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Interamerican Journal of Psychology

versão impressa ISSN 0034-9690

Interam. j. psychol. v.41 n.2 Porto Alegre ago. 2007

 

 

Câncer de próstata, sentimento de impotência e fracassos ante os cartões IV e VI do Rorschach

 

Prostate cancer, feelings of impotence and failures before cards IV and V of Rorschach

 

 

Ana C. A. Tofani1; Cícero E. Vaz

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo é compreender os sentimentos de impotência e fracassos com base em dados empíricos extraídos dos cartões IV e VI da técnica de Rorschach aplicado em vinte e cinco pacientes com câncer de próstata em atendimento ambulatorial num hospital de câncer. O Rorschach foi aplicado nas dependências do próprio hospital, após consentimento livre e esclarecido dos pacientes e aprovação do Comitê de Ética do hospital. O estudo permite concluir que por se tratar de um órgão que afeta a sensibilidade sexual masculina, a depressão e o sentimento de impotência estão presentes em todos os pacientes, mesmo naqueles em que a impotência possa ser temporária.

Palavras-chave: Teste de Rorschach, Câncer de próstata, Sexualidade, Depressão (emoção).


ABSTRACT

The purpose of this study was to understand the feelings of impotence and failure, based on empirical data extracted from cards IV and V of the Rorschach technique. It was carried out with twenty five prostate cancer patients in a specialized cancer hospital. The Rorschach was applied inside the hospital after both the patients' free and conscious consent and the approval of the hospital's Ethics Committee. The study allowed to conclude that depression and impotence feelings are present in all prostate cancer patients, even in those whose impotence may be temporary, since the prostate is an organ that affects sexual male sensibility.

Keywords: Rorschach test, Prostate cancer, Sexuality, Depression (emotion).


 

 

O presente estudo visa a buscar elementos teóricos e empíricos que ajudem na avaliação diagnóstica, no que diz respeito às condições emocionais do paciente de câncer de próstata. O sofrimento do homem portador de câncer de próstata afeta seu bem-estar físico e emocional, assim como a qualidade de vida em geral. Para um adequado tratamento profissional, inclusive quanto à aceitação da doença e como lidar com os sentimentos, que surgem neste momento é de fundamental importância o diagnóstico médico associado ao exame psicodiagnóstico. Neste sentido, a avaliação psicológica por meio de uma técnica projetiva como a do Rorschach pode trazer importante ajuda instrumental.

Câncer da Próstata

O câncer surge quando as células de alguma parte do corpo começam a crescer sem controle e usualmente assumem forma de tumor. Os tipos de câncer podem comportar-se de maneiras diferentes e respondem a distintos tratamentos, segundo a National Comprehensive Cancer Network (NCCN, 2001).

O câncer de próstata é o segundo tumor maligno mais freqüente no sexo masculino no Brasil (Instituto Nacional do Câncer [INCA], 2004). No passado, muitos destes casos eram diagnosticados tardiamente e os pacientes morriam em pouco tempo. A próstata é uma glândula exclusiva dos homens, situada logo abaixo da bexiga, de aparência e volume muito semelhante a uma castanha. É responsável pela produção de boa parte do líquido seminal. Com o envelhecimento a próstata está sujeita a duas condições: aumento benigno (HPB - hiperplasia prostática benigna) e câncer de próstata. O câncer de próstata é a segunda causa de morte em muitos países. Gomes (2003) destaca que além da idade devem ser considerados os fatores genéticos, alimentação e fatores raciais.

Diagnóstico Clínico e Condições Psicológicas

O diagnóstico de câncer da próstata pode ser feito a partir de dois exames básicos o toque retal para avaliar o volume da glândula e a presença de nódulos suspeitos, e o PSA (Prostatic Specific Antigen). Os temores mais freqüentes em pacientes com este diagnóstico relacionam-se com a disseminação da doença e com as mudanças na sensibilidade sexual (Lintz, et al., 2004). Os assuntos relacionados com a sexualidade preocupam muito aos pacientes que sofrem de câncer de próstata, e segundo a NCCN (2001) algumas sugestões podem ajudar os homens a enfrentar este momento e buscar apoio em outras pessoas.

O tratamento do câncer de próstata afeta a masculinidade e contribui para que muitos homens se tornem impotentes, mas segundo Simkins (2002), os sobreviventes valorizam a qualidade de vida possível como conseqüência deste tratamento. Bokhour, Clark, Inui, Silliman, & Talcott (2002) apontam modificações na qualidade de intimidade sexual, na interação com as mulheres, nas fantasias e na percepção de sua masculinidade.

