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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.spe Porto Alegre  2019

 

ARTIGOS

 

Contribuições basaglianas na interseção da perspectiva institucional com as políticas públicas

 

Basaglian contributions in the intersection of the institutional perspective with public policies

 

Contribuciones basaglianas en la intersección de la perspectiva institucional con las políticas públicas

 

 

Gustavo Zambenedetti

Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), Irati, PR, Brasil

 

 


RESUMO

Partindo de uma preocupação em relação às perspectivas tecnicistas e aos riscos relacionados às formas de burocratização da atuação profissional, propomos discutir possíveis contribuições de Franco Baságlia na interseção da perspectiva institucional com as políticas públicas. Tomando como campo analítico os escritos de Franco Basaglia das décadas de 1960 e 1970, propomos explorar três aspectos. O primeiro diz respeito a relação entre atuação profissional e produção do conhecimento, destacando o conceito de profissional-pesquisador. O segundo aspecto coloca em evidência a relação entre teoria e prática, no qual buscamos afirmar uma perspectiva de modulação e não de aplicação de um sobre o outro, explorando também a noção de crítica-prática. O terceiro aspecto refere-se à emergência do efeito-Foucault e do efeito-Goffman em Baságlia. Espera-se extrair dessa discussão ferramentas que contribuam para a atuação no campo das políticas públicas sob uma perspectiva institucional.

Palavras-chave: Análise Institucional; Psicologia; Políticas Públicas; Produção do conhecimento.


ABSTRACT

Starting from a preoccupation with the technical perspectives and the risks related to the forms of bureaucratization of the professional activity, we propose to discuss possible contributions of Franco Baságlia in the intersection of the institutional perspective with the public policies. Taking as an analytical field the writings of Franco Basaglia of the 1960s and 1970s, we propose to explore three aspects. The first concerns the relationship between professional performance and knowledge production, highlighting the concept of professional-researcher. The second aspect highlights the relation between theory and practice, in which we seek to affirm a perspective of modulation rather than application of one over the other, also exploring the notion of critical-practice. The third aspect refers to the emergence of the Foucault effect and the Goffman effect in Basaglia. It is hoped to draw from this discussion tools that contribute to the action in the field of public policies from an institutional perspective.

Keywords: Institutional Analysis; Psychology; Public policy; Knowledge production.


RESUMEM

Partiendo de una preocupación en relación a las perspectivas tecnicistas y a los riesgos relacionados con las formas de burocratización de la actuación profesional, proponemos discutir posibles contribuciones de Franco Baságlia en la intersección de la perspectiva institucional con las políticas públicas. Tomando como campo analítico los escritos de Franco Basaglia de las décadas de 1960 y 1970, proponemos explorar tres aspectos. El primero se refiere a la relación entre actuación profesional y producción del conocimiento, destacando el concepto de profesional-investigador. El segundo aspecto pone en evidencia la relación entre teoría y práctica, en el cual buscamos afirmar una perspectiva de modulación y no de aplicación de uno sobre el otro, explorando también la noción de crítica-práctica. El tercer aspecto se refiere a la emergencia del efecto-Foucault y del efecto-Goffman en Baságlia. Se espera extraer de esa discusión herramientas que contribuyan a la actuación en el campo de las políticas públicas desde una perspectiva institucional

Palabras clave: Análisis Institucional; psicología; Políticas públicas; Producción del conocimiento.


 

 

Este artigo surgiu a partir do convite para participar como debatedor do artigo intitulado “Inquietações éticas: sobre a possibilidade de (des)encontros”, de autoria de Dell'Aglio, Sbeghen e Heinze (2019), situado no eixo de discussão sobre “Pesquisa e experiência e suas reverberações no campo da psicologia social contemporânea”, no evento “Psicologia, direitos sociais e políticas públicas: temas em debate nos 20 anos do PPGPSI”, realizado pelo PPGPSI entre os dias 17 e 19 de outubro de 2018. Nesse sentido, expressões como “políticas públicas”,“psicologiasocial”, “experiência”, “pesquisa” vão fornecendo algumas pistas para a composição deste debate.

A proposta consistiu em, num primeiro momento, debater o artigo e, posteriormente, propor uma discussão a partir das análises e afetos suscitados nesse encontro.

Diante disso, tomamos como mote a problematização da lógica procedimental-protocolar que perpassa não apenas a relação com a ética em pesquisa, mas com a formação e atuação dos psicólogos no campo das políticas públicas. Temos, no âmbito da formação em psicologia, um tensionamento constante entre perspectivas tecnicistas - que buscam garantir uma homogeneidade das intervenções através do estabelecimento de protocolos/procedimentos -, e abordagens problematizadoras, como as abordagens institucionalistas, que operam na desmontagem de processos e/ou na construção de pistas, princípios, diretrizes e/ou marcadores para a realização de intervenções, preocupando-se com os riscos dos processos de institucionalização e burocratizaçãoI.

Bock (2015) afirma que a perspectiva tecnicista tende a ser expressa em uma concepção de sujeito naturalizada, universal e a-histórica:

Quem é o sujeito dessa psicologia? Onde vive? É um sujeito qualquer de qualquer lugar do planeta. Os conceitos são universais e refletem uma dicotomia no pensamento que separa objetividade e subjetividade. A realidade social não faz parte dela, aparecendo apenas como um campo de estimulação e influências.

