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Psicologia Hospitalar

versão On-line ISSN 2175-3547

Psicol. hosp. (São Paulo) v.2 n.2 São Paulo dez. 2004

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Psicologia e emergências médicas: uma aproximação possível

 

Psychology and medical emergencies: a possible approach

 

 

Luciane De Rossi1; Ana Clara Duarte Gavião2; Mara Cristina Souza de Lucia3; Soraia Barakat Awada4

 

 


RESUMO

Este estudo pretende caracterizar as necessidades afetivo-emocionais de pacientes atendidos pelo Pronto Socorro do Instituto Central do HC-FMUSP. Segundo a literatura, o Pronto Socorro destina-se a receber pessoas em situações de emergência, mas tem funcionado como um ambulatório com pronto-atendimento. Essa descaracterização, aliada à sobrecarga de trabalho e ao contato com a dor, sofrimento e morte afetam a equipe de saúde e podem comprometer a qualidade da assistência ao paciente. Trata-se de um estudo piloto realizado com 50 pacientes que passaram pela triagem do Pronto Socorro. Para a coleta de dados foram utilizados um questionário breve e o diário de campo. Observou-se intensa procura de pacientes, que se mantém pela insuficiência do atendimento na rede pública de saúde e pelo “status” que o HC carrega. Os pacientes apresentam idealizações e uma demanda subjetiva que não pode ser devidamente considerada no contexto da abordagem médica. Diante disso, fica evidente que a intervenção psicológica pode beneficiar tanto pacientes quanto a equipe de saúde.

Palavras-chave: Psicologia hospitalar, Interdisciplinaridade, Emergências médicas, Pronto-atendimento.


ABSTRACT

This study intends to characterize the affective-emotional necessities of patients taken care of for the Emergency Room of the Central Institute of the HC-FMUSP. According to literature, the Emergency Room destines to receive people in emergency situations, but it has functioned as a clinic with soon-attendance. This dynamics, allied to the overload of work and the contact with pain, suffering and death affects the health team and can compromise the patient assistance quality. It’s a pilot study with 50 patients who had passed for the Emergency Room selection. For the collection of data a brief questionnaire and the field daily one are used. The patients intense search was observed, that if keeps for the public health net attendance insufficiency and for the HC "status". The patients present idealizations and a subjective demand that cannot be considered in the context of the medical boarding duly. Therefore, it is evident that the psychological intervention can benefit  patients and the health team.

Keywords: Hospital psychology, Interdisciplinarity, Medical emergencies, Soon-attendance.


 

 

1 - JUSTIFICATIVA DO ESTUDO E CARACTERIZAÇÃO DO SETOR

O presente estudo se insere no Programa de Assistência Psicológica no Pronto Socorro, implantado em 2002 pelo Serviço de Assistência da Divisão de Psicologia do ICHC-FMUSP. O programa visa ampliar a rotina assistencial da psicologia no Pronto Socorro, setor permeado por uma série de limites, intenso sofrimento físico e emocional e morte, procurando melhorar, assim, a qualidade do atendimento prestado ao paciente. Possui dois focos principais de investigação e de intervenção. O primeiro inclui um olhar para a demanda institucional e para a subjetividade nas relações da equipe interdisciplinar, a fim de contextualizar o atendimento oferecido em um setting tão carregado de experiências emocionais intensas. O segundo foco é a assistência psicológica propriamente dita ao paciente internado no Pronto Socorro e a seus familiares.

A inserção do psicólogo no contexto hospitalar inclui uma extensa área de atuação. Segundo Chiattone (2000), para atuar no hospital, o psicólogo inicialmente “emprestou” recursos técnicos e metodológicos de outras áreas do saber psicológico. Entretanto, esse conhecimento mostrou-se inadequado a esse contexto, cuja especificidade tem exigido a construção de um novo saber e a adequação de técnicas.

No que se refere à assistência psicológica em Pronto Socorro, a bibliografia é relativamente escassa. Há literatura sobre o atendimento psicológico em enfermaria, mas não seria adequado simplesmente transpor esse conhecimento para o atendimento em Pronto Socorro, que se apresenta como uma realidade singular. É preciso considerar que a assistência pode se modificar a partir da estrutura e funcionamento do setor, da dinâmica institucional e do perfil do paciente. Assim, para planejar sua intervenção o psicólogo precisa considerar todos esses fatores. Como afirma Bleger (1984) não se pode ser psicólogo se não se é, ao mesmo tempo, um investigador dos fenômenos que se quer modificar e, para ser um investigador, é preciso extrair os problemas da própria prática e da realidade em que se atua.

