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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.36 Belo Horizonte dez. 2011

 

 

Humanização da Medicina: Psicanálise, maternagem e estilo de vida

 

Medicine humanization: Psychoanalysis, mothering and lifestyle

 

 

Ricardo Azevedo Barreto

Círculo Psicanalítico de Sergipe
Círculo Brasileiro de Psicanálise
Universidade Tiradentes

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com base em uma noção específica de estilo de vida, este artigo pretende contribuir para a humanização da ciência médica. Por meio de interfaces da Medicina com a Psicanálise, o presente texto, entre outros aspectos, discorre acerca da possibilidade de uma Medicina maternal, que constrói e transforma o humano em momentos de dor, quando a fragmentação do ser requer uma ciência acolhedora. Tal abordagem humaniza a relação médico-paciente e sustenta a integridade de quem sofre em sua singularidade existencial, o que é diferente das generalizações científicas clássicas.

Palavras-chave: Psicanálise, Medicina, Humanização, Maternagem, Estilo de vida.


ABSTRACT

Based on a particular conception of lifestyle, this paper has the goal of contributing to Medical Science humanization. Through interfaces between Psychoanalysis and Medicine, this text talks about the possibility of a maternal Medicine, among other dimensions, that builds and changes the human in moments of pain, when the self fragmentation requires a warm Science.  This approach humanizes the doctor-patient relationship and maintains the integrity of those who suffer in their existential singularity, which is different from the classical scientific generalizations.

Keywords: Psychoanalysis, Medicine, Humanization, Mothering, Lifestyle.


 

 

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

 

João (nome fictício) nasceu imaturo, e sensível à relação humana, quando sua mãe tinha iniciado o sexto mês de gestação. Ficou, sobretudo, em UTI neonatal por, aproximadamente, seis meses, tempo quase igual ao que esteve no útero materno. Devido às intercorrências pós-natais de um prematuro extremo, desenvolveu hidrocefalia com cisto em região frontal. Também teve quadro de ventriculite, ficando, na época, com risco elevado de morrer. Foi submetido a diversos procedimentos cirúrgicos. Vários deles foram neurocirurgias, tendo como derivação cisto e ventrículo-peritoneal com interposição de sistema valvular e uma longa experiência hospitalar. Amadureceu graças aos cuidados e à espiritualidade dos pais e familiares, e a uma equipe de saúde humanizada e maternal, que doaram, de forma amorosa, a provisão ambiental necessária ao desenvolvimento de seu ser, apesar das adversidades que enfrentou. Para ele, foi construída uma “barriga externa” de amor, na fase de internação hospitalar e posteriormente a ela.

As ciências médicas relacionam-se, muitas vezes, com seu paciente como um cliente genérico, produzido por leis gerais e estatísticas disponíveis à consciência do médico e determinantes de seu raciocínio, dos passos que o norteiam em diagnósticos e planos terapêuticos. Entretanto, não raramente, o paciente não é percebido na Medicina em sua singularidade, no modo único de existir.

Sabe-se do paciente a priori por meio dos livros, periódicos científicos e classificações. O paciente, dessa forma, é coisificado e desumanizado, perdendo, na visão turva da ciência, sua condição de ser ativo que edifica seu estilo de viver e suas possibilidades de recuperação de uma situação patológica. Sabe-se do paciente, na lógica positivista, por meio de dados, exames e do paradigma do cliente genérico. Não por acaso, nessa mesma lógica, pode-se comunicar “em equipe”, sem um lugar de subjetividade para o paciente, por meio do registro em prontuário de dados de sinais vitais e condições médicas.

Sintomas, tratamentos... termos técnicos frequentes na comunidade dos médicos tecem o enredo de personagens das cenas das ciências médicas em uma construção discursiva que não diz muito do paciente. O paradigma que orienta as ações da Medicina, em tais casos, seria organicista, excluindo a subjetividade e a singularidade do ser, bem como as dimensões psicossociais que integram qualquer experiência humana.

