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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.42 Belo Horizonte dez. 2014
Preso pelo ato, condenado à palavra: um olhar psicanalítico
Arrested by the act, condemned to the word: a psychoanalytical view
Esperidião Barbosa NetoI; Maria Consuêlo PassosII
I Universidade Federal do Alagoas
II Universidade Católica de Pernambuco
RESUMO
O objetivo deste artigo é fazer uma articulação do ato à palavra, como próprios da condição humana, considerando a predominância de um deles em detrimento da disfunção do outro, e a dinâmica da palavra no contexto clínico. A partir do enredo da peça Le Profe, escrita por Dopacne, trabalhamos o sentido do ato, segundo a teorização de Freud e de Lacan; apresentamos a noção de ato, desde os supostamente inocentes e despropositados aos de força destrutiva, e enfocamos a palavra como possibilidade de representação do ato, no contexto clínico, necessária a uma nova ordem do ponto de vista do tratamento.
Palavras-chave: Ato, Compulsão à repetição, Fala, Linguagem, Psicanálise.
ABSTRACT
The purpose of this paper is to make an articulation of the action to the word, both proper to the human condition, considering the predominance of one over the dysfunction of the other, and the dynamics of the word in the clinical context. From the plot of the play Le Profe, written by Dopagne, we work the meaning of the act, according to the theory of Freud and Lacan; we present the notion of act, from the supposedly innocent and unreasonable to the destructive force, and we focus on the word as a possible representation of the act, in the clinical setting, necessary to a new order from the point of view of the treatment.
Keywords: Act, Compulsion to repeat, Speech, Language, Psychoanalysis.
Estamos feitos desse ato x
pelo qual o nó já está feito.
LACAN
Introdução
Do ponto de vista clínico, o ato e a palavra são inerentes ao humano. Não é fácil apreender esses conceitos a partir apenas de uma teorização, sobretudo para os que não exercem a clínica. O apoio de material criativo no campo das artes a princípio é sempre apropriado. Freud faz várias referências a autores criativos nos seus escritos teóricos: Delírios e sonhos na “Gradiva”, de Jensen (FREUD, [1907] 1976), Escritores criativos e devaneio (FREUD, [1908] 1976), além de Édipo Rei, de Sófocles, para explicar o complexo de Édipo. No caso Dora, Freud afirmou:
[...] no campo dos atos sintomáticos a observação psicanalítica também tem de conceder prioridade aos escritores criativos. Ela só pode repetir o que eles já disseram há muito tempo (FREUD, [1901] 1976, p. 259).
Lacan ([1958-1959] 2002) utilizou Hamlet, de Shakespeare, para explicar a força do desejo e seus efeitos, em se tratando da condição humana. Essa temática é relevante na medida em que se põe em questão a motivação do ato e o recurso terapêutico da palavra.
O objetivo deste artigo é fazer uma reflexão a respeito do sentido do ato e a função da palavra, na perspectiva psicanalítica, articulando-os entre si, a partir do enredo da peça Le Profe. Primeiro, trabalharemos ‘o sentido do ato’, segundo os conceitos freudianos e a teorização de Lacan: ‘o ato que falha, o ato que impera e o ato que destrói’, articulando este último à peça. No segundo momento, enfocaremos ‘a palavra como função de sentido’, no contexto da clínica, considerando o ato que chega ao seu extremo e a palavra como Lei, que o substitui – seguindo a dinâmica do que se apresenta na encenação do texto teatral. Nossa conclusão é de que o sujeito é vulnerável, enquanto indissociável de um saldo de excitação que o condena – como destino –, e por se encontrar condenado à palavra, esta como único recurso que o absorve, por isso tendo que exercê-la por toda a vida.
Le Profe, do dramaturgo belga Jean-Pierre Dopagne, tem sido representada em vários países. Foi encenada no Rio de Janeiro, em 2013, com o nome de “Prof! Profa!”, pela atriz Jandira Martini, dirigida por Celso Nunes. É um monólogo: uma professora de literatura que, frustrada com os acontecimentos da sala de aula, toma uma atitude radical e irreparável – comete um crime contra os alunos, pelo qual foi condenada. A pena a cumprir é inusitada.