Nesse sentido, interessa-nos pensar esse tensionamento no tocante à atuação no campo das políticas públicas, buscando contribuições em Franco Baságlia, na interseção com uma perspectiva institucional.

Ao mencionar a palavra atuação, entendemos que ela abarca tanto o exercício profissional quanto o de produção de conhecimento. Compreendemos também que as políticas públicas constituem-se como respostas do Estado que visam amenizar as desigualdades e vulnerabilidades sociais, sendo este um campo produzido por diversas linhas de força, em permanente tensionamento. Além disso, conformam também modos de governo da população, nos colocando em uma posição de, simultaneamente, afirma-la (no tocante ao acesso à direitos e produção de cidadania) e problematiza-la (no tocante aos efeitos de produção de subjetividade, de assujeitamento, controle, e assim por diante).

Em relação à perspectiva institucional, destacamos um elemento em comum entre os movimentos institucionalistasII e os autoresIII que trazem contribuições para a compreensão do campo institucional e da relação entre instituições e produção de sujeitos: o olhar desnaturalizante e a compreensão de que o sujeito não é a origem, mas antes o efeito de práticas sociais e historicamente constituídas, sendo necessária a criação de ferramentas para colocar em análise as relações estabelecidas com as instituições.

Através da análise dos escritos de Franco Baságlia, publicados entre as décadas de 1960 e 1970 e organizados em uma coletânea (Amarante, 2005), buscaremos desenvolver 3 aspectos que nos possibilitam extrair contribuições para a atuação nas políticas públicas.

Em primeiro lugar, buscaremos afirmar a potência da posição híbrida do chamado “profissional-pesquisador”. Num segundo momento, buscaremos discutir a relação entre teoria e prática, propondo pensar tal relação como um processo de modulação ao invés de aplicação. Por fim, buscaremos compreender os impactos produzidos em Baságlia a partir da leitura de Michel Foucault e Erving Goffman, analisando o efeito-Goffman e o efeito-Foucault como contribuições para a atuação nas políticas públicas.

 

Franco Baságlia: Profissional, Pesquisador ou Profissional-Pequisador?

Franco Baságlia foi um médico italiano, nascido em 1924 e falecido em 1980, reconhecido como principal representante da psiquiatria democrática, responsável pela condução do processo de transformação da assistência psiquiátrica na Itália a partir da segunda metade do século XX. A proposta basagliana é considerada uma das mais radicais e complexas entre as propostas de reforma psiquiátrica constituídas no ocidente, seja pela proposição do fechamentos das estruturas manicomiais - quando a maioria dos movimentos propunha apenas a sua reforma ou a redução de seu papel - seja pelo questionamento do saber psiquiátrico que legitima tais estabelecimentos e os processos de exclusão da loucura, convocando a sociedade como um todo para este debate.

Apesar de seu campo de atuação específico, as contribuições de Baságlia não se esgotam no campo da saúde mental e reforma psiquiátrica, podendo inspirar intervenções que busquem problematizar os processos de exclusão que operam no campo social e institucional. Ao longo de sua obra, Baságlia fez paralelos com o racismo e o nazismo, além de considerar os marcadores de classe e renda na relação com a loucura, evidenciando uma compreensão ampliada e interseccionalizada acerca dos processos de exclusão.

Em 1961 Baságlia assume a direção do Hospital Psiquiátrico de Gorizia, deparando-se com uma situação que em nada o fazia lembrar que aquele lugar era um “hospital”, no sentido de um espaço de cuidado. Baságlia começa a propor mudanças, com base nas leituras e experiências com as quais tinha tomado contato, especialmente as da comunidade terapêutica inglesa e da psicoterapia institucional (Baságlia, 2005a).

Um aspecto a ser destacado em Baságlia é a sua capacidade de provocar tensionamento e transformação a partir do lugar da assistência, que ele hibridiza com o lugar da produção do conhecimento. Nesse sentido, proponho pensar o lugar ocupado por Baságlia como o de “profissional-pesquisador”. Este termo é utilizado para se referir a alguém que conduz sua pesquisa em seu campo profissional, ou em um campo próximo, semelhante ou com ligações ao seu campo de atividade (Lavergne, 2007).

Segundo Lavergne (2007), este termo expressa a dupla reivindicação de uma atividade, sendo que o hífen indica o pertencimento a dois mundos, questionando a tradicional divisão de status entre “pesquisador” e “trabalhador”, assim como a dicotomia entre teoria e prática: “Significa que a atividade profissional gera e direciona a atividade de pesquisa, mas também de maneira dialógica e recursiva, que a atividade de pesquisa reorienta a atividade profissional” (Lavergne, 2007, p. 29). O profissional-pesquisador busca fazer interagir o campo da pesquisa e o campo do trabalho, produzindo contribuições mútuas.

Saint-Martin, Pilotti, Valentim (2014) afirmam que o profissional-pesquisador constitui-se como uma situação limite, visto que não expressa uma relação de sucessividade, de um profissional que se torna pesquisador ou o de um pesquisador que se torna profissional, mas de simultaneidade, onde ambos os lugares são ocupados.

Outro aspectos destacado por Lavergne é que “O prático-pesquisador quer trazer, em interação com os atores, uma dinâmica política (no sentido amplo do termo) que promove o acesso ao conhecimento para os atores envolvidos na pesquisa” (p. 31). Nesse sentido, distingue-se dos chamados “pesquisadores-predadores” - aqueles cujos benefícios da pesquisa não são revertidos ao campo ou a uma produção de conhecimento que produza movimentos de transformação.