O trabalho assistencial do psicólogo hospitalar procura compreender e minimizar o sofrimento relacionado à doença e à hospitalização. Pode ainda ter um caráter preventivo, o que exige que se desvende os significados pessoais que as experiências de doença e hospitalização têm para o indivíduo (Spink, 1995, citado por Chiattone, 2000). Exige ainda que se considere as adversidades de determinado setor do hospital enquanto desencadeantes de alterações emocionais, pois, como comenta Romano (1999), quando se conhece a demanda é possível se antecipar a ela. Quanto mais precoce a intervenção, menores as possibilidades de agravamento e maiores as expectativas de recuperação psíquica dos pacientes (Chiattone, 2000).

Diante disso, fica evidente a necessidade de estudos como esse, que pretende caracterizar as necessidades afetivo-emocionais dos pacientes que procuram o Pronto Socorro do ICHC-FMUSP, visando obter subsídios para intervenções mais apropriadas e eficazes.

Segundo documento elaborado pela Diretoria Executiva do ICHC (2003), o Pronto Socorro do Instituto Central do Hospital das Clínicas foi inaugurado em 1944 e, desde o início, teve o objetivo de integrar assistência, ensino e pesquisa. Abrange os níveis terciário e quaternário de atenção à saúde, sendo destinado ao atendimento de alta complexidade, o que exige recursos humanos especializados e equipamentos de alta tecnologia.

Ocupa uma área de cerca de 3000 m2, onde são realizados mais de 15000 atendimentos por mês. Do ponto de vista operacional, caracteriza-se por um atendimento singular, pois inclui diversas especialidades médicas: Clínica Médica, Clínica Cirúrgica, Ginecologia, Obstetrícia, Endoscopia/Broncoscopia, Otorrinolaringologia, Oftalmologia, Urologia e Queimados, com equipes presentes 24 horas por dia e equipe multiprofissional comum (enfermeiros, assistentes sociais, fisioterapeutas, psicólogos e nutricionistas). Há ainda três unidades de terapia intensiva e duas enfermarias de retaguarda exclusivas para pacientes provenientes da unidade de emergência ligadas à Clínica Cirúrgica e à Clínica Médica. Conta também com outros serviços de apoio: registro, farmácia, banco de sangue, radiologia, eletrocardiografia, prova de função pulmonar e plantão policial.

A demanda de pacientes pode ser classificada como espontânea e referenciada, ou seja, encaminhada pelo Plantão Controlador Universitário, órgão que controla o fluxo de pacientes entre hospitais ou dentro do Complexo HC. A demanda espontânea representava, em 2003, 70% dos pacientes. Destes, apenas 15% necessitavam realmente de recursos de alta complexidade, enquanto o restante poderia ser atendido na rede pública de saúde de atenção primária e secundária. Essa procura intensa, aliada ao número insuficiente de pessoal, implica uma sobrecarga de trabalho para os funcionários da unidade e, conseqüentemente, gera insatisfação. Há ainda a descaracterização dos serviços prestados e uma exigência prática de priorizar a assistência em detrimento do ensino e da pesquisa.

As metas para o Pronto Socorro, segundo o Planejamento Operacional da Diretoria Executiva, são priorizar o atendimento de alta complexidade e oferecer assistência de qualidade, valorizando o ensino e a pesquisa. Isso implica a elaboração de estratégias que permitam a mudança do quadro atual. Uma delas seria disponibilizar para os pacientes um serviço de psicologia mais efetivo.

 

2 - O IMPACTO DO TRABALHO EM PRONTO SOCORRO PARA A EQUIPE DE SAÚDE

O Pronto Socorro é uma das portas de entrada do paciente no hospital. Destina-se a receber pessoas em situações de emergência, com ou sem risco iminente de morte, que necessitam de um pronto-atendimento (Coppe & Miranda, 2002).

Há uma literatura generosa sobre o uso da tecnologia disponível para serviços de urgência, principalmente no que se refere a equipamentos e medicamentos. Porém, os estudos sobre a dinâmica do trabalho em equipe e sobre os aspectos emocionais de pacientes, familiares e da equipe de saúde são escassos (Coppe & Miranda, 2002; Romano, 1999).

