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Revista Polis e Psique
versão On-line ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.9 no.3 Porto Alegre set./dez. 2019
ARTIGOS
Contribuições da cartografia para a produção de uma ciência nômade
Contributions of cartography for the production of a nomadic science
Contribuciones de la cartografía para la producción de una ciencia nómada
Maria Luiza Marques Cardoso; Roberta Carvalho Romagnoli
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), Belo Horizonte, MG, Brasil
RESUMO
Este trabalho apresenta a cartografia, tal como proposta por Deleuze e Guattari, como ferramenta para a produção de conhecimentos nômades. Diante da multiplicidade e da complexidade das questões e demandas sociais que chegam à academia, a cartografia traz a proposta de produção de uma ciência nômade que nos possibilita a criação de novos dispositivos de pesquisa a cada vez. Nesse contexto, refletimos sobre o conceito de dispositivo, articulando-o à cartografia e à investigação no campo de pesquisa através de quatro ponderações: a importância da transversalidade; a função territorial do dispositivo; o traçado do plano comum para a produção coletiva do conhecimento; a importância da construção da confiança entre os envolvidos. Finalmente, abordamos a produção de conhecimentos a partir da experiência de pesquisa, considerando a importância para as ciências nômades de se evitar a universalização e modelização: trata-se da produção de conhecimentos capazes de servirem como exemplo, e não como modelo.
Palavras-chave: cartografia; dispositivo cartográfico; pesquisa-intervenção; pensamento nômade; processos de subjetivação
ABSTRACT
This work presents cartography, as proposed by Deleuze and Guattari, as a tool for the production of knowledge. Faced with the multiplicity and complexity of social issues and demands that reach the academy, cartography brings the proposal of producing nomadic science that enables us to create new research devices each time. In this context, we reflect on the concept of device, articulating it to cartography and investigation the research field of research through four considerations: the importance of transversality; the territorial function of the device; the drawing of the common plan for the collective production of knowledge; the importance of building trust among those involved. Finally, we discuss about the knowlege production from the research experience, considering how important is to nomadic science avoid universalization and modelization: the knowlege production must be used as an example, not as a model.
Keywords: cartography; cartographic device; intervention research; nomadic thinking; subjectivation processes
RESUMEN
Este trabajo presenta la cartografía, tal como propone Deleuze y Guattari, como herramienta de producción de conocimientos. Ante la multiplicidad y la complejidad de las cuestiones y demandas sociales que llegan a la academia, la cartografía trae la propuesta de producción de una ciencia menor que nos posibilita la creación de nuevos dispositivos de investigación a cada vez. En ese contexto, analizamos el concepto de dispositivo, articulándolo a la cartografía y a la investigación en el campo a través de cuatro ponderaciones: la importancia de la transversalidad; la función territorial del dispositivo; el trazado del plan común para la producción colectiva del conocimiento; la importancia de la construcción de la confianza entre los involucrados. Finalmente, abordamos la producción de conocimientos a partir de la experiencia de investigación, considerando la importancia para las ciencias nómadas de evitar la universalización y modelización: se trata de la producción de conocimientos capaces de servir como ejemplo, y no como modelo.
Palabras clave: cartografía; dispositivo cartográfico; investigación intervención; pensamiento nómada; procesos de subjetivación
A necessidade de um conhecimento nômade
No platô Tratado de nomadologia: a máquina de guerra, Deleuze e Guattari (1997) discorrem sobre os focos de invenção e resistência que emergem em processos de exterioridade ao Estado, destacando o embate entre relações imanentes que buscam metamorfoses em poderes estáveis que tendem a se reproduzir. Deslocando essa perspectiva para o campo da ciência e seu plano de forças, "diríamos que toda ciência nômade se desenvolve excentricamente, sendo muito diferente das ciências régias ou imperiais. Bem mais, essa ciência nômade não para de ser 'barrada', inibida ou proibida pelas exigências e condições da ciência de Estado" (Deleuze e Guattari, 1997, p. 26).
Mas do que se trata essa ciência nômade? Por que ela convoca essa represália? Com certeza porque ela possui um funcionamento distinto do funcionamento dominante que tem como sustentáculo o paradigma moderno, que define a razão como instrumento para a investigação pretendendo elaborar esquemas de eficácia e rendimento. De fato, a ciência moderna torna-se cada vez mais questionada, se não por todos, pelo menos por muitos, sobretudo pelos pesquisadores que apostam na singularidade do conhecimento nômade. Uma das razões para esse questionamento baseia-se no fato de que os pressupostos básicos dessa ciência dominante ou ciência de Estado -objetividade, causalidade, sistematização e produtividade - têm esbarrado em limites concretos dos campos de pesquisa e se tornado inatingíveis diante dos desafios do mundo atual, como assinala Santos (2002).