Os pacientes com câncer apresentam uma incidência de depressão maior do que a população geral (Carvalho, 2002). O autor adota como referência os critérios do DSM-IV (Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais - 4ª Edição), mas com algumas adaptações. Os sintomas perda de peso, distúrbios de sono, fadiga ou perda de energia e diminuição da habilidade de pensar ou de se concentrar perdem a especificidade nos pacientes com câncer, pois estes podem ser desencadeados por outras causas devido à doença e não à depressão. O autor comenta que nestes pacientes a perda de peso deve ser substituída pela presença de aspecto deprimido, a insônia pode ser substituída pela diminuição dos contatos sociais, a fadiga substituída por sentimentos de auto piedade ou pessimismo, e ainda a diminuição de concentração ou habilidade de pensar ser substituída por perda de reatividade e dificuldade de se animar. A dor é um elemento a ser considerado ao se fazer diagnóstico psiquiátrico, e é sempre recomendável que a dor seja removida antes de firmar este tipo de diagnóstico. Alguns pacientes podem apresentar quadro de depressão em função dos próprios tratamentos quimioterápicos ou com corticosteróides. Pacientes com câncer que apresentam depressões freqüentes têm maior possibilidade de terem tido episódios depressivos na juventude. Outro ponto destacado pelo autor quanto à instalação da depressão ou seu agravamento é a fragilidade de uma rede social de apoio, já que pessoas com estrutura psíquica frágil, em geral têm dificuldade em estabelecer uma rede de apoio significativa.

A informação ao paciente de que ele é portador de câncer, já o conscientiza de sua finitude. O diagnóstico de câncer é freqüentemente acompanhado de depressão, traduzida pelo fato de o paciente não conseguir manter uma atitude de aceitação interior. Como não consegue negar a doença, vê-se obrigado a reconhecer que tem um câncer, deprimindo-se no início da doença, ou durante o tratamento (Moraes, 1994). As implicações e incertezas deste diagnóstico intensificam as reações emocionais; o choque ou descrença ante a descoberta do tumor estão associados a sintomas de ansiedade, tristeza e irritabilidade, segundo Chochinov (2001).

Kübler-Ross (1994) em sua obra Sobre a Morte e o Morrer aponta cinco estágios pelos quais passa o doente desde o diagnóstico até a morte: 1) Negação e isolamento: como "não pode ser comigo"; "não tenho nada"; 2) Raiva: quan do a negação não é mais possível surgem sentimentos de raiva e revolta: "por que eu?", essa raiva pode estar relacionada à impotência e à falta de controle da própria vida; 3) Barganha: estratégia do paciente tentando certo acordo para adiar um desfecho inadiável; 4) Depressão: momento do contato efetivo com a doença e as suas perdas do corpo, das finanças, da família, do emprego, do lazer. Inibir o processo de enlutamento não parece ser a conduta mais adequada; o procedimento recomendado seria facilitar a expressão desses sentimentos por parte do paciente; e, 5) Aceitação: os pacientes que viveram a sua doença e receberam apoio nos estágios anteriores podem chegar a uma aceitação.

Em geral, ao ser informado do diagnóstico médico, o primeiro mecanismo de defesa utilizado pelo paciente é a negação. Inicialmente a negação funciona como um escudo protetor, mas se persistir por longo período, ela pode enfraquecer o relacionamento e impedir o paciente de assumir uma atitude mais responsável. Sabe-se que sentir medo é uma reação costumeira do indivíduo à ameaça externa de dor e destruição, com as quais não está preparado para lidar. "Esmagado pela estimulação excessiva que não consegue controlar, o ego é inundado pela ansiedade" (Hall, Lindzey, & Campbell, 2000, p. 60). Neste sentido, os autores informam que quando a ansiedade é mobilizada, a pessoa tende a reações comportamentais de fuga da região ameaçadora, ou de inibição do impulso perigoso, ou obediência à voz da consciência.

Em termos de compreensão do mundo interno da pessoa, a frustração é um sentimento de fracasso por não ter obtido a satisfação desejada. A frustração é inerente à condição humana. Para Zimerman (2001) este termo pode ter duas significações opostas em psicanálise, mas que são complementares. A primeira, sob a forma de privação que pode ocorrer, e que também é necessária para a estruturação do desenvolvimento. A segunda se refere a perdas e fracassos repetitivos, constituindo-se em fator fortemente desestruturante da personalidade.

