homens gays e (também!) envelhecentes, levou em consideração, tanto a paisagem homoerótica, quanto os espaços de sociabilidade gay em um âmbito social-cultural não metropolitano de uma cidade localizada na Amazônia Marajoara.

Palavras-chave: Homossexualidade masculina, envelhecimento gay e Amazônia Marajoara.


ABSTRACT

This article is a very brief summary of my doctoral thesis, which realized a possible ethnography of practices and (s) mode (s) of gay life, aiming to discuss, in particular, the limits and diacritical marks and cross existing in comparison between the issue of aging and the problems of male homosexuality, in view of the socio-anthropological ethos of mature men as they age they do or have sex with men in the context of homoafetivas and sex of the City of Soure (Marajó / Pará) . The interweaving of themes, from the generational cohort of gay men and (too!) aging process, took into account both the homoerotic landscape, as the spaces of gay sociability in a social-cultural context and non-metropolitan islet of a city Amazon Marajoara.

Keywords: Male Homosexuality, gay aging and Amazon Marajoara.


RESUMEN

Este artículo es un resumen de mi tesis doctoral, en el que dio cuenta de un posible etnografía de las prácticas y el modo (s) (s) de la vida gay, con el objetivo de discutir, en particular, los límites y diacrítica y cruce las marcas existentes en el comparación entre el tema del envejecimiento y los problemas de la homosexualidad masculina, a la vista de la ética socio-antropológico de los hombres maduros a medida que envejecen que hacen o tienen relaciones sexuales con hombres en el contexto de homoafetivas y el sexo de la Ciudad de Soure (Marajó / Pará ). El entrelazamiento de temas, desde la cohorte generacional de los hombres homosexuales y envelhecentes (demasiado), tuvo en cuenta tanto el paisaje homoerótica, como los espacios de sociabilidad gay en un contexto socio-cultural no metropolitano de una ciudad en la Amazonía Marajoara .

Palabras-clave: La homosexualidad masculina, el envejecimiento gay y Amazon marajoara.


 

 

INTRODUÇÃO

O presente artigo é uma síntese d Tese de Doutorado, intitulada Para além da juventude – "antropologia da experiência" e do "modo de vida gay" de homossexuais masculinos em processo de envelhecência na cidade de Soure (Marajó/Pará), no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará.

Considerar a fundamentação da Four Field Anthropology permitiu ampliar as percepções quanto aos diversos campos teóricos e investigativos que podem orientar a pesquisa em Ciências Humanas e, assim, deparei-me com as discussões mais gerais acerca do estatuto epistemológico da própria ciência antropológica, da noção de cultura, de alteridade, de corpo e, também, de sexualidade.

Durante o doutorado, as leituras e debates realizados no espaço acadêmico indicavam que, na "história da homossexualidade", os intercursos eróticos entre pessoas do mesmo sexo deixaram de ser uma questão moral e passaram a ser considerados como uma categoria nosográfica da ciência médico-psiquiátrica, transfigurando-se em anomalia e doença tipificada em manuais biomédicos e patologizantes – justamente na constituição da modernidade, período em que se instituiu todo um conjunto de práticas, saberes e discursos (disciplinares) sobre o corpo, tanto nas relações do sujeito com o desejo, quanto nas suas relações com o prazer (Foucault, 2011).

Nesta linha de pensamento, desenvolvida a partir das observações e ponderações foucaultianas acerca do que é a anormalidade, exatamente a partir da criação do anormal por meio de uma Scientia Sexualis1 que prescreve o que é correto, em vista de um repertório discursivo, em que emergiu a Modernidade Ocidental, a ciência e o conhecimento sobre o corpo e a sexualidade adquiriam um suposto estatuto de neutralidade e objetividade, típicas da racionalidade positivista. Assim, percebi que seria interessante ouvir o que as pessoas que praticam o same sex love, isto é, "amor com pessoas do mesmo sexo" tinham a dizer de si mesmas, em vista de sua trajetória existencial/homossexual, ou seja, em decorrência de suas experiências de auto percepção e auto representação no interior do universo e do modo de vida gay, a partir de suas vivências.

Portanto, ao considerar que a homossexualidade vem sendo trabalhada, enquanto categoria antropológica de pensamento, numa interface com as questões de raça/cor, gênero, classe social e geração, delimitei, a princípio, este trabalho à experiência e ao "modo de vida gay"2. Destarte, ao em vez de se excogitar problemas e questões há muito consideradas nos quadros gerais dos estudos relativos à homossexualidade masculina como, por exemplo, "homossexualidade e juventude" ou "o circuito gay de grandes capitais", delimitei outras/novas paisagens cartográficas: o horizonte do "envelhecimento de homens gays".