Nesse cenário, irrompe a necessidade de propostas de se fazer pesquisa que sustentem a complexidade e os deslocamentos da realidade, e não métodos científicos que se assentam na redução dessa realidade, simplificando em modelos estabelecidos α priori o que é em si heterogêneo e processual. Distante da homogeneização e estratificação do pensamento que se direciona para a sustentação de verdades, as ciências nômades assumem a importância da produção de conhecimentos capazes de agregar fluxos, devires, multiplicidades, organizações (dos átomos às pessoas) turbilhionares, curvilíneais e espiraladas, espaços abertos, elementos vagos e anexatos, análise aproximativas e contudo rigorosas. É necessário marcar a irredutibilidade das ciências nômades, mesmo quando os homens de Estado, ou que tomam partido dos pensamentos dominantes do Estado, intentam manter o primado legislativo e constituintes das ciências dominantes, colocando as ciências nômades como instâncias pré-científicas, para-científicas ou sub-científicas, restringindo, disciplinando e reprimindo suas produções e concepções sociais e políticas (Deleuze e Guattari, 1996). Assim,
Estamos diante de duas concepções diferentes de ciência, formalmente diferentes; e, ontologicamente, diante de um só e mesmo campo de interação onde uma ciência régia não para de apropriar-se dos conteúdos de uma ciência nômade ou vaga, e onde uma ciência nômade não para de fazer fugir os conteúdos da ciência régia (Deleuze e Guattari, 1997, p. 34).
Tal imanência, em oposição ao reducionismo dos modelos dominantes, é convocada pela complexidade na qual vivemos em que os fenômenos são cada vez mais desafiantes para os pesquisadores e mais difíceis de serem formatados em um único modelo de conhecimento ou a uma determinada metodologia. Nos campos que estudam a subjetividade, os processos de subjetivação, diante das demandas que atualmente chegam à academia, da aceleração e da mutabilidade que se expressam em problemáticas múltiplas, aliadas à constatação da provisoriedade e circunstancialidade de possíveis respostas, somos conduzidos à importância de um modo de pensamento nômade.
Discutindo acerca do porquê se torna importante um pensamento nômade em nossa época, Cardoso Júnior (2012) examina o modo como podemos pensar a subjetividade hoje, através de quatro eixos: o epistemológico, o histórico, o político e o ontológico. No eixo epistemológico frisa a importância do pensamento de uma ciência menor, capaz de produzir conhecimentos nômades, atentos aos fluxos que percorrem a realidade estudada, no qual estão inclusos o devir e a instabilidade. No eixo histórico e no eixo político, esse tipo de conhecimento permite pensar a constituição histórica da subjetividade, que se configura em um processo contínuo, fazendo-se e desfazendo-se nas relações que estabelece. Aqui, enfoca-se não só as capturas do sujeito, mas também os espaços abertos de fuga e resistências a normatizações e padronizações. Por fim, no que se refere ao eixo ontológico, o autor denuncia os mecanismos sutis de controle da subjetividade na sociedade atual, que funcionam em modulação contínua e, por isso, não cessam de se refinar. Diante desses mecanismos devemos estar em constante processo de manutenção de escapes. Nesse sentido, o pensamento nômade permite apresentar novos problemas para as situações dadas e focos de resistência ao presente, promovendo a produção de uma ciência menor.
A defesa da ciência nômade como uma ciência menor é feita aqui de uma forma rizomática, com um convite à experimentação, como Deleuze e Guattari (1977) fazem na distinção entre Língua Maior e Língua Menor. A Língua Maior define-se pelo poder das constantes e pelas regras obrigatórias, buscando sempre a homogeneização. A Língua Menor, por sua vez, define-se pela potência de variação em que as regras são facultativas e possuem uma dimensão de heterogeneidade. Desse modo, podemos pensar a ciência nômade como direcionada à construção de novos mundos, novas realidades. No embate entre a ciência de Estado, dominante, e a ciência nômade temos o desafio constante de desarticular os hábitos e discursos instituídos, dando passagem aos paradoxos e às relações potencializadoras que nos lançam à invenção, pois é nesse jogo que se dá a construção do conhecimento.
O conhecimento nômade, ligado à produção do novo, tem como uma das possibilidades de sua produção a cartografia, método proposto por Gilles Deleuze e Félix Guattari, pensadores da Esquizoanálise. A cartografia traz a proposta de produção de uma ciência menor que nos possibilita a criação de novos dispositivos de pesquisa a cada vez e nos permite acompanhar a processualidade da vida. Trata-se de sustentar constantemente um plano de indagação que provoque o pensar, uma dobra sobre si mesmo que agencie a vida de maneira processual e singular em conexão com o ato de pesquisar. Esse plano de indagação põe em cheque as relações que se estabelecem entre teoria e prática, pesquisador e pesquisado, sujeito e objeto, interrogando os conhecimentos que se impõem como verdade e que, ao fazê-lo, simplificam e modelizam a vida. Ou seja, contra a ciência sedentária, afirma-se o pensamento nômade.
Na perspectiva cartográfica, entendemos método não a partir do paradigma moderno, mas como o caminho para se investigar mediante a indagação do objeto de estudo, da afirmação da diferença. O método "se apresenta como valiosa ferramenta de investigação exatamente para abarcar a complexidade, zona de indeterminação que a acompanha, colocando problemas, investigando o coletivo de forças em cada situação, esforçando-se para não se curvar aos dogmas reducionistas" (Romagnoli, 2009, p. 170). Nesse sentido, esse método pode funcionar como um dispositivo, que agencia pesquisa e vida.