Sexualidade, Poder e Psiquismo

Em "Proyecto de Psicologia" de 1895, Freud já afirmava que a tendência humana é a busca do prazer e a evitação do desprazer. Nos "Tres Ensayos de Teoria Sexual" (1905) dizia que a pulsão representa o conceito de algo que é limite entre o somático e o psíquico; essa parte psíquica ele passou a denominar libido. Em "Pulsiones y Destinos de Pulsión", Freud (1915) apontava quatro fatores pulsionais importantes: fonte (necessidades pessoais e de sobrevivência); força (quantidade de excitação que tende à descarga); finalidade (descarga de excitação para conseguir o retorno a um estado de equilíbrio psíquico, segundo o princípio da constância) e objeto (o que é capaz de satisfazer ou minimizar o estado de tensão interna provenientes das exci tações do corpo). Além dos fatores citados, as pulsões possuem como características: deslocamento de uma zona corporal para outra, ou seja, de sua meta; substituírem-se umas às outras, ao passar energia de uma pulsão para outra; compulsão à repetição e as transformações. Estas transformações incluem: sublimações, mecanismos defensivos do ego e ansiedade. No início da vida as pulsões são unicamente de auto-conservação visando à satisfação de necessidades essenciais (alimentação, amor e amparo), e num segundo momento estas se tornam independentes das pulsões sexuais, que se destinam a satisfação dos desejos libidinais e visam a preservação da espécie.

Em "Más allá del Principio de Placer", Freud (1920) propõe um dualismo pulsional - pulsões de vida que englobam as pulsões sexuais, e as de auto-conservação e pulsões de morte ligadas à morte e à destruição. A libido passou a ser conceituada como energia, vindo não somente da pulsão sexual, mas da pulsão de vida. No "Esquema del Psicoanálisis" (1938) postula que as duas pulsões básicas, quanto ao efeito, ou funcionam uma contrariamente à outra, ou combinam-se entre si. Assim, o ato de comer é uma destruição do objeto com a meta última da incorporação; o ato sexual, uma agressão com o propósito da união mais íntima. Para Freud, sexual era um termo amplo, que não se referia exclusivamente à função genital, pois abrangia as atividades instintivas que se manifestavam de diversas formas e que tinham por objetivo a obtenção de prazer.

Na "33ª Conferência", Freud (1932) comenta que a distinção entre masculino e feminino não é uma distinção psicológica, pois quando se diz masculino, geralmente quer se dizer ativo, considerando que a célula sexual masculina é móvel e busca ativamente a célula feminina, que funciona passivamente. Este é o modelo da conduta sexual dos indivíduos durante o coito, conforme o autor.

Na "Etiologia da Histeria", Freud (1896) já se referia à figura do pai desde o período inicial quando num primeiro momento referia um pai real sedutor, e num segundo momento um pai produto da fantasia. Nos "Tres Ensayos de Teoría Sexual", Freud (1905) ampliou o conceito de sexualidade, reconhecendo seu valor em todas as realizações humanas. Inicialmente a mãe é percebida como primeiro objeto de amor por ser a fonte de alimento, prazer e vida; o pai assume um papel fundamental no desenvolvimento psicossexual, na vigência do complexo de Édipo. A tarefa mais importante do pai é a interdição do incesto. Para o menino, o pai que era um objeto de identificação, é ao mesmo tempo um rival, quando este tenta se apropriar do primeiro objeto de amor, a mãe. Em "Totem y Tabu", Freud (1913) estuda as raízes arcaicas da proibição do incesto real, que nas sociedades primitivas era punido. Referindo-se ao tabu, entendia o autor que o contato proibido não deve ser entendido como exclusivamente sexual, mas num sentido de afirmar-se, de obter o controle, e está a serviço da afirmação do sujeito no grupo.

Em "Moisés y la Religión Monoteísta", Freud (1938) afirma que o pai é um líder de massas, que representa o grande, e descreve que na humanidade existe a necessidade de uma autoridade que possa ser admirada. Este é um anseio pelo pai, pois muitas características admiradas nos grandes homens são características paternas. É um misto de admiração e terror. O pai deveria na realidade permitir que seu filho assumisse uma posição viril.

