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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) v.32 n.49 São Paulo dez. 2009
ARTIGOS
Os tempos do après-coup1
The times of the après-coup
Luís Carlos Menezes*
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
RESUMO
O autor, com base nos relatórios de J. André e de B. Chervet, em discussão no 69º Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa, argumenta, tanto no plano clínico como metapsicológico, em favor da conveniência em se manter uma flexibilidade metapsicológica na consideração de casos borderlines de maneira a não acentuar em demasia as diferenças entre a abordagem clínica destes e a clínica considerada clássica, com pacientes neuróticos. Aponta para condições de pacientes neuróticos em que se imbricam situações que são trabalhadas com base na teoria do recalque secundário e situações de desestruturação grave, ainda que pontual, e que se aproximam de funcionamentos borderlines. A análise destes, comportando, por sua vez, momentos transferenciais ambíguos, que envolvem dificuldades primitivas do ego e manifestações pulsionais edípicas.
Palavras-chave: Pacientes borderlines, Traumatismos precoces, Après-coup, Recalque secundário.
ABSTRACT
Based on the reports of J. André and B. Chervet discussed at the 69th Congress of French-Speaking Psychoanalysts, the author argues & both at the clinical and the metapsychological levels & in favor of the convenience of maintaining a metapsychological flexibility when considering borderline cases, so as not to overemphasize the differences between the clinical approach to such cases and the so-called classical approach for neurotic patients. He points to conditions of neurotic patients in which situations overlap and are dealt with based on the secondary repression theory and severe destructuration situations, even if occasional, which come close to a borderline functioning. The analysis of such a kind of functioning includes ambiguous transferential moments involving primitive ego difficulties and Oedipian pulsion manifestations.
Keywords: Borderline patients, Early trauma, Après-coup, Secondary repression.
A noção de après-coup, à luz dos dois relatórios (textos de referência do Congresso de maio de 2009: André, 2008; Chervet,2008), nos oferece uma abertura inesperada sobre o processo analítico e, portanto, sobre a técnica, compreendida como horizonte dos lugares e dos “deslocamentos” do analista na análise.
Jacques André enfatiza o trabalho clínico com pacientes borderlines & “Aurora e os seus”, clínica que, por vezes, me pareceu, ele opõe à clínica clássica, a clínica com pacientes neuróticos: a primeira tendo por objetivo a retomada na análise dos “machucados precoces do Eu” (Freud, 1939/1986, p. 161), e a segunda, a supressão do recalque. Eu digo opor e não diferenciar, ainda que ele nos dê em seu texto uma descrição ao mesmo tempo sutil e convincente daquela. Esta “correção après-coup” (Freud, 1937/2009a) do primeiro golpe, recalque originário, trauma primitivo que se torna trauma in praesentia no aleatório da análise, teria ela, o autoerotismo da transferência ajudando, mais chances de ter sucesso ali onde a clínica clássica fracassou?
É uma pergunta feita por J. André e que destaco para o meu comentário.
Eu começaria por responder afirmativamente, quando se trata de uma paciente como Aurora. Mas o que dizer do trabalho com outros pacientes, aqueles para os quais a psicogênese do tempo (tão bem concebida pelo autor, na linha de A. Green) transcorreu relativamente bem, ou, em todo caso, não muito mal, e para os quais o recalque propriamente dito estaria operando & em seu fracasso, como retorno & no sintoma? Para estes, os neuróticos, conceber a operatividade na análise da mobilização do recalcado & do qual ele sublinha a plasticidade & como transferência e sua transformação pela escuta “clássica”, as intervenções tendo efeito de interpretação, esta retomada paciente do recalcado na espessura do pré-consciente, seria ela, eu retomo a pergunta, mais destinada ao fracasso que na clínica com pacientes borderlines?