Foi assim, então, que as reflexões e debates de Júlio Assis Simões (2005; 2011), Murilo Peixoto da Mota (2009) e Antônio Crístian Saraiva Paiva (2007; 2009; 2011) auxiliaram-me na constituição teórico-prática desta pesquisa, contribuindo para a necessidade de se discutir o envelhecimento de homossexuais masculinos, em vista do trânsito ou passagem da juventude para a velhice de homens que amam outros homens. Estes três autores mostram: 1) a cogência teórica de pensar esta problemática, que, segundo eles, ainda é pouco discutida no campo das humanidades e, também, 2) a importância política de se debater o envelhecimento gay, na medida mesma em que o próprio movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros (LGBT) não dá muita visibilidade a esta questão.

Simões (2005; 2011), Mota (2009) e Paiva (2007; 2009; 2011), no entanto, pensam a questão do envelhecimento gay em vista da realidade de metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza respectivamente. Neste aspecto, porém, opero um deslocamento, um descentramento, desvio, portanto, o olhar do centro para lugares marginais, tal qual sugere Paiva (2009), no início de seu texto "Corpos/Seres que não importam? Sobre homossexuais velhos":

[t]omando como provocação a topologia centro-margens para pensar os processos de inteligibilidade do campo sexual, ocorreu-me pensar a insersão da experiência do envelhecimento homossexual como ocupando as periferias desse campo. Ao pensar este trabalho – jogado no movimento das margens aos centros e dos centros às margens, sendo margens e centros pensados em movimento, como forças que diagramatizam o(s) contemporâneo(s) dispositivo(s) da(s) sexualidade(s) –, dei-me conta do deslocamento no meu próprio percurso de investigação (p. 191).

Esse deslocamento se deu, precisamente, em direção à cidade de Soure, na Ilha do Marajó e substancializou o trabalho de campo e a pesquisa antropológica, em vista de uma paisagem sócio-cultural (Ingold, 2003) atravessada de particularidades no que respeita, justamente, as linhas que cruzam o debate em torno do "modo de vida gay" e do "envelhecimento de homossexuais masculinos"; pois – a despeito do modelo e do padrão heterogeracional e, finalmente, do debate em torno da "terceira idade" – os homens gays se percebem muito mais como envelhecentes do que como velhos propriamente. Em outros termos, veem-se muito mais num processo constante de envelhecimento e amadurecimento, do que propriamente numa última fase ou estágio da vida (SIMÕES, 2011).

As seções do texto incluem uma revisão metodológica que possibilite compreender a construção do objeto de investigação nos horizontes de uma Antropológica Contemporânea, discutir o estatuto de uma etnografia da envelhecência ao nível das relações cotidianas dos atores/agentes sociais observados no interior de seu contexto sócio-existencial.

Uma breve apresentação de SOURE: há aproximadamente 87 km de Belém, a cidade de Soure – localizada na Costa Oriental da Baía do Marajó – é conhecida pelas enormes fazendas de campos alagados, onde pastam tranquilamente grandes búfalos pretos, que servem para o transporte de carga, para o corte e a produção do leite, que é utilizado na fabricação caseira/tradicional do famoso Queijo do Marajó! – apreciado pelos habitantes nativos e servido como iguaria para visitantes e turistas da capital e/ou do Brasil e do exterior. Num trajeto que dura entre três horas/três horas meia e que vai da Companhia Docas Do Pará (CDP), no cruzamento da Avenida Doca de Souza Franco com o Boulevard Castilhos França – na "Cidade das Mangueiras" – até o Porto de Camará – já na Grande Ilha – prossegue-se, em via terrestre, até a cidade de Salvaterra, de onde se atravessa de "barquinho pô-pô-pô"3 pelo rio Paracauarí até a Ponte do Trapiche da "Pérola Marajoara".

De ruas largas e numeradas, com frondosas mangueiras ao centro e com um Mercado Municipal de frutas, verduras, peixes e artefatos – vendidos como "autêntico" registro da cultura material dos nativos do lugar – Soure é uma Cidade de médio porte, isto é, com uma atividade econômico-comercial que atende às necessidades dos habitantes municipais e dos moradores das comunidades próximas, como a comunidade do Caju-Una. Possuidora de uma história caracterizada por ciclos, tal qual o da colonização e o das fazendas de criação de equinos e de bubalinos (que, por sua vez, garantiu a territorialização desta parte da Ilha), Soure abriga uma Prelazia da Igreja Católica e durante algum tempo gozou de prestígio e importância política na região, sendo alcunhada de "Capital do Marajó", situação que começou a se inverter na segunda metade do século XX, perdendo o distrito de Salvaterra, que, hoje em dia, é o maior município em termos econômicos e populacionais do arquipélago.

Assim, enquanto Salvaterra vive a fleuma de sua "voação turística", de um lugar que se entrega àquela corrente alvoroçada de banhistas sedentos de "praia"; a tranquila Soure descansa esplendidamente de uma "belle époque" que só se agita em folias no período das férias escolares de janeiro/fevereiro, do carnaval e do chamado "verão amazônico" do mês de julho. Entretanto, é justamente na vida quase açoreana dessa realidade dos pastos aquosos e fluidos da Amazônia, que se encontram um grupo de amigos que se reúnem frequentemente na casa do mais velho deles para celebrar sua amizade, dividir uma boa companhia e brindar aprazíveis histórias de flertes e conquistas.