A simbolização do falo, dizem Kaplan e Sapetti (1986), segue vigente em nossa cultura machista e obcecada pelo poder. Continuam os autores, a fórmula é: "ereção = macho = viril = homem exitoso = desejado pelas mulheres = admirado por todos os homens; pobres dos que falham" (p. 16). Para eles existem mitos que influem na sexualidade masculina: alguns homens transformam a relação sexual numa obrigação, que tem de cumprir, ao invés de uma maneira pela qual duas pessoas se relacionam, e tratam de ter o maior prazer possível alcançado, com a rigidez do pênis e a intensidade do orgasmo. Esta preocupação aumenta o nível de ansiedade, com a possibilidade de bloquear a resposta sexual. Um outro mito é que o homem assume a responsabilidade do desempenho e sucesso do ato sexual. Este mito provém de duas idéias sobre a natureza da masculinidade: "ser homem significa ser líder e ativo" e "um verdadeiro homem" necessita pouco de uma mulher, tanto em termos de informação como de estimulação (Kaplan & Sapetti, 1986). Em contraposição com este mito os autores referem que a atividade sexual com uma companheira é, por definição, algo compartilhado com ela, e não é real que o homem deva fazer tudo sozinho. Há, também, o mito, segundo o qual, o homem sempre quer e está disposto a uma relação sexual, sendo permitido somente às mulheres o direito de não aceitar a relação. Diante disso não parece ser permitido um homem querer somente um carinho, um abraço, sem que isto seja o início de uma relação sexual. Associa-se a esses aspectos o mito de que sexo significa penetração, constituindo-se a ereção a "estrela do show sexual". Seguindo a linha de pensamento de Kaplan, é difícil em nossa cultura conceber-se o ato sexual como algo descontraído, com interrupções, pausa para descanso, risos, enfim como algo agradável e menos ansiogênico.

A sexualidade masculina, quando não devidamente abordada, pode comprometer a saúde do homem, revelando dificuldades, principalmente em relação à promoção de medidas preventivas (Gomes, 2003). O autor cita um estudo realizado por Goldenberg em 1991 com homens intelectualizados da classe média urbana brasileira. Este aponta para tensões diante do padrão de masculinidade tradicionalmente construído, em que existem marcos vigentes para a afirmação da identidade masculina, como a iniciação sexual com prostitutas, a negação do homossexualismo, referência constante a determinado padrão de comportamento sexual masculino, desejo de corresponder às expectativas sociais, em especial dos amigos e das mulheres, além do temor de serem questionados quanto a sua masculinidade, e ao seu poder.

A masculinidade não é algo dado, segundo Ramos (2000), mas algo que constantemente o homem procura conquistar. Damatta (1997) aponta que a construção da masculinidade é atravessada por pontos carregados de inseguranças provocadas principalmente pelo medo do homossexualismo e da impotência. Gomes (2003) também refere que na construção da identidade masculina pode estar embutido, de forma contraditória, justamente o não cuidar de si, porque ser homem para alguns é ser alguém que é poderoso e imbatível.

Visando a conhecer as influências do gênero no enfrentamento do tratamento do câncer, Gianini (2004) realizou um estudo e analisou o processo de enfrentamento de homens com câncer de próstata e mulheres com câncer de mama. Neste estudo obteve os seguintes resultados: os homens mostraram dificuldades em reconhecer e expressar seus sentimentos quanto ao diagnóstico, sendo que para alguns a saúde ainda era vista como "coisa feminina". Muitos homens se sentiram isolados e impossibilitados de partilhar seus medos, exceto com pessoas que também estivessem fazendo os mesmos tratamentos; demonstraram maior dificuldade de lidar sozinhos com suas limitações físicas, de suportar a interrupção brusca de suas atividades, e de perder o papel de provedor da família.

O sofrimento emocional dos homens se deve, segundo Gianini (2004), às limitações físicas, à diminuição da capacidade de ereção, ao cansaço, à fadiga e à retirada dos testículos, responsável pela produção do hormônio masculino (testosterona), que inibe o crescimento do tumor, mas que também interfere na ejaculação. Os tratamentos nos homens, quase invariavelmente, acarretam os conhecidos riscos da incontinência e da impotência que atingem a essência da masculinidade. Observa ainda o autor que nos processos sociais, os homens são cobrados para que assumam seus problemas de forma mais ativa. Quando os pacientes liberam seus sentimentos, reconhecendo-os e aceitando-os, e quando percebem que podem lidar com emoções como o medo, podem desenvolver maior autoconfiança, quebrando o ciclo da depressão e desesperança, aumentando assim suas condições de enfrentar o sofrimento (Carvalho, 1994).

