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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.12 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2020

https://doi.org/10.18379/2176-4891.2020v2p.60 

TEMÁTICOS

 

Educando pela diferença: a importância do professor com deficiência em sala de aula

 

Educating for difference: the importance of the teacher with disability in the classroom

 

Éduquer pour la différence: l'importance des enseignants handicapés en classe

 

 

Milton Carvalho de Sousa JuniorI; Elielson Ribeiro de SalesII

IInstituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas - IFAM. E-mail: mcsjunior21 @gmail.com
IIUniversidade Federal do Pará - UFPA. E-mail: esales@ufpa.br

 

 


RESUMO

A presente pesquisa tem por objetivo apontar dentre os vários vieses da proposta de um ensino escolar inclusivo, um caminho excludente: o do professor com deficiência e sua não inserção no ambiente educacional. Mais ainda, mostrar o quão importante pode ser sua representatividade ante o ambiente escolar e a sociedade, como fator e sujeito motivador, para professores e estudantes, com ou sem deficiência, aliando sua subjetividade, experiências de vida e formação à teoria e prática docente, além de seu papel fundamental para construção de estratégias educacionais com vistas à inserção em sala de aula de alunos que necessitam de assistência diferenciada.

Palavras-chave: Professor com deficiência; Subjetividade; Inclusão escolar; Experiências de vida.


ABSTRACT

This research aims to point out, among the various biases of the proposal for inclusive school education, an exclusive path: that of the teacher with disabilities and his non insertion in the educational environment. Furthermore, to show how important their representativeness can be before the school environment and society, as a motivating factor and subject, for teachers and students, with or without disabilities, combining their subjectivity, life experiences and training with teaching theory and practice, in addition to its fundamental role in the construction of educational strategies aimed at inserting students in the classroom who need differentiated assistance.

Keywords: Teacher with disabilities; Subjectivity; School inclusion; Life experiences.


RESUMÉ

Cette recherche vise à souligner, parmi les différents biais de la proposition d'éducation scolaire inclusive, un parcours exclusif: celui de l'enseignant en situation de handicap et sa non insertion dans le milieu éducatif. En outre, pour montrer à quel point leur représentativité peut être importante face à l'environnement scolaire et à la société, en tant que facteur de motivation et matière, pour les enseignants et les élèves, avec ou sans handicap, combinant leur subjectivité, leurs expériences de vie et leur formation avec la théorie et la pratique de l'enseignement, en plus de son rôle fondamental dans la construction de stratégies pédagogiques visant à insérer dans la classe les élèves qui ont besoin d'une aide différenciée.

Mots clés: Enseignant handicape; Subjectivite; Inclusion scolaire; Experiences de vie.


 

 

Uma Abordagem Preliminar

Pensar na inclusão escolar no cenário educacional brasileiro não é tarefa fácil. A quebra de paradigmas históricos acerca da pessoa com deficiência, tais como a rejeição social, segregação e exclusão (Sassaki, 2012), faz com que esse processo seja ainda mais difícil. Ao falar de paradigmas, entendemo-los, assim como Kuhn (2003), como o conjunto de valores e crenças partilhadas por um grupo ou comunidade como elementos, e utilizados como um modelo. Não se pode negar, porém, que vários avanços sociais foram realizados, principalmente no que concerne à garantia dos direitos da pessoa com deficiência.

De acordo com a legislação federal vigente no Brasil, Decreto n° 7.853/89 e o Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei n° 13.146/05, são consideradas pessoas com deficiência aquelas que possuem um distúrbio de caráter permanente. A partir de 2001, através da Resolução CNE/CEB N° 02, que institui as Diretrizes Nacionais para a educação de alunos que apresentam necessidades educacionais especiais na Educação Básica, fica assegurado o direito de acesso à educação especial desde o início da educação infantil, obrigando o atendimento educacional especializado ao estudante, caso seja necessário, no âmbito do ensino público e privado.

Dessa forma, pode-se notar que, apesar das precárias condições em que se encontra o sistema educacional brasileiro e de algumas escolas não praticarem o que determinam as leis, inúmeras conquistas foram alcançadas no aspecto regulamentar, no sentido de garantir educação inclusiva de iguais direitos aos que necessitam ser assistidos diferenciadamente.