1 O sentido do ato na psicanálise
Ato é gesto dirigido ao outro, esvaziado de palavra. A força de sua intensidade persiste causando estranheza ao próprio sujeito. Pode ser manifestação subjetiva do cotidiano, considerada banal, ou gesto impactante e ameaçador do equilíbrio psíquico, e até expressão de efeito violento contra a vida, do outro ou de si. Esta última na ordem do além do princípio de prazer, efeito de experiências traumáticas, na condição de afetos não representados.
O ato precede o sujeito. O primeiro grito humano pode ser pensado como ato de estranheza, vazio de representação frente ao mundo caótico. Imerso na dimensão da linguagem, o bebê se esforça para nela se conduzir, até que toma a palavra, mas o faz precariamente, de modo a nunca se desfazer do ato, porque as palavras não dão conta. Mesmo tendo se constituído pela linguagem, ele não se emancipa de um saldo remanescente de excitação, que perdura, por isso não tem controle sobre seu destino, nem pleno conhecimento de si mesmo.
O sujeito não pode prever suas ações, ele fala e não sabe o que diz:
[...] quando falamos somos sempre levados além de nós mesmos. [...] na medida em que se quer dizer algo, se produzem incidentes, as coisas nunca vão bem (MILLER, 2002, p. 33).
O querer é impotente, e as intenções são suplantadas pelo desejo, as coisas não se “encaixam” no plano da razão: há tropeços, atos falhos, um sentido excedente – não cogitado –, a linha do dizer intencional é perturbada.
O ato não acontece por acaso. Os eventos psíquicos são postos em movimento por um certo nível de tensão, e o trabalho do aparelho psíquico consiste em conter esse fluxo pulsional no sentido de ligar afetos a representações. A vida psíquica equilibrada situa-se na fronteira entre alguma excitação, e o excesso dela, um nível nem muito elevado, nem de modo que possa se esgotar completamente. Mas a pulsão não cessa de produzir tensão, da qual o sujeito não pode fugir (FREUD, [1915] 1974), sobretudo quando se trata de magnitude excessiva às condições de domínio do aparelho. O recalcamento é uma forma de defesa, pela qual a ideia incompatível com o eu, carregada de tensão, é banida da consciência.
A princípio, a pulsão se compõe de uma representação (ideia) associada ao afeto (quantum de excitação). O recalque atua apenas sobre a representação, banindo-a da consciência, e o afeto fica desagregado. Freud ([1915] 1974) ensina que o recalque ocorre por uma força conjunta: de um lado, o representante da pulsão é rejeitado pelo sistema consciente; do outro, o recalcado original, a partir do inconsciente, atrai a representação refutada pelo consciente. Uma vez tornadas inconscientes, as representações se organizam, articulando-se umas às outras, e dão origem a seus derivados. Esse conteúdo, diz Freud ([1915] 1974, p. 172), se expande com abundância e esbanjamento, “prolifera no escuro”, assume formas extremas de expressão, de modo que, se apresentado à pessoa, causaria terrível estranheza e susto, pela perigosa força com a qual opera. Sua tendência é voltar à dimensão consciente, e não perde oportunidade nessa insistência; por outro lado, seu retorno aumentaria drasticamente a sensação de desprazer, tornando-se insuportável o nível de tensão. Nesse conflito, retorna o recalcado dissimuladamente, em forma de ato, um dos meios possíveis de se manifestar sem que se revele à consciência.
Atos que falham
“Atos sintomáticos” foi o termo utilizado por Freud para se referir a manifestações inconscientes que perturbam o curso das atividades conscientes, no cotidiano: troca-se uma palavra por outra ou o nome de alguém; a pessoa não se dá conta da rua na qual deveria entrar e passa direto. São sintomas que representam algum tipo de conflito, negação de uma situação traumática ou revelação de algo subjacente que não era para aparecer. Freud ([1901] 1976, p. 262) exemplifica: as melodias que se cantam,
[...] não intencionalmente, e com frequência, sem se notar o que está fazendo. A partir de uma observação apurada, o sujeito poderá [...] descobrir a relação entre as palavras da canção e o assunto que está ocupando sua mente.