É, portanto, nessa "geografia" – que se desenha nos contornos de um relevo homoerótico e diferenciado; mas também incômodo e perturbador – em que vivem Agatão, Fedro, Erixímado e Pausânias, cito, quatro amigos que se ajudam e "suportam", ao mesmo tempo em que brigam e discordam – mas, sobretudo, envelhecem juntos... Esse grupo de amizade e apoio constitui-se, destarte, no ponto nodal de uma paisagem sóciossexual complexa que aproxima categorias e/ou conceitos que se vinculam numa descrição etnocartográfica de relações bastante singulares, definindo, assim, uma fronteira entre "h omossexualidade masculina" e "envelhecimento gay", em que o jogoafetivo se dá no horizonte de um registro marginal e dissidente, num sentido múltiplo, digo, "homem gay" e "homossexual envelhecente".

As estratégias de sobrevivência e de resistência ao preconceito homofóbico – seja na sua truculência discursiva, quando, por exemplo, são acusados de pedófilos pelo Bispo representante da Prelazia; seja, ainda, através da sutileza do gesto cordial e, obviamente, hipócrita da polícia, que já "reconduziu" um deles até à própria residência, para, com isso – supostamente – "evitar o perigo" – impõem-lhes um modo de vida íntimo, singular, onde performatizam não somente a amizade de uma maneira autêntica; mas também o gênero, os limites e possibilidades do corpo no envelhecimento, o desejo, o prazer, o sexo e o gozo.

Ora, sabe-se que a performatividade sóciossexual implica em certo número de práticas e técnicas corporais que descrevem um conjunto variado de cuidados de si para um uso ético/estético da sexualidade. Destarte, se considerarmos a especificidade do modo de vida gay e das experiências homoeróticas desse grupo de velhos homossexuais, nativos e/ou habitantes de Soure, tornar-se-á possível descortinar, sociológica e antropologicamente, alguns aspectos da política de sua existência e, certamente, do reposicionamento da questão da envelhecência quanto ao alargamento dos horizontes teóricos, no que respeita à questão da "terceira idade LGBT".

Quanto à entrada no campo de pesquisa, esta ocorreu mediante contatos previamente estabelecidos mediante um conhecido próximo que chamarei de "Pausânias", que é natural de Soure e que me apresentou aos demais sujeitos/agentes da pesquisa que chamarei de "Agatão", "Erexímaco" e "Fedro"4. Eles são amigos de muitos anos, possuem uma convivência frequente e tem uma média de idade que varia dos 45 (quarenta e cinco) a 82 (oitenta e dois) anos. Todos possuem uma importância política e social em Soure – quer pela via da educação; quer pela via da religião. Ademais, performatizam sóciossexaulmente o desejo e o prazer homoeróticos através de táticas e estratégias que contrariam os preconceitos acerca da "bicha velha" e que subvertem os limites e fronteiras preestabelecidos, relativamente aos gêneros e os papeis do masculino e do feminino.

De agosto de 2012 a abril de 2014, realizei 7 (sete) viagens de campo, num intervalo de datas compreendidas entre os dias 02/08/2012 a 06/08/2012; 20/10/2012 a 10/11/2012; 10/01/2013 a 19/01/2013; 15/03/2013 a 17/03/2013; 15/07/2013 a 03/08/2013; 07/08/2013 a 12/08/2013 e, finalmente, 17/04/2014 a 28/04/2014. Em termos estritamente antropológicos, lancei mão dos aportes e referências da Antropologia Interpretativa de Clifford Geertz (1989) e realizei observação participante, com encontros possibilitadores de conversas e entrevistas de caráter muito mais dialógico e aberto do que propriamente com um aspecto instrumental e técnico. Desta feita, pude entrecruzar as temáticas do envelhecimento e da homossexualidade masculina, considerando a realidade sócio-histórica e antropológica de um grupo de quatro amigos homossexuais em processo de envelhecência, nativos de uma cidade praiana, de vocação turística, situada na maior ilha fluvial do mundo e que se encontra localizada entre os muitos campos e águas do vale amazônico.

No que diz respeito à interface entre envelhecimento e sexualidade, parto das observações de Simões (2005), para quem a convergência desses temas remete "(...) à confluência e ao confronto entre o corpo e a cultura." (p. 2) Ainda segundo o autor, considerar estes temas leva, inequivocamente, a uma tensão que opõe a "facticidade material do corpo" e a sua "construção social"19. É, justamente, neste sentido que o autor afirma que:

[s]e a preferência pela juventude e a antipatia pela velhice são recorrentes na história das concepções ocidentais sobre envelhecimento, ou, pelo menos, constituem sentimentos disseminados na chamada cultura de consumo contemporânea, eles parecem atingir o seu ápice quando se considera a chamada "cultura gay masculina" dos centros urbanos e das metrópoles. Nesse senário, aparentemente marcado pelo hedonismo complacente e pela obsessão com atributos físicos capazes de suscitar atração e desejo, em que tudo parece girar em tonro de um mercado sexual hierarquizado por critérios de juventude e beleza, não haveria lugar para pessoas de mais idade, que carregariam os estereótipos derivados da depreciação de sua atividade como parceiros sexuais desejáveis e da decorrente marginalização pelos mais jovens. Aos mais velhos, só restaria pagar para desfrutar de companhia fugaz e arriscada (Simões, 2005, p.3).