Talvez Baságlia não fosse considerado um “pesquisador” dentro de um modelo clássico de pesquisa - ou seja, ele não estava no tradicional lugar de pesquisador:não estava fazendo uma dissertação de mestrado ou tese de doutorado, não estava vinculado a uma universidade - apesar da carreira universitária anterior ao ingresso como diretor do hospital psiquiátrico em Gorizia. Entretanto, consideramos Baságlia como um profissional-pesquisador na medida em que buscou produzir conhecimento - e preocupou-se em difundi-lo - junto às transformações que auxiliava a promover na realidade manicomial. Tal conhecimento era necessário para que as experiências singulares pudessem produzir subsídios para a formulação de políticas públicas, expansíveis a outros territórios. Dentro do modelo tradicional de ciência, onde buscase “conhecer para transformar”, é esperado que os profissionais utilizem conhecimentos já estabelecidos, supostamente construídos ou mediados pela academia, para a consecução de suas práticas. Nesta lógica dicotômica, a academia e a pesquisa seriam os lugares da pesquisa/produção de conhecimento e o serviço seu lugar de aplicação. Entretanto, o que estava até então estabelecido não tinha produzido bons resultados no campo da psiquiatria e o contato com a loucura institucionalizada demandava transformações, evocando aquilo que é conhecido no institucionalismo como um movimento de “transformar para conhecer” (Coimbra, 1995).

A posição do profissional-pesquisador/produtor de conhecimentos rompe com a lógica dicotômica anteriormente exposta, fornecendo uma interessante possibilidade de atuação nas políticas públicas, hibridizando tais posiçõesIV.

 

Relação Teoria e Prática: Da Aplicação à Modulação

Abordar a figura do profissional-pesquisador nos conduz a uma discussão sobre o modo como concebemos a relação teoria-prática. Em sua atuação, Baságlia não somente “aplicou” conhecimentos, mas também fez criações novas e singulares através do encontro entre ideias, teorias e autores com a realidade na qual estava imerso. Exemplo disso é o modo como se inspirou em experiências de reformas desenvolvidas em outros países, destacando-se o fato de que ele passou por essas experiências, sem nelas estacionar. Ou seja, tais experiências serviram como inspiração e ponto de partida e não como modelos prontos a serem replicados ou generalizados, expressando um modo de apreensão crítica e não tecnicista ou generalizante. Em relação ao modelo da comunidade terapêutica, Baságlia expõe a compreensão de que esta não pode ser tomada como uma experiência-fim, mas como uma experiência-meio, de transição para a efetivação de um processo mais profundo: a eliminação do manicômio e dos saberes que o legitimam. Em um texto de 1967, “O que é a psiquiatria?” Baságlia (2005b) menciona que “Apesar de a adoção da comunidade terapêutica poder ser considerada um passo necessário na evolução do hospital psiquiátrico (...), não pode, porém, ser vista como a meta final, mas sim como uma fase transitória” (p. 71). Afirma a importância de enfrentar e aceitar as contradições, “sem sermos tentados a afastá-las para negá-las” (p. 71).

Em um texto de 1968 afirma que “A comunidade terapêutica pretendia ser a escolha de um ponto de referência genérico, que pudesse justificar os primeiros passos de uma ação de negação da realidade manicomial” (Baságlia, 2005c, p. 107), mencionando também “a necessidade de um contínuo rompimento das linhas de ação” (p. 107) até então operadas. Dessa forma, justifica utilizar-se de tal modelo, ao mesmo tempo em que negava o sentido até então atribuído a ele.

Também podemos mencionar o modo como se aproxima e se distancia da psiquiatria de setor francesa. Ao analisar esse modelo e seu potencial de barrar o afluxo de pacientes para o manicômio, em decorrência da existência de serviços territoriais, Baságlia remete ao pensamento foucaultiano para problematizar até que ponto essas barreiras seriam eficazes, diante de um manicômio que continuaria gerando efeitos, visto que o manicômio é o lugar “onde o doente está constantemente 'sob processo, condenado' - como diz Foucault - 'a ser alvo de uma acusação cujo texto nunca é mostrado, porque está impresso em toda a vida do asilo'” (2005a, p. 29).

Rotelli (1994) menciona que, graças a um atraso na reforma italiana, foi possível analisar os modelos desenvolvidos em outros países e “da tradução prática da crítica destas experiências se pode conseguir não cometer os mesmos erros que cometidos naqueles países” (p. 150).

Vai ficando evidente aqui o modo como as experiências de reforma psiquiátrica em outros países e as leituras realizadas foram compondo a produção basagliana, sob uma perspectiva de multireferencialidade, semelhante a postura assumida por Lourau (1993)V Baságlia (2005c) afirma a impossibilidade de uma simples redução à adaptação de modelos já codificados, que seriam supostamente aplicáveis a qualquer situação. Isso nos remete ao pensamento de Deleuze e Guattari (1992), ao afirmarem que “todo conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não teria sentido”(p. 24). Entretanto, para além disso, “num conceito, há, no mais das vezes, pedaços ou componentes vindos de outros conceitos, que respondiam a outros problemas e supunham outros planos. Não pode ser diferente, já que cada conceito opera um novo corte, assume novos contornos, deve ser reativo ou recortado” (Deleuze, Guattari, 1992, p 26). O conceito possui, portanto, um contorno irregular, um devir.

