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Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.11 no.2 Belém maio/ago. 2019
https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.n02artigo53
Artigo
DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.n02artigo53
Grupo de ouvidores de vozes no enfretamento de estigmas e preconceitos
Hearing voices group in the confrontation of stigmatas and preconceptions
Grupo de ovidores de vozes en el enfrentamiento de estigmas y preconceitos
Marco Aurélio Teles do Egito; Elisa Alves da Silva
Faculdade Estácio de Sá de Goiás
RESUMO
Trata-se de um relato de experiência utilizando a abordagem qualitativa, tendo como método o estudo de caso realizado com um grupo de ouvidores de vozes, no período de maio a setembro de 2018, no Serviço de Psicologia Aplicada da Faculdade Estácio de Sá de Goiânia, GO. Os dados revelaram as seguintes estratégias: contribuição do espaço grupal para o diálogo e continência sobre a experiência de ouvir vozes; os encontros como facilitadores na busca por informações a respeito da vivência dos ouvidores; utilização da escrita como auxílio na compreensão das diferenciações entre as vozes e a conhecimento de si; estímulo ao protagonismo e autonomia
Palavras-chave: Ouvidores de vozes; Preconceito; Estigma; Grupo; Saúde Mental.
ABSTRACT
This is an experience report using the qualitative approach, having as a method the case study performed with of hearing voices group, from May to September 2018, in the service of applied psychology of the Faculdade Estácio de Sá de Goiânia, GO. The data revealed the following strategies: contribution of the Group space to dialogue and continence on the experience of hearing voices; The meetings as facilitators in the search for information about the experience of the Ombudsman; Use of writing as an aid in understanding the differentiations between voices and knowledge of oneself; Encouragement to protagonism and autonomy.
Keywords: Hearing voices; Prejudice; Stigma; Group; Mental health.
RESUMEN
Se trata de un informe de experiencia utilizando el enfoque cualitativo, teniendo como método el estudio de caso realizado con un grupo de oyentes de voz, de mayo a septiembre 2018, en el servicio de psicología aplicada de la Faculdade Estácio de Sá de Goiânia, GO. Los datos revelaron las siguientes estrategias: contribución del espacio grupal al diálogo y a la continencia sobre la experiencia de escuchar voces; Las reuniones como facilitadoras en la búsqueda de información sobre la experiencia del Ombudsman; El uso de la escritura como ayuda para entender las diferencias entre las voces y el conocimiento de uno mismo; Estímulo al protagonismo y a la autonomía.
Palabras-clave: Oyentes de voces; perjuicio; el estigma; grupo; Salud mental.
INTRODUÇÃO
No decorrer da história, a experiência de ouvir vozes ganhou diferentes sentidos. Na idade média, o ouvir vozes era tido como revelações de fontes sobrenaturais boas ou más e era influenciado pelo discurso religioso. Com o final da idade média privilegiou-se a racionalidade e a cientificidade, e o ato de ouvir vozes passou a ser compreendido como um sintoma em diferentes quadros psicopatológicos, dentre eles a esquizofrenia. Este discurso centrado no sintoma-doença, marcado pelo modelo biomédico, é recorrente na formação dos profissionais que lidam com a saúde mental nos dias atuais, o que muitas vezes pode gerar o preconceito e o estigma não somente em relação aos ouvidores de vozes, mas a qualquer indivíduo que tenha algum transtorno mental (Corradi-Webster, Santos, & Leão, 2017).
Desta forma, a formação do profissional da área da saúde mental ainda está fundamentada no modelo biomédico, considerando o tratamento como doença-cura e a pessoa como paciente passivo. Não sendo considerado como um trabalho colaborativo, em que todos os envolvidos têm sua responsabilidade. Com isso, o sujeito que possui sintomas de psicose deixa de ser ouvido e torna-se um objeto a ser tratado, sendo colocado de lado a história de vida do paciente, tendo como foco e relevância os sintomas apresentados (Leader, 2013).
Após as mudanças ocorridas com a Reforma Psiquiátrica, buscou-se novos olhares e atitudes para o fenômeno historicamente chamado de "loucura". Fazendo-se necessária à quebra de paradigma na maneira de compreender o ato de ouvir vozes para que ocorra uma transformação, deixando de ser apenas sintomas apresentados, passando a ser compreendido como uma experiência significativa para aquele que ouve (Corradi-Webster et al., 2017).
Portanto, faz-se necessário à busca por novos posicionamentos frente à pessoa que vivencia a audição de vozes, historicamente convencionadas pelo discurso psiquiátrico tradicional como psicótica ou "louca". A prática de grupos de ajuda e suporte mútuo vem ao encontro das novas formas de tratar a saúde mental, propostas pela Reforma Psiquiátrica, fazendo com que trabalhadores e estudantes da área da saúde possam ampliar a compreensão e o cuidado com as pessoas que ouvem vozes (Corradi-Webster et al., 2017).