Ainda de acordo com Simões (2005), existiriam três "paradigmas" que, comparativa e contrastivamente, visam explicar a passagem do tempo, segundo representações pautadas: a ideia de "ciclo da vida", traduzida em "fases" (nascimento, crescimento, maturação, reprodução, declínio e morte) que se reproduziriam ao longo das gerações; o juízo de "progressão da vida", segundo a qual a existência caracteriza-se por ser um processo linear de desenvolvimento psicológico, considerando-se mesmo a compensação da perdas biológicas do envelhecimento mediante os ganhos culturais específicos desta etapa; na "ideia romântica da queda", que, por sua vez, encontra-se traduzida na "(...) concepção que valoriza a infância e a juventude como pontos altos da vida, ficando as demais etapas marcadas pela busca frustrada de recuperação desses valores" (SIMÕES, 2005, p.7).

Em linhas bastante gerais, pode-se dizer que a discussão acerca do envelhecimento humano não pode se limitar, exclusivamente, ao domínio da Psicologia ou da Geriatria e, tampouco, da Gerontologia (Correa, 2009). Entretanto, a figura jurídica do "idoso", presente na legislação brasileira (Lei Nº 10.741/03), quanto à definição do fenômeno humano da velhice, também não contempla a diversidade real, no que implica às representações sociais acerca deste período da vida (Mota, 2009). Os grupos etários e geracionais são culturalmente definidos e, como tal, variam de acordo com os contextos e, também, de acordo a relação que cada grupo humano mantém com a passagem do tempo e os imponderáveis da existência (Simões, 2005).

 

A complexidade da envelhecência dos interlocutores de soure

A complexidade das relações vivenciadas entre Agatão, Fedro, Erixímaco e Pausânias, isto é, seus consensos e seus dissensos, ou melhor, suas alianças e suas discordâncias são experenciadas numa "rítmica paisageira" (Sansot, 1983) que descreve o cotidiano daquela "Cidadezinha Qualquer", descrita e celebrada, antologicamente, em poema através da ilustre pena de Carlos Drummond de Andrade (2002), onde "(...) Um homem vai devagar. / Um cachorro vai devagar./ Um burro [e um búfalo!] vai devagar./ [E] [d]evagar... as janelas olham." (p. 63) Muitas vezes era engraçado e ao mesmo tempo angustiante ir a casa de Agatão, por exemplo, e esperar que um de seus amigos aparecesse e me concedesse meia hora que fosse de uma simples observação participante.

Outras vezes era frustrante marcar com Fedro ou Erixímaco na casa de Agatão e me deparar apenas com a "imagem do sábio da Ilha de U-topos", sentado confortavelmente em sua cadeira, escutando música e "cruzando palavras". No entanto, em cada viagem a Soure, minha proximidade com Agatão aumentava e meu (im)provável "afastamento antropológico" no tocante aos sujeitos/agentes da pesquisa trocava-se, também, em convivência e amizade.

O que Agatão, Fedro, Erexímaco e Pausânias me ensinavam talvez constitua uma matéria significativa de uma ars erotica que não cabe em nenhuma descrição da scientia sexualis.

O teor das conversas, os problemas existenciais discutidos e a maneira "gongativa", "tombativa" e "frescativa" com que Fedro, Erexímaco e Pausânias se tratavam nos encontros na casa de Agatão, permitiu-me, finalmente, a inserção no universo de minha pesquisa. Durante nossos encontros, Agatão sempre me informava de algum aspecto, digamos, "pitoresco" da vida de seus amigos, da mesma forma que estes sempre me relatavam as impressões que tinham de Agatão, o que me auxiliou na elaboração de um quadro com os aspectos gerais que descrevem alguns marcadores que identificam cada um deles, quanto ao lugar que ocupam em Soure, as preferência políticas, religiosas e sexuais e, obviamente, as relações que eles tem entre si (Quadro 1)

 

 

Todos são nativos de Soure. Agatão é o mais velho, mas Erixímaco é o que mais se lhe aproxima em termos geracionais. De todos, Fedro – mais jovem – é o único que não é professor. Agatão tem residência fixa e quase não sai de Soure – a não ser quando vai às consultas médicas em Belém, hospedando-se no apartamento de uma sobrinha no centro da cidade. Fedro também reside em Soure e sua mãe é vizinha de Agatão. Erexímaco divide-se entre Soure e a Comunidade do Caju-Una onde é líder político e religioso. Assim como Pausânias que reside em Belém, mas está frequentemente em Soure. Agatão e Erixímaco já são aposentados; diferentemente de Fedro e Pausânias que ainda estão em atividade.