Essas particularidades atendem, contudo, apenas aos educandos com deficiência. Deixa-se de lado a hipótese de que essa pessoa com necessidades especiais possa ser o professor, que, assim como os alunos, enfrenta dificuldades para desempenhar seu papel de educador frente à educação tradicional.

Em relação a esse modelo tradicional de ensinar matemática, Becker (2012) afirma que os alunos são vistos como uma "tabula rasa" (p.15), pois apenas repetem o que já está pronto, mostrando assim o pensamento de que só existe uma maneira de lecionar: "o professor expõe conteúdos essenciais sequencialmente estruturados, explica-os, define termos e conceitos, dá exemplos, propõe exercícios e atividades" (Becker, 2012, p. 16).

 

 

Assim, Barbosa (2009), ao investigar a inserção do professor com deficiência em sala de aula, aponta que um paradoxo é formado a partir desse posicionamento, haja vista que, teoricamente, uma pessoa com limitações em seus membros superiores não poderia exercer a função docente por ser rotulada muitas vezes pela sociedade por falta de eficiência, lembrando que a discussão versa sobre a representação do professor com deficiência diante de uma sociedade excludente e não sobre sua capacidade profissional.

Percebemos que as potencialidades de uma pessoa com deficiência sempre são deixadas em segundo plano. No primeiro olhar, aprioristicamente e em geral, são elencadas limitações e dificuldades para desempenhar alguma tarefa, sendo, então, tachado, não apenas de deficiente, mas, também, de incapaz. Via de regra, não são oportunizadas ferramentas e mecanismos necessários para transpor suas limitações.

Para Silva (2000), uma educação inclusiva questiona a artificialidade das identidades normais e entende as diferenças como resultantes da multiplicidade, e não da diversidade, garantindo o direito à diferença e não à diversidade. Nas palavras do autor,

A diferença (vem) do múltiplo e não do diverso. Tal como ocorre na aritmética, o múltiplo é sempre um processo, uma operação, uma ação. A diversidade é estática, é um estado, é estéril. A multiplicidade é ativa, é fluxo, é produtiva. A multiplicidade é uma máquina de produzir diferenças - diferenças que são irredutíveis à identidade. A diversidade limita-se ao existente. A multiplicidade estende e multiplica, prolifera, dissemina. A diversidade é um dado - da natureza ou da cultura. A multiplicidade é um movimento. A diversidade reafirma o idêntico. A multiplicidade estimula a diferença que se recusa a se fundir com o idêntico (Silva, 2000, p.100-101).

Nessa concepção, Mantoan (2003) ressalta que dentro do ambiente escolar conferir identidades a certos alunos, fazendo com que se mantenham em grupos, ou de alunos com algum tipo de deficiência, ou rotular em outros uma identidade socialmente dita normal, é tudo o que a inclusão não admite. Segundo a autora, essa atitude "não só justifica a exclusão dos demais, como igualmente determina alguns privilegiados" (Mantoan, 2003, p.11).

No campo filosófico, às margens do pensamento de Deleuze (2006) sobre a dialética entre o problema e a multiplicidade como elementos, pode-se afirmar que as diferenças convivem na multiplicidade, mas o problema é o que faz as diferenças coexistirem. Assim, não é suficiente que as singularidades apareçam juntas. Mais ainda, faz-se necessário que o único enlace de ligação entre elas seja a própria diferença.

O reflexo desse pensamento no ambiente educacional poderia ser percebido na diversidade de situações advindas da pseudoestratégia de inclusão que, apesar de tantas particularidades visíveis da pessoa com deficiência, insiste em tratar diferenças de forma igualitária e única, levando em consideração estudantes, e não docentes, sempre o público-alvo. Nesse sentido, Deleuze (2006) questiona que "não se pode mais continuar apegado à oposição entre um universal puro e particularidades encerradas em pessoas, indivíduos ou Eus. Não se pode continuar apegado a essa distinção, mesmo e principalmente, quando se tenta conciliar os dois termos, completá-los entre si" (Deleuze, 2006, p.178).

