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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.49 São Paulo dez. 2009

 

ARTIGOS

 

Algumas pontuações em torno das raízes socioculturais das compulsões1

 

Some observations about the socio-cultural roots of compulsions

 

 

Bernardo Tanis*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo lança um olhar para possíveis entrelaçamentos entre metapsicologia, psicopatologia psicanalítica, clínica e pensamento sobre a cultura tomando as compulsões como articulador clínico. Principalmente visa estabelecer algumas diferenças entre compulsões de natureza neurótica (neurose obsessiva) como descritas e analisadas por Freud e outras compulsões que obedecem a um registro dominado por severas perturbações dos processos de simbolização (passagem ao ato, adições, bulimia). Serão apontadas algumas correlações entre processos de subjetivação na modernidade com a neurose obsessiva assim como certas características da cultura pós-moderna, principalmente aquelas que parecem alterar os processos do sonhar e o caminho que leva à simbolização conduzindo para as bulimias e adições.

Palavras-chave: Compulsão, Modernidade, Cultura, Simbolização.


ABSTRACT

This paper aims to take a look at possible links between metapsychology, psychoanalytic psychopathology, clinical experience, and culture, taken compulsions as a clinical axis. Mainly aimed at establishing some differences between neurotic compulsions (obsessional neurosis) as described and analyzed by Freud and other compulsions that follow a record dominated by severe disturbances of the processes of symbolization (passage to the act, addictions, bulimia). We observed some correlations between processes of subjectivity in modernity with the obsessional neurosis as well as certain characteristics of a postmodern culture, especially those that seem to affect the processes of dreaming and the path to symbolization in bulimia and additions.

Keywords: Compulsion, Modernity, Culture, Symbolism.


 

 

Este trabalho visa fornecer elementos para o debate e futuras pesquisas em torno de uma questão que está na ordem do dia: as compulsões; sejam estas no amplo campo da cultura ou no singular espaço que se apresenta na clínica psicanalítica. Em Tanis (2003a, 2003b) tratei, assim como o fizeram nos últimos anos tantos outros colegas, dos efeitos psíquicos das transformações econômicas e socioculturais das últimas décadas e seus impactos na constituição das subjetividades. Foquei especialmente os efeitos dessas transformações nos vínculos familiares, na infância e nas diferentes modalidades de solidão. Tratava-se, então, de investigar as relações entre o contexto sociocultural e constituição subjetiva, ou mais precisamente de procurar estabelecer algum tipo de correlação entre determinadas emergências sintomáticas e emergências do mal-estar como apreendidas pela clínica e o contexto social nas quais esses fenômenos surgem.

Em A psicanálise nas tramas da cidade2 (Tanis & Khouri, 2009a) abre-se o leque para a multiplicidade de olhares a partir de diferentes campos do saber. Ao pensar Cidade e Subjetividade procurava- se pesquisar, a partir de um determinado recorte, a Cultura e a relação intrínseca entre as condições reais de nossa existência e a dimensão simbólica do acontecer humano. Existência esta que se vê ameaçada nos dias de hoje pelos riscos do desenraizamento, da exclusão e de uma violência que esgarça o continente representativo prejudicando severamente os processos de simbolização.

Assim, contextualizar a reflexão em torno das raízes socioculturais das compulsões evoca o modo marcante e constitutivo da cultura no exercício da clínica. No entanto, cabe a tarefa artesanal e necessária da garimpagem e reconhecimento dessa presença no contexto do processo analítico, na constituição das nossas teorias, ideologias analíticas e institucionais3 (Favilli, Tanis & Mello, 2008).

Estariam as compulsões, nas suas diferentes modalidades fenomênicas e estruturais e nos complexos caminhos inconscientes que as determinam, codeterminadas pelas condições socioculturais em particulares momentos da história da humanidade?

