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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.42 Belo Horizonte dez. 2014

 

 

Recalque versus inveja: beijinho no ombro

 

Repression versus envy: a little kiss on the shoulder

 

 

Fernanda Nunes Macedo

I Círculo Psicanalítico de Sergipe

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As palavras, por mais que saibamos sua etimologia e das circunstâncias de seus usos, possuem um aspecto que encontramos no interior da própria linguagem: a produção de sentidos. Sendo assim, elas se destacam de sua origem e significam, por vezes, opostos, como é possível perceber no bordão “beijinho no ombro pro recalque passar longe”, criado pelos autores Vianna, Vieira e Pardal (2013) na música brasileira Beijinho no ombro. O presente estudo tem como propósito apresentar as diferenças de conceitos de dois termos que têm sido frequentemente vinculados como sinônimos: recalque e inveja.

Palavras-chave: Psicanálise, Recalque, Inveja.


ABSTRACT

The words, however we know the etiology and the circumstances of their use possess an aspect which we find inside the language itself: the production of meaning. So, many words stand out from its origin and present new directions, sometimes opposed to the first one. As we can see in the catchphrase "a little kiss on the shoulder to move away from repression" by the authors Vianna, Vieira and Pardal (2013) in the brazilian song “A little kiss on the shoulder”. This study aims to present the differences in concepts of two terms that have often been linked as synonyms: repression and envy.

Keywords: Psychoanalysis, Repression, Envy.


 

 

Considerações iniciais

Quem nunca ouviu pessoas conhecidas ou até desconhecidas nas ruas, nas redes sociais e nos programas de entretenimento dizendo enfaticamente “sai, recalcada” ou fazendo referência ao bordão da música criada por Vianna, Vieira e Pardal (2013) ao beijar o próprio ombro e dizer “beijinho no ombro pro recalque passar longe”?

É possível perceber que de forma abrupta os termos “recalque” e “recalcado(a)” começaram a ser usados de modo frequente e usual. Parece que em questão de dias grande parte da sociedade começou a entender da teoria do campo clínico, que tem como foco o estudo da psique humana. No entanto, a escuta mais detalhada permite observar que esses termos comumente verbalizados pela população não se assemelham ao conceito proposto pelos grandes pensadores da psicanálise. O que se percebe é uma reprodução em massa de bordões citados em novelas e músicas que ganharam espaço na mídia e nas redes sociais. Quase que de um dia para o outro o conceito de recalque ficou atrelado ao de inveja e, dessa forma, é comum observar a multiplicação de pessoas que reproduzem esses termos como forma de caricaturar o outro.

A proposta do presente artigo é fazer um levantamento teórico das diferenças conceituais dos termos citados, para que assim fique possível visualizar o caminho que tem levado a sociedade a criar conexões de sinônimos.

 

Recalque

Desde o princípio de seus estudos e investigações, Freud se preocupou em entender a formação e o funcionamento dos mecanismos de defesa do aparelho psíquico tanto para a neurose quanto para a psicose: verdrängung (recalque) para a neurose e verwerfung (foraclusão) para a psicose (KUSNETZOFF, 1982). Cabe salientar, que o segundo conceito não é foco deste estudo.

Verdrängung é considerado o primeiro mecanismo de defesa investigado por Freud e serve como modelo para a construção de outros mecanismos de defesa mais complexos. Na fase inicial de suas investigações, trabalhando com a neurose histérica, Freud estava preocupado em entender os mecanismos que poderiam explicar os esquecimentos. Freud atribuía a autoria desse conceito a ele próprio, mas em 1914, quando publicou A história do movimento psicanalítico, reconheceu que a ideia já havia sido pensada pelo filósofo Arthur Schopenhauer, na obra apresentada a Freud por Otto Rank, O mundo como vontade e como representação (ROUDINESCO; PLON, 1998).

A teoria psicanalítica explica que o recalque é o processo automático que mantém fora da consciência, impulsos, ideias ou sentimentos inaceitáveis, os quais não podem se tornar conscientes através da evocação voluntária. O recalque é um dos mais importantes mecanismos de defesa do ego e é utilizado desde os primeiros anos de vida para protegê-lo da angústia originada dos conflitos psíquicos. É um mecanismo de defesa básico e precede a maioria dos outros, os quais, em geral, funcionam como reforços ou adjuntos, quando o recalque é incompleto (LEITE, 2009).

Descrevem-se três momentos do recalque. O primário consiste na perpetuação no inconsciente de material que nunca foi consciente, como os impulsos não organizados do id e as primitivas experiências infantis, por exemplo, o próprio nascimento. O secundário é a expulsão automática da consciência de conteúdos do ego, que não podem ser conservados dentro dos limites do pré-consciente sem ser uma ameaça para a integridade do sujeito. E, por último, o retorno do recalcado, onde o material estará, a todo o momento, tentando encontrar um caminho que possibilite o retorno à consciência (LEITE, 2009).