A cartografia e a criação de dispositivos
Como funciona uma pesquisa cartográfica em seu nomadismo? Esta é uma pergunta que possui, certamente, várias respostas. Por se tratar de um método ad hoc, conforme Kastrup (2007), a construção do como fazer uma pesquisa cartográfica depende, a cada caso, dos objetivos da pesquisa, das condições de seu desenvolvimento, das experiências e apostas do pesquisador e das relações que são construídas entre pesquisador, demais participantes e o contexto da pesquisa com suas dimensões singulares e móveis. Aqui, gostaríamos de refletir sobre a criação de dispositivos como ferramenta da pesquisa cartográfica.
Partimos das considerações de Deleuze (1996) sobre o conceito de dispositivo que o filósofo Michel Foucault utiliza para a analítica do poder em sua obra. Foucault, em entrevista concedida em 1977, esclarece que um dispositivo seria a rede que se estabelece entre elementos heterogêneos, das práticas discursivas ao funcionamento concreto dos corpos. Um dispositivo "[...] engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo" (Foucault, 2004, p. 244).
Afastando-se do estruturalismo, Foucault (2004) marca que um dispositivo, uma vez estabelecido, não é estático e definitivo. Em verdade, é justamente sua característica dinâmica e mutável que o torna eficaz: a articulação estratégica dos diversos elementos de um dispositivo produzem efeitos que acabam por atuar sobre o próprio dispositivo, provocando ajustes e mudanças na maneira como esses elementos estão organizados. A partir das propostas foucaultianas, Deleuze (1996), em um raciocínio de imanência, avalia que o que pode ser visto ou dito em um dispositivo, as forças que ali atuam, a posição de cada sujeito nessa rede, tudo se articula em diferentes tipos de linhas. As linhas são vetores que estabelecem um certo funcionamento, certas relações, certos modos de existência no dispositivo, a cada momento histórico.
Assim, um dispositivo possui linhas de visibilidade que definem um regime de luz, que, por sua vez, organiza o que é visível e o que é invisível. Não se trata de uma luz geral que iluminaria objetos já existentes; as linhas de visibilidade produzem um certo modo de iluminar que faz nascerem as coisas e sua história. Acopladas a essas linhas, um dispositivo possui linhas de enunciação, que constituem regimes discursivos, modos de dizer. Cada regime distribui posições diferenciais dos seus elementos, as quais não existiam antes de sua enunciação. Um dispositivo possui também linhas de força. Passando de um ponto a outro em todo o dispositivo, as linhas de força estabelecem as conexões entre o ver e o dizer. Trata-se da dimensão do poder-saber que mantém as coisas e as palavras na incessante batalha por sua afirmação.
Por fim, Deleuze (1996) afirma que Foucault descobre uma última espécie de linhas - as linhas de subjetivação - quando pressente que, nos dispositivos, há vetores que escapam ao jogo de forças do próprio dispositivo. A linha de subjetivação, sempre que o dispositivo lhe permite, é capaz de atuar sobre as outras linhas, promovendo uma nova construção do "si próprio" (soi): deflagra-se um processo de individuação, uma produção de subjetividade, a emergência de um novo modo de existência. Trata-se de uma linha de fuga, que escapa aos poderes, saberes, sujeitos e objetos constituídos no dispositivo, uma linha que lhe provoca brechas, fissuras ou pode mesmo rompê-lo: novas subjetividades, mesmo se chamadas a fornecer novos saberes e a inspirar novos poderes na configuração de um outro dispositivo.
Aqui, tomamos as reflexões acerca de um dispositivo propostas por Deleuze (1996), a partir de sua leitura do que ele denomina a "filosofia dos dispositivos" em Foucault, para pensarmos nas estratégias que nos permitem, em uma pesquisa cartográfica, acessar o campo de investigação.
Por um lado, a noção de dispositivo marca o repúdio aos universais que estruturam as ciências de Estado: "[...] o universal nada explica, é ele que deve ser explicado" (Deleuze, 1996, p. 89). É a maneira como um universal - o Sujeito, a Verdade, a Lei, a Razão, dentre outros - funciona e produz efeitos em um dado dispositivo que deve ser entendida. Nessa perspectiva, não é possível trabalhar, em uma pesquisa, com categorias dadas α priori externas ao campo de investigação, supondo serem elas capazes de explicar ou representar uma certa realidade a partir da razão por excelência. Além disso, a noção de dispositivo estabelece uma mudança de orientação: desloca-se do valor dado ao universal e ao eterno para a importância de se apreender o novo, que sempre se anuncia como linha de subjetivação. De fato, Deleuze (1996) salienta que, em um dispositivo, há sempre um duplo movimento: do que somos e logo não seremos mais; e do que vamos nos tornando. Há sempre, em um dispositivo, história e devir. Por isso, a pesquisa cartográfica prontifica-se a não apenas investigar o que está dado, sujeitos, coisas e palavras já instituídos e definidos em suas hierarquias e conjuntos de pertença. É necessário interessar-se pelo novo, pelas linhas de subjetivação, pelos processos presentes na realidade estudada.