Se formulada tal pergunta há cinquenta anos, poucos psicanalistas responderiam afirmativamente a este interrogante. Hoje, após as transformações da nossa cultura amplamente investigadas por pensadores nos diferentes campos das humanidades que se debruçaram sobre o pós-modernismo, dificilmente ouviríamos uma negativa a essa interrogação.

Se por um lado admiramos a flexibilidade e a abertura do nosso campo por outro, não nos abstraímos de colocar uma questão de suma importância para o psicanalista: possuímos um núcleo duro de nossa metapsicologia e da clínica ou o estamos deixando nas mãos de um relativismo cada vez maior, fruto de um imaginário cultural em constante mutação? O desafio é instigante e nos leva a uma reflexão radical em torno da própria noção de inconsciente e da relação psique-mundo com a qual operamos e dos modos pelos quais nossa subjetividade se estrutura.

Procurarei, a partir das compulsões, lançar um olhar para possíveis entrelaçamentos entre metapsicologia, psicopatologia psicanalítica, clínica e cultura, também comentar alguns discursos que tem se tornado lugar-comum e que talvez não aprofundam o suficiente essas relações. Principalmente estabelecer diferenças entre algumas compulsões de natureza neurótica (neurose obsessiva) como descritas e analisadas por Freud e outras que obedecem a um registro mais próximo das severas perturbações dos processos de simbolização (passagem ao ato, adições, bulimia). Serão apontadas correlações entre os impasses da modernidade e a neurose obsessiva. Assim como percebemos também que certas características da cultura pós-moderna, que parecem alterar tanto os processos do sonhar quanto o caminho que conduz à simbolização, apontam correlações com os processos psíquicos envolvidos nas bulimias e adições.

Já anunciava Freud que o supereu de uma cultura plasma seus ideais, e propõe suas exigências. Assim ele lança em Mal-estar na cultura um interrogante, um desafio: não seria justificado diagnosticar que muitas culturas se tornaram neuróticas sob a influência das exigências de determinadas aspirações?

Diz Mezan (2002) que:

determinados fatores combinados, por natureza extraindividuais, engendram uma modalidade específica de organização subjetiva, um molde para as experiências individuais. Pode-se concebê-la como condensação ou sedimentação, num dado indivíduo, de determinações que se situam aquém ou além da experiência de si, e que de algum modo a conformam, ou pelo menos lhe designam certos limites e condições (p.259).

E nós, acompanhando Freud, nos indagamos: quais seriam os mandamentos do supereu de nossa cultura, que ética (reguladora dos vínculos recíprocos entre os indivíduos) está sendo proposta pelo nosso tempo? Quais os mandamentos que norteiam nossos ideais culturais? E quais as consequências de não obedecer aos imperativos e a estas exigências? Será novamente a consciência de culpa originada pela ambivalência em relação ao assassinato do pai da horda (como na modernidade) que conduz à miséria neurótica ou ao seu negativo perverso ou haverá outro modelo como matriz mítica fundadora conduzindo a novas organizações psíquicas?

“Excluído da possibilidade de simbolização, o mal-estar silenciado acaba por se manifestar em atos que devem ser decifrados, de maneira análoga aos sintomas daqueles que buscam a clínica psicanalítica” (Kehl, 2009, p. 25). A autora alude àquilo que na cultura se furta ao campo da representação. Este “inconsciente social” exerceria uma pressão, ou imperativo sustentado no discurso dominante de uma época, que atravessaria a singularidade do sintoma como caracterizado pela psicanálise clássica, podendo determinar que uma dominância seja sintomática ou até de estrutura. Estamos no campo da relação psique-mundo para a qual algumas propostas constitutivas vêm sendo esboçadas, como veremos posteriormente.

