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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.43 Belo Horizonte jul. 2015
Ciúmes: do normal ao patológico
Jealousy: from normal to pathological
Cleo José Mallmann
I Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
RESUMO
Sentimento que perpassa constantemente a relação de casais, sejam namorados, sejam casados, o ciúme se manifesta tanto nas relações do quotidiano social quanto na clínica. Este artigo teórico procura distinguir o ciúme normal do patológico, caracterizando cada nível do sentimento com suas particularidades e ilustrando-o com casos clínicos. A análise fundamenta-se particularmente no texto de Freud e apoia-se em Kernberg, Melanie Klein, Fenichel e Pittman.
Palavras-chave: Ciúme normal, Ciúme patológico, Rival edípico, O terceiro idealizado.
ABSTRACT
A feeling that runs constantly through the relation of a couple, lovers or married ones, it is noticed as in everyday social relations as in clinics. This paper intends to distinguish between normal and pathological jealousy, characterizing each level of this feeling with its particularities and illustrating it with clinical cases. The analysis is mainly founded on Freud, supported by Kernberg, Melanie Klein, Fenichel and Pittman.
Keywords: Normal and pathological jealousy, Oedipal rival, Idealized third party.
Se você ama alguma coisa, deixe-a livre.
Se ela retornar, então era para acontecer.
Se ela não retornar a você,
Persiga-a e mate-a.
PITTMAN, 1994, p. 47.
O ciúme é um sentimento conhecido de todos nós: observamo-lo imediatamente nas relações das pessoas ao nosso redor, na clínica, nos romances que lemos. Os poetas o retratam em seus versos, e, mais do que tudo, nós mesmos já o experimentamos.
Freud inicia seu artigo equiparando o ciúme a outras emoções normais que possamos sentir. Dá como exemplo o luto, sempre necessário para a elaboração de nossas perdas. E adverte:
Se alguém parece não possuí-lo, justifica-se a inferência de que ele experimentou severa repressão e, consequentemente, desempenha um papel ainda maior em sua vida mental inconsciente (FREUD ([1922] 1976, p. 271).
O que preocupa são os extremos: sua ausência aponta para um problema, e sua intensidade revela uma patologia.
a) Ciúme normal
Freud fala em três níveis de ciúmes: o competitivo ou normal, o projetado e o delirante, cada qual com um grau diferente de intensidade e de mecanismos emocionais, culminando numa patologia grave. Não há quem já não o tenha sentido. Freud assim o descreve:
É fácil perceber que essencialmente se compõe de pesar, de sofrimento causado pelo pensamento de perder o objeto amado, e da ferida narcísica [...] de sentimentos de inimizade contra o rival bem-sucedido e de maior ou menor quantidade de autocrítica, que procura responsabilizar por sua perda o próprio ego do sujeito (FREUD, [1922] 1976, p. 271).
Observamos aqui várias dores bem distintas: primeiro, a perda do objeto amado, que gera a dor do luto; segundo, a dor narcísica, o defrontar-se com a ideia de que não se é tão indispensável para o amado como se pensava. A fantasia narcísica onipotente de que o amado não sobreviveria sem meu amor cai por terra. Em terceiro lugar, a presença de um rival, sempre mais forte, potente e desejável. E nesse embate ele venceu. E, finalmente, a perda da distância necessária para a compreensão da perda, assumindo a culpa. E a culpa dói. Daí ouvirmos expressões como estas:
• “O que me dói nesta história não é o fato de ele ter me deixado, mas ter achado alguém mais bonita do que eu.”
• “O que ele viu naquela horrorosa para ficar com ela? O que ela tem que eu não tenha melhor?”
• “Não consigo saber o que fiz para ele me deixar!”
Embora seja visto como normal, esse ciúme não é completamente racional. Tem sua raiz no inconsciente; é “[...] uma continuação das primeiras manifestações emocionais da criança, origina-se do complexo de Édipo ou de irmão-irmã do primeiro período sexual” (FREUD, [1922] 1976, p. 271). Reeditamos constantemente nossas vivências edípicas. E depende do grau de resolução e dos percalços desse período o grau de normalidade ou patologia do ciúme. E aqui falamos particularmente do ciúme na relação de casais.
Pittman lembra que o ciúme normal
[...] provavelmente contém um elemento de dependência e medo de abandono. Ele pode ser o equivalente adulto dos medos de ser abandonado pelos pais que todos nós experienciamos quando éramos bebês (PITTMAN, 1994, p. 49).