O ato surge de forma automática, e a pessoa se nega a lidar com sua significação: “um incidente”, “apenas troquei as coisas, sem intenção”. Tomado como algo inocente, não merece atenção; por outro lado, esse material é da maior importância para a psicanálise:
[...] essas ações, sobre as quais a consciência nada sabe ou deseja saber, de fato dão expressão a pensamentos e impulsos inconscientes, e são, portanto, valiosíssimos e instrutivos como manifestações do inconsciente que não puderam vir à tona (FREUD, [1905] 1972, p. 74).
Isso quer dizer que há algo à revelia do pensamento, que determina a escolha das palavras utilizadas e que a intenção apenas transparece o sentido mais profundo do ato. Cada ato deve ser visto no seu contexto.
Destacamos as observações de Freud quanto ao caráter inconsciente do ato. A pessoa não conjectura sobre si mesma, ela não tem ciência do modo como está agindo e pode se ver no outro:
[...] é fato bastante comum os pacientes encontrarem em outras pessoas ligações que, devido a suas resistências emocionais, não percebem em si mesmos (FREUD, [1905] 1972, p. 76).
Quando se apresentam conclusões sobre os atos sintomáticos à própria pessoa, é natural sua indignação e esforço em negar qualquer fundamento ou intencionalidade das suas ações, queixando-se de ter sido mal entendida pelo outro. Não adianta convidar o sujeito a pensar sobre seu ato.
O ato é falho porque não se realiza, ele apenas se apresenta em parte, e obscuramente. A professora da peça em questão não levou em conta seus deslizes como efeito das contrariedades e tinha a convicção de se manter no equilíbrio. Porém, para Freud o conflito não se dissipa, apenas as impressões desagradáveis são ignoradas, esquecidas com facilidade, sobretudo restos de desejo da infância:
[...] a memória tem aversão por recordar tudo que está em conexão com sentimentos de desprazer e com a reprodução daquilo que renova o desprazer (FREUD, [1917] 1976, p. 95).
Atos que imperam
Atos sintomáticos são, a rigor, aqueles mais simples, que passam despercebidos. Não são acompanhados de perplexidade, não precisam de justificativas pelo sujeito: mexer as moedas que estão no bolso, rabiscar no papel. Por outro lado, Freud observou, na sua reformulação teórica de 1920, que há outro tipo de ato, acompanhado de intenso sofrimento, o qual a pessoa repete. A vida psíquica não se reduz a uma busca de prazer e fuga ao que é desagradável:
[...] estritamente falando, é incorreto falar na dominância do princípio de prazer sobre o curso dos processos mentais. [...] a experiência geral contradiz completamente uma conclusão desse tipo (FREUD, [1920] 1976a, p. 20).
Esses atos representam a força de afetos sem representação, que geram a compulsão a repetir, uma pulsão que não circula nem se esgota. A pessoa não se lembra da experiência traumática, ela revive presentificando-a em ato, e dá-se a “paixão” pelo círculo repetitivo, impedindo a simbolização. Na análise, julga o analista como causa do seu sofrimento.
Freud nos ensina que a força compulsiva da repetição é gerada pelo déficit compreendido entre o que a pulsão objetiva e o que é conseguido, isto é, o impulso é gerado à proporção da insatisfação pulsional. Lacan (1985) chama de “automatismo de repetição” os atos compulsivos originados do trauma, signos que retornam repetindo-se sem sentido algum. Os significantes retornam como repetição dos símbolos, portanto sem articulação em cadeia.
O ato compulsivo é o que impera, determinando a pessoa. Ele fala pelo sujeito. Possivelmente a professora não pôde avaliar a força dos seus atos, suficiente para desestabilizar a vida psíquica. Ela os relevou, tolhendo alguns efeitos da compulsividade, sob a ilusão de tê-los sob controle, a ponto de seu ato perder de vez o vínculo com a palavra.
Atos que destroem
O ato que destrói é aquele que chega a seu extremo, um desfecho trágico; está vinculado à pulsão de morte e a própria morte. O aparelho psíquico se torna impotente no trabalho de simbolização perante o fluxo pulsional; o sujeito, escravo da pulsão, não detém a palavra. Na compulsividade, segundo Hanns a pessoa está condenada a realizar a pulsão para além de sua vontade; algo exige dela agir em certa direção,
[...] tal qual o suco de uma fruta que, de tão espremida, é obrigado a escoar pelas incisões feitas na casca [...], o sujeito só pode escapar da pressão agindo na direção para a qual foi forçado (HANNS, 1996, p. 101-102).