Destas interessantes e elucidativas constatações e hipóteses às vezes conclusões um tanto apressadas, ou melhor, excessivamente generalizantes, são apresentadas por alguns autores: assim, ouvimos falar que o sujeito pós-moderno é um sujeito compulsivo, ou depressivo ou talvez aditivo. Afinal interrogo-me e também convido a uma reflexão e pesquisa em torno dessas propostas. Quem é esse sujeito pós-moderno, e de onde emana essa necessidade de circunscrevê-lo em um discurso sintetizador a ponto de uma pesquisadora séria como Jô Gondar afirmar em um interessante trabalho sobre as compulsões e o dispositivo analítico: “Com efeito, o sujeito contemporâneo poderia ser descrito como um sujeito compulsivo, sem que se possa situá-lo numa estrutura clínica definida” (Gondar, 2001, p. 27). Vamos então aprofundar essa discussão.

 

Compulsão, neurose obsessiva e modernidade

A seguir vamos apontar algumas modalidades de sintomas compulsivos (compulsões obsessivas, adições, bulimias), observar a que modalidades conflitivas obedecem e procurar assinalar algumas correlações socioculturais.

Compulsão é definida por Laplanche e Pontalis, a partir de Freud, como “um tipo de comportamento que é levado a realizar por uma coação interna. Um pensamento (obsessão), uma ação, uma operação defensiva, mesmo uma sequência complexa de comportamentos, são classificados de compulsivos quando a sua não realização é sentida como tendo de acarretar um incremento de angústia” (Laplanche & Pontalis, 1997, p. 124). Sendo que, na neurose obsessiva, o indivíduo ao mesmo tempo em que se sente coagido a agir ou a pensar de determinada maneira luta contra ela, expressando desse modo um conflito.

Vejamos brevemente algumas situações descritas por Freud (1909/1976e) em “A propósito de um caso de neurosis obsesiva (O homem dos ratos)”: o paciente viajava com sua amada e de repente se vê obrigado a solicitar que esta vista sua capa; estava sobre o mandamento de “que nada lhe acontecesse”, e Freud assinala que esta é uma compulsão protetora. Em outro dia Paul, o paciente, passou pela rua, percebeu uma pedra e viu-se obrigado a removê-la, pois em breve, pensou ele, a carruagem da sua amada passaria por aquele lugar. Posteriormente lhe pareceu uma ideia disparatada e voltou ao lugar para recolocar a pedra. Dirá Freud que a compulsão protetora não pode significar outra coisa que não a reação de arrependimento e penitência diante de um impulso oposto, vale dizer, hostil: “Convivem amor e ódio dirigidos à mesma pessoa; é a luta figurada nas ações obsessivas” (Freud, 1909/1976e, p. 151). Assim, “a compulsão aparece como um ensaio de compensar a dúvida e retificar o estado de inibição insuportável de que esta dá testemunha” (p. 190). Logo, dirá Freud, as ações obsessivas são possíveis por produzir dentro delas formações de compromisso, um tipo de reconciliação entre impulsos que se combatem mutuamente. Ainda sobre a compulsão, se o mandamento obsessivo não se cumpre, a tensão é insuportável e torna-se perceptível por um incremento da angústia.

Ora, evidentemente temos nas compulsões de natureza obsessiva uma organização psíquica que envolve a pulsão e um sofisticado processo defensivo de natureza inconsciente. Comporta os mecanismos de regressão da ação para o pensamento que passa a ser erotizado e do objeto para o autoerotismo. Como dirá Freud (1926/1976a, p. 109), em vez de conservar a masculinidade, o obsessivo inibe toda a sua manifestação. Buscando cada vez com maior intensidade satisfações substitutivas, dada a submissão do eu à intensa pressão do supereu.