A literatura aponta para uma descaracterização dos serviços prestados pelo Pronto Socorro, que funciona, atualmente, como um ambulatório com pronto-atendimento (Coppe & Miranda, 2002; Romano, 1999; Sebastiani, 2002b). De um setor destinado ao diagnóstico e tratamento de pacientes acidentados ou acometidos de mal súbito, o Pronto Socorro passou a ser um serviço que absorve todos os problemas físicos e sociais (Romano, 1999).

Essa situação tem seu alicerce e se mantém em função da qualidade insatisfatória dos serviços oferecidos pela saúde pública no Brasil. Na verdade, o sistema de saúde não atende as necessidades do paciente, que é obrigado a enfrentar longas filas e aguardar meses por uma consulta e para realizar exames e outros procedimentos. Desta forma, a maioria da população recorre ao Pronto Socorro, que se apresenta como a única possibilidade de ser prontamente atendida e obter, num curto espaço de tempo, algum encaminhamento para seu problema (Romano, 1999).

A procura intensa gera uma sobrecarga de movimento que, aliada à descaracterização do setor e à tensão devido à necessidade constante de tomar decisões imediatas, eficazes e eficientes podem provocar na equipe de saúde a sensação de que o trabalho não é compensador. Há ainda a exigência de se salvar vidas numa unidade em que a taxa de mortalidade é cinco vezes maior do que nas enfermarias (Romano, 1999).

E essas não são as únicas dificuldades enfrentadas pela equipe de saúde. Seu cotidiano é permeado por vivências de dor, sofrimento, impotência, angústia, medo, desesperança, desamparo, perdas e morte. É marcado também pela necessidade de cuidar de pessoas poliqueixosas, refratárias à ajuda, agressivas, hostis, auto-destrutivas, deprimidas e inseguras e que, muitas vezes, alimentam a fantasia de obterem um tratamento rápido, indolor e que não implique muito investimento pessoal. Além disso, as jornadas de trabalho são extensas e múltiplas e incluem o convívio com limitações técnicas e materiais (Sebastiani, 2002b).

Algumas pesquisas apontam para o efeito nocivo dessas condições para o profissional de saúde. Sebastiani (2002b) relata estudos de Friedman et al. (1971, 1973) sobre a atenção sustentada dos residentes privados de sono em função das extensas jornadas de trabalho, que demonstraram um aumento na margem de erros na interpretação de exames simples, dificuldade de concentração, depressão, aumento da irritabilidade, sentimentos de auto-referência com extrema sensibilidade à crítica, inadequação afetiva e déficit na memória de fixação.

A OMS apresentou, em 1992, relatório sobre estatísticas de suicídio por categoria profissional, no qual os profissionais de saúde ocupavam o 2º lugar, perdendo apenas para jornalistas. No Brasil, dados da Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro apontam que 40% dos casos de suicídio registrados na cidade do Rio de Janeiro em 1996 foram de médicos (Sebastiani, 2002b).

Outra pesquisa, publicada em janeiro de 2003, verificou que os profissionais de saúde que atuam em Pronto Socorro possuem alto risco de apresentar sintomas de transtorno de estresse pós-traumático. A prevalência deste transtorno entre esses profissionais é maior do que na população em geral. A pesquisa revelou que todos os profissionais que trabalhavam diretamente com o paciente apresentaram pelo menos um dos sintomas do transtorno de estresse pós-traumático. Destes, 12% preencheram todos os critérios diagnósticos do DSM-IV. Desconsiderando o critério que exige que os sintomas apareçam em até seis meses após o evento traumático, esse percentual subiu para 20. Os sujeitos afirmaram ainda que os sintomas atrapalham sua vida social (37%) e profissional (27%). A pesquisa aponta também que no Pronto Socorro os anos de experiência e outras variáveis, tais como sexo, nível escolar e cultural, profissão e estado civil, não têm relação com o desenvolvimento do transtorno. Os sintomas desse transtorno geram absenteísmo, redução da satisfação no trabalho e afastamento precoce do trabalho (Laposa & Alden, 2003).

Todas essas dificuldades enfrentadas pela equipe de saúde no Pronto Socorro interferem no atendimento ao paciente e podem comprometer a qualidade da assistência.