No ato pulsional não há espaço para associação que conduza ao simbólico, é a ordem do Real, difícil de suportar, mas que determina o sujeito. No ato(atar) do nó borromeano, diz Lacan ([1974-1975] 2002), a dimensão do Real adquire consistência, incidindo sobre o simbólico, ofuscando-o; o nó se estreita, contraindo-se o simbólico e o imaginário.
A professora, em Le Profe, metralhou os alunos. O que inicialmente se manifestava como simples atos que não triunfaram, porque apenas se davam no âmbito puramente subjetivo e sem credibilidade, foi se avolumando, acumularam-se restos de coisas não ditas. O pote de mágoas adquiriu consistência a partir da trama dos afetos inconscientes, esgotaram-se todas as possibilidades da palavra, até que o eu se viu em conflito, e deu-se o ato extremo.
O pai da professora, simples agricultor, havia posto a filha num bom colégio, à custa de grandes esforços. Ela se tornou docente, com o sonho de dar continuidade ao modelo da escola de sua infância, que fazia do ensino uma relação de encanto entre professor e aluno. Havia se inspirado numa professora de tempos passados, no ambiente escolar e estimulante, e tinha o saber como uma paixão. Agora queria compartilhar o sonho com seus alunos: juntos, se maravilharem com o saber dos grandes autores, o prazer da literatura. Porém, os alunos praticavam todo tipo de engenhosidade no sentido de destituir o ensino, um desinteresse generalizado pela falta de atenção, ignorância de possibilidades.
O trágico vincula-se à força incontida do desejo. Para Freud ([1913] 1974) e Lacan ([1958-1959] 2002) a força do desejo é suficiente para desenlaçar a tragédia (morte) e, paradoxalmente, possibilitar uma nova ordem (vida). Isto é, o desastre de grandes proporções causa perdas e muito sofrimento, no entanto é suficiente para edificar um saber sobre si mesmo. Rocha (2011, p. 46) diz que a tragédia chama o homem à responsabilidade sobre seus atos, mas de modo a poder moderar-lhe os sofrimentos. Nela, o homem se depara com sua condição de desamparo: “[...] o trágico põe em evidência a confrontação do homem com a dureza e inexorabilidade de seus limites”.
Pensamos, do ponto de vista clínico, a tragédia individual. Nela a elaboração pode ocupar o lugar da tragédia, desde que se antecipe ao desfecho trágico. É o caso do “fort-da” freudiano (FREUD, [1920] 1976), pelo qual a criança cria mecanismos para elaborar a experiência do trauma, dominando-a – uma forma ativa do que viveu na passivamente. Os atos, desde os que falham aos que destroem, podem se tornar aliados do tratamento, uma vez mediados pela palavra. A pena prescrita à professora condenada não se reduzia à clausura, o ato tinha que ser representado.
2 A palavra como função de sentido
Encarcerada, a professora deveria ir até o teatro, todas as noites, para relatar a história do crime – o que levou a cometê-lo. Sua missão: repetir, através da fala, aquilo no qual se havia implicado; o ato em vias de ser tomado pela palavra. Lacan ([1974-1975] 2002; [1964] 2008) disse que “o inconsciente conta”, isto é, toda a rede de linguagem que antecede o sujeito, e o determina, é levado em conta no ato: “isso conta”; e, “no contado está o contador”.
O sujeito é feito de linguagem, esta o afasta da condição predominantemente biológica. Instala-se o desejo, expressão da falta. O sujeito é marcado pelo desejo do Outro, que se faz seu, e como a palavra não dá conta da sua revelação nem do preenchimento da falta, ele se faz em ato. O discurso do sujeito é composto por versões do seu ato, sob interstícios de lacunas (omissões) e acréscimos – cada fala contém esquecimentos e adição de novos elementos. A palavra, desde que na sua autenticidade como função terapêutica, conduz à instância inconsciente – Outro –, lugar do sentido. É por fechamentos e aberturas do inconsciente que um Outro saber se apresenta, cuja elaboração faz perder a consistência do ato, dando lugar à palavra.