Popularmente dizemos que uma pitada de ciúme nas relações de casal é como um tempero que, na medida certa, deixa a comida no ponto. Pittman endossa isso, dizendo que o ciúme normal é necessário ao casamento,
[...] uma defesa contra a entropia matrimonial. Pequenos jatos de ciúme podem ser como uma cola que une o relacionamento e previne qualquer tendência natural ao afastamento (PITTMAN, 1994, p. 49).
Tanto Kernberg quanto Freud afirmam que toda relação de casal é perpassada por fantasias triangulares, de diferentes configurações. Segundo Kernberg, há dois tipos de triangulação – direta e inversa, que podem destruir ou reforçar a intimidade e estabilidade dos casais. Ele assim as descreve:
Eu utilizo triangulação direta para descrever a fantasia inconsciente de ambos os sexos de um terceiro excluído, um membro idealizado do gênero do sujeito – o temido rival replicando o rival edípico. Todos os homens e todas as mulheres, inconsciente ou conscientemente, temem a presença de alguém que seja mais satisfatório para seu parceiro sexual: este terceiro temido é a origem da insegurança emocional na intimidade sexual e do ciúme como um sinal de alarme, protegendo a integridade do casal [...] a triangulação inversa define a fantasia compensadora, vingativa, de envolvimento com outra pessoa além do parceiro sexual, um membro idealizado do outro gênero, que representa o objeto edípico desejado, estabelecendo, assim, um relacionamento triangular no qual o sujeito é cortejado por dois membros do outro gênero, em vez de precisar competir com o rival edípico do mesmo gênero pelo objeto edípico idealizado do outro gênero (KERNBERG, 1995, p. 85).
Figura 1 - Triangulação direta e inversa
Fonte: Elaboração do próprio autor.
Olhando do ângulo do homem, o casal já não é dois, mas quatro. Considerando que sua mulher também tem uma rival edípica e outro objeto idealizado e desejado, teremos seis. Assim, dadas essas duas fantasias universais, nunca o casal está a dois na cama, mas sempre a seis: o casal, seus respectivos rivais edípicos inconscientes e seus respectivos ideais edípicos inconscientes.
Freud oferece ainda um outro ângulo de visão, afirmando que o ciúme
[...] em certas pessoas ele é experimentado bissexualmente, isto é, um homem não apenas sofrerá pela mulher que ama e odiará o homem seu rival, mas também sentirá pesar pelo homem a quem ama inconscientemente e ódio pela mulher como sua rival [...] (FREUD, [1922] 1976, p. 271).
Vemos aqui Freud afirmando como elemento básico no sentimento de ciúme do casal os traços de homossexualidade latentes, cujo grau de intensidade potencializará o grau de ciúme.
Na carta a Fliess, em 1° de agosto de 1889, Freud escreveu: “Estou-me acostumando a encarar cada ato sexual como um processo em que há quatro indivíduos envolvidos” (MASSON, 1986, p. 365). Sentimentos ambivalentes convivem lado a lado, embora um dos pares amor/ódio seja vivido de forma inconsciente.
Figura 2 - Ciúme bissexual
Fonte: Elaboração do próprio autor.
b) Ciúme projetado
O ciúme da segunda camada, o ciúme projetado, deriva-se tanto nos homens quanto nas mulheres, de sua própria infidelidade concreta na vida real ou de impulsos no sentido dela que sucumbiram à repressão (FREUD, [1922] 1976, p. 272).
Segundo Freud, a fidelidade tem um preço que são as constantes tentações à infidelidade. O sujeito obtém alívio dessa pressão e a absolvição da consciência projetando seus próprios impulsos à infidelidade no companheiro a quem deve fidelidade.
Pittman (1994, p. 55) diz:
[...] acredita-se que esse é o mecanismo comum, a projeção, através do qual os namorados e outros infiéis sofrem ciúmes selvagens e com frequência violentamente intensos, que têm sua máxima intensidade quando a pessoa ciumenta está sendo extremamente infiel.
A dor produzida pela fantasia de ser traído, a obsessão com que o sujeito procura provas da infidelidade do objeto e a raiva pela impotência de consegui-lo invadem o set analítico. O analista, pela intensidade da verdade do paciente, corre o risco de desfocar sua escuta e, em suas intervenções, tentar desmontar o enredo de sua fantasia.