Freud aponta, principalmente em Totem e tabu e As neuroses de transferência: uma síntese, o estabelecimento de correlações entre o desenvolvimento da humanidade, o nascimento da cultura e a neurose obsessiva (o faz também em relação à fobia e à histeria). Esta relação entre filogênese e tipos de neurose aproxima- se cada vez mais a uma vinculação entre estágios ou formações culturais e certos aspectos da vida neurótica. Assim, nas palavras do próprio Freud, a neurose obsessiva repete as características da fase da humanidade na qual emergiu o pensamento com atributos mágicos e onipotentes, a superstição, a figura dominadora do pai da horda imbuído de sua natureza ciumenta e egoísta. Na neurose obsessiva vemos o conflito ambivalente, assim como sucumbe o pai da horda, sucumbe o obsessivo diante das exigências da sexualidade.

Que formas teriam adquirido na modernidade o pacto filial em torno do assassinato do pai? A questão é complexa, mas algumas ideias do já clássico pensador Zygmunt Bauman podem vir em nosso auxílio.

Prestemos atenção à seguinte frase: “As bactérias, os parasitas e as pestes não podem ser tolerados. Por razões de limpeza e higiene devemos torná-los inofensivos pela sua eliminação”. Poderíamos ver nestas palavras o discurso de um paciente obsessivo justificando racionalmente sua compulsão de limpeza, no entanto é assim, nestas exatas palavras, que descreve Hitler sua “contribuição a humanidade” através da eliminação do povo judeu que dera lugar ao Holocausto.

Retirei esta citação do interessante e elucidativo trabalho de Zygmunt Bauman Modernidade e ambivalência. Este autor é um dos grandes teóricos da pós-modernidade, procurando também elucidar seus efeitos na subjetividade contemporânea. Neste texto ele foca com incrível lucidez alguns dos aspectos do projeto da modernidade4 e seus impasses:

a) Podemos dizer que a existência é moderna na medida em que contém a alternativa da ordem e a do caos.

b) Podemos dizer que a existência é moderna na medida em que é sustentada por projeto, manipulação, administração e planejamento.

c) A existência é moderna na medida em que é administrada por agentes capazes (isto é, que possuem conhecimento, habilidade e tecnologia) e soberanos.

d) O caos, “ou outro da ordem”, é pura negatividade.

e) O horror à mistura reflete a obsessão de separar.

f) A prática tipicamente moderna, a substância tipicamente moderna, do intelecto moderno, da vida moderna, é o esforço para exterminar a ambivalência: um esforço para definir com precisão &– e suprimir ou eliminar tudo o que não poderia ser ou não fosse precisamente definido. Seu correlato político será o Estado Jardineiro que deveria retirar as ervas daninhas.

g) Retornando a Hitler com sua proposta jardineira ou pesticida. A existência moderna é tanto acossada quanto instigada à ação impaciente pela consciência moderna, e a consciência moderna é a suspeita ou a percepção da inconclusividade da ordem existente, uma consciência incitada e movida pela premonição da inadequação e, mais, pela inviabilidade do projeto ordenador de eliminação da ambivalência, pela premonição da causalidade do mundo e a contingência de identidades que o constituem. (Bauman, 1995/1999, pp. 15-16

Concluímos a partir das teses enunciadas por Baumman e antecipadas por Freud, ainda que de modo metafórico, que a neurose obsessiva encarna certos aspectos do mal-estar moderno, cuja compulsão é um permanente retorno a uma ordem ilusória e mortífera por uma impossibilidade de tramitar um conflito entre autoridade e submissão, entre ordem e caos, entre amor e ódio, entre narcisismo e investimento objetal.

Não estamos estabelecendo uma relação da causalidade entre a ideologia, projeto da modernidade, e a neurose obsessiva, apenas por enquanto uma importante correlação de sentidos entre duas ordens do real, um que se manifeste no psiquismo individual, outro no âmbito mais amplo da cultura.

 

Ato, adições, bulimia e pós-modernidade

Esta modalidade compulsiva, como veremos, diferencia-se bastante das outras, como aquelas presentes nas adições, no jogo nos distúrbios alimentares. Tomemos apenas como representante as compulsões relativas à bulimia, já que nosso objetivo não é extensivo mas sinalizador de rotas. O caráter compulsivo da bulimia, que vem sendo compreendido como uma passagem ao ato, possui uma característica de ruptura no qual se aproxima de um máximo de ação e um mínimo de representação, como assinala Green em vários trabalhos.

