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Revista Polis e Psique
versão On-line ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.9 no.2 Porto Alegre maio/ago. 2019
ARTIGOS
Violências, mulheres travestis, mulheres trans: problematizando binarismos, hierarquias e naturalizações
Violence, transvestites women, trans women: questioning binarisms, hierarchies and naturalizations
Violencia, mujeres travestis, mujeres trans: problematizando binarismos, jerarquías y naturalizaciones
Mériti SouzaI; Marcelo de Oliveira PradoII
IUniversidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil
IINúcleo de Apoio à Saúde da Família - NASF, Prefeitura Municipal de Tijucas, Tijucas, SC, Brasil
RESUMO
O presente artigo problematiza violências vivenciadas por pessoas que se reconhecem ou já se reconheceram como mulheres travestis e mulheres transexuais - uma das entrevistadas no momento da entrevista se reconheceu como crossdresser. Foram realizadas entrevistas na Região da Grande Florianópolis e a análise ocorreu a partir das referências de autores como Jacques Derrida e Judith Butler, considerando as suas críticas aos binarismos e as hierarquias entendendo-os como produtores de relações de violências. Também foram utilizadas contribuições do transfeminismo, como a noção de cisheteronormatividade. As performances de gênero de mulheres travestis e mulheres trans foram relacionadas à abjeção desses corpos que não condizem com os ideais normativos de gênero. Essa abjeção está relacionada à exposição a situações de violências associadas à sua concomitante naturalização. Desconstruir pares como homem/mulher, natureza/cultura, vítima/agressor, pode contribuir com o deslizamento de sentidos dessas cristalizações binárias, destituindo o lugar de violência ocupado por corpos trans e travestis.
Palavras-chave: violências; abjeção; mulheres trans; mulheres travestis; binarismo.
ABSTRACT
The present paper discusses the violence experienced by people who recognize or have recognized themselves as transvestites women and transsexual women - one of the interviewees at the time of the interview identified herself as a crossdresser. Some interviews were conducted in the Region of Grande Florianópolis and the analyses occurred from the references of Jacques Derrida and Judith Butler, considering binarisms and hierarchies as producers of violence relations. Also, it was possible to use transfeminism contributions such as the notion of cis heteronormativity. Transvestites and transgender women's performances were related to the abjection of bodies that are not consistent with gender normative ideals. That abjection relates to the exposure to violent situations associated with the concomitant naturalization. Deconstructing pairs such as man/woman, nature/culture and victim/aggressor may contribute to the senses sliding of these binary crystallizations, depriving the place of violence occupied by transvestites and trans bodies.
Keywords: violence; abjection; trans women; transvestites women; binarism.
RESUMEN
El presente artículo problematiza la violencia vivida por personas que se reconocen o que ya se reconocieron como mujeres transexuales y mujeres travestis, y una de las participantes se consideró como crossdresser al momento de la entrevista. Fueron realizadas entrevistas en la Región de la Grande Florianópolis y el análisis se dio a partir de las referencias de Jacques Derrida y Judith Butler considerando los binarismos y las jerarquías como productores de relaciones de violencia. También, se utilizaron contribuciones del transfeminismo como la noción de cisheteronormatividad. Las performances de género de mujeres travestis y trans fueron relacionadas con la abyección de esos cuerpos que no condicen con los ideales normativos del género. Esa abyección está relacionada con la exposición a situaciones de violencia asociadas con su concomitante naturalización. Deconstruir pares como hombre/mujer, naturaleza/cultura, víctima/agresor puede contribuir con el deslizamiento de los sentidos de esas cristalizaciones binarias, destituyendo el lugar de la violencia ocupado por los cuerpos trans y travestis.
Palabras clave: violencia, abjyección, mujeres trans, mujeres travestis, binarismo.
Introdução
No Brasil é possível verificar que nas últimas décadas as pesquisas com mulheres travestis e transexuais1 despontaram como temática central nas pesquisas nacionais, em especial nas áreas da antropologia, ciências sociais e psicologia. Os dados recolhidos por Marília dos Santos Amaral et al. (2014), em trabalho de revisão da literatura do período de 2001 a 2010 em bases de dados nacionais, como artigos, bancos de teses e dissertações, revelam que os principais temas ligados às mulheres travestis são o combate à AIDS, a transformação corporal e a prostituição. Contrapondo esses temas principais, está o número reduzido de publicações, inclusive no campo da psicologia, a respeito do envelhecimento, adolescência, violência, educação, parentalidades/relações conjugais, raça, religião e política. A respeito da temática das violências, Amaral et al. (2014) discutem que as violências como temática central nas pesquisas sobre a vivência das mulheres travestis e transexuais ainda é baixa, inclusive quanto à produção de dados quantitativos. Este contexto traduz-se numa não visibilidade em que a falta de pesquisas e dados dificulta tanto a explicitação deste cenário quanto a organização de políticas públicas, além de produzirem no campo da psicologia, a manutenção de práticas que perpetuam normatividades e violências.
Segundo a organização internacional Tgeu - Transgender Europe (2017) - que atua juntamente com instituições parceiras pelos direitos de mulheres transexuais e travestis na Europa, o Brasil é o país em que mais houve assassinatos de mulheres travestis e transexuais2 no mundo no período de Janeiro de 2008 a dezembro de 2016, totalizando 938 mortes, 40 % de um total de 2343. Vale ressaltar que esses dados alarmantes ainda não abrangem a totalidade de assassinatos por conta da subnotificação. Dados divulgados pelo Grupo Gay da Bahia (2017) indicam o assassinato de 343 pessoas LGBT no Brasil no ano de 2016. Desse total, 144 pessoas mortas eram travestis e transexuais, representando 42% do número de mortes, sendo o padrão de assassinato de mulheres travestis e transexuais mortas a tiros na pista3. Esses mesmos padrões de assassinato foram denunciados por Sérgio Carrara e Adriana Vianna (2006) em pesquisa feita junto à Assessoria de Planejamento da Polícia Civil (ASPLAN) do Rio de Janeiro. De acordo com os autores, além de serem assassinadas a tiros na rua, as travestis eram em sua maioria pardas e negras, indicando a relação dessa violência com o racismo o pertencimento às camadas mais pobres da sociedade brasileira.