Por apaixonante que possa ser a clínica dos estados-limite, tornaria ela a “clínica clássica” mais ou menos ultrapassada, aquela da qual o trabalho do sonho é o paradigma (não o sonho da neurose traumática)? Ou então, não poderíamos pensar simplesmente que ela traz novos parâmetros, eventualmente decisivos, para que ao invés de um fracasso possa resultar, pelo contrário, um progresso na análise? A primeira e última entrevista de Jorge com J. André, este bom e honesto neurótico, ao menos na aparência, me incita a ir nesta direção, uma vez que se trata de um jovem neurótico que demonstra, por ocasião da primeira entrevista, uma falência pontual, mas grave, dos recursos do Eu, muito rapidamente trazida pela transferência.
Mas voltemos a Aurora, quando ela, se movimentando já com “um sentimento íntimo do tempo”, construído nos après-coups da análise, pode dizer: “Eu poderia me arrebentar aqui com a boca aberta, você não faria nada”. Ela oferece nesse instante, ao analista, uma cena que testemunha, a meu ver, duas referências & o condicional, sobre o qual o autor chama a atenção do leitor, assinalando, com efeito, a capacidade de um recuo representativo (daquilo que está sendo posto em cena), e que, para além de uma demanda de cuidados, podemos também entender como fala-queixa de uma mulher enamorada. O analista não diz nada, baseado em percepções, e por razões que nos explica, em particular, a de que dizer algo poderia consistir em “reenviar muito apressadamente a mulher de hoje ao bebê de ontem”.
Não podemos senão admirar a justeza analítica desta abstenção de um acting contratransferencial. A paciente, aliás, confirmou- o anos depois, lembrando-se desta situação e dizendo que não teria suportado se ele tivesse “feito”, naquela ocasião, alguma coisa. Isto me lembra o que diz Freud sobre a transferência amorosa, que é preciso acolher em uma escuta receptiva, mas não fazer nada. Neste sentido, pode-se perguntar em que medida o après-coup traumático não agiu aqui na forma de uma transferência amorosa, transferência em que se trata de criar o presente, neste momento indecidível, de uma mulher enamorada-bebê negligenciado, o sexual infantil intervindo com o poder terapêutico, concepção tão central no texto de J. André? Naturalmente, ela, eles, não poderiam falar sobre aquilo senão anos depois, quando o episódio já se tornara uma lembrança na qual os lugares respectivos de um e do outro estão bem definidos em uma fala que exclui qualquer agir com a sua violência, inclusive a de um dito.
Finalmente, é esta extrema vulnerabilidade ao outro, e é ao outro que a gente se expõe enormemente ao envolver-se em uma análise. Uma palavra, então, de aparência inofensiva, uma sessão não reposta, e os ecos podem de repente ser ensurdecedores. E não é, antes de tudo, esta vulnerabilidade que faz a diferença entre a análise de um paciente neurótico e a de um borderline?
Para dar conta da constante potencialidade traumática nessas análises, pode, sem dúvida, ser conveniente pensar em termos de primeiro golpe ou recalque originário, retorno por estilhaços do traumático na transferência (golpes) e abertura simbolizante (après-coup). Não haveria por que, com efeito, nesses casos, pôr a ênfase no paciente trabalho associativo da clínica com pacientes neuróticos, com suas idas e vindas, com os desvios sem fim que nos impõem as defesas neuróticas, ou a usura da resistência, nem nos embaralhamentos do conflito defensivo. Esta, sim, não poderia ser pensada sem as referências ao recalque secundário e às instâncias mais estruturadas do Eu. Ora, sabemos bem, esta clínica “clássica” não é, sempre, tão sossegada assim: rememoração & porque memória há & e repetição se imbricam no “agieren” transferencial e, nela, não faltam também eventuais transbordamentos dramáticos.
Fica a interrogação sobre como conceber o marca do primeiro golpe, este imprint (Prägung). Naturalmente que ele só adquire o seu caráter unitário pela construção, pelos sentidos convocados em cada episódio tornado acontecimento psíquico na análise. É assim que, no caso relatado, uma sessão não reposta remete, para dar conta do vivido da paciente, a uma “anulação”, a alguém “jogada para o nada”, a ausência-férias à vacuidade, aos abortos, os dois meses de ausências (da paciente) e de esperas (do analista) à “morte branca”, em que diferentes vivências extremamente intensas são entendidas como nascimento não esperado e não desejado.