Com isso, nota-se a ignorância no estreitamento das adversidades. Dentre elas, pensar num espaço inclusivo em que todos os participantes do processo também são personagens representativos motivados e motivadores e, acima de tudo, dispostos a proporcionar, de forma multilateral, a inclusão no ambiente educativo, possibilita oferecer às pessoas com deficiência uma representação educacional e social favorável ao processo de ensino e aprendizagem.

Dentro desse contexto de diferenças, Josso (2007) conta que trabalhar questões pessoais do eu ser, por meio de análises e interpretações de sua história, permite evidenciar no sujeito suas variadas formas de identidade ao longo da vida. Apoiado em Josso (2007), partimos do pressuposto de que refletir sobre a importância da inclusão de professores com deficiência nas salas de aula, conduz ao resgate do passado sobre as várias maneiras de ser e agir a partir do meio em que eles estão inseridos e, principalmente, sobre as necessidades que carregam ao longo do trabalho como docente.

E é partindo dessa premissa que se pretende propor uma reflexão sobre a importância da inclusão de professores com deficiência nas salas de aula. Mais ainda, mostrar que o processo de inclusão social se inicia na escola, e que nela também há espaço para docentes com deficiência que, a partir de sua representatividade social e educacional no processo, de suas constantes metamorfoses para superar as limitações pessoais e soluções alcançadas para proporcionar um ensino satisfatório, aliados às experiências vivenciadas e à sensibilidade de um olhar imanente, tornam-se ferramentas essenciais para uma educação inclusiva.

 

A Inclusão Excludente

Os indivíduos com deficiência são vistos como "doentes" e incapazes, sempre estiveram em situação de maior desvantagem ocupando, no imaginário coletivo, a posição de alvos da caridade popular e da assistência social, e não de sujeitos de direitos sociais, entre os quais se inclui o direito à educação (Mazzotta, 2005). Tal fato é nítido se levarmos em consideração os termos empregados historicamente quando remetido às pessoas com algum tipo de limitação.

Sassaki (2010) aponta a evolução histórica dessa designação. Do início do século XX até 1960, eram denominados "incapacitados" os que não conseguiam executar algo devido à sua deficiência. De 1960 a 1980, eram chamados de "defeituosos" por apresentarem algum tipo de deformidade; "deficientes" em referência à deficiência física, auditiva ou visual; e "excepcionais" quando se tratava de pessoas com alguma deficiência intelectual. Já no período de 1981 a 1987, o termo utilizado era "pessoas deficientes". De 1988 a 1993, passou-se a dizer "pessoas portadoras de deficiência". A partir de 1993, passou-se a utilizar o termo "pessoas com necessidades especiais", o que atualmente foi substituído por "pessoas com deficiência".

Pode-se observar, então, a partir da metade do século XX, que se iniciam os esforços a fim de proporcionar a esses excluídos sociais um olhar humanizado que os considera como pessoas e o reconhecimento de seus direitos específicos. Em relação à educação, somente em 1989, com a Lei n° 7.853, é assegurada a matrícula de alunos em estabelecimentos de ensino público e privado.

Mesmo com todo o aparato legal que representa um grande avanço no sentido de garantia de direitos das pessoas com deficiência, infelizmente, porém, não podemos dizer que solucionamos o problema da exclusão. A inclusão educacional vai além de aprovação de leis ou preparar instituições de ensino. É mais conceitual que legislativa, é mais reflexiva que estrutural (Sassaki, 2010). A inclusão escolar pode ser percebida como um devir humano e não como um modelo a ser implantado. Nessa perspectiva dos movimentos pessoais de mudanças, Deleuze e Guattari (1997) afirmam que

Um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco ele é uma semelhança, uma imitação e, em última instância, uma identificação. (...) O devir não é uma evolução, ao menos uma evolução por dependência e filiação. O devir nada produz por filiação; toda filiação seria imaginária. O devir é sempre de uma ordem outra que a da filiação. Ele é da ordem da aliança" (Deleuze; Guattari, 1997, pág. 18-19).