Questiona-se tal posição da ciência médica, não incomum, diante de seu ente objetivado, o paciente, em uma modalidade de existência permeada pelo sofrimento, posição bem distinta daquela da mãe e/ou do pai maternal diante de seu filho quando o mesmo sofre.  Destaca-se o cuidado amoroso na relação das figuras parentais com seu filho.

Uma continuidade existencial ocorre nas relações de amor entre pais e filhos, e pode até curar, sem falar que restaura o ser que sofre, sustentando sua vida, apesar das fendas que experimenta. O ambiente suficientemente-bom, nem excessiva nem precariamente bom, é sustentáculo para a confiança no viver e a criatividade. São fundamentais, portanto, as vivências de maternagem, do cuidado de pais amorosos que constrói sensações, esquemas motores, imagens, integrando corpo e psiquismo no filho.

Tal ambiente suficientemente-bom e promotor de saúde nem sempre ocorre nas famílias. Não se pode esquecer de complicações que, às vezes, existem no âmbito familiar. Fala-se, entre outros aspectos, de pais que não exercem suas funções, psicopatologias maternas que prejudicam o desenvolvimento de um bebê, implicações do uso de drogas pelos pais nos destinos dos filhos. Sobre a última problemática mencionada, são valiosas as contribuições de Arreguy (2011) ao referir-se a uma parentalidade tóxica.

Em um contexto familiar promotor de saúde, por sua vez, a mãe suficientemente-boa olha para seu filho, conectando-se com seu ser. Encontra-o em sua peculiaridade existencial, mesmo que sofra muito, por exemplo, com situações de doença e hospitalização do menor. O paciente, para o médico e outros profissionais afins, geralmente é diferente do filho para a mãe suficientemente-boa, ou para o pai, quando ele faz maternagem.  Pensar acerca de uma Medicina maternal, a partir de interfaces das ciências médicas com a Psicanálise, é construir possibilidades de transformação do ser em momentos de dor de pacientes em que a fragmentação psíquica demanda um olhar acolhedor da ciência. É quando se humaniza a relação médico-paciente e se restaura a integridade de quem sofre em sua singularidade existencial, o que não se confunde com as generalizações científicas clássicas. A Psicanálise, entre outras dimensões, possibilita a construção de práticas de humanização na relação da Medicina com seus pacientes.

Em uma carta destinada a Roger Money-Kyrle, de 1952, Winnicott (ABRAM, 2000, p.144) explica o que queria dizer com suficientemente-boa:

Penso frequentemente em referir-me à mãe, a pessoa real que está com o bebê, como se ela fosse perfeita ou como se correspondesse à ‘mãe-boa’ que faz parte do jargão kleiniano. Na verdade, sempre me refiro à ‘mãe suficientemente-boa’ ou à ‘mãe que não é suficientemente-boa’ pois, no que diz respeito ao fato que estamos discutindo, ou seja, a mulher real, temos consciência que o melhor que ela tem a fazer é ser boa o suficiente. A palavra ‘suficiente’ gradualmente (em circunstâncias favoráveis) vai ocupando um espaço cada vez maior, segundo a capacidade crescente do bebê de lidar com a falha através do entendimento, da tolerância à frustração etc. A ‘mãe boa’ e a ‘mãe má’ do jargão kleiniano apresentam-se como objetos internos, não tendo nada em comum com as mulheres reais. O melhor que uma mulher real pode fazer com um bebê é ser suficientemente boa de uma forma sensível inicialmente, de modo que a ilusão para ele torne-se algo possível desde o início [...]