 

3 - O PACIENTE

O paciente que procura o Pronto Socorro, geralmente, teve sua vida desestruturada a partir da instalação abrupta de um processo mórbido, da vivência de acidente ou de uma descompensação em casos de doenças crônicas.

O atendimento em Pronto Socorro envolve a imprevisibilidade e provoca, no paciente, reações psicológicas bastante variadas, incluindo ansiedade, medo, ressentimentos, perda de autonomia e auto-domínio, sensação de estranheza, alteração da auto-estima e da imagem corporal (Coppe & Miranda, 2002). Segundo Moura (1996), a doença ou acidente provocam uma crise e fazem com que o sujeito entre em contato com possíveis situações de perda: perda de alguém querido (morte), perda do corpo saudável (doença) e da condição de “inteiro” (fraturas, mutilações, procedimentos cirúrgicos). Nesse momento, o paciente teme tudo aquilo que a dor possa representar, inclusive a morte e o sofrimento. Esse medo baseia-se em dados de realidade, tais como a sensação de dor e de outros sintomas físicos, a dependência da equipe de saúde e o sentimento de impotência (Coppe & Miranda, 2002; Sebastiani, 2002a).

Quando chega ao Pronto Socorro, o paciente se vê imerso numa situação de desamparo e, de certa forma, perde sua dignidade quando deixa sua posição de sujeito passando a objeto de intervenção (Moura, 1996). É submetido a procedimentos médicos que, embora visem sua melhora, podem adquirir um caráter ameaçador e invasivo. Assim, ele vive um momento de perda de referencial, que é acompanhado por vivências de isolamento, abandono e rompimento de laços afetivos, profissionais e sociais (Coppe & Miranda, 2002).

Mas esse sofrimento que permeia a passagem do paciente pelo Pronto Socorro pode ser minimizado pela intervenção psicológica. Mohta, Sethi, Tyagi e Mohta (2003) ressaltam a importância do atendimento psicológico a pacientes traumatizados. O tratamento de traumas requer uma abordagem multidisciplinar, que considere as manifestações clínicas e os aspectos psicológicos relacionados a elas, que afetam os pacientes e seus familiares. Segundo os autores, esses aspectos, muitas vezes, são ignorados, levando a uma alta incidência de distúrbios psiquiátricos. Os problemas psicológicos estariam relacionados à natureza súbita ou inesperada dos eventos, à dor e ao ambiente do hospital, que é desconhecido para os pacientes. Estes apresentam sentimentos de desamparo, humilhação, alteração da imagem corporal, regressão, negação, raiva, ansiedade e depressão.

Diante de todas essas dificuldades, o trabalho do psicólogo é bastante oportuno. No Pronto Socorro o psicólogo, assim como toda a equipe de saúde, não pode prever seu dia de trabalho. A imprevisibilidade atravessa o contexto, pois nunca se sabe quantos pacientes procurarão o Pronto Socorro e que tipo de atendimento eles vão precisar. No caso do psicólogo, o que se tenta é resguardar o paciente na medida do possível. Os atendimentos são breves, focais e buscam minimizar o sofrimento de pacientes e familiares. O psicólogo procura "resgatar" o sujeito, a partir do oferecimento de uma escuta, que permite a explicitação do sofrimento. A partir dessa escuta é possível discriminar entre a urgência médica e a subjetiva (Moura, 1996).

A intervenção do psicólogo pode auxiliar o tratamento médico na medida em que sensibiliza a equipe para aspectos psicossociais que dificultam a comunicação com o paciente, facilita a implicação do paciente em seu tratamento e reabilitação e oferece um acolhimento para a família (Romano, 1999).

Melhorando a qualidade de trabalho da equipe e intervindo junto ao paciente e familiares, o psicólogo contribui para a melhora da rotina assistencial no Pronto Socorro.