O sujeito é responsável pelo seu desejo, embora este se dê à revelia. A psicanálise não culpa o sujeito, ela o chama à responsabilidade pelo seu ato que, quanto mais solidificado, mais distante da palavra se encontra, tornando-se tão estranho quanto indomável. A palavra, na análise, funciona como Lei na medida em que detém a pulsão desgovernada, enfraquecendo o ato. Ao nomeá-lo, a palavra o substitui.
No contexto clínico, o ato pode ser escutado, ainda que não através da verdadeira palavra, mas pela ação. A narrativa, por associação livre, contorna o afeto sem representação, e o endereçamento ao outro – à pessoa do analista – se constitui endereçamento ao Outro simbólico, de modo que o próprio sujeito escuta a si mesmo e pode questionar sua problemática. Nisso consiste a possibilidade de domínio do ato pela palavra.
Desde o princípio de suas pesquisas, Freud se apoiou na palavra como recurso terapêutico, não apenas porque ela constituiu o sujeito, mas porque pode reconstituí-lo. No Projeto para uma psicologia científica (FREUD, [1895] 1977) ele afirma que a mãe, ao cuidar do bebê, o leva à organização psíquica em meio ao caos pulsional, de modo que o disperso adquire forma. A mãe o faz pelo olhar, sorriso, gestos e sobretudo por palavras. A palavra que contorna os afetos sem representação, capaz de nomeá-los, torna-se Lei. Segundo o registro mitológico da criação, no Gênesis, a palavra organizou aquilo que era até então disperso, dando sentido ao mundo: “faça-se”, e tudo se fez. No desenvolvimento da criança, a função do Pai separa a mãe do bebê, no momento fálico (LACAN, 1998); pela palavra, o pai institui a Lei, que determina o sujeito como ser de linguagem.
Na peça em questão, contar repetidamente como se dava o desinteresse dos alunos é contornar a circunstância do ato, trazê-lo à palavra. Somente assim ele pode ser contado, levado em “conta” – o ódio, até então silenciado, passa à ordem da palavra. “Por que o ato?” E o desinteresse dos alunos? Deve haver uma história em cada um deles, assim como há uma história no percurso da professora. Como fazer para dar a palavra a cada sujeito?
Ao contar e recontar seu crime e a história dele, a palavra da professora contorna o que não pôde ser dito – e deve ser consumado. A palavra, desse modo, enquanto se encaminha ao outro e ao Outro, contorna o impossível de ser dito e de ser suportado, podendo nomeá-lo. Ela é capaz de produzir furo no Real (LACAN, [1974-1975] 2002), e o faz ao sobrepor a dimensão do Imaginário. Em outro texto, Lacan ([1964] 2008) teoriza que por trás do Autômaton, na repetição, há a Tiquê, esta como encontro com o Real, um encontro falho. Isto é, um encontro que não se dá porque é impossível o acesso do sujeito à situação do trauma, mas que, pela repetição, surge a novidade, um acontecimento no campo da articulação simbólica.
No teatro tudo acontece, assim como na análise, pela via da fala. Lacan ([1974-1975] 2002) distingue, até certo ponto, o dizer do blá-blá-blá. “Até certo ponto” porque do blá-blá-blá pode surgir um dizer. O dizer é aquilo que faz nó; quando o inconsciente diz, é quando há a palavra autêntica. Na livre associação, pelo blá-blá-blá, há muita palavra que desliza, deixa deslizar, de modo que não há cadeia, e tudo se dá numa única dimensão, a do Real, do Imaginário ou do Simbólico. Não há conflito, nesse caso, porque falta trânsito entre as dimensões. A intervenção do analista ocorre no sentido de não deixar a palavra deslizar, simplesmente: o analista leva o sujeito a fazer nó. No ato(atar) se encontra principalmente o Real, assim como a possibilidade de alguma articulação simbólica. Por isso, o papel do analista é fazer nó ou, o que dá no mesmo, levar o analisante a fazê-lo. O enodamento se dá com o impacto. Uma corda solta, diz Lacan, desliza no espaço, aleatória e dispersamente; disso inferimos: uma corda enodada impõe um trabalho ao sujeito, o que produz efeito de sentido, isto é, um dizer, porque nele está implicado o inconsciente. Sob a tensão do nó, o sujeito se vê em peleja com o Real:
[...] o efeito de sentido a se exigir do discurso analítico não é Imaginário, não é também Simbólico, é preciso que seja Real. [...] se está habituado a que o efeito de sentido se veicule por palavras e não sem reflexão, sem ondulação imaginária (LACAN, [1974-1975] 2002, p. 76).