Klopfer (1957), estudando as condições psicológicas nos portadores de câncer, encontrou simbiose entre o paciente portador de câncer e sua doença. Considerou o tipo de câncer, a idade do paciente e sua personalidade para relaci onar à velocidade do desenvolvimento do câncer nos pacientes. Observou, a partir do uso do Rorschach, que os pacientes mais desligados de sua realidade tinham um câncer de evolução mais lenta, enquanto que os pacientes mais dedicados à sua condição e conectados à sua realidade sofriam mais. Pacientes que já possuíam um ego frágil utilizavam suas defesas para dar uma sustentação ao ego, e portanto, não sobraria energia para lutar contra a doença.

Rorschach: Cartões IV e VI

Para o presente estudo foram usadas verbalizações de 25 pacientes com câncer de próstata ante os cartões IV e VI. O cartão IV é considerado o cartão representativo da autoridade, do poder, no qual podem aparecer as identificações projetivas do sujeito (Mucchielli, 1968; Passalacqua & Gravenhorst, 1988; Portuondo, 1973; Vaz, 1997). A mancha do cartão é compacta, de cor preta muito densa, dando a idéia de algo pesado, formando uma base bastante espalhada para a esquerda e para a direita, sendo que nessas extremidades o preto assume aspecto de sombreado. Normalmente, o tempo de reação é prolongado, o que quer dizer não se tratar de um estímulo simples para o examinando. Minkoska (1946, citado por Vaz, 1997) sintetiza bem e em poucas palavras as características deste cartão, quando diz "é qualquer coisa de ameaçador, de terrível, de impenetrável, de misterioso... grande, preto, sombrio, maciço" (p. 112). "A altura e a largura da base com esse quê de maciço e preto, lembram austeridade e superioridade, desencadeando sentimentos de angústia, medo da autoridade paterna, transformação de agressão em submissão e arrependimento, impotência" (p. 112), são os sentimentos que o cartão desperta em algumas pessoas. Respostas localizadas no eixo da mancha podem ser interpretadas como indicativo de mobilização de angústia de caráter sexual.

O aspecto físico pode provocar a impressão geral de disforia, o que em pessoas com dificuldades de relacionamento ou de aceitação da autoridade paterna ou representada, constitui-se fator de perturbação. O cartão IV representa simbolicamente a relação do examinando com a figura representativa de autoridade (Portuondo, 1973; Vaz, 1997).

O cartão VI, segundo alguns autores (Mucchielli, 1968; Portuondo, 1973; Vaz, 1997), é interpretado simbolicamente como mobilizador da sexualidade masculina e conteúdos representativos da autoridade ou do poder. A área superior da mancha assemelha-se ao pênis, o que facilita as associações fálicas, que podem ser rapidamente reprimidas. A rejeição desse cartão, comentários depreciativos, críticas, colocação da mão sobre a parte inferior para verbalização de conteúdo localizado na área superior, ou o inverso são sinais indicativos de dificuldades quanto à sexualidade.

 

Método

O estudo tem por base dados empíricos extraídos dos cartões IV e VI do Rorschach - sistema Klopfer - aplicado em pacientes portadores de câncer de próstata. Participaram da pesquisa 25 pacientes situados na faixa etária de 48 e 83 anos, com maior concentração (n= 19) na faixa entre 62 e 74 anos em atendimento ambulatorial. A pesquisa, após ter sido aprovado o projeto pela Comissão de Ética da Universidade, foi realizada no ambulatório de urologia de um hospital de câncer de Porto Alegre, RS, Brasil. A triagem foi feita semanalmente, em ocasião nas quais os pacientes compareciam para as consultas médicas previamente agendadas. Após ser feita a triagem cada paciente era convidado a fazer uma pequena entrevista com a primeira autora. Nesse momento ela expunha os objetivos da pesquisa, o sigilo ético, o procedimento da testagem e lhe fazia o convite para participar da pesquisa. Tendo o paciente aceito o convite e assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, era feito o agendamento para aplicação do instrumento (Rorschach). Foram usados como critérios de inclusão: homens com diagnóstico médico prévio de câncer de próstata, na faixa etária de 48 e 83 anos, em tratamento ambulatorial com medicamentos que aceitassem voluntariamente participar da pesquisa. Como critérios de exclusão foram levados em consideração: homens com co-morbidade orgânica, ou antecedente de atendimento psiquiátrico/psicológico e em atendimento psiquiátrico ou psicológico.