Esse Estado, como conceituam os autores, foi elaborado para manter as mentes engessadas e domesticar indivíduos, não lhes permitindo o arbítrio pelo pensar. A partir dele, apreendem-se formas, processos e pensamentos. Essa mesma lógica é posta nas relações humanas e em suas potencialidades individuais, fazendo com que as pessoas com alguma deficiência não se enquadrem nos padrões sociais de normalidade, frutos de produções advindas das "tecnologias, pelos posicionamentos políticos, pelos processos históricos de construção dos conhecimentos dos quais pessoas anormais foram privadas e não se restringem a pessoas com deficiência" (Marcone, 2015, p. 27).

Tratando-se de profissionalização, essas diferenças são mais aparentes. Faz-se necessário um esforço para reeducação social em buscar mudanças de concepção fortalecendo a ideia que para "definir uma imperfeição, uma deficiência, é preciso ter o perfeito, o normal, estereótipos de normalidade e deficiência, só assim podem ser estabelecidos (inventados) parâmetros de normalidade e anormalidade" (Marcone, 2015, p. 47). Assim, para que isso ocorra "pouco ou nada exige da sociedade em termos de modificações de atitudes, de espaços físicos, de objetos e práticas sociais. O problema está nas barreiras atitudinais, humanas carregadas dos preconceitos e que fortalecem a exclusão" (Sassaki, 2010, p. 29).

Assim, Sassaki (2010) afirma que a relação entre indivíduos "estigmatizados" e "normais" deveria ser uma espécie de trato. Ao "estigmatizado", o sentir-se inteiramente parte do processo sem temor ou sofrimento quanto ao preconceito. Aos "normais", a tarefa de desenvolver habilidades para aprender a interagir com eles, não no sentido de limitação, mais de integração.

Nesse sentido, a prática docente por uma pessoa com deficiência aparece como um grande caminho e uma enorme oportunidade em conviver com o desigual, gerando mudanças na forma de como o alunos ditos "normais" enxergam a diferença e, para os discentes com algum tipo de deficiência, surge de fato uma representatividade maior no processo de inclusão escolar.

Ressaltamos ainda que um ponto a ser considerado sobre a pessoa com deficiência fora do mercado formal de trabalho seria a escassez de ações concretas que permitam uma qualificação profissional adequada, uma habilitação/reabilitação/readaptação eficientes e estímulos econômicos que propiciem contratação por escolas privadas. No que tange à reinserção da pessoa com deficiência no mercado de trabalho e a oferta de emprego, os dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) do Ministério do Trabalho apontam um crescimento na quantidade de empregos formais. Foram contabilizados 441,3 mil vínculos empregatícios, 5,5% a mais do que no ano anterior.

A despeito destes números e estatísticas, a prática da inclusão social só foi possível a partir da regulamentação da Lei n° 7.853/89, a qual dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência e sua integração social; do Decreto n° 3.298/99, o qual regulamenta a Lei anterior; e a Lei n° 8.213/91, que institui um percentual de cotas para a contratação de pessoas com deficiência em empresas. A partir dessas regulamentações, foi possível assegurar a inserção no mercado de trabalho, mesmo que em pequena escala.

A existência de leis que assegurem a inserção e garantias de acesso ao trabalho não se mostra, entretanto, suficiente. Outros fatores necessitam ser analisados tais como "o preparo profissional e social da pessoa com deficiência que está buscando o mercado de trabalho e, também, as condições estruturais, funcionais e sociais do ambiente que irá recebê-la como funcionária" (Tanaka; Manzini, 2005, p. 275). Dessa maneira, não correm o risco de admiti-las apenas na obrigatoriedade de cumprimento de leis.

Percebemos que, na maioria das vezes, as empresas estão mais preocupadas em cumprir a lei em vez de capacitar e ressocializar profissionalmente a pessoa com deficiência. Nesse panorama, Morais e Fernandes (2008, p.13) enfocam que "uma cultura empresarial forte, assente em princípios econômicos sólidos, tem que ser desenvolvida, não à parte, não contra, mas com a incorporação de valores de responsabilidade social".

No que concerne ao professor com deficiência, identificamos uma inclusão excludente em que decisões são tomadas e ferramentas são utilizadas para estreitar essa diferença entre pessoas com e sem deficiência dentro de um ambiente educacional, de modo tal que é ignorada a hipótese de a pessoa com deficiência ser o docente. Como aponta Marcone (2015) ao citar, por exemplo, uma tecnologia que ao tempo que inclui, pode ser a mesma que exclui. Nas palavras do autor:

Cada civilização tem sua ideia de normalidade e o oposto acaba sendo excluído, o anormal é excluído. A ideia é pensar em como esse anormal não é estático, como alguns podem confortavelmente acreditar. O excluído de amanhã pode ser você ou eu, pois entendo que ter ou não uma deficiência não é algo dado (Marcone, 2015, p. 26).