Diferentes estratégias podem promover um dispositivo cartográfico para a investigação do campo de pesquisa: a realização de entrevistas com participantes da pesquisa; uma visita do pesquisador à comunidade, guiada por seus moradores; o exercício de observar, com a atenção flutuante, o cotidiano do campo investigado; o mapeamento de documentos e imagens; a exibição coletiva de um filme como analisador de certo tema ou problema social; a participação em um jogo virtual e nas conversas a seu respeito; a realização de oficinas que privilegiem modos expressivos diferentes do verbal (expressões plásticas, corporais e outras); a vivência de uma dramatização; as sensações escritas no diário de bordo da pesquisa, ou mesmo a combinação dessas e de outras estratégias convocadas pelo campo de pesquisa.
Não é possível, de antemão, garantir que uma estratégia funcione para criar um dispositivo na pesquisa, que certo procedimento concreto (entrevistar, observar, dramatizar) acople-se aos agenciamentos do campo como uma micromáquina de fazer ver e fazer falar, de evidenciar os jogos de forças e, especialmente, de promover linhas de subjetivação. Como afirmam Kastrup e Barros (2009), o trabalho com dispositivos implica o pesquisador no processo de acompanhar seus efeitos e não apenas colocá-los para funcionar. Nesse contexto, gostaríamos de traçar algumas ponderações que perpassam o funcionamento dos dispositivos cartográficos e que indicam as implicações ético-políticas desse tipo de pesquisa para a produção de uma ciência nômade.
Quatro ponderações sobre a cartografia
A primeira ponderação envolve a importância da transversalidade para a configuração de um dispositivo cartográfico. O conceito de transversalidade foi pensado por Felix Guattari diante das questões que permeavam sua atuação clínica-institucional, em especial no hospital psiquiátrico de la Borde. Ao pensar a dimensão da transversalidade, Guattari (1986) intentava superar dois eixos que se impõem como modos de organização da realidade: a pura verticalidade, com suas hierarquias e determinações daí advindas; e a simples horizontalidade, com seus conjuntos homogêneos de pertença e equivalência. O autor salienta que o uso vertical da informação pode barrar práticas que convoquem a autonomia, produzindo assujeitamentos e a horizontalidade em si não pressupõe partilha ou troca, mas se afasta da dimensão coletiva.
A transversalidade, por sua vez, é uma dimensão que pretende superar os dois eixos. Ela "[...] tende a se realizar quando uma comunicação máxima se efetua entre os diferentes níveis e, sobretudo nos diferentes sentidos" (Guattari, 1986, p. 96). Trata-se de um deslocamento necessário para que um grupo produza um dispositivo capaz de engendrar novas realidades, abrindo-se para a invenção. A transversalidade faz aflorar processos inéditos, por meio de agenciamentos e conexões, abrindo-se para a invenção a partir de grupos sujeitos que sustentam sua própria criação.
Na pesquisa cartográfica, Passos e Barros (2009) salientam a importância de se intervir nessa organização vertical-horizontal da realidade, produzindo uma operação de transversalização capaz de desorganizar as linhas que se endurecem nesses dois eixos, permitindo que elementos heterogêneos ganhem visibilidade, possam ser enunciados e possam se delinear com sua força de pura diferença. Sustentar a transversalidade é produzir uma diferença em todos os envolvidos, produzindo deslocamento, processos de subjetivação que se fazem transversalmente, unindo estados, situações, ligando elementos distintos, associando subjetividades. A transversalidade produz alianças e passagens entre territórios estratificados que se sustentam pela reprodução; ela desestabiliza e constrói passagens inventivas, mundos outros.
Trata-se, assim, de assumir o caráter de intervenção da pesquisa cartográfica, uma vez que, para os cartógrafos, como dito, pesquisar não envolve interpretar o mundo ou representá-lo, "[...] mas acima de tudo trata-se de produzir o mundo, construir realidade" (FERRACINI et al, 2014, p.228). Vale destacar, entretanto, que esta nunca é uma tarefa fácil. Quando algo emerge como novo absoluto, em um primeiro momento, é algo desconhecido, que não está instituído na realidade social. O novo é sempre primeiro à construção de sentidos sobre ele e à sua institucionalização social. Ele é, por isso, uma ponta do caos. Mas, como afirma Guattari (1986), as resistências à transversalidade em um grupo sujeito (e aqui podemos considerar um grupo envolvido em uma pesquisa):
não são fenômenos inelutáveis e dependem, num primeiro momento, de uma assunção, no seio do grupo, do risco de ter de se confrontar com o nonsense, com a morte e com a alteridade, risco esse relativo à emergência de todo fenômeno de sentido verdadeiro (Guattari, 1986, p. 102).