 

4 - A TRIAGEM NO PS DO ICHC

Apresentaremos aqui dados qualitativos preliminares de um estudo voltado a um grupo composto por 50 pacientes que passaram pela triagem do Pronto Socorro do ICHC, selecionados por conveniência, tendo sido excluídos aqueles que não apresentavam o nível de consciência necessário para responder ao questionário. A coleta foi realizada no período de 24 de maio a 29 de junho de 2004. A psicóloga permaneceu na unidade 15 horas semanais, distribuídas em três dias (segunda-feira, terça-feira e quinta-feira). Os pacientes foram avaliados mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, quando já haviam passado pelo atendimento da enfermagem e aguardavam o atendimento médico.5 Foi aplicado um questionário (anexo), cujas questões se referem aos motivos da procura pelo Pronto Socorro do ICHC, às experiências emocionais vivenciadas durante a permanência no setor e à percepção do paciente de sua vida afetiva, familiar, social e profissional. Os dados referentes ao contexto e à dinâmica institucional, falas significativas de pacientes e da equipe de saúde e impressões pessoais da psicóloga foram registrados em diário de campo, ao final de cada dia de coleta.

Os pacientes são recepcionados em um balcão onde uma atendente lhes entrega uma senha. O painel na sala de espera indica a senha e a sala em que o paciente deverá entrar. Alguns pacientes se confundem e chegam a perder a vez, precisando então pegar uma nova senha. São três salas de atendimento, onde as enfermeiras coletam alguns dados, verificam temperatura e pressão arterial e encaminham o paciente para fazer a ficha no guichê. Em seguida, o paciente retorna para outra sala de espera, entrega a ficha para a atendente e aguarda até que o médico o chame. As fichas são encaminhadas pela atendente e distribuídas entre os médicos (geralmente são três médicos). O paciente é atendido e, se necessário, é encaminhado, medicado ou internado. Esse é o fluxo de atendimento dos clínicos gerais. Quando o paciente precisa de oftalmologista, otorrinolaringologista ou obstetra (no caso de gestantes) ele recebe um papel com a sigla da especialidade, abre ficha no guichê e entra no Pronto Socorro para ser atendido.

 

5 - O PRONTO SOCORRO DO ICHC-FMUSP: UM RETRATO DA ROTINA

Verificou-se, a partir dos dados coletados, que os pacientes procuram o Pronto Socorro do ICHC por motivos variados, com diferentes níveis de gravidade. Os casos realmente graves, que necessitam de cuidados médicos imediatos, são admitidos diretamente, sem passar pela triagem. Na triagem, os motivos da procura referidos são, geralmente, dor (de cabeça, abdômen, estômago e garganta), mal estar geral, paralisias (facial ou de membros) ou descompensação de doenças crônicas, tais como diabetes, hipertensão, doença de Chron e câncer.

Rey (1999) define emergência como uma condição imprevisível ou inesperada que requer ação imediata, ou uma alteração súbita do estado de saúde, ou grave complicação de uma doença que exige cuidados médicos urgentes. A partir dessa definição é possível questionar se os pacientes atendidos na triagem estão mesmo em situação de emergência. Isso porque, em alguns casos, referem que o sintoma já estava instalado há algum tempo. Uma paciente, por exemplo, estava com paralisia facial “há 15 dias”. Outro disse que a cefaléia já o perturbava “há duas semanas”. Além disso, muitos pacientes passam pela triagem e são encaminhados para atendimento ambulatorial, o que mostra que, na avaliação médica, o problema apresentado de fato não necessita de um cuidado urgente. Muitos pacientes desejam simplesmente passar por uma consulta, fazer exames ou conseguir encaminhamento para se tornar um paciente HC. Um paciente afirmou que procurou o PS do ICHC porque “faz mais de um ano que eu estou tentando fazer um exame (ultrassonografia de testículo) e não consigo”.

Como já apontado pela literatura, verificou-se, na triagem, uma descaracterização dos serviços prestados pelo Pronto Socorro, que parece se manter em função da insatisfação com o atendimento na rede pública de saúde de atenção primária e secundária. Muitos pacientes justificaram a procura pelo Pronto Socorro do HC afirmando que não conseguiram atendimento nos postos de saúde: “Estou batendo de porta em porta e ninguém resolve”, “Faz tempo que vou nos postos de saúde e não consigo vaga”, “Não consigo passar no posto. Quando passo no posto eles mandam passar no Pronto Socorro”. Essas falas ilustram a insatisfação e também parecem reforçar o caráter de não urgência dos casos.

Essa insatisfação e o próprio fato de o HC ser considerado referência no cenário da saúde pública no Brasil parecem fazer com que o paciente apresente expectativas altas ou idealizações: “... o HC é o melhor. É demorado, mas ainda é um dos melhores”, “Sempre venho aqui e eles sempre acertam o remédio”, “Eu sempre venho aqui. Como é hospital-escola acho que é melhor”, “Eles sempre têm a solução”, “O atendimento todo mundo conhece, a fama do HC é de os médicos serem bons (...) A gente conhece a qualidade do hospital”, “Eu bato cartão aqui”.