A maioria dos analistas coincide em não identificar as bulimias com uma estrutura psíquica única. Caracterizadas como “estas glutonas ávidas, são com efeito devoradas por uma obrigação interna que as leva rítmica, se não ritualmente, a realizar esse festim canibalesco que as deixa esgotadas e envergonhadas até que o ciclo recomece (Jeammet, 2003, p. 108). Este mesmo autor as caracteriza por uma apetência objetal, uma perpétua busca do objeto a ser consumido ou sobre o qual se apoiar e obrigando-se a fugir pela rejeição após o encontro. Há uma fragilidade narcísica que regula tanto suas relações objetais como com sua própria imagem.

O aspecto frenético e a precipitação da passagem ao ato mostram que a satisfação é procurada na intensidade e na atemporalidade mais próxima dos processos inconscientes, ou seja, “em ruptura com os processos secundários que caracterizam, em referência à realidade e à história, o funcionamento do ego”. E ainda mais: “O fracasso da elaboração de sintomas por simbolização e pela formação de compromisso testemunha a fragilidade do contrainvestimento e do recalcamento secundário” (Brusset, 2003, p. 144). Podemos procurar compreender esse processo como o fazem os psicanalistas Jeammet, Brusset ou McDougall, pois, como vemos, estamos em face, não apenas de outra manifestação sintomática, mas de outro modo de organização psíquica, pobre em recursos representativos capazes de simbolizar as precárias relações com o objeto originário.

Assim caracteriza McDougall o ato-sintoma presente nas bulimias, nas adições (tabagismo, álcool), nas compulsões sexuais:

Descobrimos nesses casos uma carência/na elaboração psíquica e uma falha de simbolização, as quais são compensadas por um agir compulsivo, procurando desta forma reduzir a intensidade da dor psíquica pelo caminho mais curto. Todo ato-sintoma ocupa o lugar de um sonho nunca sonhado, de um drama em potencial, onde as personagens desempenham o papel de objetos parciais ou até são disfarçados de objetos-coisa, numa tentativa de imputar aos objetos substitutivos a função de um objeto simbólico que está ausente ou danificado no mundo psíquico (ex. os alimentos ou a droga que servem como resposta à depressão)... Deste modo a exteriorização de um “agir” esconde uma história relacional e passional cujos intuitos, ainda que sua leitura nos seja acessível, está petrificada em um ato alienante. (McDougall, 1978/1983, p. 134)

Esses quadros foram reatados já no século XVIII por Blankaart, que os caracteriza por um apetite extraordinário aliado a uma fraqueza de espírito. James em 1743 descreve os casos de caninus appetitus (fome de cão), no qual grande quantidade de alimento é ingerida e posteriormente rejeitada por vômitos. No entanto, há a tendência, pela sua visibilidade e sua relação com a anorexia, de considerá-las como fazendo parte do que vem sendo chamado de patologias atuais, novas formas do mal-estar na pós-modernidade.

Mesmo sem pretender uma resposta a esses interrogantes, podemos olhar para o que se chama cultura pós-moderna, como o fizemos anteriormente com certos aspectos da modernidade em relação à neurose obsessiva, e observar talvez algumas correspondências.

Freud fala algumas vezes sobre o conflito entre pulsão e civilização. Inicialmente certo otimismo em La moral sexual “cultural” y la nerviosidad moderna (1908/1976c) apontava para uma solução possível a ser conquistada entre os dois polos do conflito por via sublimatória. Já em El malestar em la cultura (1930/1976b), a relação seria de ordem estrutural, isto é, o conflito jamais seria ultrapassado.