Os grupos são um inter-relacionamento entre duas ou mais pessoas que compartilham característica e um objetivo em comum. Além deste objetivo coletivo, cada indivíduo traz consigo as significações particulares e a interpretação pessoal em relação ao fenômeno grupal, fato que alimenta a dinâmica grupal. Por meio da interação entre os participantes, ocorre uma contínua comunicação com o ambiente ao qual está inserido, o que produzirá uma estruturação ativa na forma e organização, tornando cada grupo único e imprevisível, assim, criando a própria identidade. Trata-se de um sistema vivo em contínuas transformações, que irá se caracterizar por forças de aproximação, afastamento e indiferença entre os integrantes (Fleury, 2008; Oliveira, Flores, Debus, Hartmann, & Silva, 2010; Codinhoto, Massocatto, Cassetari, Rodrigues, & Santos, 2017).
Por isso, o grupo funciona como um espaço no qual as experiências em torno de um sofrimento subjetivo são compartilhadas, ou seja, os participantes evocam discursos que as identificam e as particularizam, trazendo fortemente a noção de que só podem ser compreendidas por quem atravessa uma experiência semelhante. Dessa maneira, todos devem preencher determinados requisitos para fazer parte do grupo, que são as características pessoais às quais os indivíduos se identificam, contribuindo para a formação da individualidade e dos papéis sociais (Oliveira et al., 2010, Silva & Guedes, 2016, Diniz & Lima, 2017).
De acordo com Yalom (2006), os grupos de ajuda e suporte mútuo não são grupos psicoterapêuticos, pois, efetua menos interpretações da personalidade, ocorre menos confrontação e muito mais afirmações solidárias e positivas. Isso demonstra que apesar de não ter um processo psicoterápico, tem uma contribuição terapêutica pelo apoio e o acolhimento que ocorre entre os participantes.
Os grupos de ajuda e suporte mútuos oferecem informações, proporcionam trocas de afetos, de compaixão e novas experiências enfatizando a possibilidade de esperança na recuperação em saúde mental. Surgem organizados por pessoas com vivências e problemas similares. Proporcionando conforto, pois, muitos participantes já passaram fases difíceis e aprenderam com os próprios desafios, tendo que recriar e reinventar as vidas. Sempre em busca do que os tratamentos convencionais não conseguem oferecer, que é a possibilidade da troca de experiências e a compreensão das vivências (Vasconcelos, 2013).
Logo, o grupo de autoajuda também conhecido como grupo de ajuda e suporte mútuo, usualmente é formado espontaneamente entre pessoas que apresentam alguns traços similares entre si, se unindo quando percebem que existem condições de se ajudarem reciprocamente. São grupos bem sucedidos, pois, alcançam bons resultados por aperfeiçoar fatores terapêuticos, como a universalidade, o altruísmo, a instilação de esperança e o apoio mútuo, o que reforça e pressupõe que cada membro do grupo é motivador da própria mudança (Zimerman, 1997 citado por Silva & Lima, 2016).
Nesse contexto, surge a proposta atual do grupo de ouvidores de vozes, que é uma prática que começou em 1980, com o Movimento de Ouvidores de Vozes, realizadas pelo psiquiatra social holandês Marius Romme, pela pesquisadora Sandra Escher e pela ouvidora de vozes Patsy Hage. O grupo de ouvidores de vozes visa questionar a hegemonia do modelo biomédico, produzindo novos significados para experiência de ouvir vozes, não somente restringi-la a um sintoma psicopatológico. Busca ser uma alternativa no desenvolvimento de novos conhecimentos, criando espaços para que surjam outros sentidos em relação a esse fenômeno (Corstens, Longden, Mccarthy-Jones, Waddingham, & Thomas, 2014).
O movimento de ouvidores de vozes possui o pressuposto que cada indivíduo tem concepções diferentes em relação à natureza e a causa das vivências e, logo, são os especialistas pela experiência, juntamente com as pessoas que convivem. Deste modo, propõe-se que os especialistas pela experiência, associados aos especialistas pela profissão (médicos, psicólogos, enfermeiros entre outros) trabalhem em parceria para apresentar novas alternativas para a compreensão da experiência de ouvir vozes, desenvolver formas de enfrentamento, combater o preconceito e restabelecer a saúde mental desses indivíduos (Corradi-Webster et al., 2017).
No Brasil ainda há poucos estudos relacionados aos grupos de ouvidores de vozes (Barros & Serpa Júnior, 2017; Corradi-Webster et al., 2017; Kantorski, Antonacci, Andrade, Cardano, & Minelli, 2017; Kantorski, Machado, Alves, Pinheiro, & Borges, 2018a; Kantorski, Souza, Farias, Santos, & Couto, 2018b). Na maioria são observações do comportamento dos ouvidores em relação às trocas de experiências entre eles e como isso amplia o entendimento deles e dos profissionais de saúde em relação ao fenômeno da audição de voz. O estudo de Barros e Serpa Júnior (2017), busca entender como ocorre o compartilhamento das vivências nos espaços virtuais e até que ponto isso é benéfico aos ouvidores.
Por isso, é imprescindível abrir espaço para conversar sobre a experiência de ouvir vozes, sem colocar o discurso da psicopatologia como alicerce dessa ação. Possibilitando o desenvolvimento de novos sentidos sobre esta experiência, para que as pessoas que as vivenciam sejam posicionadas de diferentes maneiras e não apenas como pacientes psiquiátricos, e, com isto, fortalecer as novas formas de lidar com as vozes, com os ouvidores e com a sociedade (Gergen, 2014 citado por Corradi-Webster et al., 2017).