Quanto a Florianópolis, cidade foco da pesquisa apresentada, há um recente estudo a respeito de violências vivenciadas por mulheres travestis e trans. Esse estudo fez parte do projeto "Direitos e violências na experiência de travestis e transexuais em Santa Catarina: construção de perfil psicossocial e mapeamento de vulnerabilidades", fruto da parceria entre a Associação em Defesa dos Direitos Humanos com enfoque na sexualidade - ADEH e o Grupo Modos de Vida, Família e Relações de Gênero - Margens/UFSC. Entre as diversas informações geradas e descritas por Brune Bonassi4 et al (2015) no relatório que contou com questionário respondido por 100 pessoas que se identificaram como mulheres travestis (51%), homens ou mulheres transexuais (43%) e mulheres (6%), destacamos o alto índice de violências relatadas como: Discriminação (87%), violência psicológica (76%), violência física (62%), violência institucional (43%), negligência (39%), violência sexual (30%), abuso financeiro (21%), tortura (09%), trabalho escravo (07%) e tráfico de pessoas (04%).
No presente artigo o objetivo geral diz respeito a problematizar relatos de violências vivenciadas por mulheres travestis e mulheres transexuais na cidade de Florianópolis e em cidades vizinhas que compreendem a Região da Grande Florianópolis. Objetivamos problematizar as violências vivenciadas por pessoas que se reconhecem ou já se reconheceram como mulheres travestis e mulheres trans problematizando os pares binários e hierárquicos de natureza/cultura, vítima/agressor, homem/mulher e cis/trans. Para tanto, recorremos a autores como Judith Butler e Jacques Derrida, que problematizam os binarismos, as hierarquias, as naturalizações, as normatizações, e suas relações com a produção de violências. Também utilizamos o conceito transfeminista de cisheteronormatividade. O transfeminismo, discutido por blogueiras como Hailey Kass e Bia Pagliarini, e segundo Jaqueline Gomes de Jesus:
transfeminismo, algumas raras vezes chamado de feminismo transgênero, prolifera pela internet, anuncia-se em blogs e se confraterniza em redes sociais, e pode ser definido como uma linha de pensamento e de prática feminista que rediscute a subordinação morfológica do gênero (como construção psicossocial) ao sexo (como biologia), condicionada por processos históricos, criticando a como prática social que tem servido como justificativa para a opressão sobre quaisquer pessoas cujos corpos não estão conformes à norma binária homem/pênis e mulher/vagina [...] (JESUS, 2014, p. 5).
Já o conceito de cisheteronormatividade utilizado por pesquisadores e militantes ligadas aos transfeminismos, ao mesmo tempo em que mantém a noção de heteronormatividade discutida por Butler, ressalta as diferenças produzidas a partir do binarismo trans e cis. Segundo Alice Gabriel (2011), entende-se que cis, relacionado à noção de cisgênero refere-se às pessoas que diferente das pessoas transexuais, se identificam com o gênero segundo o qual foram denominadas no nascimento a partir da genitália. O objetivo aqui não é reforçar o binarismo cis e trans, mas sim, ressaltar a importância desse primeiro movimento de inversão de uma hierarquia historicamente produzida na qual pessoas trans são subjugadas a pessoas cisgêneros, não ignorando que seria importante em determinado momento promover o deslizamento de sentidos para a desconstrução de tal hierarquia, bem como de outras a ela relacionadas.
Ao discutir questões relacionadas com violências vivenciadas por mulheres travestis e trans, podemos articular a cisheteronormatividade com a noção de abjeção proposta por Butler (1999), uma vez que a autora faz uma crítica à construção identitária baseada na exclusão daquilo que difere da norma, em que a norma é considerada natural, e aquilo que é localizado fora dela é considerado o abjeto, destituído de humanidade. Ainda, nesse contexto, importante é o conceito de performatividade, pois ao discutirmos uma temática ligada às mulheres travestis e trans, não se tem concordância a respeito do que sejam tais categorias, inclusive entre as pessoas travestis e trans. Há diversas formas singulares de performance de gênero e de subjetivação das pessoas que se reconhecem como travestis e transexuais, formas as quais não podem ser universalizadas, assim como não podem ser universalizadas as performances de gênero de pessoas que se reconhecem como cisgêneras. Para Butler (1999) a performatividade não trata de uma teatralidade, no sentido de uma escolha deliberada da pessoa. Em suas palavras "na teoria do ato da fala, um ato performativo é aquela prática discursiva que efetua ou produz aquilo que ela nomeia" (Butler, 1999, p. 167).
Derrida, que assim como Butler se baseou na teoria dos atos da fala de Austin, traz a performance como "... comunicar uma força por impulsão de uma marca" (Derrida, 1991, p. 363). Assim, o ato performativo não tem um referente fora de si ou uma causa exterior: o performativo transforma e produz uma situação. O gênero como performativo nessa perspectiva se faz por repetições, citações das normas presentes na cultura, sendo sempre citações das citações, não havendo um modelo original, por exemplo, do que é ser homem ou mulher. Assim, optamos pela utilização do conceito de gênero como performatividade considerando relevante situar que o gênero para Butler (2006a) é performativo tanto para os considerados sujeitos quanto os considerados abjetos, tanto para as cisgêneras quanto para as mulheres travesti e trans, o que implica na desnaturalização do gênero.