Essas lacunas muito se devem à má formação oferecida em grande parte das instituições de ensino. Gonçalves (2000) alerta que pouco se tem refletido a respeito do desenvolvimento profissional e da formação de professores. Com isso, acaba-se preservando as mesmas práticas por nós formadores, sem ao menos tentar modificá-las. E, levando em consideração a educação inclusiva, mais falhos são esses processos formativos em que não é promovida discussão a respeito da inclusão e possibilidades de trabalho para o professor com deficiência.

 

Experiências de Vida como Ferramenta de Ensino e Aprendizagem

É cada vez mais comum constar em pesquisas recentes, a adoção da narrativa como metodologia investigativa de práticas educativas em sala de aula. Tal abordagem mostra-se favorável para produção de questionamentos, análises bem com possibilidade para a reinvenção do trabalho docente. De modo sistêmico, Bruner (2002, p. 46) entende que "uma narrativa é composta por uma sequência singular de eventos, estados mentais, ocorrências envolvendo seres humanos como personagens ou autores" e, dessa maneira, permite extrair um conteúdo rico a ser investigado.

Para Gonçalves e Nardi (2016, p.1066), a pesquisa narrativa "se ocupa com a vida, a compreensão de experiências vividas, situadas no tempo e no espaço e expressas por unidades narrativas, fragmentos de histórias vividas e relatadas". Assim, é possível enfatizar a importância dada às apropriações das experiências vividas que o sujeito constitui e em que se constitui, além de abordar as relações e a narrativa como princípios analíticos, propiciando indivíduo o papel de ator e autor de sua própria história.

Josso (2004) enfatiza que, ao rememorar e compartilhar histórias de vida, o sujeito possibilita tirar lições dela e proporcionar o aprendizado por meio de experiências pessoais. Dessa forma, o processo de formação e autoconhecimento é singular e que, portanto, pode haver inúmeras interpretações, ou seja, pensar o mundo por meio das experiências vividas de um professor com deficiência, apresenta-se como potencial investigativo de pensar os processos educativos inclusivos através dos próprios sujeitos que neles estão inseridos.

Souza (2004, p.3) ressalta que explorar em sala de aula questionamentos construídos a partir de experiências pessoais, permite "um aprofundamento sobre o conhecimento de si, bem como ampliam os significados da prática didático-pedagógica vivenciada através de suas experiências individuais e com seus alunos". Assim, o docente com deficiência faz emergir aspectos subjetivos dos caminhos para a inclusão escolar na medida que "redinamizam o projeto de si porque recompõem os recursos e a coerência pessoal. Podemos, também, projetar-nos, identificar-nos e introjetar aspectos daquilo que o sensível nos convida a ver, a sentir, a pensar, a fazer" (JOSSO, 2007, p. 435).

Assim, investigar narrativas de vida encontra-se na previsibilidade do enlace social, cultural e histórico do sujeito, a partir de uma memória e um imaginário pessoal sensível, capaz de seduzir, de tocar emocionalmente, de falar, de interpelar outras consciências ou, ainda, de convencer racionalmente, permitindo a autenticidade da criação de si, levando em consideração diferentes formas do sensível nos processos formativos (JOSSO, 2007).

Nesse cenário, Goodson (2000) ressalta a importância, além das discussões acerca da formação de professores, "a falta do ingrediente principal que é a voz do professor" (p. 69). Compreender a vida do professor como parte de uma investigação educacional, faz-se necessário para compreender o vivido e as opções escolhidas que demarcam seu exercício da docência. Nas palavras de Goodson (2000),

Em primeiro lugar, tem-se dado ênfase à prática docente do professor, quase se podendo dizer do professor enquanto "prático". Necessita-se agora de escutar acima de tudo a pessoa a quem se destina o "desenvolvimento". Isto significa que as estratégias a estabelecer devem facilitar, maximizar e, em sentido real, surpreender a voz do professor (Goodson, 2000, p. 69).