Em algumas culturas, a audição de vozes é considerada uma experiência sagrada e de caráter espiritual. Entretanto, na cultura ocidental moderna é identificada como uma manifestação da loucura, passando a ser classificada como um sintoma psiquiátrico que requer tratamento. Essa experiência de ouvir vozes vem sendo vivenciada por diversas pessoas, em diferentes épocas e contextos socioculturais. Constitui-se como um agrupamento de experiências com significados diversos, que variam conforme a história de vida de quem ouve vozes e de acordo com o sistema de ideias, valores e crenças da cultura na qual está inserido (Barros & Serpa Júnior, 2017).
Por essa razão, frequentemente a experiência de ouvir vozes torna-se um tabu na sociedade ocidental, sendo considerada apenas como um sintoma de algum transtorno mental, que deve ser suprimido. Com isso torna-se socialmente estigmatizante e indesejada. É verdade que as vozes podem e têm um efeito muito perturbador, tanto para a pessoa que ouve vozes quanto para a família e amigos. As vozes podem ser hostis, controladoras e até mesmo podem minar a autoestima dos que as ouvem, por isso, gera preconceito em relação ao ouvidor de vozes, fazendo com que os ouvidores escondam a experiência e busquem sozinhos estratégias para lidar com o fenômeno (Barros & Serpa Júnior, 2017).
Por esse motivo, no final dos anos 1980 na Holanda, surgem os grupos de ouvidores de vozes. Estes buscam oferecer para as pessoas com esse tipo particular de vivência, a oportunidade de compartilhá-las em um coletivo e compreender que existem outras pessoas com a mesma vivência. Os grupos partem do pressuposto que o problema principal não reside no fato de ouvir vozes, mas na dificuldade de estabelecer algum tipo de convivência com elas. A troca de experiências e a produção de narrativas pessoais sobre o assunto surgem como uma alternativa ao saber psiquiátrico acerca da alucinação auditiva verbal (Barros & Serpa Júnior, 2017).
Dessa forma, ao usar a abordagem de ouvir as vozes, é importante explorar a relação entre o ato de ouvir vozes e a história de vida do ouvidor, identificando como essa pessoa lida com as vozes. Faz-se necessário identificar a importância de compreender o que as vozes dizem ao ouvidor, isso requer deles uma maior atenção nas vozes como uma maneira de encontrar uma solução para as dificuldades que elas causaram. É muito importante desenvolver uma forma de trabalho que seja cooperativa e baseada na confiança mútua entre a pessoa que ouve vozes e a pessoa que trabalha com o ouvidor. Por essa razão, dar sentido às vozes envolve reconhecer a existência de uma relação entre as vozes e experiências traumáticas, com o intuito de obter informações sobre as vozes e os eventos da vida (Baker, 2016).
Assim, em 1987 Marius Romme e Sandra Escher fundaram um movimento que defende o emprego de novas abordagens, utilizadas por aqueles que enfrentaram positivamente as vozes. Foi criada uma organização formal que oferece suporte administrativo e coordena a ampla variedade de iniciativas em diferentes países, chamada de The International Network for Training, Education and Research into Hearing Voices (INTERVOICE). A nova estratégia permite que os ouvidores de vozes compartilhem as vivências, possibilitando que essas pessoas compreendam de uma maneira diferente a experiência de ouvir vozes, evitando que seja enquadrado apenas em uma etiqueta diagnóstica dos manuais de psiquiatria, que se limita a rotular o indivíduo que manifesta o fenômeno da alucinação auditiva (Barros & Serpa Júnior, 2017). Os grupos de ouvidores de vozes consistem em diversas conversas e iniciativas em todo o mundo, que tem como premissa que ouvir vozes, ter visões e fenômenos relacionados são experiências significativas que podem ser compreendidas de muitas maneiras. O fenômeno de ouvir vozes não é necessariamente uma indicação de doença, mas a dificuldade em lidar com as vozes podem causar grande sofrimento psíquico. O apoio oferecido deve ser baseado no respeito, na empatia e em uma compreensão do significado pessoal que as vozes têm na vida da pessoa. E com isso deve ocorrer uma mudança no significado desse fenômeno que pode ocorrer em um nível individual, grupal, comunitário e social. Os grupos oferecem um refúgio seguro no qual às pessoas que ouvem, veem ou sentem coisas que outras pessoas não sentem podem ser aceitas, valorizadas e compreendidas (Intervoice Brasil, 2017).
O Grupo de Ouvidores de Vozes, ao convidar as pessoas a terem um novo olhar para a experiência de ouvir vozes, pode promover: a possibilidade para que familiares e profissionais posicionem-se de outra forma frente ao ouvidor de vozes; a construção de novos sentidos sobre esse fenômeno, não o considerando somente como uma experiência de adoecimento e enfraquecimento; a escuta diferenciada dos familiares e profissionais para o ouvidor de vozes. Há também o convite para que aqueles que não se consideram ouvidores de vozes reflitam sobre as experiências pessoais. Essa proximidade entre ouvidores e não ouvidores estreitam os limites socialmente construídos entre os ditos loucos e os normais, questionando estigmas e preconceitos, e assim evitando o isolamento e afastamento dos ouvidores (Corradi-Webster et al., 2017).