Nesse sentido, a relação teoria-prática não é compreendida como uma relação de aplicação da primeira sobre a segunda, mas como uma relação de modulação. Modular significa produzir variação. Nesse sentido, uma variação de estado produzida por um encontro no qual ocorrem insinuações, correlações, onde conceitos tensionam os modos de olhar e agir, assim como os efeitos produzidos diante dos problemas que se apresentam e se reconfiguram a cada instante tensionam os conceitos, evidenciando seus alcances, limitações e possibilidades de expansão ou reconfiguração. Nesse sentido, o conceito não é algo a ser consumido, mas trabalhado, sempre na relação com os problemas aos quais visa a responder. Diante disso converge nosso estranhamento quando observamos propostas de “aplicação” de teorias psi (análise do comportamento, da terapia cognitivo-comportamental ou da psicanálise) ao campo das políticas públicas. Nosso estranhamento reside na suposição, muitas vezes presente, de que haveria um campo estático - a política de assistência social, saúde mental, etc - ao qual aplicar-se-ia uma teoria do campo psi.

Entretanto, compreendemos que a política pública não é estática, mas atravessada por um complexo jogo de forças e saberes, o qual também deve tornar-se objeto de análise. É necessário compreender o que são as políticas públicas, como surgem, a que/quem se destinam, quais as contradições que as fundam. Afinal, mesmo políticas com desenhos inovadores correm o risco de reproduzir ou manter orientações políticas que antagonizam com seus objetivos fundadores. Ao mesmo tempo, os problemas emergentes e sobre os quais as políticas públicas propõe-se a se ocupar também devem interrogar os saberes psi, convidando-os a reinventar-se. Nesse sentido, as políticas públicas não devem ser vistas apenas como campos de aplicação de um saber psicológico. A relação esperada, portanto, é de modulação, que pressupõe a existência de um encontro entre teoria e campo de atuação, produzindo movimentos mútuos de variação.

Esta discussão se torna importante na medida em que a psicologia tem alterado seu perfil de atuação nas últimas décadas, deslocando-se da posição eminentemente clínico-privatista para uma forte inserção nas políticas públicasVI. Diante disso, convém não apenas reivindicar espaços de atuação junto às políticas públicas mas interrogar de que modo essa atuação tem se constituído.

Compreendemos que a atuação de Baságlia é expressão de relações de modulação, onde os conceitos inspiram, fornecem condições para a ampliação ou restrição de um campo de experimentação. A experiência coloca-se como possibilidade de abertura, de experimentação e não de repetição. É curiosa a suposição existente no senso-comum de que uma pessoa que trabalha há bastante tempo em um lugar acumula “experiência”. Neste caso, estaríamos considerando a experiência ligada a ideia de repetição ou mesmo de hábito. Baságlia (2005d) interroga: “o que significa exatamente esse habituar-se, essa adaptação do doente ao hospital? [e poderíamos aqui inserir a adaptação do profissional ao seu local de trabalho] “Habituar significa: 'fazer contrair um hábito”, e o hábito é “uma disposição adquirida com a repetição dos mesmos atos” (p. 81).

Entretanto, ao abordar o trabalho desenvolvido por Baságlia, pensamos na experiência relacionada a abertura ao novo, a produção de deslocamentos - nesse sentido, relacionada ao conceito de transversalidade, de ampliação do coeficiente de abertura, de compreensão, de ação, de comunicação (Guattari, 2004).

Rolnik, (2005) ao discutir o modo como Gilles Deleuze e Felix Guattari concebiam os conceitos, afirma que a construção conceitual nunca é fechada sobre si mesma, nem se constitui numa abstração ou interioridade na qual residiría o sentido. Ela afirma que esses autores buscam romper com essa tradição:

Ao modo metafísico desse confinamento na representação em seu estatuto imaginário e/ou no conceito em seu estatuto de abstração, eles contrapõem um procedimento em que o conceito tem sempre seu sentido definido no campo de experimentação com o qual se encontra articulado. É uma escrita arejada, exposta ao ar livre do mundo: não há por que proteger-se do mundo, ao contrário, há que experimentá-lo. É nessa experimentação que este ou aquele conceito é convocado, inventado ou reinventado (2005, p. 185).

Nesse sentido, a transcendência da relação teoria-prática é substituída pela relação de imanência, expressa no movimento basagliano de modular os conceitos na relação com seu campo de experiência, produzindo algo novo. Nesse sentido, Rolnik (2005) refere-se ao 'conceito-fluxo', evidenciando sua abertura para a efetivação de agenciamentos que os atualizem e façam funcionar.

Em uma conversa com Foucault, Deleuze afirma que “uma teoria é como uma caixa de ferramentas (...). É preciso que sirva. É preciso que funcione” (Foucault, Deleuze, 1979, p. 71). Nesta perspectiva, os conceitos são operadores da realidade, auxiliando no processo de desnaturalização dos fenômenos.

A noção de crítica-prática também nos auxilia a compreender a relação imanente entre teoria e prática. Baságlia aborda uma realidade em transformação, que exige a reinvenção constante de respostas. Como motor dessas transformações, Baságlia e Gianichedda mencionam a necessidade de efetivação de uma “crítica-prática a toda forma de resposta institucional (quer viesse do técnico, do político ou do administrativo), no sentido de uma resposta pré-constituída para e pela organização, e organizada para a cristalização da demanda” (2005, p. 251). Crítica-prática porque operada no cotidiano da atenção em saúde mental, em ato, expressando uma luta contra a cristalização de respostas ou formas de burocratização das relações: “Este foi o sentido da destruição do manicômio, e esta tende a ser a relação com qualquer instituição, como lugar de pré-formação de respostas” (Baságlia, Gianichedda, 2005, p. 252).