Nesse contexto, podemos trazer uma segunda ponderação: é importante que o dispositivo cartográfico trace um território existencial, a partir do qual é possível lidar com o nonsense, com a alteridade, com o caos. Para Deleuze e Guattari (1997), um território existencial, individual ou coletivo, envolve a constituição de um "em-casa" como espaço que articula ritmos, marcas e elementos que se repetem e que, por isso, produzem referências e um certo ordenamento do mundo e de si próprio. "O valor do território é existencial: ele circunscreve, para cada um, o campo do familiar e do vinculante, marca as distâncias em relação a outrem e protege do caos" (Zourabichvili, 2004, p. 46).
De acordo com o geógrafo Rogério Haesbaert, o território, para Deleuze e Guattari, possui a ideia de movimento, de ações de entrada e saída, produzidas pelos processos de territorialização, desterritorialização e (re)territorialização, inerentes a todo território. Nesse sentido, o território aflora como um constante fazer-se e desfazer-se, compondo um rizoma, uma rede de relações, que se autoproduz por agenciamentos com os mais variados elementos da realidade, aos quais se conecta e reconecta a todo instante.
Dessa maneira, o território é entendido como um processo, como um permanente "tornar-se" e "desfazer-se". É, no mínimo, curioso como, num pensamento centrado no movimento, nas conexões, a dimensão geográfica, e não a histórica, emerja com tamanha força. Trata-se, por certo, da valorização das simultaneidades, dos devires e de um tipo específico de conexão, o do "rizoma", ou seja, muito mais os contextos e interações do que as filiações e as sucessões. (Haesbaert, 2006, p. 111).
A processualidade do território, com suas conexões rizomáticas, provoca a imanência da repetição e da invenção, dos modelos já cristalizados e de fluxos potentes que podem trazer outras dimensões, dos segmentos e das linhas de fuga, considerando que toda realidade é em si complexa e contém ao mesmo tempo formas estratificadas e forças conectivas. Formas e forças que nos atravessam e atravessam nossas pesquisas.
Barros e Kastrup (2009) nomeiam a função territorial do dispositivo cartográfico como movimento-função de referência. A função de referência estabelece, para os participantes de uma pesquisa, pontos de (re)conhecimento que instauram a repetição do que se é e se sabe. A referência não é uma pessoa de referência, e sim um modo de funcionar do território com regularidade. Contudo, um território só nos interessa pela consistência existencial que ele proporciona e que promove a coragem para irmos ao encontro de uma nova terra. Um território interessa por sua potência de desterritorialização, nesses momentos excepcionais, como esclarece Ortega (1998), "nos quais se interrompem a regularidade e a necessidade, mesmo que por um instante" (p.07). A partir desse raciocínio de imanência, a função de referência "se localiza no ponto onde a repetição, ao se fazer, vai tensionando de tal modo o território existente que o faz reverberar até seus limites" (Barros; Kastrup, 2009, p.89).
Em uma pesquisa sobre violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes, realizamos encontros coletivos com educadores, líderes comunitários, pais e responsáveis por crianças que frequentavam a rede de educação do município estudado. Articulada a um projeto social, a pesquisa procurava mapear elementos que compunham a percepção desses atores sobre a violência em geral e, em especial, sobre a violência dentro das família, com o intuito de traçar estratégias nas escolas, ONGs, associações de moradores e comunidades do município para o enfrentamento desse tipo de violência. Os encontros, que foram realizados na perspectiva cartográfica, não visavam apenas o acesso à experiência vivida pelos participantes, uma vez que "a cartografia requer que a escuta e o olhar se ampliem, sigam para além do puro conteúdo da experiência vivida, do vivido da experiência relatado na entrevista, e incluam seu aspecto genético, a dimensão processual da experiência" (Tedesco; Sade; Caliman, 2013, p.301). Em busca da processualidade, utilizamos diferentes estratégias (colagens, dramatização, rodas de conversa) para investigar as percepções dos participantes. Essas percepções eram, em um primeiro momento, trazidas por cada participante e seriam construídas coletivamente ao longo da pesquisa.
Em um dos encontros, os participantes, ainda que marcados por grande diversidade entre si, buscam articular um consenso sobre a violência intrafamiliar. Com suas falas, que se confirmam umas às outras, repetem discursos hegemônicos e percepções referendadas socialmente sobre o que é a violência, sobre como são as vítimas e os agressores, sobre os contextos onde a violência doméstica se dá. Constatamos como eles procuram articular um território de pertença que integre a todos, pela reverberação de falas consentidas pelos demais presentes. Em certo momento, uma professora desloca-se, um outro ritmo e outros elementos se instauram. Devagar, ela assume a violência doméstica pela qual já passou, descreve o contexto de sua família, distanciando-se do até então dito. Sua fala não marca uma oposição, o outro polo dentro da linearidade dos discursos. Ela segue por um novo caminho e termina colocando um ponto de tensão: ele a violentava, mas ela o amava tanto...