Para tanto, esse estudo trata-se de um relato de experiência ocorrido durante o estágio supervisionado do curso de psicologia, e teve como objetivos compreender o papel do grupo de ouvidores de vozes no enfrentamento do preconceito e do estigma em relação ao ouvidor de voz; entender o ato de ouvir vozes e o impacto que tem sobre os ouvintes e seu círculo social na geração de preconceitos e estigmas; identificar os diferentes sistemas de crenças e contextos utilizados pelos ouvidores de vozes para explicar a experiência; e investigar as diferentes formas que os ouvintes utilizam para lidar com as vozes.
MÉTODO
Este trabalho foi realizado por meio do relato de experiência do campo de estágio supervisionado obrigatório em psicologia, o qual utilizou-se da abordagem qualitativa, que segundo Minayo (2014) é um método capaz de incorporar a questão do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais. Pode ser aplicada no estudo da história, das relações, das representações, das crenças, das percepções que os humanos fazem a respeito de como vivem e constroem os significados em relação aos fenômenos que os cercam e de si mesmos.
Para realizar o relato de experiência, foi utilizado como instrumento de coleta de dados o diário de campo. Segundo Minayo (2014), o diário de campo é um instrumento que registra todas as informações relevantes que ocorrem durante a experiência, estabelecendo conexão com os objetivos traçados e as observações sobre as conversas, gestos, comportamentos e expressões que digam respeito ao tema investigado. Assim, em todo término dos encontros, eram elaborados os diários de campo que foram apresentados na supervisão de estágio. No total, foram produzidos 10 diários de campo.
Em um dos encontros, foi usado também o Ecomapa, que é um diagrama que representa as relações do ouvidor com a família e comunidade, o que permite identificar os apoios sociais, redes disponíveis e também representa a presença ou ausência de recursos econômicos, sociais e culturais. A escolha da utilização do Ecomapa decorreu da necessidade de maior compreensão das relações dos participantes com a comunidade a qual faz parte (Nascimento, Rocha, & Hayes, 2005).
Essa experiência teve início a partir da divulgação de convite às pessoas interessadas em participar e compartilhar experiências no Grupo de Ouvidores de Vozes no Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Faculdade Estácio de Sá de Goiás. Foi feito um flyer em versão impressa e também digital, para ser compartilhado por meio de redes sociais. Logo, a divulgação ocorreu por via facebook, grupos de whatsapp e colagem de cartazes no SPA e nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de Goiânia – GO.
A composição da coordenação do grupo inicialmente ocorreu com a participação da psicóloga supervisora de estágio, o estagiário responsável pela elaboração do projeto do grupo e uma estagiária assistente nos registros dos encontros. Após quatro encontros, a coordenação foi repassada ao estagiário que, por meio do processo de aprendizado, conseguiu adquirir confiança para conduzir o grupo.
Assim, o Grupo de Ouvidores de Vozes foi realizado no SPA em uma sala direcionada para o atendimento em grupo. Foi elaborado um plano de trabalho com temáticas que poderiam ser utilizadas durante os encontros como, por exemplo, dificuldades e desafios no cotidiano de quem escuta vozes; convivência com as vozes e estratégias de enfrentamento; recursos de produção de saúde; relações de cuidado. No entanto, esse plano foi bem flexível para ser modificado de acordo com as necessidades dos usuários e por possíveis eventualidades, já que a proposta é que a condução e formato desse tipo de grupo seja livre, favorecendo a autonomia, ampla participação das pessoas e pouco direcionamento do coordenador do grupo (Baker, 2016).
Para participação no grupo de Ouvidores de Vozes, a pessoa devia ser maior de 18 anos; apresentar a experiência de ouvir vozes; estar ou não em tratamento psiquiátrico; e ter realizado a inscrição para participação no grupo por meio do SPA. Entraram em contato nove pessoas, sendo dois homens e sete mulheres. Entre essas, quatro pessoas tiveram disponibilidade para iniciar o grupo no primeiro semestre de 2018, conforme Quadro 1, que consta os nomes fictícios para resguardar o anonimato, a confidencialidade e o sigilo das participantes.
Após realizada a inscrição no SPA, e antes do início das atividades do grupo, as pessoas foram contatadas para uma sessão individual. Nessa sessão, foram informadas a respeito do grupo e o funcionamento. Além disso, buscou-se entender como se ocorre a compreensão da experiência de ouvir vozes para cada um, identificar como cada indivíduo lida com esse fenômeno, escutar a história de vida e entender como as vozes afetam a pessoa no dia a dia. Além de permitir um primeiro contato com o coordenador do grupo.
Foram realizados 10 encontros, com uma média de 3 participantes por encontro, entre os meses de maio a setembro de 2018. Os encontros tiveram a duração entre uma hora e trinta minutos a duas horas, feitos uma vez por semana. Para análise dos dados foi realizada a correlação dos registros do diário de campo com a teoria levantada com o intuito de atingir os objetivos propostos para realização do grupo.
Foi também estabelecido o contrato grupal, que diz respeito aos aspectos do enquadre grupal, que Zimerman (2000) refere como a configuração necessária para que ocorra a integração para o desenvolvimento de trabalho com grupos. Logo, foi esclarecido as pessoas que estavam presentes o contrato de convivência à respeito do horário, número de encontros, e objetivo do grupo.