Os dados coletados apontam ainda para uma discrepância entre a urgência médica e a urgência psíquica. Os pacientes solicitam atendimento imediato, embora os médicos não evidenciem a mesma necessidade. Diante disso, é possível afirmar que a demanda do paciente é de outra ordem, ou seja, é subjetiva. Observou-se que os pacientes pedem atenção, escuta e acolhimento. Verificou-se que todos os pacientes se mostraram muito satisfeitos ao responder o questionário. Quando a aplicação terminava, a psicóloga agradecia ao paciente pela colaboração. Nesse momento, muitos pacientes diziam que eles deveriam estar agradecendo. Uma paciente afirmou “estou emocionada porque você está conversando comigo”. O momento da coleta, de escuta, sempre se mostrou terapêutico. Muitos choraram ao falar de suas dificuldades. Uma paciente disse: “Estou com vontade de chorar, porque hoje estou me sentindo muito sozinha. Queria ter alguém comigo (...) A sensação que tenho desde ontem é que vou morrer”.

É interessante ressaltar que nenhum paciente se queixou do atendimento em seu aspecto técnico. Apesar disso, a idealização aliada ao caráter subjetivo da demanda podem levar à frustração com o atendimento recebido, surgindo queixas relacionadas ao sentimento de desamparo. Uma paciente estava respondendo ao questionário quando foi chamada pela médica. Quando ela saiu da sala disse que estava decepcionada, pois, embora tivesse sido bem atendida, desejava mais atenção.

Um paciente, logo depois de ser atendido, comparou sua profissão de mecânico com a de médico, comentando, um tanto quanto revoltado, que é importante ter “amor pela máquina e por gente também”. Percebe-se que sua “falta de amor” não pôde ser trabalhada e, de fato, nem poderia, já que tal demanda excede os limites de uma consulta médica.

As queixas se estendem a outros serviços de saúde pública. Um paciente que estava com dor no tórax disse: “Passei ontem em outro hospital, não fiz nenhum exame e o médico disse que estava tudo bem e que coração não dói”.

Outro paciente surpreendentemente abordou a psicóloga e entregou o seguinte texto, escrito por ele em um folheto sobre vacinação contra a paralisia: “Sabe o por que de tanta espera? Porque pessoas como vocês aquinhoadas pela fortuna não podem enxergar-nos além de nossos contra-cheques, mas tão somente como coisas quando não podemos pagar seus honorários. Afinal nem sequer almoço é grátis, quanto mais o serviço prestado por vocês”. Foi convidado a participar da pesquisa e aceitou imediatamente. Referiu possuir “transtorno de personalidade borderline” e que estava em terapia, porém foi encaminhado para o Instituto de Psiquiatria, pois sua terapeuta se mudou para o Rio de Janeiro. Referiu “não estar bem” em função de ainda não ter sido chamado para atendimento. Precisava de atenção e aproveitou o momento da coleta para obtê-la. Afirmou: “Estou num eterno conflito; numa espera aflita, infinita”. Quando terminou de responder ao questionário, entregou a senha para a psicóloga e disse: “Pode entregar para ela (atendente), porque eu não vou mais precisar. O que eu vim procurar aqui você já me deu”.

O caso acima é ilustrativo do que refere Moura (1996), quando afirma que o psicólogo oferece uma escuta, que permite a explicitação do sofrimento e a discriminação entre urgência médica e subjetiva.

Outra paciente demonstrou a mesma necessidade de ser acolhida. Referiu ter transtorno bipolar e discutiu com a atendente. Disse que “se não estivesse em um dia bom, teria batido nela”. Enfatizou que “o paciente precisa de respeito, de dignidade” e que seria muito bom se existisse atendimento psicológico no Pronto Socorro. Aliás, muitos pacientes disseram isso. Uma mãe que acompanhava um adolescente afirmou que seria muito bom poder contar com psicólogos no PS, pois era realmente “muito difícil ficar esperando”. Normalmente os pacientes, ao responderem ao questionário, falavam muito mais do que as perguntas pediam, aproveitando a oportunidade de escuta.