O efeito de sentido, no nó borromeano, se encontra na junção do Simbólico com o Imaginário. A análise é um processo distinto das outras psicoterapias, ela trabalha o sujeito no campo do além do princípio de prazer, no confronto com o Real, em vez do apaziguamento na ordem do princípio de prazer. Se o efeito de sentido se produzisse no campo do simbólico, bastaria o analista ‘dizer’ para o analisante, e pronto. Não seria necessário o ‘mergulho’ no inconsciente.
Le Prof pode ser pensada como uma encenação em dois palcos: um consciente, outro inconsciente. No primeiro, o sujeito repete o mesmo texto, toda noite, no mesmo lugar, enquanto os que o escutam se prendem ao repetido. O palco inconsciente não é visto, ele está além, muito além de quem fala – na cena – e de quem escuta. Nele se encontram não apenas os feitos do indivíduo, segundo o que ele conta, mas também os que julgaram pelo seu crime e todos os elementos que antecederam as cenas, avançando-se à anterioridade do sujeito e dos juízes, como existentes. Nesse palco inconsciente, inúmeras conexões podem ser feitas, porque ali há o código, ou a senha, dos acontecimentos, e que, por isso, pode produzir alguma articulação simbólica. Na medida em que se utiliza da palavra, o sujeito do palco consciente tem possibilidades de engendrar essas conexões do outro palco, mesmo sem o saber, de modo que, enquanto no palco consciente há repetição, no do inconsciente se faz a diferença.
Acreditamos que a absolvição da professora condenada se dará na medida em que a repetição possa ter produzido algo de não repetição, isto é, quando a diferença articulada no palco do inconsciente puder emergir, a tal ponto de o palco consciente não mais precisar repetir, não mais ser capaz do ato – como o fizera – mas da palavra. Porque professor não é aquele que ensina, fazendo, ditando, entregando fórmulas ou proferindo doutrinação; professor é quem, pela palavra, propõe elementos que deem subsídios para que o outro possa fazer conexões, e esse outro aprende na medida em que toma também a palavra.
Considerações finais
Nenhum homem é dono de si mesmo, por se encontrar preso ao ato, enquanto força inconsciente e determinante. Ao mesmo tempo, ele é responsável pelo ato: deve arcar com suas consequências e tem que passar toda a vida utilizando-se da palavra em função de reparar o ato, cuja fonte que o gera é inesgotável, porque é pulsional.
Cada homem se encontra preso pelo ato – ligado a ele –, por natureza: “estamos feitos desse ato x pelo qual o nó já está feito” (LACAN, [1974-1975] 2002, p. 153). Por isso, cada um, tendo se inserido na ordem da linguagem, há que pagar um preço: recorrer à palavra, passar a vida fazendo uso dela, ainda que não dê conta, não seja suficiente. Somente assim o ato perde a consistência, e o mundo o é por palavras.
“Preso pelo ato e condenado à palavra”, é o destino e a saga de todo sujeito, desde o nascimento. O bebê, regido pelo ato inocente porém humanizado, tem pela frente o exercício da palavra, a vida inteira. O homem grande não se desvencilha dessa herança, dá continuidade ao mesmo labor. Na condição de existente, ele tem que representar. Portanto, a tarefa do sujeito, como ser de linguagem, é se esforçar, por toda a existência, no sentido de se apossar da palavra: “aquilo que herdastes, adquire-o para poder possuí-lo” (GOETHE).
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Endereço para correspondência
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E-mail: mariaconsuelopassos@gmail.com
Recebido: 30/09/2014
Aprovado: 21/10/2014
SOBRE OS AUTORES
Esperidião Barbosa Neto
Professor da Universidade Federal de Alagoas. Especialista em filosofia política, psicologia social e psicopedagogia. Mestre em psicologia clínica. Doutor em psicologia clínica, linha de pesquisa psicopatologia e psicanálise pela Universidade Católica de Pernambuco.
Maria Consuêlo Passos
Professora do Programa de pós-graduação de psicologia clínica da Universidade Católica de Pernambuco. Mestre em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Doutora em psicologia social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, estuda psicanálise e cultura, processos de amadurecimento humano e psicodinâmicas da família.