Em relação aos aspectos éticos, é importante esclarecer que todas as pessoas atendidas no SPA, recebem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e a Carta de Informação sobre os atendimentos e a necessidade de autorização para participação em pesquisas ou relatos de experiências. Sendo assim, foi apresentado as participantes do grupo o TCLE, sendo lidos e assinados por todas participantes, garantindo a confidencialidade e o anonimato. Mesmo o convite sendo para participação de um grupo, aquelas que necessitaram de apoio e orientação individual, foram encaminhados para o atendimento psicoterapêutico individual no SPA.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Para atingir os objetivos para realização do grupo, foram elaboradas quatro categorias que abrangeram os temas discutidos durante os encontros e registrados em diário de campo: 1. O papel do grupo de ouvidores de vozes no enfrentamento de preconceitos e estigmas; 2. O impacto social e relacional do ato de ouvir vozes; 3. Sistemas de crenças e contextos na experiência de ouvir vozes; 4. Estratégias utilizadas pelos ouvidores de vozes para o enfrentamento de preconceitos.
O papel do grupo de ouvidores de vozes no enfrentamento de preconceitos e estigmas
O grupo gerou uma relação de confiança entre os participantes e o pesquisador, o que facilitou o surgimento de informações pessoais, relatos das aspirações e dos problemas, as prioridades de cada indivíduo foram trabalhadas a fim de criar soluções coletivas e/ou individuais para as situações apresentadas (Ramos, 2008).
No primeiro encontro do grupo a participante Telma comentou que, após a sessão individual realizada antes do grupo iniciar, sentiu-se em paz e as vozes ficaram menos intensas durante a semana. Destacou que acha que isso aconteceu por ter falado com uma pessoa que realmente estava disposta a ouvi-la sem preconceito, sem julgamento e não colocando a doença como um fator principal em relação ao fato dela ouvir vozes. Telma disse que o espaço do grupo foi muito importante, pois, ela evita falar sobre as vozes para os familiares devido aos julgamentos e por não estarem disponíveis para ouvi-la. No grupo ela pode compartilhar com outras pessoas essa experiência, apesar do receio de dizer que tem alucinações auditivas por medo do preconceito que poderá ocorrer.
De acordo com Kantorski et. al (2018b), o que se destaca nessa nova forma de lidar com as vozes está relacionada com a possibilidade de discutir a experiência como real na vida dos sujeitos. Sem a necessidade de classificação dentro de um processo de adoecimento, mas sim em um contexto mais amplo considerando as narrativas pessoais da experiência de ouvir vozes, para que sejam compreendidas de diferentes maneiras e não apenas como paciente psiquiátrico, fortalecendo novas formas de lidar com as vozes.
A participante Ana também comentou que não fala sobre o fato de ouvir vozes, pois sabe que será julgada pelas pessoas a sua volta. Tem receio que as pessoas que frequentam a mesma congregação que ela a recriminem e a rejeitem, devido ao medo que as pessoas têm em relação a esse tema. Quando há algum comentário relacionado a alguém que ouve vozes, independente se é familiar, amigo ou membro da igreja, pedem para não falar a respeito e somente orar.
Carla, no segundo encontro do grupo, relatou que sempre foi respeitada e que as pessoas entendiam o fato de ouvir vozes como um dom. Na igreja ela participava de grupos de intercessão justamente por ouvir vozes, após ser diagnosticada com esquizofrenia passou DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.n02artigo53 Rev. Nufen: Phenom. Interd. | Belém, 11(2), 60-76, mai. – ago., 2019. 69 a ficar desacreditada. Toda vez comenta algo em relação às vozes, quem está a sua volta relaciona o fato a esquizofrenia, e foi assim que o preconceito teve início.
Os grupos de ouvidores de vozes não consideram o fenômeno de ouvir vozes como algo patológico que precisa ser erradicado, mas como uma experiência significativa, interpretável, intimamente ligada à história de vida de quem as ouve e, mais comumente a traumas pessoais não resolvidos. Por isso, torna-se um espaço para fortalecimento oferecendo um lugar seguro no qual os ouvidores de vozes são aceitos, valorizados, compreendidos e respeitados. Um ambiente baseado no respeito, na empatia e na compreensão do significado pessoal que as vozes têm na vida da pessoa, fortalecendo a autoestima e possibilitando que o ouvidor compreenda esse fenômeno e se posicione de forma diferente diante dos outros (Intervoice Brasil, 2017; Smith, 2007).
No terceiro encontro, após realizar uma atividade que foi solicitada no encontro anterior de entregar uma faixa com os dizeres "Quem eu sou faz a diferença", para uma pessoa especial na vida delas, a participante Ana entregou para uma assistente social que fica no estabelecimento que trabalha. Essa pessoa não sabia que ela ouvia vozes, e ficou surpresa ao ficar sabendo desse fato que Ana disse a ela, e observou que não houve nenhuma discriminação em relação a ter dito. Essa participante contou que nunca falou sobre isso com outras pessoas e que o grupo a ajudou a perder esse medo de ser tratada de modo preconceituoso.
Assim, foi possível observar no decorrer dos encontros do grupo que as experiências trocadas entre os participantes geraram uma compreensão melhor em relação ao fenômeno da audição de vozes, um entendimento de que existem outras pessoas que estão passando pela mesma vivência e fortalecimento de suas identidades. O compartilhamento de vivências fez com que os participantes do grupo entendessem que eles não estão isolados no mundo, que existem formas de lidar com o sofrimento causado pelas audições vozes, gerando um fortalecimento da relação com o grupo e o apoio entre os integrantes.
