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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.36 Belo Horizonte dez. 2011
Paixão – um amor com tempo marcado
Passion – a feeling enclosed by the boundaries of time1
Marli Piva Monteiro
Círculo Psicanalítico da Bahia
International Federation of Psychoanalytic Societies
RESUMO
A autora utiliza o filme “O curioso caso de Benjamin Button” para referendar a metáfora da angústia existencial expressa na tentativa de controlar o tempo. Ao inverter o ciclo da vida, evidencia-se a semelhança do caminho para a morte. A paixão pretendendo burlar a incompletude e a morte nada mais realiza que a confirmação do domínio do tempo e o impasse da castração.
Palavras-chave: Paixão, Tempo, Narcisismo primário, Morte, Amor.
ABSTRACT
The author uses the movie “The curious case of Benjamin Button” to attest the metaphor for the living angst, which is expressed in the attempt to control time. With the inversion of the life cycle the resemblance to ones’s trajectory towards death becomes obvious. The intention of deceiving incompleteness and death through passion realizes nothing else than the confirmation of the ruling of time and the obstacle of castration.
Keywords: Passion, Time, Primary narcissism, Death, Love.
Não é usual que seja o fator tempo o aspeto privilegiado pelos psicanalistas para abordar a paixão. O objeto, a relação, as vicissitudes são constantemente considerados. No entanto, a duração da paixão tem merecido pouca ou quase nenhuma atenção nesses estudos.
A perspectiva deste trabalho é introduzir o papel do tempo no desenrolar da paixão.
Nosso enfoque será a paixão romântica e, para ilustrá-lo, vamos nos reportar a um escritor americano admirável. Scott Fritzgerald criou sua ficção com maestria e extrema sensibilidade. Cheio de metáforas deu origem a um filme-poema, “O curioso caso de Benjamin Button”, tradução semiótica do conto do mesmo nome.
O primeiro aspecto significativo da história é o fato da angústia existencial ser expressa como a tentativa de controlar o tempo, retendo-o ou fazendo-o recuar. A alegoria se apresenta na confissão do relojoeiro cego que constrói o relógio cujos ponteiros andam ao contrário no intuito de fazer voltar o tempo e reaver o filho morto na guerra.
Fazer o tempo recuar ou simplesmente pará-lo é uma das maiores expectativas dos amantes. Do mesmo modo que voltar ao estágio inicial da vida, período imaginariamente repleto de felicidade, é a aspiração constante de todo ser humano em várias etapas da vida.
Dentre as várias metáforas do filme é a paixão a que vai nos merecer maiores considerações. A paixão é a tentativa de controlar o tempo e, no entanto, representa a materialização da certeza de que nada é mais limitado pelo tempo que a paixão.
A única certeza que se tem da paixão é que ela não pode durar muito, embora a proposta da paixão seja a de tornar-se eterna.
No diário escrito por um homem chamado Benjamin Button, que uma filha lê para a mãe, a pedido desta, no leito de morte, conhecemos a história de uma paixão. A história de um homem que consegue realizar a inacessível façanha de dominar o tempo e fazê-lo andar ao contrário – nascer velho e morrer após rejuvenescer. Ao inverter a ordem natural da vida fica evidente o objetivo de voltar aos primeiros tempos, às primeiras vivências – ao paraíso perdido e à onipotência do narcisismo primário.
O nome “Button” é outra metáfora. Botões são objetos que fecham e abrem a um só tempo – têm dupla função nos dois sentidos. Não há botões para abrir e outros para fechar. Botões têm sempre as duas funções.
O menino-velho, de óculos de lentes grossas, anda de cadeira de rodas e vive num asilo de velhos, em cuja escada o pai o abandonara, revoltado, por considerar que ele fora o motivo da morte da mãe ao nascer.
Num dia de Ação de Graças, Benjamin conhece alguém que mudará sua vida para sempre – a neta de uma senhora que morava no abrigo – Daisy. O comentário de Ben não deixa dúvidas: “Nunca esqueci aqueles olhos azuis”. Benjamin encontrava o seu objeto de desejo.
Fisgado e enredado nas malhas da paixão, Ben viaja mundo afora, mas não se esquece de mandar, de cada lugar que conhece, um postal para Daisy.
Assim é a paixão: pretende eliminar quaisquer diferenças, romper quaisquer barreiras ou proibições e nunca estar em contato com a dor de ser só.
A paixão é o resultado do entrelaçamento do sujeito na história de seu desejo infantil. O narcisismo é a mola propulsora deste vínculo. Os sentimentos de vazio, o desamparo e os sofrimentos do sujeito o fazem pretender denegá-los.
Ao falar da paixão amorosa, Freud relacionou-a com a re-atualização da relação arcaica do sujeito, um encontro que vai em busca da vivência de fazer uno com um outro.