Essa operação de crítica-prática coloca em dúvida respostas pré-formatadas que possam conduzir a processos de burocratização, estigmatização e exclusão.

Destacamos também a proposta de que a atuação junto as políticas públicas opere na composição de caixas de ferramentas heterogêneas e de sensibilidades para se colocar em relação com o outro, analisando o que se produz no encontro com as instituições. Trata-se de assumir que não existe uma teoria pronta e fechada em si mesma que dará conta de todos os problemas. Assim, afirmamos a produção de um cuidado no campo das políticas públicas “que provoque, nas relações com o outro, possibilidades de deslocamentos, de transformações seja no trabalhador, seja no usuário, de modo que o que vai nortear o cuidado será menos o protocolo, a norma e a regra, e mais a possibilidade de criação que se abre no fazer em saúde a partir de cada encontro” (Andrade, Gigivi, Abrahão, 2018, p. 76).

 

O Efeito-Foucault e o Efeito-Goffman

Seguindo a discussão da relação entre teoria e prática, buscamos compreender o modo como autores como Michel Foucault e Erving Goffman produziram efeitos sobre a atuação de Franco Baságlia.

Esta análise se faz importante especialmente diante do cenário atual da política de saúde mental brasileira, onde as contribuições de autores como Michel Foucault tem sido negadas e/ou deturpadas por segmentos conservadores. Exemplo disso ocorreu em declarações do atual Ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, nas quais afirma que as políticas deveriam “ser embasadas em dados científicos, em vez de teorias de viés ideológico [...] Não é ficar fazendo a elegia do Foucault , que acha a droga uma coisa maravilhosa”VII Tal afirmação evidencia tanto um processo de mistificação da ciênciaVIII quanto um equívoco conceitual em relação à Foucault.

Erving Goffman e Michel Foucault são autores que não tiveram origem, propriamente, no campo da psicologia ou psiquiatria. Apesar disso, suas inovações e contribuições extrapolam seus campos de origem, justificando sua apropriação por disciplinas como a psicologia social. Também não propuseram protocolos ou procedimentos para atuar nessas áreas. De que modo, então, produziram efeitos que repercutiram sobre um modo de atuar no campo da saúde mental? Como podem seguir nos auxiliando?

Baságlia é encarregado de dirigir um hospital psiquiátrico em Gorizia, em 1961, mesmo ano em que Michel Foucault lança, na França, “História da Loucura na idade clássica” (Foucault, 2002) e que o canadense Erving Goffman lança “Manicômios, Prisões e Conventos” (Goffman, 2003) nos EUA. Portanto, só tomará contato com estas obras - hoje consideradas clássicas - durante o desenvolvimento de seu trabalho de transformação institucional.

Em artigo publicado originalmente em 1964 (Baságlia, 2005a), por ocasião do I Congresso Internacional de Psiquiatria Social, em Londres, Baságlia expressa as reflexões sobre a experiência de reorganização de um hospital psiquiátrico com cerca de 600 internos, em Gorizia, nos últimos 3 anos, sob os princípios da comunidade terapêutica. Trata-se de um texto que narra uma experiência que busca restaurar ao hospital seu papel terapêutico, através de medidas que buscavam “criar um clima de liberdade dentro do hospital”: retirada de grades, reatamento dos vínculos com o exterior, abertura das portas, criação de um hospital-dia, entre outras. Apesar de necessárias, Baságlia considera também os riscos de que o espaço do hospital e essa aparente liberdade passe a ser vivenciada pelos pacientes como uma espécie de gratidão, criando o que ele chama de uma “institucionalização branda”, na qual os pacientes já não permaneceriam no hospital à força, mas pela própria vontade, sendo este também um risco.

Nesse mesmo texto, em suas primeiras páginas, Baságlia indica que “Mas a liberdade de que Pinel falava tinha sido concedida num espaço fechado, e deixada nas mãos do legislador e do médico, que a deviam dosar e tutelar” (2005a, p. 23), evidenciando um efeito do pensamento foucaultiano. Baságlia parte de sua realidade institucional, com foco na figura do sujeito institucionalizado, buscando compreender por que e como torna-se natural aceitar que algumas pessoas vivam desse modo, interrogando o papel da medicina enquanto legitimadora de uma ordem social. Baságlia cita Foucault, no que ele chama de “em sua recente História da Loucura”, trazendo a compreensão de que Pinel não libertou os loucos, mas sim, passou a objetificá-los.

História da loucura se insinua sobre Baságlia, interrogando a experiência narrada, produzindo deslocamentos e abrindo uma condição de possibilidade para a instalação de uma contradição: a afirmação da humanização do hospital e a necessidade de sua destruição como fato urgente. O contato com a obra foucaultiana é ainda recente, mas começa a demarcar um incômodo, a fundar contradições, a demandar rupturas. Já neste texto, chega à conclusão de que a liberdade deveria ser uma obviedade, “tão óbvia que não deveria provocar discussão alguma” (2005a, p. 26).