O impacto social e relacional do ato de ouvir vozes
Segundo Baker (2016), devido à experiência de ouvir vozes ser considerada na maioria das vezes como um tabu, um sintoma de algum transtorno mental que deve ser suprimido ou possessão de espíritos malignos, faz com que os ouvintes escondam essa experiência de quem está a sua volta por medo do julgamento e do preconceito, tornando o ato de ouvir vozes socialmente estigmatizante e indesejado.
No primeiro encontro as participantes relataram certo receio de que outras pessoas soubessem que elas ouvem vozes e sejam vistas de forma diferenciada. A participante Telma disse que quando comenta com a mãe que está ouvindo vozes ela não quer nem saber o que é, diz que é coisa da cabeça de Telma, por isso sempre ocorrem discussões. Diz que não fala sobre ouvir vozes com outras pessoas, pois, se a própria família não entende o que os outros podem pensar a respeito. Relatou que além das várias brigas com a mãe e com seus familiares, não consegue fazer amizades e relacionar-se com outras pessoas, por isso sente-se muito sozinha.
Ao associar a audição de vozes à loucura e à esquizofrenia cria-se o estigma e o preconceito gerando um pavor no ato de ouvir vozes que outros não escutam. Com isso, a experiência torna-se solitária, cria-se um tabu em torno da vivência, fazendo desse fato algo quase proibido de se compartilhar e os ouvidores percebem como algo assustador. Devido ao diagnóstico e o preconceito gerado por esse fenômeno, as pessoas do convívio do ouvidor de vozes relacionam esse fenômeno com a doença, desacreditando da vivência do sujeito (Kantorski et al., 2017).
No segundo encontro Carla expôs que as vozes em momento algum foram um problema para ela, as pessoas acreditavam no que ela falava. Na igreja ela fazia parte do grupo de intercessão, os membros admitiam que ela fosse uma profetisa. Após ser diagnosticada com esquizofrenia começou o preconceito, agora aquilo que ela fala relacionado às vozes, é considerado como consequência da doença. Isso lhe causa angústia e sofrimento. Atualmente até os membros da igreja acreditam que as vozes que ela escuta são somente sintomas da doença.
Assim que a experiência de ouvir vozes torna-se um sintoma de um transtorno psiquiátrico, esta será encarada como algo ruim, que deve ser eliminada. Quando o sujeito comunica para familiares e profissionais que ouve vozes é automaticamente relacionado como uma piora do quadro psiquiátrico, levando ao aumento da medicação, e com isto, de efeitos colaterais da mesma (Corradi-Webster et al., 2017).
Ana, no segundo encontro, falou que não conta a ninguém que ouve vozes, nem sua mãe sabe do fato, pois ela sabe que será discriminada. Os relacionamentos que ela tem são somente dentro da igreja, no CAPS e no trabalho, pois as pessoas não entenderiam o fato de ouvir vozes. Isso faz com que ela se isole, comprometendo seu vínculo com outras pessoas.
O Ecomapa é uma representação gráfica das ligações de um indivíduo as pessoas e estruturas sociais do meio em que habita. Identifica os padrões organizacionais da pessoa e a natureza de suas relações com o meio, mostrando-nos o equilíbrio entre as necessidades e os recursos da família (Agostinho, 2007). Logo, por intermédio do Ecomapa foi possível identificar as relações das participantes com o meio ao qual elas estão inseridas.
Pode-se observar que as relações são escassas e os vínculos fracos, ao explanar sobre os motivos dessas relações estarem assim as participantes disseram que está relacionado ao efeito da medicação que as deixam sonolentas e com pouca disposição para participar de atividades na comunidade. Além do preconceito que existe até mesmo dos próprios familiares e amigos, que gera receio e medo do julgamento das outras pessoas.
No decorrer dos encontros do grupo as participantes disseram sobre a dificuldade de se relacionarem, tanto com familiares como com pessoas do círculo de convivência, na maioria das vezes, por medo do julgamento, preferem se isolar. No caso de Carla, devido ao seu contexto religioso, ela conseguia se relacionar bem com outros indivíduos e falar abertamente sobre as vozes, mas o diagnóstico causou um grande impacto na sua vida social, fazendo com que ela fosse desacreditada diante de seus pares.
Sistemas de crenças e contextos na experiência de ouvir vozes
Conhecer e compreender o significado que as vozes têm para cada sujeito colabora no processo de aprendizagem, melhora o modo de lidar com as emoções que as vozes causam. Identificar as crenças, ajuda na compreensão de como esse indivíduo se relaciona com as vozes e como ele compreende esse fenômeno. Esse é um instrumento relevante no processo de recuperação da autoestima, do fortalecimento dos vínculos, na compreensão por parte do ouvidor e na identificação de estratégias para lidar com as vozes (Kantorski et al., 2018a).