O segundo momento do recalque explana que nem todas as tendências e desejos que nos habitam são admitidos à consciência clara – os que não o são têm o inconsciente como seu lugar natural. O material inconsciente é primitivo e permanece assim porque é intolerável ao eu consciente. É possível considerar que dentro de cada sujeito existe um guardião responsável por velar a entrada do salão onde está sediada a consciência. Ele recalca os desejos inaceitáveis, as ideias atormentadoras, que não se poderiam admitir no salão visível da consciência (SCHLACHTER; BEIVIDAS, 2010).

O sujeito utiliza-se do recalque para manter fora da vista da consciência o que ela não poderia ver, para que ela sequer suspeite da presença dos habitantes do seu inconsciente. O guardião é um porteiro inconsciente, cujo papel tende à boa ordem, à paz e ao equilíbrio da consciência, mas cuja função de censor é recalcar no inconsciente para que permaneçam aí, sem exame e fora da vista da consciência, tendências às quais a consciência não pede razões (SCHLACHTER; BEIVIDAS, 2010).

Freud ([1915] 1996) considera que a função do recalque consiste em manter os desejos inadmissíveis impedidos de passar do sistema inconsciente para o pré-consciente. Ao manter esses desejos no campo do inconsciente, o sujeito nem sabe que os possui ou os carrega.

O guardião não é um sábio que renunciaria à realização de desejos considerados utópicos, perigosos, imorais, sem valor: o recalque não é a renúncia; é uma tentativa de salvação, de defesa. Observando a premissa de que o material recalcado permanece no aparelho psíquico, o retorno desse material do inconsciente para o consciente poderá ocorrer de forma disfarçada, através dos atos falhos, sonhos, chistes e sintomas (SCHLACHTER; BEIVIDAS, 2010).

Freud ([1915] 1996) afirma que a força do recalque exige um gasto de energia constante, uma vez que o material recalcado exerce pressão contínua para se tornar consciente. Através desse duelo ocasionado pela existência da censura, que impede a manifestação consciente das ideias e desejos recalcados, é que surgem os sintomas, que aparecem como substitutos de algo que foi afastado pelo mecanismo de defesa.

A análise tem como intuito trabalhar as resistências que tentam manter fora da consciência as representações tidas como ameaçadoras. As ideias ou os impulsos desagradáveis são não apenas expulsos da consciência como também forçados a permanecer fora. O analista deve ajudar o analisando a trazer esse material para o consciente, a fim de enfrentá-lo e interpretar seus significados (LEITE, 2009).

 

Inveja

A visão psicanalítica defende que a inveja é um impulso causado pelo ódio, que já se encontra presente no indivíduo desde a mais tenra infância. A inveja é o ódio que afeta o homem de tal modo que ele se entristece com a felicidade de outro e se alegra com o mal do outro. Geralmente, ela diz respeito ao desejo de possuir ou gozar do que é possuído por outrem (TRINCA, 2009).

Para Klein (1991) a inveja é o sentimento raivoso que um sujeito nutre ao perceber que outra pessoa possui e desfruta de algo que ele deseja, e o impulso invejoso é tomar ou estragar esse objeto de desejo. O aspecto destrutivo está sempre presente na inveja e, para a teoria kleiniana, os impulsos destrutivos operam desde o começo da vida – na relação do bebê com o seio.

Segundo Trinca (2009) a inveja cria impulsos negativos que têm como intenção destruir ou se apoderar dos bens de outra pessoa, para acalmar uma pulsão de morte do sujeito. A inveja tem por substrato o ódio consciente ou inconsciente do indivíduo voltado contra si mesmo por causa de lacunas, falhas ou faltas que se tornam insuportáveis na comparação com outras pessoas. Ainda conforme o autor, a inveja é a intensificação do ódio, podendo assim ser considerada um sentimento. Esse sentimento é intensificado quando o indivíduo se sente desestabilizado devido a um complexo de inferioridade em relação a um ou mais indivíduos.

O indivíduo se culpa por se sentir inferior e fantasia com aquilo que lhe faz falta. Acredita ser merecedor daquilo que fantasia, e quando a realidade não lhe proporciona o que ele sente ser merecido, o ódio e a humilhação são projetados para um sujeito que o indivíduo não considera estar ao seu nível, por isso não tem direito a ter aquilo que este não tem (TRINCA, 2009).

Klein (1991) considera que a pessoa invejosa é insaciável, pois o sentimento de inveja brota de dentro e sempre encontra novos focos de desejo, sendo assim incapaz de ser satisfeito.

 

Recalque versus inveja

Apesar da conceituação explanada, o termo recalque se tornou popular e vinculado ao sentimento de inveja. A inveja é uma antiga conhecida da nossa cultura, e parece que agora ela surge em todas as ilustrações das redes sociais, nas brincadeiras entre amigos e, é claro, na tradicional provocação alheia; só que com um nome teoricamente novo – recalque – para descrever um padrão comportamental conhecido de todos.