A assistência psicológica também pode beneficiar outros pacientes, que atribuem aos sintomas apresentados fatores emocionais: “Acho que foi nervoso que passei no sábado”, “Além dos problemas físicos, existem os emocionais (...) fiz vários exames e nunca deu nada. Então acho que tem muito do emocional envolvido”, “Talvez possa ser pânico, nervoso. Já tive, há muitos anos, estado de pânico. Vi uma reportagem sobre infarto e pode ser até auto-sugestão”.

Outra paciente relatou que os sintomas surgiram assim que ela soube da morte de um amigo muito próximo. Segundo ela, o amigo era saudável e a morte foi súbita. Quatro dias depois do óbito, ela ainda desconhecia sua causa. Simplesmente recebeu a notícia e não conseguiu participar do velório, nem do enterro. Referiu ter ficado “chocada” e, desde então, sentia-se fraca, apresentava um mal estar geral, dor de estômago e vômito, não se alimentava bem, nem dormia o suficiente. A aplicação do questionário transformou-se num breve atendimento de suporte psicológico. A paciente pôde relatar toda a dor e tristeza que sentia. Ao final, referiu sentir-se melhor, mais calma e com menos dor.

A importância da aproximação empática com o paciente pode ser ilustrada pelo caso de uma paciente, de 42 anos, que concordou em participar da pesquisa, mas mostrou-se receosa e respondia às questões com o mínimo possível de palavras. Sua postura só mudou quando falou de seu problema de hirsutismo, que, coincidentemente, a psicóloga também possui. No momento em que a psicóloga compartilhou isso e mostrou os pêlos no pescoço, a paciente exclamou: “Então, menina, minha vida acabou por causa disso!”. Ela contou que deixou de viver, se isolou, não namorou mais, abandonou sonhos e ideais, por causa dos pêlos (bigode e barba). Quando ela se sentiu compreendida, percebeu que a psicóloga realmente era capaz de entender seu problema, conseguiu conversar mais e saiu com outra expressão, parecendo mais leve, aliviada.

Uma senhora abordou a psicóloga durante a aplicação do questionário com outro paciente. Ela estava com a filha e carregava uma sacola com receitas médicas e medicações. Estava muito aflita, pois havia percebido que estava confundindo os remédios da filha, que é paciente do Instituto de Psiquiatria. A psicóloga colocou-se à disposição para ajudá-la. Conferiu as medicações, que estavam corretas, e anotou com letras grandes na receita e nas caixas da medicação a posologia correta. A paciente se acalmou e foi agradecendo e pedindo para Deus abençoá-la, do balcão da atendente até a porta de saída do PS. Esse é um tipo de apoio egóico que pode ser oferecido por qualquer profissional e que, como parece ter ocorrido neste caso, pode ser bastante significativo para o paciente.

Percebe-se que, como afirma a literatura, também para o psicólogo o inesperado se faz presente e exige uma intervenção focal, capaz de acessar e compreender o sofrimento de pacientes e familiares, o que pode minimizá-lo.

A última questão do questionário pede que o paciente diga três palavras que mais representem a maneira como se sente naquele momento. Um dado positivo é que mais da metade dos pacientes (52%) citaram palavras como esperança e confiança, mostrando uma boa expectativa. Entretanto, outras palavras citadas foram ansiedade (38% dos pacientes), impaciência (30%), tristeza ou depressão (20%), insatisfação, decepção ou frustração (14%), o que evidencia o sofrimento emocional que pode estar associado à demanda pelo atendimento emergencial.

Os dados coletados apontam, ainda, o estresse vivenciado pela equipe de saúde. A literatura ressalta a sobrecarga de movimento gerada pela procura intensa dos pacientes. Neste estudo percebeu-se que a equipe de saúde vive imersa na ação, já que o fluxo de pacientes é ininterrupto. A atendente entrega as senhas, encaminha as fichas e exames e orienta e encaminha os pacientes. É interessante notar como a postura de um atendente parece de fato influenciar a reação dos pacientes e, consequentemente, a dinâmica do local. Observou-se que, quando a atendente informava sobre o funcionamento e orientava o paciente, este se mostrava mais calmo e ocorriam menos problemas (como por exemplo: discussões ou erro no encaminhamento das fichas). Quando a informação não era fornecida, o paciente sentia-se confuso quanto à entrada na sala de triagem, quanto ao que ele deveria fazer ou onde deveria colocar a ficha. Isso causava certa irritação levando, muitas vezes, a agressões verbais.