Freud observa que no trabalho analítico o foco não deve ser a suposta infidelidade do outro, e sim as fantasias de infidelidade do próprio paciente. Quando isso não acontece, o paciente vai embora, pois nem ele consegue convencer o analista de sua verdade, nem o analista consegue mostrar-lhe que sua verdade é uma construção fantasiosa. Frustrados, ambos se separam.
Max, um executivo, viajava com frequência em função de seu trabalho, ficando vários dias fora de casa. Isso lhe facilitava relacionamentos extraconjugais que sua mulher finalmente descobriu, o que resultou em separação. Max casou-se com uma ex-amante que, por sua vez, não era exclusivamente sua.
Em sua relação atual, Max diz ser fiel, após uma conversão religiosa, e ela lhe afirma o mesmo. Tudo lhe faz crer que ela diz a verdade, especialmente porque também se converteu. Mas isso não impede que ele sofra com a fantasia de que, assim como fora infiel outrora, tendo outros amantes, ela possa voltar a sê-lo novamente agora.
Atormentado por essa fantasia, Max segue seus movimentos, monitorando-a através do localizador do carro dela. “Mas quem me garante que ela não deixa o carro no estacionamento do shopping, simulando compras, e saia com um amante para outro lugar?” Assim, Max a procura para relação sexual, não por um desejo legítimo, mas para testá-la. Se o amante a deixou realizada, ela irá rejeitá-lo, e isso será uma prova de sua traição. Como isso não acontece, imagina que seja esperteza dela para não deixar pista para desconfiança. Max não se acalma quando sua fantasia é desmontada, mas reforça-a. A verdade existe, apenas ainda não a descobriu.
Em outro caso, Maria procura ajuda porque não aguenta mais o sofrimento causado pelo ciúme do marido. João tem um pequeno comércio de suplementos de informática, no térreo do prédio onde moram, que ele toca sozinho. De vez em quando, ela vai lá ajudá-lo a fazer limpeza e organizar as estantes. Mas ele briga com ela dizendo: “Você vem aqui só para se encontrar com os vendedores”. Como essa briga se repete, magoada, ela decide não mais ir à loja para ajudá-lo. Então, ele volta a brigar com ela: “Você não vai mais à loja me ajudar só para que eu não descubra qual dos vendedores é seu amante”. Não há saída. Literalmente se confirma o ditado: “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”.
Em ambos os casos, Max e João, há uma história em comum, em que seus pais tinham amantes, e eles mesmos foram infiéis às suas mulheres. E entre os gaúchos há um dito que parece se aplicar aqui: “Cachorro ovelheiro (que cuida das ovelhas) que uma vez matou uma ovelha, não tem mais cura”. Ou seja, a fantasia e o desejo de trair novamente estão sempre presentes, mas são projetados no outro. “Não sou eu que traio, mas sim, ela (ele).”
c) Ciúme delirante
Alois, dono de comércio de material eletrônico, busca ajuda terapêutica porque não suporta mais a angústia que sente pela compulsão intensa de olhar para os genitais das pessoas, homens e mulheres, de todas as idades e para o decote das mulheres. O ato de olhar é incontrolável, a ponto de as pessoas ficarem constrangidas. O segundo motivo que o leva à terapia é o ciúme que sente de sua mulher, intenso e arrasador.
Em sua história pregressa há vivências de relações homossexuais na adolescência. Enfatiza, porém, que sempre teve papel ativo. No entanto, quando fala de sua relação atual com a mulher, refere que ela o excita tocando seu ânus.
Lembra também brincadeiras de carnaval, já casado, em que sair fantasiado de mulher causava-lhe muita angústia. “Parecia que todos estavam vendo que eu não era homem”. Já há vários anos mantém relações extraconjugais com outras mulheres, mas esse comportamento parece não lhe causar culpa. “Da primeira vez em que me envolvi com outra mulher foi como se quisesse equilibrar as coisas: minha mulher me traía, então eu também a traia”.
Seu ciúme da mulher já vem desde o início do relacionamento. Suas relações sexuais sempre foram rápidas e só depois de muitos anos foi aprender como ‘funciona’ uma mulher na relação. “Eu achava que ela era fria comigo porque transava com outros homens e tinha relação comigo só por obrigação, para eu não desconfiar”. Vemos aparecer aqui claramente sua angústia de castração. Perceber a mulher castrada era-lhe assustador e sentia seu próprio temor da castração. A angústia o fazia agir rápido. Não sabia como ‘funciona’ a mulher, o que se passa com ela, como lida com essa falta.