É importante entender, entre outros aspectos, que o conceito de recalque define um mecanismo através do qual o indivíduo tenta eliminar do seu consciente representações que considera inaceitáveis. É um processo ativo no qual o indivíduo tenta manter no nível do inconsciente as emoções, os desejos, as lembranças ou os afetos passíveis de entrar em conflito com a visão que o sujeito tem de si mesmo ou na sua relação com o mundo. A inveja, em contrapartida, envolve o sentimento que o sujeito nutre pela outra pessoa, desejando possuir algo que pertence ao outro, a quem ele julga desmerecedor de tal objeto (FREUD, [1915] 1996).

 

Considerações finais

“Keep calm e deixa de recalque” é um trecho da música Beijinho no ombro. Ao entender que o trecho citado solicita que se tenha calma e deixe de recalque, percebemos uma indiferenciação entre a proposta dos termos recalque e inveja. Com isso, podemos concluir que alguns termos têm sido alvo de artifícios que repercutem na produção de novos sentidos para as palavras e têm gerado a popularização de conceitos. O recalque foi reconhecido, mas não no sentido habitual da abordagem psicanalítica, que o distingue de inveja.

O crescimento da disseminação instantânea de ideias e bordões pelas redes sociais faz com que se aumente drasticamente a reprodução de novas noções sem que haja ponderações críticas. A sociedade atual percebe o ato de reproduzir como uma forma de produção e dentro desse contexto frases citadas em músicas, seriados, novelas e revistas ganham espaço e reconhecimento, e o valor psicanalítico dos termos se perde por meio da produção baseada no senso comum.

Dessa forma, é possível pensar que o trecho da música Beijinho no ombro, popularizado na voz da cantora de funk Valeska Popuzada, que se tornou conhecida pelo bordão “beijinho no ombro pro recalque passar longe”, poderia, do ponto de vista psicanalítico, ser escrito de outra forma, já que o recalque é algo que passa tão longe que o próprio sujeito desconhece.

Beijinho no ombro

Desejo a todas inimigas vida longa
Pra que elas vejam cada dia mais nossa vitória
Bateu de frente é só tiro, porrada e bomba
Aqui dois papos não se cria e nem faz história

Acredito em Deus e faço ele de escudo
Late mais alto que daqui eu não te escuto
Do camarote quase não dá pra te ver
Tá rachando a cara, tá querendo aparecer

Não sou covarde, já tô pronta pro combate
Keep Calm e deixa de recalque
O meu sensor de periguete explodiu
Pega sua inveja e vai pra…
(Rala sua mandada)

Beijinho no ombro pro recalque passar longe
Beijinho no ombro só pras invejosas de plantão
Beijinho no ombro só quem fecha com o bonde
Beijinho no ombro só quem tem disposição

 

Referências

FREUD, S. Repressão (1915). In: _______. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14). [CD-ROM Versão 2.0]         [ Links ].

KLEIN, M. Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Rio de Janeiro: Imago, 1991.         [ Links ]

KUSNETZOFF, J. C. Introdução à psicopatologia psicanalítica. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.         [ Links ]

LEITE, S. Angústia, recalque e foraclusão: algumas notas para a clínica. Psicanálise & Barroco em revista, v. 7, n. 1, p. 209-218, jul. 2009. Disponível em: http://www.psicanaliseebarroco.pro.br/revista/revistas/13/P&Brev13Leite.pdf. Acesso em: 04 jul. 2014.         [ Links ]

ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.         [ Links ]

SCHLACHTER, L; BEIVIDAS, W. Recalque, rejeição, denegação: modulações subjetivas do querer, do crer e do saber. Ágora, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, dez. 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1516-14982010000200005&script=sci_arttext. Acesso em: 10 jul. 2014.         [ Links ]

TRINCA, W. O sistema mental determinante da inveja. Revista brasileira de psicanálise, São Paulo, v. 43, n. 3, set. 2009. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0486-641X2009000300006. Acesso em: 01 jul. 2014.         [ Links ]

VIANNA, W; VIEIRA, A; PARDAL, L. Beijinho no ombro, 2013. Disponível em: http://letras.mus.br/valeska-popozuda/beijinho-no-ombro. Acesso em: 15 out. 2014.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua José Seabra Batista, 255, ap. 603 - Jardins.
49025-750 - Aracaju - SE
Fone: (79) 9992-2725
E-mail: fernandanunesmacedo@hotmail.com

Recebido: 16/10/2014
Aprovado: 21/10/2014

 

 

SOBRE O AUTOR

Fernanda Nunes Macedo
Especialista em psicologia organizacional. Membro candidato à formação em psicanálise pelo Círculo Psicanalítico de Sergipe (CPS).

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