O silêncio que acomete o grupo e a inquietação de alguns pode indicar que algo abre o território traçado, alguma coisa foge, escapa. As explicações dadas não são suficientes e algo precisa ser construído pelo coletivo. Não se trata de uma resposta individual ou individualizante, para este caso em questão. Nem mesmo de buscar, por parte dos pesquisadores, os universais teóricos aptos a proporcionar uma explicação "de fora" sobre o caso, de modo a apaziguar a tensão. De outra forma, trata-se de compor um plano comum em que os paradoxos do amor e da violência podem ser (com)partilhados entre todos os participantes e suas saídas podem ser inventadas em conexão com a vida tal como ali ela se apresenta.
Este é o terceiro aspecto que merece nossa ponderação: a importância do plano comum em uma pesquisa cartográfica. Kastrup e Passos (2013) indicam que o plano comum é fundamental para a construção coletiva na pesquisa. Inspirados nas contribuições do filósofo François Jullien, os autores afirmam que o comum é um conceito político, que porta o duplo sentido de pertencimento e partilha.
O pertencimento não significa o agrupamento pela identidade, pela semelhança e pelo homogêneo; pertencer a um plano comum envolve, ao contrário, conectar-se pela diferença, pela heterogeneidade. Do mesmo modo, a partilha não se refere à divisão da realidade em domínios específicos, à operação de demarcação de um território privado, uma vez que, quando isso ocorre:
assiste-se à inversão de sentido, a derrapagem do comum pela via de um "comunitarismo" proprietário, privatista, excludente. Outro exemplo seria imaginar que é preciso ser mulher e negra para falar sobre mulheres negras ou cego para falar de cegueira. Embora seja importante para a pesquisa contar com a participação daqueles que podem falar de dentro da experiência, limitá-la àqueles que possuem essa precondição não é de modo algum garantir seu sucesso. (...) Apostar nos pontos de vista próprios ou particulares é confundir o comum com o homogêneo. Nesse caso, o espaço de partilha da comunidade mais reparte do que faz participar, já que sua atividade inclusiva tem como contraparte a exclusão do não semelhante. (Kastrup; Passos, 2013, p. 269)
A partilha, aqui, envolve a participação na diferença, através da diferença. Envolve repartir a experiência como operação inclusiva. Afinal, os problemas raciais e de gênero como do exemplo de Kastrup e Passos (2013), se eles acometem, antes de tudo, mulheres negras, por outro lado, são problemas cuja força analisadora pode (co)mover todos os participantes de uma pesquisa, inclusive não negros e não mulheres, para produzir conhecimentos diante de uma organização social que exclui essas mulheres, mas nunca só elas.
Nesse sentido, a operação de transversalização que apresentamos acima é muito importante e, na produção do plano comum, ela envolve uma tríplice inclusão, segundo Kastrup e Passos (2013). Primeiro, a lateralização como estratégia ético-política que opera a transversalidade. Lateralizar significa colocar lado a lado, evitando que o processo de pesquisa ocorra de forma vertical, quando "[...] quem investiga coleta dados acerca dos pesquisados para, em seguida, construir um discurso 'sobre'" (Kastrup; Passos, 2013, p. 273). Todavia, a não hierarquização da diferença faz aparecer tensões e resistências tanto do lado dos pesquisadores quanto dos participantes, em sua diversidade. Por isso, em um segundo nível, a inclusão envolve também as próprias resistências, como analisadores para a construção coletiva tanto do plano comum quanto do conhecimento que dele pode emergir. Essa construção, como terceiro nível, estabelece-se na própria experiência (com)partilhada.
Para estabelecer a experiência compartilhada, com o engajamento dos diversos participantes da pesquisa, mesmo quando emergem resistências diante da diferença e diante da indeterminação do novo, é necessária a construção, no plano comum, da confiança. Esta é nossa quarta ponderação. Sade, Ferraz e Rocha (2013) retomam o pragmatismo de William James para quem a confiança é vital. Esta, no entanto, não envolve condições pessoais para que se obtenha êxito, nem mesmo enfoca o êxito como seu resultado. A confiança refere-se à disponibilidade para agir quando as possibilidades e os limites da ação estão indeterminados.
É a indeterminação que faz com que tenhamos necessidade de confiança, mas é igualmente porque temos confiança que nos arriscamos no indeterminado. A confiança não consiste em realizar uma ação cujo sucesso é assegurado (previsão), mas em tentar uma ação cujo resultado é incerto (antecipação). [...] O sentimento de confiança faz da experiência um domínio de experimentação. Ele é a condição de todo ato de criação (Lapoujade citado por Sade; Ferraz, Rocha, 2013, p. 285).
Sade, Ferraz e Rocha (2013) marcam que a confiança é fundamental para a criação de novas conexões com a diferença. Do ponto de vista do pesquisador, a confiança pode ser concebida como ethos, como postura ético-política, que orienta o pesquisador-cartógrafo em seus critérios de ação, proposição, escuta, produção e engajamento com os demais participantes da pesquisa. Do ponto de vista coletivo, a confiança faz com que os dispositivos cartográficos funcionem de modo que a construção do conhecimento seja participativa, que os participantes con-fiem, ou seja, que eles teçam juntos a experiência comum.