Agatão é o único que tem um parceiro fixo, o "Preto"; mas tanto ele, quanto os demais tem casos eventuais com jovens e/ou homens adultos ativos. Um ponto de atrito/conflito, principalmente entre Agatão e Fedro é a religiosidade. Agatão diz ser católico, mas não acreditar na Igreja; ao passo que Fedro é iniciado no Candomblé e tem um terreiro, o Recanto de Ogum. No entanto, todos possuem um laço muito forte de identificação e um respeito muito grande por Agatão que parece ter uma ascendência/influência muito grande sobre eles, tanto por ser o mais velho, quanto por ter uma "carreira homossexual" e uma trajetória político-cultural muito anterior a de Fedro, Erixímaco e Pausânias.

Paiva (2009) questiona-se:

[q]uando é, por exemplo, que um gay começa a envelhecer? Quando se depara em ‘envelhescência'? Aos trinta? Aos quarenta? Aos cinquenta? A matriz heterossexual nesse sentido ajuda a delimitar um campo mais ou menos desenhado para essa marcação: envelhece-se quando os filhos saem de casa, ou quando casam, ou quando vêm os netos... Mas quando não há esses marcadores geracionais expressos na norma conjugal e familiar, quando é que se começa a envelhecer? E o que a experiência de envelhecer faz mudar a percepção de si, do outro e do mundo?" (p. 201)

No caso dos interlocutores, digo, sujeitos/agentes desta pesquisa, envelhecer é uma realidade da qual não se pode escapar. Todavia, sempre que lembravam ou pensavam na envelhecência, remetiam-se a Agatão. Donde, a partir das falas e relatos coletados em campo, pude estruturar o próximo quadro (abaixo), por meio do qual é possível notar que, para Fedro, Exrixímaco e Pausânias, o envelhecimento de Agatão significava uma espécie de espelhamento – através do qual também se percebiam – e, também, de projeções (Garcia-Roza, 2005) – mediante as quais se posicionam comparativa e contrastivamente (Quadro 2):

 

 

De acordo com Fedro e Erixímaco, Agatão diz não gostar de "sair de casa". No entanto, apresentam argumentos e motivos diferentes: para Fedro, Agatão não sai de casa porque "(...) ela já é barroca" , ou seja, é velho – e o termo barroca, aqui, significa precisamente isto: velho! Para Erixímaco, todavia, Agatão "(...) já trabalhou muito!" e, por isso, "(...) tá cansado". Pausânias é um pouco mais específico quanto à envelhecência do amigo, pois, ele acredita que Agatão não consegue aceitar "(...) muito bem a velhice", visto que percebe haver nisto a "(...) perda de interesse dos meninos (...) pelo corpo dele." Todos concordam que Agatão tem uma vida sexual ativa, donde a expressão jocosa que, certa vez, ouvi de Pausânias, relativamente à Agatão: "(...) ela é a bicha mais ativamente passiva que eu conheço!"

Corroborando a opinião de Fedro e Erixímaco, o próprio Agatão admite que:

[j]á trabalhei no Jubin, em Salvaterra e depois aqui em Soure. Depois que saí de Soure, morei muitos anos em Salvaterra. Mas quando eu voltei pra cá, passei cinco anos sem voltar lá. Fui professor, diretor de escola e secretário de educação. Em Salvaterra tem duas escolas com o meu nome. Trabalhei por 43 anos seguidos. Eu já tô cansado! Hoje eu quero paz e tranquilidade. É disso que eu gosto! O único trabalho que tenho hoje é me embalar na minha rede e fazer palavras cruzadas.

A distância que se estabelece entre os marcadores sociais da juventude e da velhice operam um espécie de reforço das noções de "dinamismo/atividade" e "limitação/dependência" que supõem uma diferença entre os papéis culturais de jovens e velhos, relativamente às suas necessidades cognitivas, laborais e sexuais (Neves, 2012). Em um contexto sócio-político como o do mundo capitalista, onde a importância dos laços humanos e o cultivo dos afetos se transfiguram em mercadoria e/ou se liquefazem na exigência de novidades, a pessoa definidamente velha representa um limite, uma barreira, um estorvo que é preciso reposicionar, a fim de que a própria noção de envelhecimento seja afastada e os imperativos da juventude celebrados (Stepansky, 2012).

Por outro lado, se aquela imagem da velhice encarnada na aposentadoria ou no isolamento e/ou no cuidado com os/as netos/as e, principalmente, no tratamento de doenças está sendo, cada vez mais, substituída pela imagem de velhinhos e velhinhas sorridentes, brincalhões e dançantes nos salões e festas dos Clubes ou Universidades da "terceira idade"; observa-se que a abordagem do tema não superou a ideia de que o lugar preferencial da velhice é mesmo o passado e a memória – entendidos como coisas distantes, que residem alhures, num tempo/espaço que parecem ter sentido apenas lá, onde a lembrança trava uma luta contra o esquecimento de si, dos outros e da própria vida (Mucida, 2009).