Sua mulher trabalha com ele em sua atividade comercial. E aqui observamos um comportamento paradoxal de Alois: com toda essa carga de ciúme, seria de esperar que Alois ocupasse a mulher com trabalhos internos da loja, não permitindo sua saída para a rua. Ao invés disso, ele a incentivava a ir para a rua e encontrar-se com os fornecedores. Empurrava-a para encontros de trabalho que, em sua fantasia, se transformavam em encontros amorosos. Isso lhe permitia a dupla fantasia: a do rival temido e ao mesmo tempo idealizado. A do rival temido que compete com ele e vence, ficando com sua mulher; a do rival idealizado, enquanto se coloca no lugar da mulher, fantasiando como seria a ‘transa’. E aí emerge seu lado homossexual.
Freud afirma que o ciúme delirante:
Tem sua origem em impulsos reprimidos no sentido da infidelidade, mas o objeto, nestes casos, é o mesmo sexo do sujeito. O ciúme delirante é o sobrante de um homossexualismo que cumpriu seu curso e corretamente toma sua posição entre as formas clássicas da paranoia (FREUD, [1922] 1976, p. 273).
Segundo Freud, o homem se defende do impulso homossexual com esta fórmula: “Eu não o amo, é ela que o ama! (FREUD, [1922] 1976, p. 273).
Fenichel (1996, p. 485) afirma que
[...] na análise fica evidente que, quando o paciente suspeita de sua mulher, na realidade se interessa por outro homem. O paciente se esforça por livrar-se de sua homossexualidade por meio da projeção.
Alois, em suas relações extraconjugais com mulheres, procurava marcar a afirmação: “Veja, tenho mais de uma mulher. Portanto, não sou homo”. Mas, ao mesmo tempo, em suas torturantes fantasias de ciúme, colocava-se no lugar de sua mulher. Kernberg diz que frequentemente os casais estabelecem um conluio inconsciente, buscando encontrar uma terceira pessoa que encarne ao mesmo tempo o ideal condensado de um e o rival do outro. E acrescenta:
A implicação é a de que a infidelidade conjugal, os relacionamentos triangulares breves ou duradouros, muito frequentemente refletem conluios inconscientes entre o casal, a tentação de encenar o que é mais temido e desejado. A dinâmica homossexual, assim como a heterossexual, entram em cena, porque o rival inconsciente é também um objeto sexualmente desejado no conflito edípico negativo: a vítima da infidelidade frequentemente se identifica inconscientemente com o parceiro traidor nas fantasias sexuais acerca do relacionamento do parceiro com o rival ciumentamente odiado (KERNBERG, 1995, p. 85).
As pessoas cujas relações de objeto estão marcadas por ciúmes apresentam uma incapacidade de amar devido a uma profunda ambivalência. São incapazes de desenvolver um amor autêntico. Suas relações são mescladas com uma forte necessidade narcísica.
Fenichel (1996, p. 485) esclarece:
[...] o sujeito que, para manter seu equilíbrio psíquico, necessita da sensação narcisista de ser amado incondicionalmente, frequentemente é uma pessoa que está rechaçando inconscientemente suas tendências homossexuais.
Aqui novamente, enquanto Alois procurava o amor e dedicação de sua amante para com ele, no mesmo ato negava sua homossexualidade.
E mais adiante Fenichel (1996, p. 485) acrescenta: “Os ciúmes aparecem toda vez que a necessidade de reprimir os impulsos de infidelidade e de homossexualidade coincidem com a característica intolerância à perda do amor”. E isso certamente é doloroso, pois representa uma diminuição da autoestima.
Freud inclui o ciúme delirante como uma variação da paranoia e lembra que os casos de paranoia oferecem dificuldades à investigação analítica. Por isso, em geral, o tratamento fracassa. O sujeito com paranoia de ciúme interpreta sinais dela, imperceptíveis aos outros, como tentativas de traição. Por exemplo: encostar casualmente no sujeito ao lado, olhar na direção em que há outro homem, etc. Da mesma forma, o paranoico persecutório decodifica os sinais dos outros como persecutórios.