Percebe-se, assim, como pode ser útil a capacitação da equipe assistencial no que se refere a uma compreensão psicológica dessas situações de pressão emocional na relação com pacientes.

 

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi possível observar que na triagem do Pronto Socorro há demandas que extrapolam os objetivos mais diretos de uma consulta médica emergencial. Para a equipe de saúde o trabalho é intenso, não apenas do ponto de vista técnico, mas, também, emocional. Os profissionais vivem sobrecarregados, imersos na ação, sendo difícil refletir sobre a própria prática. Uma atendente disse para a psicóloga: “Você é que deveria ficar aqui (no balcão de recepção), tem que ser psicóloga para agüentar isso”. De fato a intervenção do psicólogo pode ser útil tanto no que se refere ao paciente e seu familiar, como no que diz respeito à equipe.

Mas esse retrato inicial apresenta um desafio à psicologia e, nesse momento, traz mais indagações do que respostas. Quais as principais necessidades dos pacientes? Que tipo de intervenção psicológica seria mais adequada e eficaz neste contexto? Que tipo de suporte o psicólogo pode oferecer à equipe? Como conseguir um espaço para a subjetividade nesse cotidiano tão marcado pela ação?

Essas são algumas das questões que se pretende discutir com a continuidade desse estudo.

 

6 - REFERÊNCIAS

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1Psicóloga, Especialista em Psicologia Hospitalar pelo Instituto do Coração - HCFMUSP.
Endereço para correspondência: Rua Dezoito, 02 - apto. 24A - Vila Mariana. CEP 04120-021 - São Paulo-SP.
2Diretora do Serviço de Assistência da Divisão de Psicologia - ICHCFMUSP.
3Diretora da Divisão de Psicologia - ICHCFMUSP.
4Diretora do Pronto Socorro do ICHCFMUSP.
5Alguns pacientes foram chamados pelo médico durante a aplicação do questionário, retomando a entrevista com a psicóloga após a consulta médica.

 

 

ANEXO

QUESTIONÁRIO

Divisão de Psicologia – ICHC – FMUSP

Pronto Socorro

Nome: ________________             Idade: ______ anos           Sexo:      (   ) Feminino        (   ) Masculino

Estado Civil:         (  ) Solteiro     (  ) Casado     (  ) Separado / Divorciado      (  ) Amasiado      (  ) Viúvo

Escolaridade:        (   ) Ensino fundamental                     (   ) incompleto                     (   ) completo

(   ) Ensino médio                                (   ) incompleto                     (   ) completo

(   ) Ensino superior                             (   ) incompleto                     (   ) completo

(   ) Pós-graduação                             (   ) incompleto                     (   ) completo

Profissão/Ocupação:_______________ Procedência (bairro/cidade/Estado):____________________________

Diagnóstico:________________  (  ) Triagem (  ) Internado. Tempo de Internação:______________________

1.Por que você procurou o pronto socorro do Hospital das Clínicas?

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2. É a primeira vez? (   ) Sim           (   ) Não. Quantas vezes já procurou? _____________________________

Por que? ____________________________________________________________________________________

3. Você utiliza outros serviços de saúde (postos de saúde, ambulatórios, clínicas particulares ou outros hospitais)?    (   ) Não            (   ) Sim. Quais? ___________________________________________

4. A que você atribui essa emergência? (Investigar possíveis causas emocionais ou atuações auto-destrutivas relacionadas às circunstâncias que culminaram na internação)

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5. O que você espera daqui?

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6. Como está se sentindo aqui? (Focalizar vivências emocionais)

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7. Como você avalia sua vida afetiva?    Boa    Regular   Ruim   Péssima

Por que?_____________________________________________________________________________________

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8. Como você avalia sua vida familiar?   Boa   Regular   Ruim    Péssima

Por que?_____________________________________________________________________________________

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9. Como você avalia sua vida social?   Boa    Regular   Ruim    Péssima

Por que?_____________________________________________________________________________________

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10. Como você avalia sua vida profissional? (Caso trabalhe)  Boa   Regular  Ruim   Péssima

Por que?_____________________________________________________________________________________

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11. Diga 3 palavras que mais representem como você se sente aqui?

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Data da aplicação: ____/___/ 2004.

Psicóloga: ____________________________

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