Enquanto categoria de análise, quer na Psicologia Social, quer na Antropologia Cultural, a memória é um aporte e uma referência necessária ao estudo e à reflexão das trajetórias biográficas, porquanto atualiza a auto-representação histórica e social que os sujeitos tem de si mesmos (Bosi, 2005). Assim, ela não pode ser tomada simplesmente como um resgate de histórias perdidas nas lembranças, e sim como uma faculdade de reelaboração de um tempo vivo e presente, atual; pois, o que se narra e o que se cala descrevem os efeitos subjetivos de experiências socialmente compartilhadas. É, neste aspecto, que a noção de "trajetória de vida" ou "trajetória existencial" deve ser considerada, visto que desessencializa e desnaturaliza a noção de "fases da vida", com suas "demandas características" e seus "comportamentos típicos".

Como se pode ver, o tratamento da questão do envelhecimento e da velhice possuem um teor amplo, geral e abstrato que, por sua vez, não vão além da comparação com as noções e representações de juventude e, comumente, não rompem com os imperativos da heterossexualidade, destacando-se mesmo a relevância do sexo neste período da vida, sem, contudo, romper os esquemas binaristas que opõem os gêneros e as performatividades sóciossexuais estabelecidas: homem/mulher, masculino/feminino.

 

Considerações finais

No imaginário coletivo – trata-se aqui do imaginário, isto é, de representação e não da realidade vivenciada necessariamente –, a passagem dos 20 (vinte) para os 30 (trinta) anos significaria, nas experiências de vida de um homossexual masculino e centro-urbano, uma preocupação quanto ao futuro. Isso se agravaria ainda mais no transcurso do tempo, à medida que se vai envelhecendo (Mott, 2003; Simões, 2005). A restrição dos espaços de (homos)sociabilidade, em decorrência dos "interditos da idade", e os dramas pessoais/existenciais (como solidão, dificuldades para conseguir parceiros sexuais, limitações físicas, doenças e morte), imporia um triste e melancólico fim à "bicha velha". Entretanto, tais especulações se sustentam, inequivocamente, no mesmo campo dos "pré-juízos" e preconceitos que cercam as pessoas que ama e praticam o same sex love ou o amor que não ousa dizer seu nome.

Se este amor não "se revela", é porque a ele se impõem as sanções compulsória de uma moral heternormativa; mas, este amor não se sufoca ou extingue, porque, de fato, ele descreve a condição subjetiva de todos/as aqueles/as que resistem às portas do armário que procura esconder a plasticidade e a diversidade estética do desejo humano. Ora, "ser um gay envelhecente" não pode ser uma tragédia. Pelo contrário, é um tom a mais no colorido LGBT. No entanto, se a questão apresenta contornos próprios, ela se torna muito mais específica quando se observa as experiências e trajetórias de vida de homossexuais masculinos em uma cidade de porte médio para a realidade de uma Amazônia Marajoara.

É justamente isso, portanto, que Agatão, Erexímaco, Fedro e Pausânias, meus interlocutores diretos nesta pesquisa, ensinam, qual seja – independentemente da idade –, o desejo e o exercício da sexualidade estão sempre renovados, ressiginificados. Como muitos homossexuais envelhecentes nos centros-urbanos, eles constituem um grupo de amigos e uma rede de apoio e solidariedade, em que conflitos e tensões presentificam-se, visto que se tratam de sujeitos distintos que, ora demostram afinidades e sentimentos/pensamentos convergentes, ora discordam e tencionam com respeito ao exercício e cuidado de si.

Todavia, enquanto um grupo de amigos nativos de Soure, Agatão e os demais possuem técnicas de flerte e conquista diferentes que se performatizam em situações que informam um contexto outro, em que o barco que realiza a viagem Belém-Camará-Belém é, por exemplo, lugar propício para olhares e "paqueras" ou, ainda, a reserva e a intimidade da casa/da cama indicam o sossego e a tranquilidade de um sexo que busca a calma de um prazer amadurecido. Em Soure, particularmente no caso de Erexímaco e Fedro, o catolicismo e o Candomblé Nagô respectivamente, são o pano de fundo para "fazer garotos" ou "se virar em Oxum".

A economia das trocas afetivas integra cenários em que se transbordam os limites e fronteiras de gênero, no qual a gongação, a tombação e a frescação denotam as preferências sexuais, os sucessos e o fracassos quanto às parcerias; mas, também, integra as preocupações quanto à vida políticas e, consequentemente, a inserção de cada um deles em uma dimensão religiosa – seja negando ou afirmando o catolicismo ou exercendo uma outra devoção como Fedro que é pai de santo e tem um terreiro que se localiza num bairro de ocupação popular, distante do centro comercial da cidade.

Se Agatão aparece como personagem principal dessa trama cartografada entre idas e vindas a Soure, Pausânias tem, inequivocamente, um papel importante em minhas etnográficas, uma vez que: 1) possibilitou-me o contato com os interlocutores e, também, 2) conduziu-me os passos do percurso que trilhei do começo ao fim do presente texto. Esta é, certamente, uma situação singular que demostra o seu grau de colaboração nesta pesquisa – sem, desconsiderar a importância de Agatão que, além de abrir as portas de sua casa para mim, tratava-me com o carinho de um velho amigo professor, que me educava e instruía acerca de sua envelhecência.