Segundo Romme e Escher (1997, citado por Barros & Serpa Júnior, 2017) os ouvidores de vozes adotam teorias para ajudá-los a compreender o fenômeno, algumas de cunho religioso. Carla durante os encontros sempre relatava que é uma profetisa do apocalipse, que é usada como instrumento para revelações. As vozes revelavam para ela sobre grandes acontecimentos no mundo, dentre eles, citou o tsunami que ocorreu no Japão.
A compreensão que Carla tem da audição de vozes faz parte de sua religiosidade, o que facilitou o convívio com essas vozes, e na manutenção de suas relações pessoais, pois Carla convive em um ambiente religioso, no qual é normal ter revelações divinas. Seu discurso estava sempre relacionado a símbolos de alguma religião ou figuras influentes de uma determinada crença.
Em outro momento, Telma relatou que as vozes são uma consequência de sua falha com Deus, já que ela não estava orando e pedindo perdão conforme precisava. Quando ela comentava que estava ouvindo vozes, sua mãe dizia que ela precisava orar mais, que ela estava se afastando de Deus. Telma contou que apesar de ser uma pessoa pura, tem falhas e precisa desses momentos mais frequentes de oração. Com isso ocorre uma justificativa para o fenômeno, proporcionando um alívio, mesmo que momentâneo, para a experiência.
Segundo Kantorski et al. (2018a), alguns eventos traumáticos ao longo da vida estão associados a ouvir vozes, principalmente os ocorridos na infância. No sétimo encontro Telma lembrou-se de um dia em que cortou o cabelo bem curto e uma tia, a qual ela gostava muito, gritou com ela dizendo que estava muito feia. Nesse mesmo encontro recordou-se da época da escola, ela não tinha amizades e sempre foi a melhor aluna da sala, e suas colegas tinham muita inveja e ofendiam-na chamando de feia, dizendo que o cabelo dela não prestava. Telma identificou que hoje em dia as vozes falam isso para ela e questionou se poderiam ter sido essas experiências que desencadearam as vozes. Foi questionado ao grupo o que eles pensavam, todos concordaram que traumas causam consequências na vida.
Camila contou que as vozes que escuta são do aparelho de celular, que são muitas vozes que às vezes nem aguenta ouvi-las e sente vontade de quebrar o celular. Que tudo começou devido a um problema que teve com uma operadora de celular em relação a sua linha telefônica, o relato foi confuso e ela não conseguiu fazer uma relação entre o que estava sendo discutido no grupo e suas lembranças.
Ana também revelou que ouve vozes devido aos anos em que foi usuária de drogas, apesar de ter ouvido algumas vezes durante a infância. Também relatou que quando tinha 11 anos sofreu ameaça de morte na escola de outra aluna que tinha 18 na época. Há quatro anos ela reencontrou essa pessoa que novamente disse que iria matá-la, pensa que as vozes de ameaça podem ter sido geradas por esse fato. Atualmente, as vozes que ela ouve falam que vão mata-la. Ana nos relatos traz sempre a questão do uso de drogas, e que as vozes são sempre ameaçadoras, mas elas surgem antes de dormir ou ao passar próximo a usuários de drogas.
Dessa forma, observou-se que o discurso místico-religioso está presente nos relatos das integrantes do grupo, elas o usam para justificar a audição de vozes ou como forma de eliminá-la. Telma e Ana utilizam o discurso religioso para aplacar as vozes, dentro do contexto familiar é reforçado a crença de que por meio das orações essas vozes podem cessar. Carla relata que é um instrumento para revelações na terra, às vozes fazem parte dessa religiosidade, assim que todas as revelações forem concluídas as vozes cessarão. Camila apesar de sua fala confusa e às vezes sem conexão com o que está sendo relatado, pensa que as vozes são consequências do uso de drogas e dos relacionamentos conturbados que teve, ela é a única que não relata aspectos religiosos em relação a sua vida e a audição.
Estratégias utilizadas pelos ouvidores de vozes para lidar com as vozes
Assim como desenvolver estratégias para identificar as emoções e sentimentos gerados pela escuta das vozes, conhecer a representação das vozes também auxilia na convivência com elas (Kantorski et al., 2018a). Logo, um dos objetivos do grupo é auxiliar as pessoas a desenvolver estratégias para manejo das vozes, considerando que saber lidar com as vozes é um passo crucial para o empoderamento e o enfrentamento de preconceitos.
Durante os encontros Ana relatou que conseguiu manejar as vozes e separar o que elas trazem de bom do que é ruim, e com isso obter controle sobre elas e a redução da violência emocional que provoca sofrimento, estabelecendo alguma forma de convivência com as vozes. As trocas de experiências dentro do grupo motivaram as integrantes a buscarem novas estratégias.
No quarto encontro Carla diz que quando as vozes falam algo dela que não é bom, como ela escreve tudo, ela abre um parêntesis e escreve "eu não faço isso, palavra minha" para se defender, após fazer isso às vozes cessam-se as críticas. Telma disse que iria utilizar a mesma estratégia quando as vozes a humilharem, dizendo que não é nada daquilo que dizem.
O grupo de ouvidores visa estimular o ouvidor de vozes a familiarizar-se com a voz, gerando um aprendizado progressivo de conhecimento em relação a esta, propiciando que o ouvidor compartilhe suas experiências com outras pessoas. Ao falar da sua experiência com as vozes o ouvidor reduz a ansiedade e a frequência com que elas surgem o que leva a acostumar-se com sua presença. Comentar as características de cada voz propicia mais esclarecimentos sobre os sentidos que são produzidos no cotidiano deste ouvidor (Kantorski et al., 2018b).