Os participantes da pesquisas apresentavam as seguintes características: 25 homens situados na faixa de 48 a 83 anos, com idade média de 67.24 anos (SD = 7.51); nível sócio econômico médio/médio baixo, determinado pela renda. Dezessete participantes informaram primeiro grau incompleto como escolaridade (68% da amostra). Quatro, primeiro grau completo (16%); três, segundo grau completo (12%) e um com nível superior (4%).

A aplicação do Rorschach foi feita individualmente, nas dependências do próprio hospital em sala bem iluminada, arejada, pequena, tipo consultório, sem a presença de terceira pessoa. Todo o procedimento da aplicação: rapport, instrução, aplicação propriamente dita, condução do inquérito ou investigação e a seleção de cartões foi realizado com base no Sistema Klopfer, conforme Vaz (1997, 2006). Foi seguido igualmente o sistema Klopfer (Vaz, 1997, 2006) quanto ao processo de classificação das verbalizações de cada examinando, para a devida interpretação dinâmica, ou seja, das variáveis do Rorschach: tempo de reação, tempo de duração, freqüência das respostas, das localizações, dos conteúdos e dos fenômenos especiais (dados qualitativos).

 

Resultados e Discussão

Após a aplicação dos instrumentos foi feita a classificação das localizações, dos determinantes e dos conteúdos dos protocolos do Rorschach. Este trabalho foi feito às cegas, sucessivamente por um primeiro e um segundo classificador, devidamente treinados para esta tarefa, integrantes do Grupo de Pesquisa e Personalidade, Cultura e Técnicas Projetivas da PUCRS. Para o estudo de concordância entre juizes classificadores foi usado o coeficiente W de Kendall quanto às variáveis do Rorschach em estudo no que tange aos cartões IV e VI. O coeficiente de concordância entre os dois juízes foi o seguinte: a) quanto às localizações globais (G), detalhe comum (D), detalhe incomum (Dd) e espaço branco (S) = .381, Significância assintótica = .000; Gl = 7; ÷2 = 66.705. b) quanto aos determinantes movimento animal (FM), sombreado radiológico (Fk), forma (somF, F+, F-, F±) , cor acromática (FC´, C´F, C´) = .628, Significância assint. = .000; Gl = 17; ÷2 = 266.898. c) quanto aos conteúdos Anatômico (At) e sexo (Sex) = .401; Significância assint. = .000; Gl = 3; 000; ÷2 = 30.052. Os dados levantados nos protocolos do Rorschach dos 25 participantes permitiram apresentar e discutir o que segue.

O percentual de respostas globais (28G/55R=50%) é superior a 30%, sugerindo fuga, fantasia e visão prejudicada da realidade, uma vez que o índice clínico esperado seria de 20 a 30% (Vaz, 1997). As respostas de detalhe comum (D) apresentam um índice de 10% (6D/55R=10%) e o índice esperado seria de 40 a 55%; o percentual, no caso é inferior a 40%, o que é comum ocorrer em pessoas com senso de realidade objetiva prejudicada; isso ocorre em pessoas ansiosas e com dificuldades de estabelecer diferenciação sobre o óbvio, quer por motivos de ordem racional, quer por perturbação de ordem emocional. Seria de se esperar como normal um percentual de 10% a 17% de detalhe raro (dr), um indicativo de capacidade de a pessoa se ligar a pequenas coisas, ao simples do quotidiano. Neste grupo o percentual é muito superior a 10% (21dr/55R=38%), sugerindo minuciosidade exagerada e excentricidade (Vaz, 1997). Destaca-se o fato de serem homens preocupados com a doença, e que em muitos momentos precisam "fugir" da realidade objetiva, ficando impedidos de funcionar com a atividade sintetizadora, conforme Sousa (1982). O aumento do número de respostas globais, associado à diminuição de detalhes comuns, é um indicativo de prejuízo na percepção objetiva da realidade. Portuondo (1976) acrescenta que o número elevado de detalhes raros é um indicador de depressão. Freud (1900), ao analisar o sonho, como linguagem simbólica, atribuía-lhe um caráter não universal e não estereotipado, devido a dimensões culturais e individuais do paciente. Este cuidado também deve ser considerado pelo leitor para a compreensão adequada dos "recortes" feitos da técnica de Rorschach, estudados nos cartões IV e VI.