Se a modernidade apoiava-se na exclusão de um dos polos da ambivalência pretendendo sustentar um modelo de sociedade alicerçado na fé na razão instrumental, a versão psicanalítica menos ingênua contemplava também uma ordem, sustentada por um pai simbólico, mas que estaria submetido às investidas de uma pulsionalidade, compulsão à repetição, força demoníaca, como se desprende do Mal-estar na civilização.

Giddens (1990/1991), ao analisar o período “pós-modernidade”, o refere como certa radicalização da modernidade. Para este autor: a) o ritmo das mudanças, b) o escopo delas e c) a natureza intrínseca das instituições geram um estado de perplexidade tal que parece estar fora de nosso alcance compreendê-lo.

Para o autor vivemos em um ambiente de risco. Vazio, solidão, narcisismo, aceleração e fim das certezas, que, entre tantas outras qualidades... são sinais do nosso tempo. Vivemos talvez um esvaziamento do laço social que poderia vir a ser construído em torno de referências simbólicas mais estáveis, uma realidade que, distante de oferecer o amparo necessário, confirma o fracasso do objeto originário. Ainda mais que nos convoca em torno do imperativo jamais atingido de um eu ideal narcísico, autorregulado e autossuficiente de beleza, gozo e sucesso. Trocando em miúdos, haveria uma fragilidade simbólica permitindo um sem freio das demandas pulsionais, muitas vezes encarnadas na figura de um superego excessivamente agressivo, algo próximo do superego descrito por Klein.

Essa fragilidade simbólica parece estar também relacionada com o atual contexto urbano das grandes metrópoles, e aqui sintetizo algumas ideias que abordei por extenso em Tanis (2009a):

a) O excesso. Uma das dimensões mais marcantes da vida na metrópole, e que Simmel (1903/1979) já vislumbrara, é o excesso. Altíssima densidade populacional, grandes aglomerações urbanas. Excesso de informação, cuja quantidade e velocidade somos incapazes de metabolizar. Excesso de exposição ao outro através de contatos de efeitos de visibilidade: publicações, eventos, chats de internet, shows, espaços públicos em contraposição a uma restrição da intimidade. Excesso de movimento, ritmos, violência, cujas quantidade e velocidade somos incapazes de metabolizar e que talvez acabem anestesiando a subjetividade. Excessos, nas grandes distâncias a serem percorridas, horas gastas no trânsito e riscos envolvidos nos deslocamentos etc.
Como analistas, percebemos muitas vezes nos nossos analisandos a criação de uma barreira antiestímulo que visa neutralizar esses efeitos devastadores para a vida psíquica, como uma das modalidades que o psíquico encontra para fazer frente a essas demandas. Algo análogo é descrito por Freud (1925/1976d) em Nota sobre “la pizarra mágica”. Sem me estender, apenas assinalo que, para Freud, o que determina a instauração do tempo é o ritmo da capacidade do sujeito de investir na realidade exterior.
Quando o estímulo exterior é inconstante (afastamento muito longo ou presença muito irregular), a representação do tempo terá dificuldade em se instaurar. Consequentemente, o aparelho psíquico na busca do objeto poderá passar a funcionar em um regime alucinatório autoerótico, promovendo um corte defensivo com a realidade e prescindindo temporariamente do objeto. Assim, o aparelho psíquico poderá se defender anestesiando os estímulos, mas quais serão as consequências?

b) Multiplicidade ou fragmentação. Os contatos virtuais começam a ganhar cada vez mais espaço, estamos em contato e em rede com um número maior e imprevisível de interlocutores, com suas vantagens e suas consequências ainda não muito bem conhecidas. A multiplicidade e a fragmentação são retomadas, entre outros, por Nicolaci-da-Costa (2005), pesquisadora carioca. Ela observa o sujeito nos espaços virtuais que podem construir diferentes narrativas (verídicas ou não, sinceras ou não, anônimas ou não) a respeito de si mesmo. Esse sujeito, diz a autora, submete as definições de si a um constante processo de revisão. Por se expor a tantos espaços, realidades, experiências e retornos têm a si mesmo como a única fonte de integração possível. Nessa multiplicidade que se assemelha a um conjunto de disfarces, qual é seu lugar simbólico, se tudo é possível? A lógica da presença, assim como a resposta imediata à demanda, caracteriza os modos de gozo aditivos a qualquer tipo de droga. Trata-se de modalidades de vínculos e da busca da satisfação pulsional que não suportam a ausência do objeto, o adiamento do prazer e que colocam em xeque a dimensão simbólica do existir humano.