Na teoria de Winnicott, é a adaptação da mãe às necessidades do filho que torna possível um desenvolvimento saudável (ABRAM, 2000). Quando se fala de mãe, neste artigo, não se quer dizer apenas mulher, mas, sim, referir-se a uma condição de maternagem que pode ser exercida pela mãe, pelo pai maternal, ou pelos médicos que prezam as condições existenciais nos momentos de oferta de seus cuidados. O bebê, por sua vez, existe até mesmo em um adulto. Desse modo, há possibilidade de novo encontro entre as funções de mãe suficientemente-boa e de filho, quando uma mãe, um pai ou um profissional de saúde se depara com alguém em uma paisagem, ou passagem, de sofrimento e dor.

Segundo Abram (2000), na perspectiva winnicottiana, a qualidade dos cuidados maternos no começo da existência é associada à saúde mental, livrando o ser da psicose. Em transposição para a relação terapêutica, afirma a autora a importância do ambiente de holding ao paciente. O mesmo protege em relação às agressões fisiológicas, levando em conta o toque, a temperatura, as sensibilidades visual e auditiva, e inclui a rotina do cuidado dia e noite.

Sabe-se como, na teoria winnicottiana, a mãe suficientemente-boa é fundamental para o desenvolvimento da autenticidade do ser, o verdadeiro self.  Não se quer dizer, contudo, que a função paterna de estabelecer limites não seja também central às práticas da Medicina humanizada. Entretanto, em diversas situações como as de grande risco de morrer, o que se necessita é de pele, contato, sustentação física e psicológica para a integração sensório-motora, imagética e psicossomática. Torna-se fundamental, em tais situações, a posição de maternagem da Medicina como possibilidade de amparar o ser, humanizando-o na construção de um estilo de vida salutar.

Uma relação mãe-filho saudável pode ser a base para outros contatos balizados pela saúde e criatividade. Uma relação mãe-filho satisfatória pode mostrar dimensões significativas à existência do ser. Pensando nas práticas médicas, não seria importante o acompanhamento de efeitos psiconeuroimunológicos ou psicossomáticos, quando cuidados médicos maternais são ofertados aos pacientes?

Falar de maternagem, de posições de mãe suficientemente-boa e filho, na relação médico (ou profissional de saúde)-paciente é contribuir para transformar o paradigma predominante na prática da Medicina. Sabe-se que tal revolução paradigmática tem sido efetuada por iniciativas diversas, tais como as do Projeto Canguru que amplia o contato materno com o filho/paciente prematuro em UTIs neonatais, tendo produzido muitos efeitos promotores da existência saudável. Enfatiza-se, além disso, a terapêutica do amor e da doação no campo da saúde.

Acredita-se que humanizar a assistência em saúde é construir relações amorosas entre seres humanos na área de saúde, o que parece óbvio. Entretanto, segue-se comumente, na contemporaneidade, o sentido das tendências de coisificação das pessoas, o que é espantoso. Humanizar a assistência em saúde é romper com a tentativa de exterminar os sentimentos nas práticas de saúde. É, também, romper com o discurso que congela as práticas de saúde tradicionais que dissociam doença, saúde e existência.

Humanizar a assistência em saúde não é estimular ganhos primários e secundários nos pacientes em uma postura de puro assistencialismo que incentiva, por exemplo, uma maior permanência ou reinternação hospitalar. Sabe-se da problemática dos pacientes moradores dos hospitais nos ângulos clínico, psicológico, econômico, político, entre outros. Humanizar a Medicina não é, de modo simplista, agradar o paciente, contar fábulas, cantar, teatralizar... É, sim, fazer tudo isso, e nada disso, por compreender a complexidade da promoção de saúde e da terapêutica da maternagem, do amor nos tempos atuais em que o simbólico está empobrecido e, dificilmente, se pode falar de relações humanas de fato. Em analogia ao escrito “Psicologia e Odontopediatria: entre pedaços e/ou relações?” (AMARAL, BARRETO, 2009), que problematiza, entre outras nuanças, os despedaçamentos no campo do saber ou conhecimento, pode-se falar aqui de: “Medicina: entre pedaços e/ou relações?”