Um dos recortes que se destaca é masculinidade, conceito que em várias culturas vem sendo impregnado de padrões de exigências sociais, que uma vez internalizados funcionam como registros, impelindo, por assim dizer, o homem a exercer e assumir papéis culturais de poderoso, salvador, protetor e provedor, caracterizando assim a preocupação com a saúde como função feminina.

Percebe-se nesses pacientes a necessidade de recorrer a mecanismos de defesa para o enfrentamento à doença, os quais aparecem no Rorschach: sombreado radiológico (Fk), negação de resposta e mutilação. O determinante Fk pode ser interpretado como intelectualização usada pelo participante ante situações de tensão e sofrimento (Vaz, 1997). Esta é uma defesa que consiste em priorizar o uso do pensamento e de elaborações abstratas para não fazer contato com os afetos e suas fantasias inconscientes. Portuondo (1973) comenta que esta é uma forma de expressar os conflitos emocionais sem os viver realmente. Outra defesa utilizada pelos pacientes, associada à idéia de mutilação, foi a negação durante o inquérito, de resposta dada na fase da aplicação; conforme Passalacqua e Gravenhorst (1988), isto ocorre em pessoas com intensa "ansiedade de castração", e que tentam negá-la.

O grupo apresenta várias respostas relacionadas à sexualidade, que podem ser indicadoras de conflitos com a própria sexualidade, de medo e angústia frente à genitalidade. Homens com verbalizações contendo símbolos sexuais femininos, com certa perplexidade, podem sofrer de retraimento sexual por angústia (Passalacqua & Gravenhorst, 1988). Associado a isto, observa-se alto índice de conteúdos anatômicos (oito no cartão IV e cinco no VI), que segundo Portuondo (1973, 1976) podem ser entendidos como uma forma patológica de expressar a libido, como inadequada tentativa de sublimar os impulsos sexuais, ou simplesmente um deslocamento desta para a preocupação corporal. O câncer de próstata é uma doença agressiva, principalmente quando o tratamento é iniciado tardiamente, que contribui para o paciente voltar-se para si mesmo, mobilizado em relação à sexualidade e revisando sua vida para que possa enfrentá-la diante desta nova contingência. Pode-se levantar a hipótese de que as angústias relacionadas a fatos reais se ampliem para o temor de perder o controle das situações e o medo de tornar-se sexualmente impotente.

Os 25 participantes da pesquisa não verbalizaram nenhuma resposta com o determinante movimento animal (FM). A ausência de FM pode ocorrer, segundo Vaz (1997), em pessoas sem iniciativa, ou altamente deprimidas e defensivas. Passalacqua e Gravenhorst (1988) referem que a ausência de movimento animal está associada à repressão intensa de tudo que está ligado às necessi dades instintivas. Referem as autoras que é um Fenômeno Especial encontrado em homens que passam por períodos de impotência. No grupo em estudo há elevada preocupação com a possibilidade da perda da "potência" no sentido global, e diante disto apresentam-se inibidos, como se sentindo fracassados, retraídos individual e socialmente, e sem conseguir manifestar afeto. Conforme revisão da literatura a tendência do homem é a busca do prazer e a evitação do desprazer. Os pacientes entendem que o hormônio que interfere na ejaculação é o mesmo que está ligado ao crescimento do tumor, daí o sentimento de perda e fracasso, a depressão e a defensividade. Já dizia Freud (1932) na "33ª Conferência" que a célula sexual masculina é ativamente móvel e persegue a célula feminina, sendo este o modelo da conduta sexual dos indivíduos durante o coito.

O determinante que mais aparece é a forma pura, ou seja o somatório de F+, F- e F±, interpretado como a expressão lógica, racional e intelectual da percepção, como a expressão do controle geral que a pessoa tem sobre seus dinamismos psíquicos, instintos, reações afetivo-emocionais e impulsivas (Vaz, 1997). Neste grupo o percentual de F está acima de 50% no cartão IV (19F/30R=63%) e no cartão VI (15F/25R=60%), o que pode ser entendido como um esforço dos sujeitos em manter o controle. O percentual de F+ é uma das variáveis mais consistentes para indicar se o pensamento lógico está ou não sofrendo interferência de ordem afetivo-emocional. É esperado um índice padrão F+% maior ou igual a 80%. "Quando o percentual de F+ diminui numa pessoa intelectualmente bem dotada, é sinal de que sofre interferências de fatores afetivos, especialmente estados depressivos ou constritivos" (Serebrinski, 1948, citado por Vaz, 1997). Pessoas com psicose, esquizofrenia, transtorno neurótico, ansioso ou depressivo apresentam percentual de F+ inferior a 80. Levando em consideração a freqüência de F+ em relação ao somatório de F nos cartões IV (13F+=68%; 6F± =32%) e VI (10F+=67%; 4F±=27% e 1F- =7%), nota-se que a freqüência percentual média é inferior a 80, o que pode ser interpretado como indicador de depressão nestes homens; não havia diagnostico prévio de esquizofrenia, psicose ou transtornos no grupo de pacientes.