Os dois tipos de paranoia, o ciumento e o persecutório, projetam para o exterior o que não querem ver em si mesmos. Mas não projetam no vazio, e sim na mente inconsciente dos outros. O ciumento percebe as infidelidades da mulher, amplifica-as muito, e, assim, as suas ficam tão diminutas que nem as percebe. Da mesma forma, a hostilidade que o paranoico percebe nos outros é a projeção de seus próprios impulsos hostis.
Melanie Klein (1991, p. 33) faz uma distinção entre inveja e ciúme:
A inveja é o sentimento irado de que outra pessoa possui e desfruta de algo desejável – sendo o impulso invejoso tirá-lo dela e espoliá-lo. Além disso, a inveja implica na relação do indivíduo apenas com uma só pessoa e remonta à mais primitiva relação exclusiva com a mãe. O ciúme se baseia na inveja, mas envolve uma relação com, pelo menos, duas pessoas; diz respeito principalmente ao amor que o indivíduo sente como lhe sendo devido e que lhe foi tirado ou se acha em perigo de sê-lo, por seu rival.
Pittman (1994, p. 55) diz que
[...] as pessoas invejosas parecem acreditar que os outros foram amados demais, enquanto eles foram amados de menos, e utilizam o ciúme como moeda corrente em sua tentativa de negociar sua raiva pelo amor de uma outra pessoa.
Em menos de dois meses de tratamento, Alois já fala de seus temores homossexuais: “Só de pensar que eu possa ser homossexual me deixa em pânico!” Numa das sessões traz uma entrevista de um médico na TV que enfatizava os aspectos genéticos da homossexualidade: “Mesmo que me provem que o homossexualismo é biológico e que não é tão ruim assim, não vou aceitar. Prefiro enlouquecer!” Num outro momento diz: “Às vezes me pego com fantasias homossexuais, e isto me martiriza. É como se me incorporasse um espírito sobre o qual não tenho controle. Daí eu penso que tenho tendências, apesar de não querer. Em contrapartida, as fantasias heterossexuais são bem maiores. Se vejo uma guria, imediatamente fantasio”.
Numa outra sessão traz uma entrevista, que ouviu no rádio, em que o entrevistado relaciona o ciúme com a homossexualidade. Esse fato o deixa de novo extremamente angustiado. Sente-se cercado. Não pode negar seu ciúme nem esconder que ele talvez aponte para seu lado homossexual. E agora? Como enlouquecer não é uma escolha sua possível, a saída para não se defrontar com sua verdade é a fuga.
Ao final de quatro meses de terapia, uma funcionária sua me telefona avisando que ele interromperia o tratamento por algum tempo. Nunca mais voltou.
Considerações finais
O sentimento de ciúme se faz presente em todas as relações de casais. Tanto sua ausência quanto sua intensidade aumentada são um problema. Sua presença, em doses moderadas, é testemunho do afeto de duas pessoas, é uma espécie de cola que fortalece a relação: “Eu amo e não quero perder o amado”; e, por outro lado: “Sou querido, e o outro me valoriza, não quer me perder”.
O ciúme torna-se patológico na medida em que um, ou os dois do par, tem conflitos relativos à fase edípica não resolvidos. Portanto, o ciúme normal adoece contaminado pela fixação nos conflitos edípicos não integrados e superados. E essa patologia se estende desde as queixas expressas no ciúme projetado e delirante até as atuações extremas, os crimes passionais.
Referências
FENICHEL, O. Teoría psicoanalítica de las neurosis. Buenos Aires: Paidós, 1996. [ Links ]
FREUD, S. Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e no homossexualismo (1922). In: ______. Além do princípio de prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 269-281. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18). [ Links ]
KERNBERG, O. Psicopatologia das relações amorosas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. [ Links ]
KLEIN, M. Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Rio de Janeiro: Imago, 1991. (Obras completas de Melanie Klein, 3). [ Links ]
MASSON, M. J. (Ed.). Correspondência completa de Sigmund Freud a Wilhelm Fliess (1887-1904). Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago, 1986. p. 364-365. [ Links ]
PITTMAN, F. Mentiras privadas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. [ Links ]
Endereço para correspondência
Praça Dom Feliciano, 26/304 - Centro Histórico
90020-160 - Porto Alegre - RS
E-mail: cjmallmann@hotmail.com
Recebido em: 29/04/2015
Aprovado em: 20/05/2015
SOBRE O AUTOR
Cleo José Mallmann
Psicólogo. Psicanalista. Sócio do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.