Espera-se que este artigo, de algum modo, funcione como dispositivo analítico para se pensar sobre estereotipias no campo da saúde ao questionar uma lei científica esvaziada do contexto humano, simbólico e sócio-cultural. Por meio da Psicanálise, o paciente pode ser escutado e visto em sua subjetividade, não apenas no espetáculo do organismo. Como nos ensina Balint (2007), o médico é remédio na Medicina e há que conhecer sua farmacologia.

Nas dimensões de uma Medicina Integral – e são encontradas tendências diversas que a buscam nos tempos presentes, como, por exemplo,  através dos cursos médicos com metodologia ativa de ensino-aprendizagem, como a Aprendizagem Baseada em Problemas (Problem-Based Learning/PBL) – é importante falar de um paradigma biopsicossocial. Em tal perspectiva, uma Medicina maternal parece necessária em momentos em que o paciente está despedaçado física e/ou psicologicamente.  Por sua vez, em outros momentos, ao médico (ou outro profissional de saúde, tal como o dentista, o enfermeiro, o fisioterapeuta, o terapeuta ocupacional, o fonoaudiólogo, o nutricionista etc.) cabe adotar a função paterna, limitando desejos, fazendo “cortes” e desconstruindo perspectivas cristalizadas.

Externamente ao paradigma organicista, considera-se, ainda, o ser em suas diferentes dimensões (física, psicológica, social, espiritual, ética) no campo da saúde. Às vezes, o tratamento é cuidar da dor em suas entranhas, até sangrar; em outros momentos, esperar é o mais sensato. Aguardar nem sempre é um engodo, ou tamponar a castração; a pessoa pode estar em um tempo do existir prévio a ela... O que se pode fazer bem, em alguns casos ou situações, é maternar o ser, uma das formas de humanizá-lo.

Uma Medicina humanizada, que se apropria da maternagem, do holding, entre outros recursos que a teoria psicanalítica oferece ao campo da saúde, é transformadora e promove (re)construções no ser. É como se o médico passasse a trabalhar em um jardim das pétalas das lágrimas em que dor e sofrimento são fermentos para a descoberta dos potenciais reparatórios e criativos da modalidade de existência naquele tempo do paciente. As lágrimas, assim, podem aproximar-se, em condensação, de flores e, portanto, com pétalas mostram a ambiguidade do existir, as interfaces de dor e alegria do humano, as mudanças... a mutação do sofrer em (re)criação.

A Psicanálise endereça à Medicina e às ciências da saúde a ilusão de igualar o paciente ao discurso que se constrói sobre ele. O ser está, muitas vezes, onde não se reconhece e não é reconhecido. É desconstruindo o raciocínio científico clássico que se pode encontrar a singularidade do paciente, não restrita à abstração de uma pessoa genérica criada por uma ótica positivista.

João, em sua resiliência, na contramão do pensamento cartesiano, rompeu as adversidades de modo saudável e criativo, quando tinha motivos para morrer ou ter graves sequelas neurológicas... De modo inusitado, não é triste e se mostra com força de existência, alegre, para seus pais, parentes e a Medicina. Ressalta-se que ele havia realizado estimulação precoce com uma equipe multiprofissional sensível, além de ter acompanhamento de médicos humanos e maternais. Foi e é, sobretudo, muito amado por seus pais.

João desenvolveu seu ser em uma espécie de útero substituto: o afeto e a provisão ambiental de seus pais, irmã, parentes diversos, bem como de profissionais maternais. João foi tocado pelo amor humano e pela espiritualidade de seus familiares e sensibiliza os outros com seus sorrisos, astúcia, criatividade e habilidades sociais, sua generosidade de ser suficientemente bom, numa ambiência de autenticidade. Foi olhado, olhou e olha com profundidade de alma. Foi “costurado”, aos pedaços de ser, pelo amor e doação que o ajudaram a respirar, ter confiança em sua relação com o mundo externo, apesar dos desafios constantes.