Logo, enxergar de maneira reflexiva e analítica o papel do professor com deficiência no processo de ensino e aprendizagem, permite atribuir novas significações às práticas que subsidiam e levam a construir constantemente a identidade do ser docente que pretende vir a ser.

Para Souza (2004), a memória é descrita num tempo e consente percorrer novamente nossa trajetória, a fim de analisar, do ponto de vista metodológico, o percurso pessoal e suas atribuições no processo de busca pelos sentidos e significados das experiências individuais e coletivas. Assim, ao caminhar pelo passado, busca-se questionar, como sujeito formador e em formação, o que é possível melhorar em relação às práticas docentes, reconhecendo as falhas e possibilitando um novo recomeço.

Josso (2004) ressalta que optar pelas histórias de vida faz com que se avalie o desvio entre os saberes concebidos e as competências a conceber ou a desenvolver, partindo da premissa de que a autobiografia abarca "a globalidade da vida em todos os seus aspectos, em todas as suas dimensões passadas, presentes e futuras e na sua dinâmica própria" (Josso, 2004, p. 31).

No que tange à pesquisa, a partir de sua própria história, Paixão (2008) ressalta que o resgate memorialístico possibilita esclarecer a prática e a formação docente "na medida em que permite a interrogação das representações do saber-fazer e dos referenciais que o sujeito utiliza para compreender a si mesmo no decorrer de uma prática educativa" (Paixão, 2008, p. 28).

Destarte, refletir sobre a maneira de que o professor com deficiência se configura como professor permite entender no que se baseou para ser aquilo que quer ser como docente e de que forma se deu/dará essa transformação. Esse caminho de ser e de vir a ser é oriundo de sua educação e formação, ao experienciar sua própria história de vida (Josso, 2004). Com isso, promove-se um processo analítico de seus pensamentos produzindo questionamentos e significados sobre o que, o porquê e o para que está ensinando.

Sendo assim, a função de professor fica reconfigurada, pois passa a ser, dentre outras, de mediador entre o conhecimento elaborado e o conhecimento do aluno; de problematizador, ao promover e articular situações decorrentes do processo; de orientador, no sentido dos possíveis encaminhamentos a serem adotados (Burak;Kluber, 2008).

Nesse contexto, percebemos que o professor com deficiência possui papel determinante não só na superação de estigmas atribuídos à pessoa com deficiência, mas também na abordagem tradicional e fragmentação de conteúdos, devendo, portanto, ultrapassar a ideia de reprodução para a produção do conhecimento, a partir da reinvenção de sua própria prática.

 

A Representação Educacional do Professor com Deficiência

Para Jodelet (2007), o ambiente escolar não se restringe a um espaço de coleta de dados ou de aplicação de um modelo teórico. Ele deve ser entendido como "uma totalidade no seio da qual os recursos oferecidos pelo modelo das representações sociais devem ser utilizados de maneira adaptada aos problemas característicos dos diferentes níveis de sua estruturação" (Jodelet, 2007, p.13). Quanto a essa representação, a autora frisa que conhecer os sujeitos que vivem numa determinada situação possibilita compreender as formas de manipulação programadas nesse cotidiano, sendo primordial recuperar um olhar de implicação e empatia na escola.

Compreendemos, portanto, que o professor com deficiência se apresenta subjetivamente como um exemplo de superação diária, ultrapassando barreiras criadas e postas por uma ideia de normalidade social. Mais ainda, através de suas experiências pessoais, pode não apenas estimular, mais também levar os alunos a uma reflexão acerca do que seria de fato uma sociedade verdadeiramente inclusiva, proporcionando um pensar através do próprio olhar (Jodelet, 2007).

Seus relatos revelam essa riqueza e contribuem, pela sua vez, para pensar os personagens de uma única - o uno - prática imanente sempre afetada, exposta à travessias, ao trabalhoso devir do pensamento, quando do que se trata é de pensar algo que não é alheio, mas a própria experiência (Deleuze; Guattari, 1995).

A relação entre docência e deficiência representa uma significativa possibilidade de debater e analisar a inclusão de indivíduos com deficiência em ambientes escolares a partir das atividades docentes avaliando suas experiências, assim como os resultados oriundos dessas práticas vivenciadas.