O contraponto estabelecido entre Daisy e Ben é curiosamente bem colocado. Enquanto um avança para a velhice e a maturidade, o outro parte para o auge da juventude. Na verdade as duas caminhadas desencontradas têm o mesmo ponto de chegada, mas se desencontram em seus caminhos.
Ambas as situações finais serão de desvalimento, de pressões, de sofrimento inevitável. O mesmo caminho sem volta, constatação da nossa impotência, repetição da castração. Prova irrefutável de que o homem não é o dono de seu destino e é impotente perante o tempo e a morte, tipificando a angústia existencial.
A primeira vez que se apercebe da morte, Benjamin a compreende na frase da senhora que lhe cortara os cabelos e lhe ensinara a tocar piano: “Você está ficando cada dia mais moço”. Para ele isso significa o começo do fim.
Desse modo, reflete: “Crescer é uma coisa engraçada – você não se apercebe e de repente aí está...”
Fritzgerald capta a ilusória luta do homem contra o tempo que, indo para a frente ou para trás, vai chegar sempre na morte, do mesmo jeito, sem perceber, sem aceitar, dependente, fragilizado e só.
O espelho é a testemunha muda de perene acusação, o tempo inteiro, não importa para onde o homem se volte.
Considerando que o narcisismo tem dois aspectos – um criativo e propulsor da auto-estima e outro mortífero, tendendo à repetição, que mantém o sujeito nas artimanhas do gozo incestuoso e, portanto, um campo mortífero –, somente as contingências poderão determinar a que tipo de narcisismo será o sujeito submetido, e um destes destinos seria a paixão que induz à morte.
Zeferino Rocha tratou da paixão amorosa comentando a tradução da expressão: Die Verliebtheit. Lieben é o verbo amar em alemão e Rocha chama a atenção para o prefixo Ver anteposto aos verbos e substantivos no vocabulário da psicanálise, implicando em desvios da significação. Assim, enquadra o amor Liebe como Verliebe – paixão numa “perversão do amor”.
Imprensada entre o normal e o anormal a paixão pode ser lida como sintoma no qual a expressão do narcisismo se propõe a encobrir a falta e confundir a castração. Deste modo, a paixão se situaria no campo do impossível, do impasse.
O romance impossível que os dois teimam em manter eclode no desencontro inevitável. A paixão vivida com intensidade e sofreguidão vai sendo dizimada pela consciência do impedimento que o tempo impõe lançando cada um no seu caminho, um para diante, o outro para trás.
É nesse momento que Benjamin oscila entre o desejo da fusão simbiótica primitiva e o temor do aniquilamento que ela poderia operar, e o desejo de separação para evitar o perigo de destruição.
O drama de Benjamin Button o atormenta de maneira atroz quando decide partir para não permitir a inevitável separação instituída pelo destino – quer partir antes que a filha se lembre dele e conclui que Daisy não suportaria cuidar de duas crianças.
A vitória do tempo se evidencia na frustrada tentativa de apreender o inapreensível da paixão que, como o próprio tempo, nos escapa sempre e decide que quer nos submetamos. Quer procuremos iludi-la ou ludibriá-la seus desígnios e caminhos nos levarão, queríamos ou não, para os mesmos destinos.
Benjamin nasce e morre no desamparo, abandono e dependência extrema, recolhido de um orfanato por Daisy em estado de alheamento e demenciação. Recolhido mais uma vez a um asilo onde havia começado sua vida, só que agora um asilo para crianças abandonadas.
Referências
FINCHER, D. (diretor) O curioso caso de Benjamin Button. Paramount Pictures, 2008. DVD, duração: 166 min. [ Links ]
FREUD, S. Narcisismo: uma introdução (1914). Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1969. [ Links ]
MESSY. J. A pessoa idosa não existe – uma abordagem psicanalítica da velhice. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. [ Links ]
MANONI, M. O nomeável e o inominável – a última palavra da vida. São Paulo: Aleph, 1995. [ Links ]
ROCHA, Z. Desamparo e Metapsicologia – para situar o conceito de desamparo no contexto da Metapsicologia freudiana. In: Síntese – Revista de Filosofia. Belo Horizonte, v. 26, n. 86, p.331-344, 1999. [ Links ]
SILVA, B.H.M. Amor e paixão, uma distinção necessária. Trabalho apresentado no VIII Encontro Psicanalítico do Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem. Recife: CCPL, Maio 2002. [ Links ]
Endereço para correspondência
Av. ACM 1034/121 C – Ed. Pituba Parque Center – Itaigara
41825-000 – Salvador/BA
Fone: (71)3359-2555
E-mail: traduzir@compos.com.br
Recebido: 01/08/2011
Aprovado: 08/09/2011
Sobre a Autora
Marli Piva Monteiro
Médica graduada pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Psicanalista. Membro efetivo do Círculo Psicanalítico da Bahia. Membro da International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS).
1 Trabalho apresentado na XXI Jornada do CPB em Mesa Redonda intitulada “As paixões através do Tempo”. CPB 25 a 27 de setembro 2009.