João construiu-se... está em construção... em seu estilo de vida peculiar, não previsto pela ciência tradicional. Vale salientar que se compreende como estilo de vida a modalidade de existência de cada ser. Como outrora fora problematizado (BARRETO, 2010), não se pensa em estilo de vida como comportamentos. Os estilos de vida são na concepção do autor:

[...] instituições ou entrecruzamentos e superposições institucionais: a vida familiar (não apenas no sentido usual do romance edípico), as práticas escolares, as relações entre pares ou em grupo etc. São lugares ou posições sociais de existência que (se) instituem [...] (BARRETO, 2010, p.124)
[...] uma concepção de estilo de vida como modalidade de relação social (com seus jogos de poder e alienação), a qual podemos mobilizar [...] (BARRETO, 2010, p.123)

Desse modo, a humanização da Medicina passa pela compreensão dos profissionais (e pela consciência de sua participação na construção) dos estilos de vida de seus pacientes, o que é bem diferente do trabalho com órgãos doentes do corpo. Ao médico humano é fundamental trabalhar com as modalidades de existência dos pacientes, percebendo que participa da construção dos estilos de vida de seus clientes. As cenas médicas são instituições que se entrecruzam com outras: os cuidados da família, as relações com amigos... É no entrecruzamento de instituições (família, Medicina...) que lugares ou posições sociais de existência (na relação humana) se (des)constroem.

O médico, muitas vezes, acredita que está trabalhando com o estilo de vida ao participar de um programa intitulado de mudança do estilo de vida. Não. Quando faz uma Medicina organicista, participa da construção das modalidades de existência dos pacientes, mantendo-as conforme têm sido estabelecidas na instituição família, na comunidade... Entretanto, ao trabalhar com uma Medicina humanizada, que tem a Psicanálise como campo inspirador, pode adotar uma posição de maternagem na relação com pacientes “aos pedaços” (prematuros, portadores de queimaduras severas, psicóticos etc.), e uma função paterna na relação com pacientes que necessitam de limites, interdição, buscando, dessa forma, construir e/ou desconstruir perspectivas de existência.

O médico, por meio de uma Medicina humanizada, com inspiração psicanalítica e centrada no estilo de vida, pode tomar consciência de seu lugar transferencial na relação com o paciente e de como manejá-lo a favor da assistência em saúde. Não se trata de agir com ingenuidade, mas com a compreensão dos lugares relacionais e suas dinâmicas, o acompanhamento cuidadoso dos efeitos de sua conduta, bem como com a percepção das diferentes dimensões do ser humano em implicação.

Quando se fala, na área de saúde, de fatores impeditivos da mudança do estilo de vida – e tal temática tem sido objeto de muitas conferências ministradas por este autor, além de produções escritas – busca-se, com frequência, de forma compartimentalizada, algum aspecto central, ou se pensa a respeito da investigação de várias dimensões motivacionais dos pacientes, mas fora de uma compreensão do estilo de vida e das cenas médicas em um panorama relacional que inclua noções como a de sujeito do inconsciente, transferência, entre outras, na (des)construção das modalidades de existência. O poder terapêutico da Medicina praticada sem a compreensão da relação humana é, assim, reduzido.

Para o desenvolvimento de práticas de humanização da assistência em saúde centradas no estilo de vida, antes de tudo, é necessário descortinar paradigmas. Ressalta-se a importância de um paradigma biopsicossocial, nem organicista nem psicologizante. Nesta perspectiva, a Psicanálise tem muito a oferecer ao trabalho da Medicina no campo da saúde ao configurar a relação humana como dispositivo para o artesanato analítico e seus efeitos. Tais efeitos não são, apenas, simbólicos, mas psicossomáticos, psiconeuroimunológicos... efeitos de (re)criação do ser em suas possibilidades de existência.