A afirmação de Freud de que se trata ali de algo “que ainda está vivo” (Freud, 1930/2009b) vai ao encontro da de B. Chervet, para quem “o investimento processual permaneceu ativo ao nível da cena ii” (Chervet, 2008, p. 181), a primeira do modelo do après-coup. E, dentro de seu modo de pensar, isto não é pouca coisa, porque ele supõe um trabalho psíquico de investimento que impede o seu apagamento. No caso de Aurora, com certeza o primeiro golpe deixou marcas que mantiveram algum grau de investimento, alguma efetividade, não tendo desaparecido como “marca faltante”. A perda deste investimento é o que acontece, nos diz B. Chervet, na esquizofrenia, e, em particular, no autismo. As estereotipias no autismo são entendidas por ele como “atos de facilitações (de trilhamentos) sem inscrição de conteúdo” (Chervet 2008, p. 185), apenas como tentativa, no limite, de criar esboços de significação. Decididamente não é o caso da paciente borderline de J. André.
Ora, a primeira marca (primeiro golpe) tornada, pelos efeitos do après-coup na análise, uma cena, uma montagem articulada de sentido, aberta ao combinatório intrínseco da atividade representativa, sob o primado do princípio do prazer, tendo adquirido a possibilidade de se deslocar entre os condicionais, os passados e os futuros, não poderia ela (a primeira marca) ser entendida já como o fruto de certo trabalho psíquico? E, se assim é, poderíamos atribuir a ela uma efetividade subterrânea na vida psíquica & e, deste ponto de vista, comparável ao recalcado no sintoma neurótico &, isto antes do sonho, antes da análise, antes mesmo do tempo, apesar da precariedade, apesar da fragmentação das vivências e das impressões sem nome que lhe são próprias?
A propósito, o caso do menino de B. Chervet, o que perdeu o pai em um acidente de moto, aos cinco anos, me parece instrutivo (Chervet, 2008, pp. 143-147). Conflitos de natureza neurótica e em relação com a “clínica do recalque”, “movimentos assassinos (fantasmáticos) em relação ao pai” encontrar-seiam “paralisados” pelo trauma de sua morte violenta e súbita. Acuado em sua casa, ele tem sonhos e crises de angústia, abandona as atividades escolares, assim como as relações e brincadeiras com outras crianças. Durante todo um período da análise ele fica reduzido à repetição de temas que só contêm, do que aconteceu ao pai, alguns elementos sensoriais, sem jamais admitir falar nem de longe sobre o assunto. Este caso em que se imbrica algo de traumático (inclusive “um golpe” interpretativo na análise, segundo o analista) e algo de neurótico, um funcionamento pelo automatismo de repetição e uma conflitualidade edípica, poderia ser, a meu ver, útil se comparado ao caso de Aurora, para nos encorajar a manter estados de espírito metapsicológicos suficientemente flexíveis para dar conta da diversidade das configurações clínicas que se apresentam nas análises.
Referências
André, J. (2008). L’événement et la temporalité: l’après-coup dans la cure. Paris: PUF.
Chervet, B.(2008). L’après-coup: la trace manquante et ses mises em abîme. Paris: PUF.
Freud, S. (1986). L’homme Moïse et la religion monothéiste. Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1939).
Freud, S. (2009a). L’analyse avec fin et l’analyse sans fin. In S. Freud, Résultats, idées, problèmes, Vol. 2 : 1921-1938 (pp.231-268). Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1937).
Freud, S. (2009b). Constructions dans l’analyse. In S. Freud, Résultats, idées, problèmes, Vol. 2: 1921-1938 (pp.269-281). Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1930).
Endereço para correspondência
Luís Carlos Menezes
Rua Deputado Lacerda Franco, 300/134
05418000 & São Paulo & SP
E-mail: luismzes@hotmail.com
Recebido: 20/10/2009
Aceito: 30/10/2009
* Psicanalista, membro efetivo da SBPSP.
1 Intervenção em mesa-redonda no 69º Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa. Paris, maio de 2009.