Telma no sexto encontro disse ter usado a estratégia de falar para as vozes que ela não é nada daquilo que estão falando e está funcionando. Depois disso começou a ouvir uma voz boa que a elogia e traz paz, essa voz, diferente das outras, é uma voz masculina. Utilizou a mesma estratégia mencionada por Carla para lidar com as vozes. Pôde-se observar que o compartilhamento de formas de lidar com as vozes que eram mais agressivas, ajudou aqueles indivíduos que não sabiam como lidar com as vozes.
A estratégia mais utilizada pela maioria dos indivíduos do grupo refere-se à religião. Os comentários são sempre mencionando o fato de que ajoelhar e orar, pedindo perdão, ou como Telma menciona que fala para a voz "Eu sou filha de Deus", ajuda a silenciar as vozes momentaneamente.
Durante os encontros do grupo houve poucos relatos de métodos para lidar com as vozes, na maioria dos relatos as integrantes estavam com medo e assustadas com esse fenômeno. Devido ao preconceito e o estigma envolto na audição de vozes, as participantes preferem esconder o fato de ouvir vozes e não ter que lidar com isso. A maioria disse nunca ter pensado em formas alternativas ou estratégias para lidar com esse fenômeno. Sendo que as estratégias estavam mais ligadas ao aspecto religioso. Por meio dessas narrativas observou-se que dentro do contexto religioso há pouco espaço para que elas possam criar formas mais saudáveis de lidar com essas vozes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo teve por objetivo apresentar a experiência de um grupo de ouvidores de vozes que se desenvolveu em um Serviço de Psicologia Aplicada de instituição de ensino superior particular de Goiânia. Em relação ao enfrentamento de preconceitos e estigmas e ao impacto social houve progresso na forma com que as participantes compreenderem as vozes. Alguns conseguiram comunicar para outras pessoas sobre as vozes. Houve o compartilhamento de estratégias de como conviver com essas vozes, um princípio de compreensão de que elas podem dialogar com essas vozes, apesar dos temores. O sistema de crenças em relação às vozes começou a ser analisado por algumas, que conseguiram identificar traumas ocorridos na infância que podem ter sido causadores da audição.
De acordo com Baker (2016), são identificadas três fases entre as pessoas que ouvem vozes: fase da surpresa é quando inicia a audição de vozes momento de muita ansiedade; fase da organização é o momento em que os ouvidores muitas vezes ficam confusos com suas vozes e querem escapar delas; fase da estabilização quando as pessoas podem, e de fato aprendem, a lidar e gerir as vozes e encontram uma espécie de equilíbrio. Os participantes do grupo estão na fase de organização, por isso não foi possível identificar estratégias diversificadas para que os ouvintes possam gerir e lidar vozes. Para que isso ocorra será necessária à continuidade do grupo e a adesão de novos participantes.
As limitações desse estudo referem-se à quantidade dos encontros que puderam ser feitos durante o estágio juntamente com a elaboração do trabalho final de curso, sendo sido realizados somente dez encontros. E por se tratar de uma nova forma de lidar com as vozes, leva-se mais tempo para se compreender e assimilar a proposta, tanto para os participantes como para coordenação do grupo.
Esperamos que a leitura deste trabalho possa motivar os profissionais, principalmente do campo da saúde mental, a buscarem novas formas de intervenção e cuidado com pessoas que possuem algum diagnóstico psiquiátrico e com os ouvintes de vozes, para que os mesmos possam conhecer e procurar formas alternativas e singulares, inventando novas maneiras de lidar com a questão. Há também a necessidade de continuidade de pesquisas, principalmente em relação às crianças e adolescentes que ouvem vozes, a conscientização dos familiares e amigos em relação a este fenômeno visando à diminuição do preconceito.
Por fim, mesmo com os obstáculos, foi possível conseguir um grande ganho de aprendizagem em relação aos grupos de ouvidores de vozes, os transtornos mentais e a saúde mental. Também houve a oportunidade de entender melhor a história de vida, o relacionamento das pessoas com as vozes e o sofrimento causado não somente pela audição de vozes, mas também pelo diagnóstico psiquiátrico. Pelo intermédio das participantes e da supervisão de estágio, ocorreu a oportunidade de acompanhar o grupo de ajuda e suporte mútuo e perceber a importância desses grupos para a promoção da saúde mental, por meio do compartilhamento de experiências e estratégias de enfrentamento. Isso gerou o entendimento que não devemos olhar somente para o diagnóstico, mas compreender o ser humano de forma integral. Tendo a confirmação de que essa área de atuação possui muitas ações promotoras de vida e saúde mental.
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NOTA SOBRE OS AUTORES:
Marco Aurélio Teles do Egito– Graduando em Psicologia na Faculdade Estácio de Sá de Goiás. E-mail: mrc.tls@gmail.com.
Elisa Alves da Silva – Doutora em Psicologia Clínica e Cultura (UnB), Brasil. Docente e Coordenadora de Estágio do Curso de Psicologia da Faculdade Estácio de Sá de Goiás. Email: elisapsi@gmail.com.
Recebido: 13/11/2018
Aprovado: 21/05//2019