Para os profissionais do social, referindo-nos aqui aos psicólogos, assistentes sociais, educadores e outros que participam, de alguma maneira, na produção social de subjetividades, a responsabilidade na capacidade de se articular com os agenciamentos de enunciação no plano micropolítico onde estão inseridos. No contexto organizacional, essa possibilidade de articulação favorece a abertura para a compreensão de que a saúde do trabalhador é, também, resultado da sua inserção no mundo e do sentido que ele dá às atividades que executa (Silva; Francisco, 2010, p. 754).

A essa subjetividade, Deleuze e Guattari (1995) apontam que os seus elementos são suas singularidades; suas relações, os devires; seus acontecimentos, suas hecceidades, ou melhor, individuações sem sujeito e seu modelo de realização é o rizoma, ou seja, quando qualquer fato ou vivência pode se entrelaçar a qualquer experiência sem que haja uma forma, modelo ou caminho a ser seguido.

Mas, por conta de atitudes e preocupações estereotipadas sobre a aptidão para a prática docente, é quase inédito ter um professor com deficiência à frente da sala de aula. Como resultado, as escolas estão perdendo os benefícios que os professores com deficiência lhes podem trazer, tais como novas formas de aprendizado e o uso de ferramentas de aprendizagem. Talvez, o benefício mais importante a ser enxergado é a personificação positiva para as crianças sobre deficiência, diversidade e diferenças, possibilitando a troca de experiências e a aprendizagem por meio das histórias de vida (Josso, 2004).

 

 

Ao relatar os fatos vividos, esse docente reconstrói sua trajetória percorrida dando novos significados. Assim, suas experiências não torna a verdade literal dos acontecimentos, mas se mostra a representação que deles faz o sujeito e podendo ser transformadora da própria realidade. O resgate memorialístico de nossas vidas permite-nos reviver experiências indissociáveis. A partir dele, num recorte definido, é possível "reconhecer os principais resultados da investigação, identificar temáticas e abordagens dominantes e emergentes, bem como lacunas e campos inexplorados abertos a pesquisas futuras" (Haddad, 2002, p.9).

Mais ainda, a centralidade do sujeito no processo de formação sublinha a importância da abordagem compreensiva e das apropriações da experiência vivida, das relações entre subjetividade e narrativa como princípios, que concede ao sujeito o papel de ator e autor de sua própria história.

Nóvoa (2010) afirma que a constituição de identidades é um fenômeno que ocorre no íntimo de cada pessoa, sendo condicionada ao conjunto de relações que o sujeito estabelece, internamente, com as dimensões objetivas dos processos de formação. Assim, a identidade profissional está vinculada ao estatuto e função social da profissão, à cultura do grupo de pertença profissional e ao contexto sociopolítico. Desse modo, a identidade se constitui a partir das "interações entre os diferentes universos socioculturais e, por isso mesmo, é forjada numa rede de relações de poder, de gênero, de classe, características dos tempos e espaços onde ocorre o processo identitário" (Paixão, 2008, p. 37).

É na convivência na sala de aula que os partícipes percebem que não há diferença entre a pessoa com ou sem deficiência. Constata-se, à frente de uma turma, que o deficiente possui capacidades, potencialidades, vida social, familiar e profissional. Para os alunos com deficiência, uma questão de inspiração: concretizam e entendem que podem estudar, passar num concurso público, ter acesso a um curso superior, ter uma vida social.

Vale ressaltar que, devido ao olhar preconceituoso de muitos, a primeira atitude é o desrespeito. Não é admitido que exista limitação ao professor que vá orientar, ensinar. E, para inverter esse quadro mostrando o equívoco nas primeiras conclusões, é primordial um apoio técnico e humanos. Mais que isso, que o professor com deficiência não se utilize dessa diferença para manipular ou coagir os alunos a fazer coisas, mas mostrar que ajudar e ser solidários ao próximo é o que podemos fazer em qualquer tempo, e não apenas às pessoas que se movem, olham ou parecem diferentes.