Em 1979, Franco e Franca Baságlia publicam o verbete “Loucura/Delírio”. Iniciam o texto afirmando “não existe história da loucura que não seja história da razão” (2005a, p. 259). Abordam, a partir de Foucault, aspectos da história da loucura, como o fenômeno do esvaziamento dos leprosários e sua posterior ocupação por outras figuras. A relação entre razão e loucura é uma marca da influência foucaultiana, especialmente na passagem operada a partir do século XVII/XVIII, considerado um “momento histórico crucial” que efetivará uma separação:

Quando a razão começa a julgar a loucura, a distância entre razão e desrazão já está fixada, e constitui a distância que se cria entre o sujeito do juízo e o objeto julgado. A objetificação da desrazão é a premissa indispensável ao domínio, e a razão só poderá admitir a desrazão como parte de si na medida em que já a tiver objetificado” (Baságlia, Baságlia, 2005a, p. 264).

O contraditório, nesta situação, é que a razão permite a palavra a desrazão, mas obriga-a a ser compreendida por seus termos (a da razão).

Em um texto publicado originalmente em 1977, Baságlia e Gianichedda (2005) descrevem a experiência em curso em Trieste, na qual a destruição do manicômio e a inserção territorial vão tornando-se uma realidade. Chama a atenção que os autores não apresentam a criação dos novos serviços como “solução definitiva”, assim como afirmam que

o nascimento dos novos serviços descentralizados não representou automaticamente o fim do mandato para a separação e a exorcização das contradições [...] O próprio desaparecimento, no circuito dos serviços, da oferta de internação (...) induz profundas mudanças na formulação da demanda de intervenção. A prática dos Centros continuou e continua a chocar-se com a demanda de internação, separação, coação (Baságlia, Gianichedda, 2005, p. 253).

Nesta perspectiva, nos auxiliam a compreender que o manicômio nada mais é do que a expressão concreta de um conjunto de forças complexas que tendem a expelir aquilo que a sociedade teme, desconhece ou não sabe como lidar. Desse modo, há o vetor-forma e o vetor-força. A eliminação do manicômio (vetor-forma), não elimina a demanda pela separação e exclusão (vetor-força). Mas auxilia a tensionar essa demanda, a trabalhar com ela, a apresentar outras alternativas, a não legitimar ou tomar como dado tal mandato de exclusão.

Baságlia e Baságlia (2005b) fazem uma advertência, ao indicar um horizonte no qual a face social da doença mental poderia modificar-se: “Mas, nesse caso, qual será a nova área de compensação, se porventura o doente mental for reabilitado e reintegrado à nossa atual sociedade? (...) Quais serão então os novos “out” a excluir e acobertar?”(2005, p. 148)

Nesse sentido, fica evidente que concebe as chamadas 'áreas de compensação' como forças que tendem a se atualizar constantemente, produzindo separação, exclusão em relação aquilo que se teme, se desconhece ou não se sabe como lidar. Conforme podemos concluir com a leitura de Foucault (2002), apesar de cada período histórico desenvolver uma sensibilidade específica em relação à quais categorias excluir e sob quais procedimentos discursivos, os processos de exclusão são uma constante.

Diante disso, podemos indicar que uma das maiores contribuições de Foucault para Baságlia é a crítica ao mandato historicamente constituído de exclusão do manicômio, o qual antecede e se sobrepõe aos objetivos de cura ou tratamento. Daí vem a compreensão de Baságlia de que qualquer ação de humanização do manicômio seria sempre limitada e fadada ao fracasso, sendo necessária uma ruptura que deveria passar pelo fim dos manicômios.

O efeito-Foucault é o de desnaturalização, de estranhamento, de desestabilização dos instituídos, através do dispositivo histórico das relações. Segundo Guizard, Lopes e Cunha (2015), desnaturalizar “significa entender que a maneira como olhamos o mundo não é a única possível, ou seja, não é próprio da natureza humana” (p. 320). Esse efeito é condição de possibilidade para a produção de mudanças, na medida em que possibilita a instalação de um problema e a construção de outras respostas.

Erving Goffman é outro autor que exerce importante impacto sobre Baságlia. No primeiro texto publicado por Baságlia a influência de Goffman aparece já no título, através da noção de mortificação, aparecendo também ao longo do texto, na medida em que busca compreender a realidade do paciente institucionalizado: como o estabelecimento age sobre o paciente? Como ele se torna aquilo que se vê?

Em “Corpo e instituição”, Baságlia (2005d) discute os efeitos do estabelecimento sobre o interno “bastaria que se analisasse os paradigmas sobre os quais decorre a vida asilar para que se pudesse conhecer com exatidão o nível de despersonalização e de “degradação moral” - como diria Goffman - que o doente atinge após determinado período de hospitalização” (p. 76).

O processo de “coisificação” do humano, segundo Baságlia, pode ser lido em frases deixadas por enfermeiros na passagem de turno: “Antes de sair, foram verificados fechaduras e pacientes” (2005d, p. 80).