Os pacientes deste estudo possuem diferenças quanto ao prognóstico e formas de tratamento médico, histórias e projetos de vida. O medo de lidar com os impulsos gera inibição, fazendo com que eles procurem fugir de sua realidade, ou entrando em depressão e aumentando o nível de ansiedade. Pode-se dizer que a impotência causada pela doença ou pelos tratamentos, mesmo que transitória, seja vivenciada como a castração ou a própria morte para os homens, que parecem desvitalizados. Esses aspectos relacionam-se aos mitos culturais: sexo é da responsabilidade masculina, ereção = virilidade= homem exitoso.

As respostas com conteúdos verbalizados como preto e/ou cinza são interpretadas como tendência de a pessoa para evitar estímulos que possam lhe mobilizar reações emocionais e sentimentos. As cores acromáticas (FC', C'F e C'), "expressam depressão como traço de personalidade e não apenas reações depressivas transitórias, tipo depressão situacional", conforme Vaz (1997, p. 94). Quando o índice FC' é menor que C'F+C', especialmente se houver a presença de C' (pura), pode tratar-se de depressão crônica. Portuondo (1973, 1976) aponta que respostas de C' indicam certa cautela afetiva e ânimo deprimido. Ele relaciona as respostas de cor acromática com as tendências auto destrutivas relacionadas com pulsões de morte. Para este autor C' indica reação de pânico, diante de situação ansiogênica, reação ao retraimento por parte do sujeito. As proporções dos dados do cartão IV (1FC'<3C'F+1C') e do cartão VI (2FC'>1C') indicam retraimento, poucas condições para o controle da depressão; a presença de cor acromática num protocolo de Rorschach, principalmente quando FC´ é maior do que a soma de C´F mais C´, chega a ser interpretada como indício de depressão comprometedora (Souza, 1982).

 

Considerações Finais

Estão fortemente presentes nos cartões IV e VI do Rorschach os sentimentos de impotência e fracasso relacionados à sexualidade e ao papel de poder, em pacientes com câncer de próstata. Associados a estes sentimentos estão presentes nos pacientes com câncer de próstata estudados a depressão, a diminuição da capacidade de produção, assim como dificuldades de ajustamento e de adesão ao tratamento, tendência à fuga de sua realidade objetiva para um retraimento narcísico, sentido pelo paciente como necessário para o enfrentamento da doença e dos tratamentos indicados, e diminuição da capacidade de funcionamento do pensamento lógico e bloqueio dos processos associativos, com interferência nas condições afetivo-emocionais.

O sentimento de impotência repercute como uma ferida na vida dos pacientes com câncer de próstata. Embora haja uma evolução da Medicina em termos de possibilidades de tratamento, observa-se que por se tratar de um órgão que afeta a sensibilidade sexual masculina, o sentimento de impotência está presente em todos os pacientes testados, mesmo naqueles com impotência transitória. Uma falha erétil pode antecipar o fracasso, produzir ou aumentar a ansiedade e a depressão no homem, diminuindo-lhe as sensações sexuais, alterando assim a fisiologia da ereção que pode levá-lo a um novo fracasso.

A título de sugestão, convém destacar que esses pacientes necessitam de um espaço em que suas angústias se jam trabalhadas. Seria adequada, além do tratamento orgânico, uma intervenção com suporte afetivo-emocional.

 

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Received 22/11/2005
Accepted 22/07/2006

 

 

Ana C. A. Tofani. Mestranda em Psicologia e Membro Aspirante Graduada da SPPA-Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, RS, Brasil.
Cícero E. Vaz. Doutor em Psicologia e Livre-Docente em Técnicas Psicológicas. Professor Titular da Faculdade de Psicologia (PUCRS), Porto Alegre, RS, Brasil. Pesquisador: Produtividade em Pesquisa do CNPq.
1 Email: anatofani@terra.com.br