c) Paradoxos vinculares. Lipovetsky (1983, p. 46) fez colocações extremas que expõem as raízes de certos paradoxos vinculares:

o conflito cedeu lugar à apatia e a própria intersubjetividade se encontra desinvestida ... Não satisfeito com produzir o isolamento, o sistema engendra o seu desejo, desejo impossível que, logo que realizado, se revela intolerável: o indivíduo pede para ficar só, cada vez mais só e simultaneamente não se suporta a si próprio, a sós consigo. Aqui o deserto já não tem começo nem fim.

Retornemos a citação de McDougall: “Todo ato-sintoma ocupa o lugar de um sonho nunca sonhado”. A pergunta que se impõe é: será que as condições acima colocadas de excesso, fragmentação e paradoxos vinculares, entre outras da chamada condição pós-moderna, guardam alguma correlação com a dominância do ato-sintoma em lugar de favorecer a capacidade de simbolização e a função onírica? Vários autores, como Herrmann, entre nós, sustentam essa hipótese.

Nesse contexto, voltando agora para os sintomas da bulimia, seria, como assinala Brusset (2003, p. 138), cada vez mais difícil para essas personalidades “construir um ideal de ego e um projeto identificatório”.

Se na clínica das adições e compulsões alimentares predomina o ato com um mínimo de representação, isso não alude necessariamente a uma subjetividade sem sujeito, mas a um psiquismo que se estruturou em um severo prejuízo representativo, em uma precariedade dos processos de simbolização. Isto sim demandará, seja do analista ou de uma equipe de profissionais, uma estratégia clínica diferente daquela que domina os processos compulsivos na neurose obsessiva. Modelos clínicos que permitam a construção mais do que a interpretação, a emergência e a neogênese subjetiva fornecerão elementos para permitir que a posteriori essas compulsões possam ser inscritas em uma cadeia de sentido.

Por outro lado, esse contexto e a pressão na constituição da subjetividade, assim como a frequência dessas patologias, teriam impelido os analistas a refletir com maior intensidade em torno do que poderia ser caracterizado como sintoma social. Colocando como disse anteriormente, desafios complexos para a metapsicologia e também para a clínica.

 

Continuar pesquisando, alguns caminhos possíveis

Estaríamos em relação às adições e compulsões assim como na passagem ao ato no campo dos sintomas sociais caracterizados “como um campo do particular entre o universal do mal-estar e o singular do sintoma subjetivo, metáfora partilhada por um grupo do mal-estar, por meio de um gozo inscrito, submetida e provocada pelo discurso de uma época” (Vorcaro, 2004, p. 63). Ou, por esta mesma autora, como tentativa de simbolizar o real que a linguagem não consegue recobrir na medida adequada.

Mas se o sintoma é social, qual o alcance do psicanalista? Quais as condições de elaboração da contratransferência? Ainda mais, onde se entrelaçam a prática analítica e o político? Perguntas de difícil resposta.