O conceito de “carreira moral” de Goffman também lhe serve para análises: “trata-se de um tipo particular de estrutura e de disposições institucionais mais do que sustentar o eu do paciente, na verdade o constitui. Isto significa que, se originariamente o doente sofre a perda da própria identidade, a instituição e os parâmetros psiquiátricos constituíram-lhe uma nova, por meio do tipo de relação objetificante que estabeleceram com ele e por meio dos estereótipos culturais com que o rodearam” (Baságlia, 2005d, p. 79). Daí a relação com a fábula oriental, que narra a história de um homem que, enquanto dormia, uma serpente entrou em sua boca e alojou-se em seu estômago, passando a comandá-lo, impondo sua vontade e tirando-lhe a liberdade. Um dia o homem sentiu que a serpente havia ido embora, tornando-o livre novamente. Entretanto, não sabia o que fazer com sua liberdade. Baságlia (2005d) utiliza-se desta fábula como analogia para pensar a situação do doente mental institucionalizado, que diante da liberdade, não sabe o que fazer com ela, pois desenvolvera uma relação de dependência do estabelecimento. Poderíamos também utiliza-la para pensar a angústia que muitas vezes é produzida no trabalhador inserido nas políticas públicas. Ao ser confrontado com práticas instituídas, com relações burocratizadas, vivencia o dilema de permanecer reproduzindo-as (pois é o que sabe) ou abrir-se muitas vezes para um vazio temporário ou não saber, que produz angústia.

É significativo considerar que Franco Baságlia, em colaboração com Franca Baságlia, são convidados a fazer a abertura da edição italiana de “Manicômios, prisões e conventos”. Ao comentar sobre as contribuições de Goffman, Baságlia e Baságlia afirmam:

O que Goffman consegue destruir -mediante sua análise da instituição psiquiátrica e das analogias com as outras instituições totais - é a imagem (e, portanto, a cultura) do internado mental como produto de uma doença que destrói e desumaniza, mostrando a mesma face e os mesmos mecanismos de sobrevivência em instituições que nada tem a ver com a doença mental. [...] Ele conseguiu apreender as facetas do aspecto social da doença (o que foi feito dela, o significado que lhe dera, a face construída para ela) (2005b, p. 136).

Seguem ainda: “O estudo de Goffman, portanto, escancarou as portas das instituições totais, desmascarando a ideologia científica - religiosa, custodialística, pedagógica - que recobre a violenta realidade comum a todas elas” (Baságlia, Baságlia, 2005b, p. 137).

Goffman proporcionou à Baságlia ferramentas para interrogar se o que via era efeito da doença ou do processo de institucionalização, em um contexto onde estava naturalizada a atribuição da situação degradante dos internos das instituições psiquiátricas à doença mental. Goffman, em conjunto com outros autores como Foucault e Burton, contribuíram para a compreensão de que muito do que se observava naquela realidade era efeito do processo de institucionalização e não do que se chamava “doença mental”. Goffman (2007) afirma que as instituições são “estufas de mudar pessoas”, ressaltando os processos de modificação do eu a partir do acoplamento com as instituições.

O efeito-Goffman é o de desnaturalização, de desestabilização das formas de ver e atuar em relação aos fenômenos cotidianos, através do dispositivo geográfico da relações.

Se tanto Foucault quanto Goffman produzem efeitos de desnaturalização, o que então os diferencia?

Goffman inaugurou um modo peculiar de fazer sociologia: a microssociologia. Segundo Bourdieu (2004), Goffman fez com que a sociologia descobrisse o “infinitamente pequeno”, possibilitando um novo olhar para aquilo que era aparentemente óbvio e evidente. Watson (2004), ao analisar as contribuições da obra de Goffman, aponta o quanto os fenômenos banais da vida cotidiana resistem à tentativa de torná-los visíveis, lembrando da metáfora utilizada para representar um desafio colocado no âmbito da pesquisa: “fazer o peixinho do aquário se dar conta da água”. Ou seja, olhar para algo aparentemente óbvio e desnaturalizá-lo. Goffman é considerado como um autor do espaço, enfatizando as dinâmicas de interações estabelecidas em micro-contextos sociais, sendo a etnografía sua principal abordagem metodológica para observação das interações. Em Manicômios, Prisões e Conventos, Goffman (2003) procedia à observação da interação entre equipe dirigente e internos, tendo como foco um hospital psiquiátrico, mencionando também outras instituições totais. Já na obra “Estigma - Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada” Goffman (2008) procede à observação da interação ocorrida nos encontros mistos, ou seja, entre uma pessoa estigmatizada ou potencialmente estigmatizada e outra não estigmatizada.

Por outro lado, Foucault pode ser compreendido como um autor do tempo, que busca analisar, historicamente, como se procedeu aos processos de separação, divisão e exclusão de determinadas categorias sociais. Ao invés da observação etnográfica, como utilizada por Goffman, Foucault parte da análise de documentos históricos - prontuários, registros de processos penais, registros de hospitais, prisões e outros estabelecimentos, laudos médico-legais indexados a processos jurídicos, livros de referência em determinados contextos -, buscando compreender a gênese de determinado fenômeno.

O caráter histórico, sob a perspectiva da genealogia, têm relação e parte de algo que é colocado no presente como problema. Ewald e Fontana (2008) afirmam que as aulas de Michel Foucault tinham uma função na atualidade.

A arte de Michel Foucault estava em diagonizar a atualidade pela história. Ele podia falar de Nietzsche ou de Aristóteles, da perícia psiquiátrica do século XIX ou da pastoral cristã, mas o ouvinte sempre tirava do que ele dizia uma luz sobre o presente e sobre os acontecimentos contemporâneos (p. XVI).

Ao fazer a arqueologia/genealogia da loucura, da anormalidade ou da sexualidade no ocidente, Foucault fornecia importantes materiais, os quais produziam um efeito de rebatimento sobre o presente - interrogando-o, fazendo-nos perguntar em que nos diferenciamos, mas também em que aspectos permanecemos os mesmos.