E, referir-se ao processo de subjetivação desse professor, observamos que todos passaram por dificuldades e adaptações, tanto no trabalho quanto em situações diárias, momentos de exclusão, decepções, barreiras. Com isso, constituíram sua subjetividade a partir de um autoconhecimento do constante devir de uma pessoa com deficiência e capaz, por meio de inquietações, atitudes ao questionar valores, visões, preconceitos sentidos, de modo tal que essa metamorfose foi o resultado das relações consigo mesmo.

Utilizar-se dessa subjetividade para transpor um obstáculo em sala de aula, é ter a consciência da importância na forma de agenciamento dessa subjetividade através das experiências pessoais. Não no sentido de compreender como um espaço vazio que se deseja preencher, mas considerá-la num plano imanente de constantes produções.

No que cerne esses agenciamentos maquínicos, Deleuze e Guattari (1976) afirmam que

Não há agenciamento maquínico que não seja agenciamento social de desejo, não há agenciamento social de desejo que não seja agenciamento coletivo de enunciação [...]. E não basta dizer que o agenciamento produz o enunciado como o faria um sujeito; ele é em si mesmo agenciamento de enunciação num processo que não permite que nenhum sujeito seja assignado, mas que permite por isto mesmo marcar com maior ênfase a natureza e a função dos enunciados, uma vez que estes não existem senão como engrenagens de um agenciamento semelhante (não como efeitos, nem como produtos). [...] A enunciação precede o enunciado, não em função de um sujeito que o produziria, senão em função de um agenciamento que converte a enunciação na sua primeira engrenagem, junto com as outras engrenagens que vão tomando o seu lugar paralelamente (Deleuze; Guattari, 1976, p. 147-152).

Logo, esses agenciamentos subjetivos são demarcados e consumidos como frutos dos resultados de um processo de produção em que o indivíduo é o foco de subjetivação. A problematização dessa produção individual pelo docente com deficiência implica considerar o elo entre essas máquinas produtivas pessoais e os níveis de seu pensamento imanente, a fim de se estabelecer modos de sensibilidade e percepção do mundo que se almeja construir.

Para Guattari e Rolnik (2000), no entanto, a noção de subjetividade não pode ser resumida ao âmbito da pessoalidade do sujeito, mesmo que seja a linha em que se desenvolvam futuramente fazendo com que exista a possibilidade de diferentes tipos de "individuações". O autor frisa que

uma coisa é a individuação do corpo. Outra é a multiplicidade dos agenciamentos de subjetivação: a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social... um indivíduo sempre existe, mas apenas enquanto terminal; esse terminal individual se encontra na posição de consumidor de subjetividade. Ele consome sistemas de representação, de sensibilidade, etc., os quais não tem nada a ver com categorias naturais universais (Guattari; Rolnik, 2000, p. 40-41).

 

Considerações Finais

O mundo do ensino está mudando e a profissão deve evoluir com essas mudanças. Abrir a formação e a prática de professores para pessoas com deficiência só pode enriquecer a experiência de aprendizagem para todos os envolvidos. Teorizar sobre a deficiência e aliar sua vivência como indivíduo com limitações é uma experiência enriquecedora tanto para o aluno quanto para o professor. A troca de conhecimentos e o aprendizado entre si proporciona e aproxima teoria e prática contribuindo para a desnaturalização dos estigmas e rótulos sociais.

Vale ressaltar que o movimento de inclusão é contínuo e inacabado. A todo instante, surgem especificidades diferentes e situações incomuns que merecem atenção, as quais irão contribuir na formação e identidade profissional, em que todos os envolvidos além da dedicação exigida, devem estar dispostos a colaborar.

Dessa forma, é possível mostrar que a pessoa com deficiência tem, sim, limitações como qualquer outro sujeito dito "normal", porém essas limitações não são um impeditivo para possuir sucesso no âmbito educacional e profissional. Seu papel torna-se fundamental no processo de construção de uma sociedade sem preconceito e inclusiva, mais ainda quando a pessoa desempenha o papel de professor, pois, paramuitos alunos, é um referencial a ser seguido. Reinventar-se seria a única exigência nesse caminho para melhor exercer sua profissão, desmistificando o preconceito de incapaz e improdutivo.

 

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Recebido em: 06/07/2020
Aprovado em: 01/10/2020

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