Importante salientar que as análises que se seguem não pretendem indicar generalizações, mas antes, acompanhar as produções singulares presentes nos modos de vida e nas formas de lidar com o que as pessoas entrevistadas consideram violências. Adotamos a palavra "violências" no plural, pois entendemos que usá-la no singular produz o efeito de universalizar as vivências das violências, descolando-as do contexto material a que estão relacionadas. O uso de violências no plural permite, portanto, que vários sentidos possam ser relacionados à palavra, ficando abertas as possibilidades de deslizamento de sentidos.
Ainda sobre as violências, considerando a perspectiva teórica de Butler (1999; 2006; 2015a; 2015b) e de Derrida (1991; 2001a; 2001b), optamos por trabalhar com a concepção das violências como processos que assim como o poder5, fazem parte da constituição subjetiva por meio das próprias normas que tornam possível a existência dos sujeitos:
Somos, pelo menos parcialmente, formados por meio da violência. São atribuídos a nós gêneros ou categorias sociais contra a nossa vontade, e essas categorias conferem inteligibilidade ou condição de ser reconhecido, o que significa que também comunicam quais podem ser os riscos sociais da não inteligibilidade parcial. Mas mesmo que isso seja verdade, e acho que é, ainda assim, deveria ser possível afirmar que certa ruptura crucial possa ser produzida entre a violência mediante a qual somos formados e a violência com a qual, uma vez formados, nos conduzimos. (Butler, 2015a, p. 236).
Contudo, como afirma Butler, ainda que sejamos parcialmente sujeitos formados na violência por meio das normas, essas não atuam de forma determinística, não podendo ser localizada uma origem ou início de suas agências, nem mesmo é possível afirmar que seus efeitos são necessariamente a reiteração das violências. Derrida, por sua vez, discute o exercício das violências por meio da crueldade como:
... o desejo de fazer sofrer por sofrer, mesmo de torturar ou de matar, de se matar ou de se torturar por torturar ou por matar, para sentir um prazer psíquico no mal pelo mal, mesmo para gozar do mal radical, em todos esses casos a crueldade seria difícil de determinar ou de delimitar (Derrida, 2001, p. 6, destaques no original)
Para o autor, a crueldade está relacionada às possibilidades de realização da pulsão de morte como descrita por Sigmund Freud (1920/1996), não sendo algo natural, porém uma potencialidade ligada à própria dimensão inconsciente da constituição subjetiva. Essa é uma concepção importante, pois contribui para a problematização do binarismo vítima e agressor, na medida em que permite reconhecer em si a potencialidade de não apenas sofrer violências, mas de sermos violentos consigo mesmos e na relação com o outro. De todo modo, a vivência da crueldade e das violências não ocorre de maneira neutra ou igual para todos os sujeitos, ela se vê implicada no contexto de uma realidade material, que potencializa a vivência de violências e crueldade nas vidas consideradas abjetas (BUTLER, 1999). A seguir apresentamos escolhas metodológicas e conceitos elencados para sustentar nossas análises e relacioná-las com as vivências relatadas pelas pessoas participantes da pesquisa.
Método
O material de análise apresentado no artigo diz respeito a entrevistas realizadas com duas pessoas, uma que se reconhece como mulher trans e a outra que já se reconheceu como travesti e atualmente diz reconhecer-se como crossdresser6, que residem na região da Grande Florianópolis, SC. O acesso a essas pessoas se deu principalmente por intermédio e com apoio da Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade - ADEH, uma Organização Não-Governamental, situada na cidade de Florianópolis, que atende à população de mulheres travestis e trans, bem como gays, lésbicas, bissexuais, mulheres heterossexuais vítimas de violências e quaisquer pessoas que procurem ajuda em direitos humanos. Informamos que o presente trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFSC, sendo a pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética de Pesquisa com Seres Humanos da UFSC, atendendo às prescrições da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, ligado ao Ministério da Saúde. Comunicamos, ainda, que para realização das entrevistas, foi apresentado previamente o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, sendo informado às participantes e acordado que os relatos seriam gravados e depois utilizados em uma pesquisa.
Assim sendo, utilizamos um roteiro pré-estruturado com perguntas para realização das entrevistas, as quais foram gravadas e depois transcritas. Para as análises feitas neste artigo, foram selecionados trechos das entrevistas. Salientamos que entendemos a entrevista como discurso articulado à relação estabelecida entre as entrevistadas e o entrevistador, ou seja, envolve as experiências de ambas as partes. Como primeiro autor do artigo, que conduziu as entrevistas, me reconheço como homem, cisgênero, homossexual, pardo - entre outras categorias -, relato que no decorrer da pesquisa me deparei com momentos em que as minhas concepções sobre violências - fruto de minhas experiências -, divergiram diversas vezes do que as entrevistadas consideravam serem violências, o que a meu ver, enriqueceu o trabalho.
Para entender a concepção de experiência recorremos à análise de Joan Scott (1998) que critica a posição de historiadores que trabalham a partir da leitura de que o relato da experiência constitui uma prova incontestável e originária da verdade do sujeito e sobre o sujeito, sendo que realizam suas análises a partir dessa leitura. Dessa forma, neste artigo o relato de experiência feito nas entrevistas não é operado como fundamento de uma verdade última assentada no sujeito, mas sim trabalhamos com a possibilidade de articulação de saberes, análise e desconstrução de verdades. Importante ressaltar ainda que a noção de experiência envolve o processo de subjetivação em um contexto composto pela rede social, cultural, econômica, política, etc. (DERRIDA, 2001b), assim como as relações de poder (FOUCAULT, 1995), não se tratando de uma concepção alheia à materialidade.