Envelhecência, envelhecência gay... Ambos os termos procuram relativizar uma condição sócio-existencial e sexual, a partir, justamente, do modo de vida de Agatão, Fedro, Erexímaco e Pausânias, em vista de sua performatividade enquanto homossexuais em processo de envelhecimento. A heterotopia de seus desejos, gozos e prazeres remetem a um conjunto de táticas ou estratégias de resistência e, também, de vivência/experimentação da sexualidade, onde Soure não é uma metáfora ou um "pano de fundo" apenas; e sim uma personagem de cores, cheiros e sabores específicos, na qual uma vida urbana se encontra com fazendas de campos alagados e uma comunidade pesqueira e uma área de ocupação popular tem muitas coisas em comum.

 

Referências

Andrade, C. D. (2002). Cidadezinha Qualquer in: Antologia Poética. Rio de Janeiro: Record.         [ Links ]

Bosi, Ecléia. (2005). O tempo vivo da memória. São Paulo: Ateliê Editoria.         [ Links ]

Brasil. Estatuto do Idoso. Lei Nº 10.741, de 1º de outubro de 2003.         [ Links ]

Castro, E. (2009). Vocabulário de Foucault – um percurso pelos seus temas, conceitos e autores / Edgardo Castro; tradução Ingrid Müller Xavier; revisão técnica Alfredo Veiga-Neto e Walter Omar Kohan. – Belo Horizonte: Autêntica Editora.

Correa, M. R. (2009). Cartografias do envelhecimento na contemporaneidade: velhice e terceira idade. São Paulo: Cultura Acadêmica.         [ Links ]

Eribon, D. (2008). Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.         [ Links ]

Foucault, M. (2011). Os anormais – Curso no Collège de France (1974-1974). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes (Coleção Obras de Michel Foucault).

Foucault, M. (2011). História da Sexualidade I – A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal.

Garcia-Roza, L. A. (2005). Freud e o inconsciente, 21ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

Geertz, C. (1989). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora.         [ Links ]

Goffman, E. (2012). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC.         [ Links ]

Ingold, T. (2003). The perception of the environment. Essays in livelihood, dwelling and skill. London: Routledge.         [ Links ]

Mota, M. P. (2009). Homossexualidade e Envelhecimento: algumas reflexões no campo da experiência, in: SINAIS - Revista Eletrônica - Ciências Sociais. Ed. 6(1), 26-51.         [ Links ]

Mucida, A. (2009). Escrita de uma memória que não se apaga – Envelhecimento e velhice. Belo Horizonte: Autêntica.

Neves, L. F. B. (2012). Corpo, velhice, projeto e neoliberalismo in: Que corpo é esse? – Novas perspectivas. Rio de Janeiro: Mauad.

Pacheco, A. S. (2010). A conquista do ocidente marajoara – índios, portugueses e religiosos em reinvenções históricas in: Muito além dos campos – Arqueologia e História na Amazônia Marajoara. Organizado por D. Schaan e C. Martins. Belém: Gknoronha.

Paiva, A. C. S. (2007). Reservados e Invisíveis – o ethos íntima das parcerias homoeróticas – Fortaleza: Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará; Campinas: Pontes Editores.

Paiva, A. C. S. (2009). Corpos/Seres que não importam? Sobre homossexuais velhos Bagoas, 4, 191-208.         [ Links ]

Paiva, A. C. S. (2011). Amizades e modos de vida gay: por uma vida não fascista, in: Cartografias de Foucault. Editado por D. M. de A. Júnior; A. Veiga-Neto; A. de S. Alípio (orgs.). 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora.         [ Links ]

Platão. (2001). O Banquete – Apologia de Sócrates. Belém: UFPA.

Sansot, P. (1983). Le variation du paysage in: Variations paysagères. Paris: Klincksieck.         [ Links ]

Simões, J. A. (2005). Homossexualidade Masculina e Curso da Vida: Pensando Idades e Identidades Sexuais in: Sexualidade e Saberes: Convenções e Fronteiras. Piscitelli, Adriana et alli. (Org.). Rio de Janeiro: Garamond.         [ Links ]

Simões, J. A. (2011). Corpo e sexualidade nas experiências de envelhecimento de homens gays em São Paulo, in: A Terceira Idade – Estudos sobre Envelhecimento – Revista Eletrônica – Serviço Social do Comércio (SESC). 22(50), 07-19.

Stepansky, D. (2012). Velhice, imaginário e cidadania in: Que corpo é esse? – Novas perspectivas. Rio de Janeiro: Mauad.