Quem sabe possamos achar algumas pistas se pensamos que a psicanálise em alguns momentos concebeu a psique como interioridade, talvez como resquício da ideia de alma em contraposição a uma concepção de psique que habita e é habitada pelo real. Este modelo de interioridade esvaziava o sentido que Freud tinha adjudicado aos processos identificatórios, ao superego como modalidades de interiorização do Outro. Este Outro que inclui o semelhante, mas os valores e representações ideais de uma época veiculados através da linguagem e encarnados nas figuras parentais. Em um caminho possível apresentamos Favilli, Tanis e Anhaia Mello (2008) no trabalho “A infância roubada: uma reflexão sobre a clínica contemporânea”, no qual procuramos, a partir da clínica, elucidar aspectos desse percurso. Algo semelhante realizamos no estudo da solidão moderna e contemporânea.

Outro caminho foi empreendido por Fabio Herrmann e alguns continuadores do seu trabalho. Não cabe aqui me alongar nesse modelo, mas apenas faço referência a uma releitura da noção de inconsciente por ele proposta. A ideia de psique do real como conjunto de pressupostos inconscientes que determinam as formas de ser possíveis para uma época. Para ele, o inconsciente individual seria uma porção sequestrada da psique do real, que nos constrange simultaneamente de dentro e de fora a pensar, agir e sentir de certas formas e não de outras. Este caminho mostra-se fértil na análise do regime de atentado5 que leva à psicose de ação por uma impossibilidade de construir uma identidade que se reconhece como potente em face da realidade. Em uma forma menos dramática, mas inscrita na mesma série estrutural, Minerbo (2000) situa, em um rico e rigoroso exame, a compulsão de consumo desenfreado de grifes.

Os caminhos foram abertos para uma investigação em torno do que assinalei acima como sintoma social e uma ampliação da nossa concepção de inconsciente na direção de uma instância que não se confunda com a pura interioridade, no entanto para nós analistas isto é apenas um começo.

Longe de aderirmos a soluções maniqueístas ou apressadas, a pesquisa clínica aliada aos modelos metapsicológicos far-se-á necessária para avançar no entendimento do sofrimento e do mal-estar nesse cruzamento entre o singular e o coletivo. Estamos atentos a não confundir estruturas com sintomas (atos compulsivos) e não reificar estes últimos como categorias absolutas. Afinal, a complexidade e a diversidade dos atos fazem parte do real humano. Trata-se mais de elucidar as múltiplas formas pelas quais o mal-estar e os sintomas sociais se atualizam na singularidade, mais do que criar categorias gerais para defini-los ou enquadrálos, pois isso pode conduzir à profecia que se autorrealiza como a medicalização da subjetividade humana vem fazendo.

O ato contempla a potência, como assinalava Aristóteles, mas também é expressão-limite; pleno ou esvaziado de sentido, estará aberto à significação; caberá a nós analistas criar as condições para a gestão daquilo que nele insiste.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Bernardo Tanis
Rua Capote Valente, 432/142 &– Jardim América
05409-001 &– São Paulo &– SP
Tel.: 11 3062-1855
E-mail: tanis@uol.com.br

Recebido: 15/10/2009
Aceito: 24/10/2009

 

 

* Psicanalista, membro efetivo da SBPSP, doutor em Psicologia Clínica.
1 Este texto é uma versão revista do apresentado no Painel de Debate“Raízes socioculturais da compulsão”, no XXII Congresso Brasileiro de Psicanálise.
2 Fruto do I Simpósio de Psicanálise Comunidade e Cultura realizado em São Paulo em 2008, uma parceria SBPSP-FEPAL.
3 Reflexão também promovida pela Diretoria de Cultura e comunidade da SBPSP (2008) na jornada “O lugar da cultura na clínica psicanalítica”.
4 Ver a este respeito também o elucidativo texto de Joel Birman, “A psicanálise e a crítica da modernidade”.
5 “No regime do atentado, ocorre uma patologia do real, como vemos que, só então, desemboca na violência. É a impotência individual que protesta... Se a ação é a o selo e a função mesma do psiquismo, sua subversão exprime-se no ato puro, autorrepresentativo, figura emblemática da psicose de ação que acomete nossa sociedade” (Herrmann, 1997, p. 170).

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