Tomando como referência a crítica à metafísica da presença feita por Derrida (2001b) utilizamos a estratégia da desconstrução proposta por ele como recurso para a produção do conhecimento. Ou seja, a desconstrução é utilizada para a leitura, produção e análise do material produzido na pesquisa, neste caso, as entrevistas realizadas. A desconstrução é um trabalho de crítica dirigido às construções logocêntricas, binárias e hierárquicas que atravessam a sociedade ocidental tanto na linguagem quanto nas práticas. Para o autor, na tradição filosófica ocidental a metafísica da presença orientou o pensamento em que a fala e o logos comandam a produção do conhecimento, sendo a verdade atribuída ao logos e a voz considerada na proximidade absoluta do ser. Dessa forma, na história da metafísica tanto ocorre uma hierarquia entre a fala e a escrita, em que a escrita foi considerada apenas representação da fala que teria relação com a verdade do sujeito, quanto ocorre à predominância de uma dualidade entre o concreto e o simbólico na compreensão da realidade. Entretanto, na perspectiva derridiana, na qual se abandona a busca por origens, o contexto é compreendido como algo que não pode ser totalmente recoberto, possibilitando que não exista a necessidade de buscar sua reconstituição pela verdade e pela origem.
Para Derrida (2001b) a desconstrução envolve os movimentos de inversão e deslocamento, na qual se explicitam os polos hierárquicos presentes, por exemplo, nos pares natureza-cultura, razão-paixão, homem-mulher e espírito-matéria. Para Derrida (2001b, p. 48) "desconstruir a oposição significa, primeiramente, em um momento dado, inverter a hierarquia". Assim, com a desconstrução se faria um primeiro movimento de inversão dos polos binários hierárquicos e, um segundo movimento de deslocamento dos sentidos associados a esses polos. O autor salienta a importância de realizar um gesto duplo, no sentido de inverter as hierarquias e depois deslocar os sentidos a eles associados, num deslizamento de sentidos jamais apreendidos de maneira fixa. Deste modo, o trabalho da desconstrução também demanda o deslocamento, o afastamento, pois a inversão pode servir a denúncia do exercício de poder dos ocupantes de um polo hierárquico em relação ao outro, porém, permanecer apenas na inversão desses polos pode implicar na manutenção da situação do binarismo e da hierarquia. Então, após a inversão hierárquica entre os pares opera-se o deslizamento de sentidos, explicitando que esses pares não têm relação com a verdade do sujeito, pois não há verdade como substância do sujeito para ser apreendida.
Nesse sentido, neste artigo não buscamos as origens últimas das violências sofridas por mulheres trans e travestis, pois seria incoerente com as referências teóricas de Derrida e de Butler. Partimos do pressuposto de que a entrevista tem relação com a experiência dos participantes, entretanto não corresponde a ela. Ou seja, o material produzido nessa pesquisa será trabalhado a partir da perspectiva do texto, considerando como texto as entrevistas realizadas, bem como, o entorno sócio histórico no qual habitam as pessoas envolvidas na pesquisa. Ressaltamos que Derrida (2001b) compreende a linguagem como texto e o texto como o contexto que envolve as pessoas, as instituições, a rede social, a rede econômica, enfim, todo o entorno que produz e aparece como classe social, etnia, geração, dentre outros. Assim, o trabalho da desconstrução releva as modalidades da classe social, da etnia, da geração, dentre outras, nas suas relações com a subjetividade, o contexto e a linguagem.
Discussão
Naturalização das violências
A primeira das entrevistas escolhidas para comporem esse artigo foi feita com Sabrina7, que se reconhece como mulher trans, com vinte e dois anos, nascida em Florianópolis e trabalha como profissional do sexo. O contato com Sabrina se deu a partir de nossa rede de contatos e a entrevista ocorreu em sua casa. Questionada a respeito das violências que talvez houvesse vivenciado, Sabrina diz não ter sofrido nenhuma grave até hoje, referindo-se à violência física. Contudo relatou dificuldades para conseguir emprego, ter escutado piadas e xingamentos e, em especial o que ouviu na época que era estudante e ainda não havia começado as transformações corporais que para ela a definiriam como mulher trans, ou seja, quando era, em suas palavras, "gay". Esses relatos de agressões verbais foram descritas como naturais ou "normal, entre aspas, né?!" (SIC), o que podemos ler como uma forma de naturalização das violências vivenciadas.
A naturalização das violências emerge como um ponto em relação às violências chamadas verbais, em oposição às violências físicas. Essa naturalização também emergiu em outras entrevistas que realizamos, sendo que essa foi uma das informações indicadas no já citado relatório sobre violência contra população LGBT na cidade de Florianópolis (Bonassi et al, 2015). Assim, esta afirmação se repetiu em especial nas falas de Sabrina:
Sabrina: "Então eu acho que quem já passou por uma violência física, eu acho que é muito pior. Porque... eu acho que a... essa coisa da violência verbal que eu já te disse que é um, desde um comentário, um xingamento, um palavrãozinho que tu escuta na rua direcionada a você, né?! Eu acho que é meio, entre aspas, "faz parte do nosso dia-a-dia". Tipo assim, não deveria ser, mas a cabeça das pessoas não é evoluída a ponto, então acaba sendo".