Como pode ser percebido, a humanização do campo da saúde é um trabalho artístico, incluindo manejar com sensibilidade os relacionamentos profundos com os outros em múltiplas perspectivas. Desse modo, interagir com o corpo-ser de um bebê, que vivencia um sofrimento inominável em um contexto hospitalar, é uma experiência transformadora. Envolver a criança com a afetividade das palavras também é, indiscutivelmente, terapêutico. Não se pode deixar de compreender ainda que o infantil perpassa as relações humanas como um todo e compõe o mundo adulto.

E como explica Lima (2010, p.38):

Somente uma “companhia viva” é capaz de garantir que as necessidades particulares de cada criança possam ser atendidas em suas especificidades, contribuindo, assim, para a emergência de uma qualidade no ambiente – holding – que é experimentada no um a um de cada encontro [...]

Um último ponto a destacar: é importante que se pense sobre a saúde nos diferentes níveis de atenção, bem como acerca das políticas públicas de saúde, questionando o modelo hospitalocêntrico de assistência.

Enfim, João foi sustentado, sobretudo, pela maternagem, pela terapêutica do amor e pela fé em Deus de seus familiares. Desenvolveu integridade do ponto de vista sensório-motor, imagético e cognitivo, entre outras dimensões, com os cuidados profissionais que recebeu em fase de neuroplasticidade, junto a seus pais que o sentiam, viam e escutavam como inteiro, inclusive no silêncio e nos murmúrios de um bebê, muitas vezes, operado e recortado.  Tornou-se, desse modo, inteiro com as cavidades e os enigmas da alma humana... tão inteiro e imprevisível... questionando as ciências tradicionais por meio de sua autenticidade profunda e da construção biopsicossocial singular de seu modo de existir.

 

Referências

ABRAM, J. A linguagem de Winnicott: dicionário das palavras e expressões utilizadas por Donald W. Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.         [ Links ]

AMARAL, L.A.; BARRETO, R.A. Psicologia e Odontopediatria: entre pedaços e/ou relações? In: CORRÊA, M.S.N.P. Odontopediatria na primeira infância. 3.ed. São Paulo: Santos, 2009. p.9-21.         [ Links ]

ARREGUY, M.E. Fragmentos clínicos sobre uma dita parentalidade tóxica. Estudos de Psicanálise, n.35, p.75-86, 2011.         [ Links ]

BALINT, M. O médico, seu paciente e a doença. 2.ed. São Paulo: Atheneu, 2007.         [ Links ]

BARRETO, R.A. A psicanálise na clínica do estilo de vida: uma escuta político-institucional. Estudos de Psicanálise, n.34, p.123-128, 2010.         [ Links ]

LIMA, B.S. Casa da árvore, um lugar para brincar e conversar: uma proposta de atendimento coletivo para crianças de zero a doze anos em comunidades carentes do Rio de Janeiro e Niterói. Estudos de Psicanálise, n.33, p.33-48, 2010.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Av. Gonçalo Prado Rollemberg, 211/606 – São José
Centro de Saúde Prof. José Augusto Barreto
49010-410 – Aracaju/SE
Tel.: (79)3214-6906
E-mail: ricardobarreto@saolucas-se.com.br

Recebido: 01/09/2011
Aprovado: 12/09/2011

 

 

Sobre o Autor

Ricardo Azevedo Barreto
Psicólogo pela USP. Mestre e doutor (Programa: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) pela USP. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo CEPSIC da Divisão de Psicologia da FMUSP. Tem experiência de treinamento no Butler Hospital (RI-USA). Psicanalista – Círculo Psicanalítico de Sergipe (CPS), instituição filiada ao Círculo Brasileiro de Psicanálise. Editor da revista Estudos de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise no biênio 2008-2010. Professor titular da Universidade Tiradentes (UNIT), onde ensina nos cursos de Psicologia e Medicina.