Nesse sentido, a confiança não envolve apenas o contrato de sigilo acerca da pesquisa e de quem dela participa, nem se restringe a um esclarecimento formal e prévio das condições da pesquisa. A cartografia é uma pesquisa processual, como vimos acima, uma vez que rastreia no território, seus movimentos, que mapeia reproduções e invenções que coexistem nas formas e forças presentes no que se propõe a estudar (Pozzana; Kastrup, 2009). Desse modo, pesquisar processos envolve construir processualmente a confiança.
Disposições finais: a cartografia e a produção de uma ciência exemplar
Como dito, consideramos a cartografia como um método de pesquisa ad hoc, o que reverte o sentido tradicional de método, "não mais um caminhar para alcançar metas prefixadas (metá-hódos), mas o primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas" (Passos, Barros, 2009, p. 17). Assim, o caminho de investigação só pode ser construído em cada caso, de forma processual e nunca α priori
Nesse contexto, uma questão ético-política se coloca: como evitar que os conhecimentos produzidos em certa experiência de pesquisa se transformem em uma verdade universal, em um modelo para a compreensão de realidades que, de alguma forma, se assemelham àquela estudada? Para responder a esta pergunta, é necessário indagar, primeiro, sobre a importância para as ciências nômades de se evitar a universalização e a modelização do conhecimento. Afinal, do ponto de vista das ciências de Estado, este é possivelmente seu principal interesse. Cumpre esclarecer que, na esteira de Viveiros de Castro (2017), não estamos nos referindo à construção, pelas ciências, de modelos heurísticos com sua capacidade de buscar soluções para problemas e desafios que são colocados nos mais variados campos científicos. O que é preciso evitar é a consolidação normativa do modelo científico, como instrumento político que estabelece uma relação assimétrica, vertical e distante entre a autoridade modelante, detentora do conhecimento, e tudo aquilo (pessoas, instituições, coisas, paisagens, atmosferas, materiais) que deve ser compreendido, diagnosticado e receber as intervenções do Estado legitimadas a partir do modelo, de dentro dele.
Nesse sentido, a produção de conhecimento corre o risco de operar por poder-opressão e não por poder-potência. Deleuze e Guattari (1996) lembram o escritor Heinrich von Kleist, que denuncia em sua obra a interioridade central do conceito como meio de controle e que acaba, ele mesmo, transformado em monumento, em um modelo a ser copiado... Ao criticar as ciências de Estado, os autores marcam o foco destas em gerar, a partir de modelos e conceitos do estável, do eterno, do idêntico e do constante, um interior - das ciências e do Estado - dentro do qual toda a realidade deve ser compreendida e controlada, mesmo quando isso exige o achatamento da diversidade, a demarcação de territórios especializados como zonas de saber-poder exclusivas e excludentes ou a subordinação de outros saberes e invenções "menos científicos" à sua soberania.
Ao contrário, a cartografia, que visa à produção de uma ciência nômade, assume a exterioridade da realidade em relação ao seu campo teórico-conceitual e metodológico. Para acessar essa realidade, consideramos a importância da construção de dispositivos cartográficos a cada vez, nos quais as relações entre o pesquisador e os que estão envolvidos no campo da pesquisa exigem a configuração de um plano comum capaz de promover o (com)partilhar de experiências, tensões, contradições, invenções e diferenças. Os conhecimentos daí produzidos não podem, paradoxalmente, delimitar um território de saberes e verdades, cujo poder normativo se assemelha ao dos modelos das ciências imperiais. Trata-se, de outro modo, de produzir conhecimentos capazes de servir como exemplo, e não como modelo.
Em seu denso livro A Comunidade que vem, Agamben (1993) afirma que o exemplo, desde sempre familiar a nós, consegue escapar à antinomia entre o particular e o universal: "nem particular, nem universal, o exemplo é um objeto singular que, digamos assim, se dá a ver como tal, mostra a sua singularidade" (p.16). Esse filósofo considera que o sucesso da teoria dos conjuntos na lógica moderna baseia-se no fato de que a definição de conjunto é uma definição linguística, ou seja, a compreensão do todo (o conjunto M) envolve a nomeação (ser-dito) das qualificações comuns dos objetos m, atribuindo-lhes uma identidade e lhes garantindo sua pertença (ϵ). Contudo, o conceito de exemplo faz com que ele escape às qualificações que lhe garantiriam a pertença a dado conjunto. O exemplo só tem lugar ao lado de si próprio, onde desenrola sua vida inqualificável e inesquecível enquanto singularidade pura. Mesmo assim, e este é um ponto importante, o exemplo comunica, mesmo sem estar ligado por uma propriedade comum, por alguma identidade. Como vagabundo, nos termos de Agamben (1993), o exemplo serve em sua singularidade. Serve como um qualquer, uma vez que não é possível delimitar, de antemão, quem pode se servir, e em quais condições, deste ou daquele exemplo como inspiração para suas próprias situações e problemas. Isto, certamente, incomoda os homens de Estado.