Contudo, piadas, xingamentos, e outras formas de violências, segundo Sabrina, ganham um peso diferenciado quando ocorrem na família. Sabrina diz ter uma boa relação com a família, tanto que mora com a mãe, com quem diz se relacionar muito bem. A respeito disso, Sabrina relatou uma história em que, na adolescência, ela e uma amiga, que em suas palavras na época, eram "gays" - pois ainda não viviam como mulheres -, experimentavam roupas para se montarem8 e saírem à noite, quando foram flagradas pelo pai dessa amiga:
Sabrina: Então, eles sempre foram muito ru... rudes assim com ela, muito firme, com muito...né?! Pelo menos naquela época. [...]. Só que ele é muito preconceituoso, assim, com palavras de baixo calão com a própria filha, falando que "não, que eu não aceito, que não sei o que, se quiser vai pra rua, sai da minha casa". Ou querendo bater, pegava pedaço de pau [deu alguns risos], querendo bater, aquela... aquele alvoroço assim. Era bem, era bem tenso, assim. Aí tinha que fazer tudo às escondidas. Porque a vontade, né?! Tanto em mim, quanto dela, era maior que do que o...do que esse... essa negação dele, né?! Do pai dela?! Então, a gente fazia as coisas escondida e era assim. Daí... essa foi uma das situações que eu lembro, assim, que é pra.. Eu acho que quando a violência é dentro da família, o preconceito dentro da família é pior ainda, do que tu ouvir na rua. Porque na rua, tu não conhece a pessoa. Então, tipo assim, tu vai ouvir, vai se magoar, vai. Mas só que tipo assim, a pessoa nem sabe da tua vida, não, não sabe como tu é, como é que é tua relação com a família. Agora ouvir da tua mãe, do teu pai, dentro da tua família eu acho que é... é bem pior, eu acho que é.
Segundo Maria Juracy Filgueiras Toneli e Marília dos Santos Amaral (2015a) a naturalização das violências vivenciadas por mulheres travestis e trans está relacionada com a repetição dessas experiências como uma trajetória de violências que começam na família e na escola, se estendendo depois ao acesso ao mercado de trabalho formal. Butler (2015a) nesse sentido traz importantes contribuições ao fornecer ferramentas para pensar a exposição às violências a partir das normatividades que produzem corpos e vidas passíveis ou não de serem enlutadas e, antes disso, de serem consideradas ou não como vidas.
Assim, por um lado, a repetição das situações de violências tem a ver com a repetição de normas que reiteram um corpo cisgênero e heterossexual como um corpo inteligível. Por outro lado, ocorre tanto a produção do corpo travesti quanto sua abjeção, pois, trata-se de um corpo não passível de ser inteligível conforme as normas e leis dominantes. Um dos efeitos da produção da abjeção ligado às performatividades de gênero que não estão de acordo com os ideais cisheteronormativos é justamente uma exposição contínua e sistemática a situações de violências, já que corpos considerados abjetos não são considerados como vidas que valham a pena. É necessário destacar que as violências se exercerão nos corpos de maneiras diferenciadas numa relação entre performatividade de gênero e abjeção. Isso é explicitado na chamada "passabilidade", gíria êmica, que diz sobre a performatividade de gênero de pessoas trans e travestis que estão muito atreladas à cisheteronormatividade. Diz-se que essas mulheres travestis e trans "passam" por cisgêneras, ao não serem reconhecidas como corpos trans e travestis, tendo assim corpos mais inteligíveis que de outras mulheres travestis e trans.
Como já discorreram pesquisas de Bonassi et al (2015), GGB (2017), há uma distribuição de vulnerabilidades que precariza as vidas de mulheres travestis e trans, em especial as negras, pobres, com menos acesso à educação, demarcando violências relacionadas a gênero, etnia, classe social, grau de escolaridade, geração e outros.
Trazemos agora pontos da segunda entrevista, para então desenvolver um pouco mais a questão da naturalização das violências. A entrevista com Luciano foi feita na ADEH. Luciano se apresentou com o nome masculino, com o qual foi registrado em cartório após seu nascimento, pois, naquele momento não se sentia uma travesti, pois lhe faltava algo, que para ela era a essência da feminilidade: o cabelo comprido. Voltaremos a este ponto específico um pouco à frente, contudo, antes trazemos trechos de suas falas que relacionaremos com a naturalização das violências. Luciano, natural de Palhoça, SC, com vinte e sete anos, sem emprego formal ou informal, relatou diversas situações de violências físicas e verbais, sendo relevante destacar que muitas dessas ocorreram no contexto de prostituição. Este é um ponto importante, pois a pista parece ser um local propício para que ocorram violências.
Sabrina, por exemplo, trabalha como profissional do sexo, entretanto a forma de contato com possíveis clientes não se dá na pista, mas sim em flats ou na casa de clientes contatados a partir de anúncios em sites na internet. Para Luciano, a prostituição estava relacionada à maior rejeição por parte da família, bem como à ocorrência de violências físicas. Comparando as duas narrativas, e apoiando-se em pesquisas feitas por outras pesquisadoras e pesquisadores (TGEU, 2016; GGB, 2017; Carrara & Vianna, 2006), a pista parece ser um território mais propenso à ocorrência de situações de violências. Contudo, quanto a isso não há unanimidade, e segundo Larissa Pelúcio (2005), ainda que haja perigo nas ruas, é importante desmistificar tal imaginário que muitas pessoas têm, uma vez que tais territórios são menos violentos e perigosos do que se imagina, tanto para as mulheres travestis quanto para as pesquisadoras. Retomando uma das falas de Luciano, que relatou uma situação em que um passante na rua a provocou:
Luciano: A perna? A perna foi uma vez que... debocham muito da gente na rua, né?! Xingamento e tudo mais. Daí uma vez eu tava passando e o cara me ofendeu, eu joguei uma pedra no carro dele. Daí ele saiu e deu um, ele tacou uma pedra... eu tava falando da perna agora, né?! Ele tacou uma pedra no... acabou apontando aqui no pé né e quebrou. E daí ele deu um... daí a perna quebrou e ele me deu um soco no rosto e pronto.
