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Ide
versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) v.32 n.49 São Paulo dez. 2009
RESENHAS
Desemaranhando fios
Unraveling threads
Eliana Rea Goldschmidt*
Fausto, Boris. O crime do restaurante chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 264 p.
O autor do clássico A Revolução de 1930 apresenta agora um livro surpreendente. O historiador Boris Fausto envereda pelos caminhos da micro-história elegendo a chacina ocorrida no carnaval de 1938, em um restaurante chinês do centro de São Paulo, o episódio principal de sua investigação. A observação parte do crime e das pessoas simples nele implicadas para se ramificar em vários aspectos socioculturais dos paulistanos no período, como crescimento urbano, modernização significativa, afluxo de migrantes e imigrantes, valorização das relações de trabalho, preconceitos raciais, desenvolvimento da opinião pública, atuação da polícia e da justiça. A análise histórica se fundamenta nos volumes do processo e nos jornais da época, com impressionante material ilustrativo. Ao mesmo tempo, Boris Fausto retoma acontecimentos da década de 1930 recorrendo às lembranças pessoais, envolvendo o leitor em uma narrativa fascinante. Sendo assim, é difícil não se emocionar com a leitura de O crime do restaurante chinês.
No centro da cidade de São Paulo, em 1938, circulavam antigos paulistanos, gente vinda do interior e de outros estados, imigrantes da Europa e da Ásia. O carnaval permitia que todos participassem da mesma festividade e as ruas centrais paulistanas eram tomadas por corsos de automóveis levando famílias inteiras, desfiles de carros alegóricos, ranchos e cordões. Os artigos carnavalescos como lança-perfume e confete não podiam faltar. Nos salões, os bailes dos hotéis e do Mappin Stores destacavam- se pelo ambiente sofisticado. Já a multidão se divertia em bandos de mascarados ou dançava, ao som de marchas e sambas, nos tablados erguidos nas praças. Naquele ano, um grupo de chineses e seus descendentes partiu em um carro para passear pela cidade. Ho-Fung e Maria Akiau, ao retornarem, foram brutalmente assassinados.
A terrível morte do casal de proprietários do restaurante chinês da rua Wenceslau Braz, Ho-Fung e Maria Akiau, além de dois funcionários, chocou a população. Foi notícia nas rádios e nos jornais e as investigações da polícia para solucionar os homicídios se concentraram em “um preto suspeito”, o ex-empregado do local Arias de Oliveira. A violência física era evitada em casos de grande repercussão social e na apuração do delito foram utilizadas técnicas da Escola Positiva, o que não era usual. Os peritos encarregados do caso confiavam que iriam descobrir quem era o autor da chacina e qual a sua personalidade, sendo Arias submetido a vários exames e testes (como exame de suspeitos, exame antropopsiquiátrico, teste de Jung-Bleuler, teste de Rorschach, testes de caráter, exame morfológico de Kretschmer, exame tipológico e exame médico geral). De fato, quando surgiu a confissão, o delegado encarregado ressaltou que não haviam sido usados meios violentos, elogiando os métodos científicos, os quais, ao lado de outras provas, levaram à conclusão da culpa de Arias. No entanto, não resultaram na sua condenação.
A defesa de Arias de Oliveira no Tribunal do Júri não poupou ataques ao trabalho da polícia, procurando demonstrar a inconsistência das provas, a imprestabilidade da confissão e a relatividade de testes que tudo queriam explicar. Tratou de contestar com pareceres médicos o resultado apresentado pela perícia e formulou uma questão crucial: era justificável ou não, no estado atual da ciência, a aplicação da psicanálise na prática judiciária? O destaque foi o pronunciamento do dr. Antônio Carlos Pacheco e Silva, professor catedrático de clínica psiquiátrica da Faculdade de Medicina da usp. Ele liderava a resistência dos meios acadêmicos à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, visando especialmente um de seus fundadores, o dr. Durval Marcondes. Crítico dos princípios da Escola Positiva, Pacheco e Silva respondeu negativamente à pergunta.
Controvérsias científicas à parte, Boris Fausto considera fundamental para a absolvição a simpatia generalizada que a figura de Arias foi despertando na opinião pública de São Paulo, culminando com a euforia provocada pela Copa do Mundo disputada na França. A efervescência em torno dos jogos é facilmente percebida nos jornais que noticiaram as comemorações após as vitórias: foguetes, bandeira brasileira hasteada, buzinas, apito das fábricas, passeatas no centro, bondes tomados por torcedores. Para Fausto, no entusiasmo popular pelo campeonato mundial de futebol, a semelhança entre Arias de Oliveira e o ídolo Leônidas da Silva, o Diamante Negro, poderia ter consolidado uma impressão favorável ao primeiro, influindo no desfecho do caso. Logo ao ser preso, o jornal A Gazeta, por exemplo, assim o descreveu em sua edição de 22 de março: “um mulato escuro, que, não obstante, é até simpático; não oferece fisionomicamente a impressão de criminoso ou de tarado. Tem a fala mansa e seus gestos são lentos e untuosos. Não fuma e pelo que se sabe não registra antecedentes criminais”.
Seria um “fio de sensibilidade” a ligar dois personagens dos acontecimentos daquele ano, começando no carnaval e terminando na Copa do Mundo. Entretanto, há outro “fio” ligando o menino Boris Fausto, que no carnaval de 1938 se divertiu com os parentes no corso da avenida São João, a Arias de Oliveira. Após aquela festa, um perdeu a mãe, o outro, a liberdade. Para ambos restou, além do desamparo, a incerteza. Se a causa mortis não ficou clara no primeiro caso, a máxima in dubio pro reo foi a marca do segundo.
Endereço para correspondência
Eliana Rea Goldschmidt
Rua Tabapuã, 1661/82
04533-014 São Paulo - SP
Tel.: 11 3078-6292
E-mail: elianagold@gmail.com
Recebido: 02/10/2009
Aceito: 09/10/2009
* Eliana Rea Goldschmidt é historiadora e autora dos livros Casamentos mistos: liberdade e escravidão em São Paulo colonial e Convivendo com o pecado na sociedade colonial paulista, 1719-1822.