 

Recebido em 27 de janeiro de 2015
Aprovado em 19 de janeiro de 2016

 

Nota sobre o autor

Wladirson Cardoso. Doutor em Antropologia Social; Mestre em Direitos Humanos; Bacharel/Licenciado em Filosofia; Professor Auxiliar I da Universidade do Estado do Pará (UEPA);
Pesquisador/Líder do "COGITANS – Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia Moderna e Contemporânea" e membro honorário da Comissão de Diversidade Sexual e Combate à
Homofobia da Ordem dos Advogados do Brasil – Sessão Pará (OAB/PA).

 

 

1 Conjunto de saberes, práticas e discursos que visam o agenciamento da sexualidade dos indivíduos. Cf. verbete "Sexualidade" em: Castro, 2009.
2 Considero a expressão modo de vida como a maneira pela qual determinado sujeito (ou grupo) constitui a própria existência quanto às vivências e/ou experiências passadas e presentes, às relações intersubjetivas, à auto percepção histórica, à memória e ao conjunto de suas práticas e representações simbólicas, desenhando, pois, ao longo da vida, uma carreira existencial, isto é, uma trajetória (auto) biográfica, que se exprime, tanto em atos de fala (no nível da linguagem), quanto pela performatividade (em termos de comportamento e ação), indicando signos e valores que delineiam, portanto, os traços de subjetividade e as marcas (sócio-históricas) da identidade
3
É uma embarcação típica dos rios da Amazônia e que, devido ao tamanho e ao barulho do motor a óleo Diesel, recebe a onomatopeia de "pô-pô-pô" como qualificativo específico e distintivo.
4 Como esta pesquisa tratou do modo de vida e da intimidade de gays envelhecentes na cidade de Soure e, com isso, procura investigar seu lugar na "paisagem social" do Marajó, resolvi atribuir aos sujeitos pesquisados os nomes das personagens mais expressivas de o Symposium (O Banquete), do velho sábio Platão. Assim, tanto por razões éticas – particularmente no que diz respeito à pesquisa com seres humanos (em Antropologia Social); quanto por motivos de caráter teórico e epistemológico, acredito que o recurso do "apelido", que substitui, fictícia ou imaginariamente, o nome de registro dos entrevistados, apresenta aqui, no mínimo, três dimensões: a primeira de caráter lúdicoimagético, o que está de acordo com o pensamento de Clifford Geertz (1989), para quem a Antropologia é também uma prosa ficcional, de maneira que a interpretação semiótica da cultura é, inequivocamente, uma prerrogativa do ofício do etnólogo. A segunda dimensão de caráter metodológico e procedimental diz respeito à maneira como o pesquisador deve, necessariamente, tratar seu interlocutor, uma vez que não se trata de descrever objetos brutos do mundo natural, e sim sujeitos que possuem – como se diria em Filosofia Prática – autonomia da vontade e que, justamente, por isso merecem ter sua singularidade preservada, não de um modo qualquer; mas de formas a expressar artística/esteticamente seu devir homossexual , levando-se em consideração o que Paiva (2007) orienta quando afirma que a "(...) delicadeza para tratar da vida de outras pessoas em nossos textos interpela nossos gestos de ver, ouvir e escrever e indaga-nos naquelas dimensões apontadas por Roberto Cardoso de Oliveira: moralmente, politicamente, epistemologicamente. É preciso saber de que lado estamos, segundo a expressão de Becker (1977, p.122), não para referir um nós oposto a eles, mas para estarmos cientes de que "não podemos jamais evitar tomar partidos", e que, mesmo segurando nas mãos as rédeas dos "cães de guarda da metodologia" (BORDIEU), nossos dados jamais são imparciais." (pp. 45-46) Somente assim é que, de acordo com Paiva (2007), conseguiremos prosseguir com uma escrita mais proximal, isto é, intensiva e distante da escrita-comentário (escrita-porta-voz, escrita-poster) que cristaliza as identidades. Em terceiro e último lugar, a referência à Platão é, sem dúvida, fundamental, pois, a despeito de abordar a natureza de Eros com vistas à circunscrição desta potência amorosa ao seu projeto filosófico idealístico, não-sensual e, portanto, incorpóreo, existe na economia do texto do Symposium, uma reflexão sobre o amor entre iguais que, por sua vez, implica num estar junto entre homens. Cf. PLATÃO. 2001. O Banquete – Apologia de Sócrates. Belém: UFPA.
5 Assim é que, para Simões (2005): "[q]uando vistos da perspectiva do desenvolvimento da vida humana à maneira ocidental dominante – isto é, como o movimento do ser corpóreo através do tempo concebido como progressão cronológica rumo à finitude – envelhecimento e sexualidade tornam-se temas que se excluem mutuamente. O declínio do desejo, a perda da atratividade física e o virtual apagamento como pessoa sexuada estão entre as principais marcas e condições do envelhecimento que sustentam, em grande parte, o repúdio e o medo generalizados do corpo em degeneração e, em contrapartida, a avaliação positiva que se faz da juventude." Para uma leitura mais aprofundada do corpo enquanto construção/modeleção técnica da cultura, conferir: MAUSS, Marcel. 1974. As técnicas do corpo in: Sociologia e Antropologia V. II, pp. 209-233. São Paulo, EPU/EdUSP.