Este trecho é importante de ser destacado para articular o que é entendido ou não como violência nas falas de Luciano, como, por exemplo, quando se questiona se havia sofrido violências nos empregos que não o trabalho como profissional do sexo. Luciano respondeu que "Violência não, mas muito preconceito", aqui descrito como piadas e deboches. Não seriam essas manifestações de violências? Para Luciano, parece que não, ainda que divida as violências entre físicas e verbais, há para ela uma diferença entre as palavras e atitudes preconceituosas e as que são vividas como violência verbal. "Entrar por um ouvido e sair pelo outro", "não ligar", foram estratégias relatadas para lidar com tais situações localizadas pelas entrevistadas como preconceitos ou violências verbais.
A questão que apontamos é a de que a naturalização das violências muitas vezes se dá pelo convívio cotidiano com tais agressões, o que com o tempo pode passar a não significar algo grave ou algo que machuca. Temos aqui a repetição de textos e de normas que reiteram essa questão e produzem a performatividade de mulheres travestis e mulheres trans em relação à naturalização da violência. A performatividade opera aqui produzindo efeito na configuração subjetiva sobre o corpo travesti e levando à consideração da abjeção desse corpo. A desconstrução conforme proposta por Derrida (2001b) envolve a inversão e o deslocamento e, dessa forma, a inversão explicita a crítica à violência vivenciada pelas travestis e trans e, o deslocamento opera no trabalho com o movimento, o deslizamento, dos sentidos designados a priori, tanto à violência, quanto aos envolvidos nesse processo.
Problematizando o binarismo vítima e agressor
A fala de Luciano destacada na sessão anterior também é passível de importante problematização a respeito do binarismo entre vítima e agressor. Ao ser agredida verbalmente, Luciano responde jogando uma pedra no carro de quem a xingou. Diante de tal ato, o motorista do carro atirou outra pedra e quebrou-lhe a perna. Não cabe aqui julgar qualquer um dos lados, mas é possível problematizar a questão ética da relação com o outro e da responsabilidade implicada nesta relação. Butler (2015b) traz importantes reflexões a partir de considerações como as de que somos responsáveis por aquilo que o outro nos interpela e nos causa, pois os sujeitos humanos só se constituem e são produzidos na relação com o Outro. O "Outro" é trazido por Butler (2015b) não apenas como sinônimo de outras pessoas, mas a cultura e as normas, que são anteriores ao sujeito e à formação de seu "eu", sendo condição para que o sujeito seja produzido, ainda que não determinado diretamente por tais engendramentos. Isto não quer dizer que somos culpados pelo que o outro nos faz, ou no caso, pela violência que sofremos, mas sim no sentido de que estamos implicados em tais atos. Um dos possíveis efeitos dessa consideração é o de que ao nos responsabilizarmos poderíamos responder às violências a partir de uma ética que não a do castigo, da punição, da vingança.
Por conseguinte, para que uma atitude ética de responsabilização neste sentido possa ocorrer é necessário o descentramento do sujeito, que pode ocorrer de diversas maneiras, como o reconhecimento do inconsciente e o questionamento da suposta linearidade, continuidade e unidade do eu consciente, como proposto pela tradição ocidental da metafísica da presença. Essa atitude ética é importante, pois faz frente a posicionamentos produtores de um recrudescimento da violência, na qual se responde à violência com mais violência.
Quanto às mulheres travestis e trans entrevistadas, ocorreram tanto falas nas quais elas se consideravam vítimas por conta do preconceito, quanto falas no sentido de implicar as próprias mulheres travestis e trans na performatividade de tais vivências, ou seja, posicionamentos que buscavam equilíbrio na construção de atos de violências. Uma das entrevistadas afirmou: "Imagina que tudo na vida, em geral, não só por ser transexual, por trabalhar com isso, em geral, sempre é uma via de mão dupla". Entendemos que naquele contexto, tal fala expressava que, muitas vezes, uma pessoa travesti pode agredir os clientes, ou mesmo roubar, ou então agir de maneira violenta, entrando na espiral violenta da relação com o outro. Ainda, nas falas das entrevistadas, a falta de cuidados com o horário no qual se faz pista, o local mais escuro, a falta de câmeras de monitoramento nas ruas ou a própria falta de sorte também foram fatores relevantes para a produção de situações violentas.
Contudo o que pretendemos destacar nesse momento é que não buscamos localizar culpados ou vítimas nas violências sofridas pelas mulheres travestis e trans, mas antes, interessa problematizar as condições que propiciam atos ou situações violentas nesses contextos. Assim como há clientes de mulheres travestis e trans na pista que as roubam e praticam violência contra elas, o contrário também ocorre. Marcos Garcia (2007) desenvolveu pesquisa problematizando as violências que sofriam um grupo de mulheres travestis de classes populares, mas também as atitudes violentas delas próprias, dando uma importante contribuição no sentido de afirmar que tais atitudes, estavam ligadas a situações paupérrimas de subsistência. Em outras palavras, o contexto cisheteronormativo, em que corpos travestis e trans são abjetos, expõe mulheres travestis e trans a vivenciarem diversas situações de violências nas quais se reconhecem como vítimas e como autoras de violências.
Segundo Garcia (2007), o roubo e outras estratégias como chantagem e escândalo são utilizadas muitas vezes por mulheres travestis e trans como meios de se sustentar em épocas nas quais há poucos clientes e pouca renda, bem como em alguns casos, para sustentar vício em drogas como cocaína, utilizada por algumas para suportar o frio e o trabalho em si. Diante destas informações podemos questionar o que leva à pauperização das vidas de tantas mulheres travestis e trans?