Não se trata, pois, de categorizar o exemplo, de delimitar suas possíveis pertenças: isto é exemplar neste ou naquele caso. Um exemplo é irredutível por ser singular. Ainda assim, ele se comunica porque detém a capacidade de dar pistas, de inspirar invenções, de abrir precedentes para certa prática, modo ou estilo, ainda que, em todo o caso, sua "cópia" seja sempre marcada pela diferença. O exemplo não lida com teoremas e axiomas tomados desde sua abstração racional; o exemplo lida com problemas vividos na prática e toda a sorte de deformações, transmutações, afecções, projeções e diferenças específicas que lhes acometem. Problemas que, segundo Deleuze e Guattari (1996), são inseparáveis das metamorfoses e criações da própria ciência em seu nomadismo.
Para Viveiros de Castro (2017), o exemplo e o modelo são modos diversos de fabricação de mundos, com consequências antropológicas e geopolíticas distintas. Castro inspira-se na ideia do bricoleur, apresentada por Levi Strauss em O Pensamento Selvagem, para marcar que o modo de funcionamento do bricoleur é através do exemplo, diferentemente do modo de funcionamento engenheiro, que é através do modelo. O bricoleur, ou o faz-tudo, como é conhecido no Brasil, utiliza-se dos materiais e condições disponíveis em cada contexto, adaptando experiências anteriores (suas ou de outrem) a estratégias, dispositivos, tecnologias, ideias e práticas que solucionem problemas e desafios daquela situação específica. O faz-tudo faz, por assim dizer, qual-quer coisa: uma gambiarra ou uma improvisação com o que possui de recursos em cada contexto, a cada vez, para obter como resultado algo diferentemente igual àquilo em que se inspira.
Considerando as pesquisas cartográficas em seu nomadismo, há que se considerar a importância da produção de conhecimentos exemplares. Nesse perceptiva, o cartógrafo não se preocupa com a validação, repetitiva e idêntica, de suas teorias e metodologias. Ao invés de reproduzir, cabe ao cartógrafo seguir:
Seguir não é o mesmo que reproduzir, e nunca se segue a fim de reproduzir. O ideal de reprodução, dedução ou indução faz parte da ciência régia em todas as épocas, em todos os lugares, e trata as diferenças de tempo e lugar como outras tantas variáveis das quais a lei extrai precisamente a forma constante: basta um espaço gravitacional e estriado para que os mesmos fenômenos se produzam, se as mesmas condições são dadas, ou se a mesma relação constante se estabelece entre as condições diversas e os fenômenos variáveis. Reproduzir implica a permanência de um ponto de vista fixo, exterior ao reproduzido: ver fluir, estando na margem. Mas seguir é coisa diferente do ideal de reprodução. Não melhor, porém outra coisa. Somos de fato forçados a seguir quando estamos à procura das "singularidades". (Deleuze e Guattari, 1996, p. 39-40)
Ampliando estas considerações de Deleuze e Guattari (1996), é possível propor ao cartógrafo que siga os exemplos de outras cartografias em suas singularidades, não no intuito de reproduzi-las, mas com a intenção de fazer diferentemente igual às pesquisas em que se inspira. Vale frisar que essa postura científica não é menos rigorosa, especialmente do ponto de vista ético-político. Seu rigor está exatamente no preparo do pesquisador para assumir a realidade como exterioridade; para utilizar seus métodos e arcabouços conceituais como ferramentas disponíveis que podem (ou não) servir diante de certo contexto ou problema de pesquisa, exigindo, em muitos casos, a invenção como estratégia de conexão com a realidade; para aceitar que uma ciência nômade não está destinada a tomar um poder, uma vez que se subordina "às condições sensíveis da intuição e da construção" (Deleuze e Guattari, 1996, p.41). Tal construção, no campo das pesquisas sobre subjetividade, envolve, como dissemos acima, um con-fiar, uma fiação coletiva que traça e conecta de forma rizomática os múltiplos elementos da vida, que faz ver e falar as diferenças e que inventa, improvisa ao seguir outros exemplos.
Desse modo, apostamos que a cartografia é capaz de propiciar um deslocamento metodológico mais flexível e singular, na tentativa de driblar reducionismos e "zonas de conforto" acadêmicas. Entendemos que as ciências de Estado e seu pensamento dominante pode ainda ser necessário em algumas áreas da psicologia, contudo, não é suficiente para acompanhar a vida, ou parte dela. Ao estudar a vida em suas capturas e resistências possíveis no contemporâneo, Pélbart (2015) ressalta que "a produção do novo está disseminada por toda a parte e constitui uma potência psíquica e política de todos" (p. 21). Nessa perspectiva, podemos apostar no engendramento de uma ciência menor, de um conhecimento nômade que deixe a vida pulsar na pesquisa e a apreenda, mesmo que provisoriamente e de maneira exemplar.
Referências
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Enviado em: 25/01/18
Aceito em: 04/11/19
Maria Luiza Marques Cardoso é psicóloga, Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais e Doutoranda em Psicologia e Intervenções Sócio-Clínicas pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
E-mail: mcluiza@gmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-7205-9448
Roberta Carvalho Romagnoli é doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Pós-doutora em Análise Institucional pela Université Cergy-Pontoise, França. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pesquisadora do CNPq.
Email: robertaroma@uol.com.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3551-2535