Neste sentido, ambos os autores compartilham a produção de efeitos de desnaturalização, constituindo-se como condição de possibilidade para a instalação de problemas e a construção de novas perspectivas de atuação. Porém, através de estratégias distintas.

 

Considerações Finais

Um duplo movimento foi buscado na leitura realizada dos textos de Baságlia. Por um lado, compreender sua experiência na relação entre os problemas que o convocavam na prática assistencial e o modo como se aproximou de modelos de reforma desenvolvidos em outros países e em autores como Michel Foucault e Erving Goffman para construir referenciais para sua atuação. Por outro lado, inspirando-nos nesses movimentos, buscamos também extrair pistas que possibilitassem a criação de ferramentas para a atuação no campo das políticas públicas. Ferramentas estas que não visam ser apresentadas como protocolos ou procedimentos a serem replicados ou generalizados, mas como possibilidades de operação, na relação singular que podem efetivar com determinados problemas e campos de atuação.

A noção de prático-pesquisador ressalta a potência do lugar híbrido de trabalhador e pesquisador/produtor de conhecimento e a possibilidade de uma atuação que não dicotomiza a relação teoria e prática e borra a visão tradicional da universidade como lugar de produção do conhecimento e do serviço como mero campo de aplicação. Do mesmo modo, a noção de crítica-prática ressalta a operação de transformação da realidade na qual atuamos, agindo como uma ferramenta que permite interrogar os aspectos cristalizados nas instituições. Seguindo este caminho, o efeito Foucault e o efeito Goffman agem no processo de desnaturalização dos fenômenos, segundo estratégias diferentes, podendo constituírem-se como importantes ferramentas para a atuação no campo das políticas públicas. Não necessariamente na perspectiva da resolução de problemas, mas na produção deles, visto que a desnaturalização constitui-se como condições de possibilidade para a produção de mudanças.

A análise realizada evidenciou o modo como Baságlia singularizou os conceitos na relação com seu campo de práticas, levando-nos a propor pensar essa relação não na perspectiva da aplicação, mas da modulação. É também essa compreensão que nos permite afirmar a atualidade de Baságlia, visto que o atual não é determinado apenas por uma cronologia, mas por uma capacidade de produzir conexões com os problemas do presente, ampliando as possibilidades de compreensão e intervenção sobre os mesmos (Zambenedetti, Silva, 2011). Sendo coerentes com esta postura, esperamos que as ferramentas desenvolvidas neste artigo possam servir como inspiração para agenciamentos produtores de transformações nos modos de produzir a assistência no campo das política públicas.

 

Notas

I Segundo Guirado (1987) a burocracia não se resume a morosidade, papeis ou filas associadas à imagem do Estado, sendo compreendida pela análise institucional como “um certo tipo de relação de poder que atravessa toda a vida social, desde as relações de produção até o lazer, passando pelos partidos políticos, pela pesquisa científica e pela educação. (...) existe onde quer que se separe a decisão da execução, e o pensar do fazer” (p. 33-34).

II Entre essas correntes podemos citar a psicoterapia institucional, a análise institucional e a esquizoanálise.

III Entre eles podemos citar Michel Foucault, especialmente com o desenvolvimento da noção de sociedade e instituição disciplinar (Foucault, 2004) e Erving Goffman, especialmente com a noção de instituição total (Goffman, 2003).

IV Através da vinculação com um ProgramadePós-Graduação Interdisciplinar em Desenvolvimento Comunitário, temos visto como potência a inserção no mestrado e doutorado de pesquisadores-trabalhadores e na possibilidade de interação entre o campo da pesquisa e do trabalho, produzindo contribuições mútuas, assumindo como problemática a relação teoria-prática, universidade-serviços de saúde, pesquisadores-participantes.

V Lourau afirma que “Propomos, ao contrário da ideia de “originalidade de ideias”, a multireferencialidade. Esta não é sinônimo de pluridisciplinaridade; não é uma mera coleção de disciplinas justapostas. Refere-se ao apelo a diferentes métodos e ao uso de certos conceitos já existentes, a fim de construir um novo campo de coerência”(1993, p. 10).

VI Em levantamento realizado em 13 estados brasileiros em 2012, verificou-se a presença de 29.212 psicólogos atuantes na saúde e 20.463 nas políticas de Assistência Social (CFP, 2012), sendo estas as duas políticas com maior inserção de psicólogos.

VII Disponível em: https://guaiba.com.br/2018/11/29/osmar-terra-classifica-como-complexo-novo-super-ministerio-e-garante-manter-programas-sociais-de-governos-passados/. Consulta em: 10 jan 2019.

VIII Baságlia problematiza em seus textos o processo de mistificação da ciência psiquiátrica, que teve como um de seus efeitos o processo de enclausuramento da doença mental. Aborda a psiquiatria e a doença mental como uma ideologia: “O estado atual da nossa psiquiatria asilar pode ser considerado como a expressão concreta dos resultados obtidos por uma ciência que, em vez de ocupar-se com o doente, preferiu dedicar-se à pesquisa ideológica da doença mental” (Baságlia, 2005d, p. 73).

 

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Gustavo Zambenedetti é professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em DesenvolvimentoComunitário, Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), Campus Irati-PR.
E-mail: gugazam@yahoo.com.br

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