Butler (2006b) escreve a respeito da vulnerabilização e precarização que sofrem diversas populações no mundo em contextos de guerra, mas também sofrem mulheres e minorias sexuais, como as mulheres travestis e trans, que tem seus corpos violentados em nome de normativas. A autora traz a vulnerabilidade como condição pré-ontológica da vida humana, no sentido de que todos somos interdependentes e expostos ao outro, e o outro a nós, mesmo àquelas pessoas que não conhecemos. Essa relação de dependência e exposição, inclusive à violência, perpassa a vida e é algo comum aos humanos, não enquanto atributo natural, mas enquanto condição de possibilidade de existência. Contudo, ainda que sejamos todos vulneráveis, há vidas que são mais vulnerabilizadas que outras e que se tornam mais precáriass, o que Butler (2006b) chama de distribuição diferencial da vulnerabilidade, como o engendramento de relações e mecanismos de poder e da norma a partir do qual se consideram sujeitos como passíveis ou não de luto.
A vulnerabilização e precarização da vida de mulheres travestis e trans é indicada por Bonassi et al (2015), bem como por Toneli & Amaral (2013), entre outros fatores, na desassistência no âmbito das políticas públicas no Brasil direcionadas a essas populações. O desrespeito ao nome social e a falta de um tratamento respeitoso no geral ao tentar acessar serviços públicos essenciais como o Sistema Único de Saúde, ainda que haja resoluções que determinem o uso do nome social nesses espaços, são indicadores dessa precarização.
A norma como forma de violência
Voltemos para os relatos de Luciano. Questionado a respeito de identificar-se como uma travesti, Luciano disse que não se sentia dessa maneira, que se via como "crossdresser", que às vezes se travestia para sair à noite, contudo, para ser travesti faltava algo de essencial:
Luciano: Crossdresser é aqueles que se montam, que se travestem, sabe? Tem, eles botam a peruca ali, mas eu não boto peruca, eu boto megahair, tem um, é outra, é uma outra coisa, né?! Daí de vez em quando eu me, eu vivo como travesti, gosto de sair em boates, assim [...] Crossdresser, que eu tô esperando, crossdresser, eu tô esperando meu cabelo crescer, sabe. Porque o cabelo, a identidade feminina pra mim tá no cabelo comprido.
Entrevistador: Mas tu já se sentiu travesti?
Luciano: É, daí, pois então, eu não me sinto, falta.
Destacamos aqui a fixidez do ideal feminino ligado ao cabelo comprido, que em sua ausência parece, na fala evidenciada, dificultar a performance de gênero travesti. Se pensarmos a partir da cisheteronormatividade a apreensão rígida da norma associada à ausência de cabelo comprido implica na impossibilidade em performar o gênero ligado ao feminino. Assim, no caso de Luciano os efeitos de subjetivação oscilam, entre outros possíveis efeitos, em momentos nos quais se apresenta com nome feminino e na assunção de um nome masculino, o que é importante para pensarmos nas relações entre a norma e as violências. Butler (2015b) rejeita a fórmula segundo a qual toda norma seria violenta, pois além da banalização das violências estaríamos ignorando que a norma é a própria possibilidade de existência. Só podemos existir a partir da norma, ainda que ela não seja determinante, e é na própria norma que há a possibilidade de sua subversão e de mudança (Butler, 2006a, 2015b). No entanto, a norma pode ser veículo de violência, gerando sofrimento quando o que destoa do ideal da norma é penalizado, ou ainda, como no caso de Luciano que penaliza a si mesma.
Em suas análises, Butler (2015b) indica uma saída para a exigência da captura por uma identidade fixa e rígida a partir da impossibilidade de relatar a si mesmo de maneira transparente, coerente e ininterrupta. A inserção em uma cultura em que há normas e moral anteriores à existência de um "eu", ao mesmo tempo em que circunscreve as possibilidades de existência, implica em um não-saber sobre esse "eu" quando da tentativa de fazer um relato de si mesmo. Assim, existe um hiato entre a norma a partir da qual somos possíveis de sermos produzidos enquanto sujeitos e o relato em primeira pessoa, há a suspensão da necessidade de um relato de si completo e estável. Neste sentido, a desconstrução de binarismos - como os relacionados a gênero - podem contribuir para que a norma seja relativizada em alguns momentos em relação a possíveis efeitos como o sofrimento psíquico ligado a uma identificação rígida com o ideal da norma à qual não se consegue alcançar.
Nessa perspectiva, um ponto que gostaríamos de destacar no presente trabalho se refere a uma saída interessante para o aprisionamento de sentido presente no binarismo homem e mulher nas falas das entrevistadas, em especial nas de Sabrina. Frente aos questionamentos em que categoria se identificava - mulher, transexual, travesti -, ou mesmo em perguntas sobre as suas relações e seu dia-a-dia, além de se definir como mulher trans, em diversas ocasiões Sabrina relata a si mesma como uma pessoa. Ressaltamos um desses momentos quando Sabrina falou de boas amizades, as descreveu da seguinte maneira:
Sabrina: E elas são super mente aberta, super de boa sabe. Sempre estiveram no meio ou quiseram pelo menos conhecer e por isso elas têm essa cabeça diferente, diferenciada das outras pessoas. Porque não, não, não, não tem uma mente preconceituosa, não tem um, uma malícia assim, entendeu? Super entende, te tratam como uma... às vezes ali, muitas vezes ali.... esquecem que tu, que tu é uma trans, te tratam como uma pessoa normal, um amigo, uma amiga, sei lá?! Indiferente do que é entendeu? Como pessoa, te tratam como pessoa, conversam como pessoa, vamos sair, fazer as coisas como pessoa, entendeu? Não tem muito essa, "ai eu sou trans, tu é mulher, tu é homem, tu é gay, hétero", entendeu??
Uma "pessoa", palavra usada tanto para o masculino quanto para o feminino, uma palavra feminina, porém neutra. Segundo Sabrina, "eu nunca vou ser mulher. Mulher é minha mãe que é nascida mulher" (SIC). Para muitas mulheres transexuais, essa afirmativa poderia significar motivo de grande sofrimento, o que seria novamente uma naturalização apoiada no binarismo natureza/cultura. Contudo para Sabrina, essa parece ser uma questão bem elaborada, pois para além de se ver como uma mulher trans, ela parece se ver primeiramente como pessoa. Entendemos que esse tipo de deslizamento dos sentidos nos conceitos se relaciona com a operação de deslocamento conforme sugerida por Derrida no trabalho da desconstrução, pois esse deslizamento permite a circulação dos sentidos agregados aos conceitos e viabiliza o escape ao aprisionamento dos binarismos. Também podemos relacionar esse trabalho da desconstrução com o conceito de différance, de Derrida. A différance como uma maneira de articular a diferença para além da oposição binária entre as matrizes identitárias, como um espaçamento, no qual há o adiamento da escolha por um dos polos (Derrida, 2001b).
Em relação a dificuldades para realizar atividades cotidianas por conta de preconceitos por ser uma mulher trans, Sabrina disse conseguir fazer as coisas no seu dia-a-dia de maneira geral, apontando maior dificuldade em relação a não conseguir um emprego que não o de profissional do sexo. Quando se define como pessoa por diversas vezes, ela parece assumir uma posição que procura extrapolar alguns binarismos e hierarquias, como o de homem e mulher, trans e cis. Derrida (2001b) escreve a respeito do jogo do nem/nem, que seria esse deslizamento presente na recusa do encarceramento conceitual em um dos polos do binarismo, no qual se remete sempre às duas polaridades ou a nenhuma delas em específico, de maneira a não reforçar ou reproduzir hierarquias e suas subjugações. Quando questionada sobre que categoria se posicionava, Sabrina disse mulher trans, contudo, em outros momentos, como já relatado, ao ser reconhecida por outros em relações de amizade não sentia a necessidade de se definir ou ser definida por suas amigas: "nem homem nem mulher, nem trans nem cis, mas sim uma pessoa".
Considerações finais
Foi possível articular diversos posicionamentos em relação às violências vivenciadas ou não pelas entrevistadas. A naturalização das violências sofridas pode ser articulada em algumas falas, como efeitos de uma exposição contínua e sistemática a diversas formas de exclusão e preconceitos nos âmbitos da família, escola, espaços comunitários, serviços de saúde, na busca por emprego e outros. Entendemos aqui o efeito de uma performatividade em relação à naturalização da violência no que diz respeito aos corpos travestis e trans. Consideramos que a abjeção opera nesse processo em consonância com a performatividade e que num contexto cisheteronormativo, corpos travestis e trans ocupam lugar de abjeção na performatividade de gênero.
A problematização do binarismo vítima e agressor foi um importante fator a ser considerado nas violências vivenciadas por mulheres travestis e trans, violências essas muitas vezes relacionadas a situações em que suas vidas se encontram por demais vulnerabilizadas e precarizadas, entendendo essas produções como efeitos de uma sociedade cisheteronormativa. A cisheteronormatividade presente em todos os âmbitos, inclusive nas políticas públicas que desassistem a população de mulheres travestis e trans, em que o Estado contribui de maneira incisiva na produção da precarização de tais existências, por vezes não consideradas como vidas. Ressaltamos que as violências operam no plano normativo produzido por ideais de feminilidade, bem como, também ressaltamos os deslocamentos de sentido do feminino, em que se relativiza a rigidez normativa do gênero. Entendemos a amplitude do tema pesquisado e, concomitantemente entendemos os limites impostos pelo trabalho atual e, sugerimos que futuras pesquisas problematizem outros pontos relacionados às questões apontadas.
Notas
1 A diferença entre travesti e transexual pode ser entendida a partir da autoatribuição identitária, ou seja, a maneira como a pessoa se nomeia através de tais categorias. Porém podem existir especificidades às quais o termo travesti foi historicamente ligado, a partir de um ponto de vista moralizante em relação à prostituição, ao HIV/AIDS, às drogas e às violências, ao passo que o termo transexual foi mais associado a uma doença.
2 No relatório são referidos os assassinatos de "trans and diverse gender people", ou seja, pessoas que não se identificam ou não são identificadas de acordo com os ideais normativos relacionados a gênero. "Diverse gender people" seria essa diversificação em relação ao normativamente aceito.
3 Gíria êmica que significa a rua como o local no qual profissionais do sexo estabelecem contato com possíveis clientes.
4 Brune Bonassi é seu nome social. Em respeito à escolha de seu nome, ele é mantido na escrita do artigo.
5 Foucault (1995) problematiza a noção de poder como relações de poder em um campo de disputas, que por seus mecanismos coagem, disciplinam e controlam. Assim, as relações de poder e de resistência a esses mecanismos, fazem parte da produção de objetividades e subjetividades.
6 Pessoas que utilizam eventualmente roupas ou acessórios do dito sexo biológico oposto, independente de sua orientação sexual, por motivos que podem incluir ou não satisfação sexual, sem necessidade de alterações corporais definitivas ou intervenções cirúrgicas, tais como implante de próteses mamárias.
7 Os nomes adotados neste artigo são fictícios e foram definidos por sorteio, para preservar a identidade das pessoas entrevistadas.
8 Gíria êmica que significa o ato de vestir-se, maquiar-se, enfeitar-se com roupas e adereços de maneira a adquirir uma aparência feminina de certo modo temporária.
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Enviado em: 12/06/18
Aceito em: 22/04/19
Mériti Souza é professora Programa de Pós-Graduação em Psicologia - UFSC. Tem doutorado em Psicologia Clínica pela PUC-SP e pós-doutorado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES).
E-mail: meritide@uol.com.br
Marcelo de Oliveira é mestre em Psicologia pela UFSC. Atualmente atua como psicólogo do Núcleo de Apoio à Saúde da Família - NASF, da Prefeitura Municipal de Tijucas, em Santa Catarina.
E-mail: deoliveiraprado9@gmail.com