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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.60 São Paulo jul./dez. 2015

 

RESENHAS

 

Freud e a fascinante tragédia da existência humana

 

 

Claudio Rossi

Psicanalista. Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Pastore, Jassanan Amoroso Dias. O trágico: Schopenhauer e Freud. São Paulo: Primavera Editorial, 2015. 370 p.

Freud citou Schopenhauer várias vezes em suas obras (pp. 308-326). Afirmou que tanto a importância da sexualidade na vida humana quanto o próprio conceito de inconsciente foram postulados pelo grande filósofo muito antes do nascimento da psicanálise. Escreveu, ainda, que chegou às descobertas psicanalíticas por meio da clínica e usando o método científico, enquanto que Schopenhauer o havia feito pela intuição. Disse, também, que antes de entrar em contato com os escritos do filósofo, acreditara ter feito, nesses tópicos, descobertas originais, mas que era com satisfação que percebia ter chegado às mesmas conclusões indo por diferentes caminhos.

O livro, que é objeto desta resenha, se dedica a estudar com bastante profundidade as relações entre a obra de Freud e o pensamento de Schopenhauer. Apoiando-se em extensa bibliografia, demonstra que ambos os autores são herdeiros de tradições milenares, que são a tragédia ática e a filosofia trágica.

O percurso da autora, a psicanalista Jassanan Amoroso Dias Pastore, se inicia com a tragédia grega, conceituando-a e contextualizando-a. Ensina que ela tem origem no fenômeno do culto ao deus Dionísio e nos rituais dionisíacos (pp. 55-72). Busca na Poética de Aristóteles as definições e características estruturais dessa manifestação artística, e, baseada em Vernant, mergulha na tragédia grega para expor a estrutura e o sentido do trágico na Grécia Antiga.

Caminha mostrando a diferença entre a tragédia como gênero literário e a filosofia trágica, que tem como primeiro expoente o filósofo Lucrécio, na Roma do século primeiro antes de Cristo (pp. 118-123). A visão trágica do Homem consiste em vê-lo como um ser incapaz de determinar seu destino, sendo tangido por forças sobre as quais pouco sabe e das quais ignora a origem e os fins. Sendo ao mesmo tempo responsável pelas decisões que toma e pelas consequências delas (pp. 333-334). Aponta que já se encontra nesses conceitos o germe das teorias sobre o inconsciente e sobre as pulsões, que só se desenvolverão plenamente mais de dois mil anos depois.

Chegando aos séculos 18 e 19, a autora se concentra em Schopenhauer e descreve como ele se opôs a Kant, Schelling, Fichte e Hegel, os grandes mestres do idealismo alemão, que tinham "uma fé inabalável na razão" (p. 18). Para Schopenhauer, a vida era apenas sofrimento e o Homem apenas uma das manifestações de um princípio universal, a Vontade, que seria perene, constante e insaciável, manifestando-se por infinitas formas contraditórias que competiriam entre si numa interminável e conflituosa luta. No homem, a mais importante manifestação da Vontade seria a sexualidade. O verdadeiro destino do Homem seria a morte, e até ela chegar, ele seria impulsionado, sem descanso e em permanente conflito, por desejos insaciáveis que se alternariam com o tédio. A razão não teria um verdadeiro controle de seu comportamento e quase sempre serviria mais para explicar e justificar o que já teria feito do que para planejar seus atos e decisões. Sua racionalidade, portanto, seria ilusória, e sua liberdade praticamente inexistente (p. 343). A única coisa que os seres humanos poderiam fazer para minorar seu sofrimento seria a desistência de desejar (p. 275). Essa maneira de pensar aproxima o filósofo das filosofias orientais e o distancia das ideias que Freud desenvolveu sobre o assunto.

Pastore, nessa altura, se aprofunda nos conceitos de pessimismo e de trágico, mostrando suas diferenças e citando vários autores que consideram Schopenhauer um filósofo pessimista e não propriamente um pensador trágico. Freud sim poderia ser considerado como pertencente à tradição da filosofia trágica.

Para Freud, a solução de Schopenhauer para o sofrimento não seria viável, pois não seria possível ao homem deixar de desejar e a tentativa de seguir esse caminho o levaria a um empobrecimento da existência, que se tornaria improdutiva e sem valor (p. 345). Jassanan Pastore se aprofunda e mostra as semelhanças e diferenças entre Schopenhauer e Freud. Com leituras críticas da teoria pulsional de Freud e do conceito de trágico, feitas por vários autores, como Garcia-Roza, Barboza, Philomenko, Szondi, Lacan, Mezan, Cacciola e outros, a autora vai se aproximando da teoria da sublimação que leva a uma visão do ser humano que, como foi dito antes, se distancia bastante da de Schopenhauer.

A sublimação e o princípio da realidade, que seria o princípio do mais prazer, permitiriam ao Homem a saída pela arte e pela criatividade para equacionar a violência das pulsões. Continua seu percurso concentrando-se ainda mais em Freud e descreve cada vez com mais detalhes as especificidades da psicanálise em sua maneira de entender o destino trágico do Homem, seus paradoxos, suas soluções, sua grandeza e sua beleza. Sem fazer qualquer concessão, sem criar falsas esperanças ou previsões ingenuamente otimistas, Freud resgata a dimensão heroica do Homem, sem cair na perspectiva da poética homérica que, no começo do livro, a autora diferencia cuidadosamente da tragédia (p. 223).

O livro é constituído de quatro partes. O título da primeira é "A tragédia no contexto religioso-literário da Antiguidade grega e a filosofia greco-romana". "Schopenhauer: entre o trágico e o pessimismo" é a segunda. A terceira e a quarta chamam-se, respectivamente: "O trágico em Freud" e "Considerações finais". A obra conta ainda com um Prefácio escrito por Luiz Felipe Pondé e uma introdução breve.

Nas considerações finais, depois de uma síntese do percurso feito até então, a autora volta a mergulhar em Freud, acentuando conceitos, pormenorizando algumas teorias e mencionando aspectos da personalidade do fundador da psicanálise. Em certos momentos, sem perder o rigor, torna-se sensível e poética. Cita a tocante descrição que Peter Gay faz da morte de Freud, na qual ele é mencionado como "o velho estoico que conservou o controle de sua vida até o fim" (p. 355). Para Freud, segundo a autora, a vida não é apenas sofrimento. Ele, diferentemente de Schopenhauer, não esposa a ideia de que a natureza é essencialmente má. Quando trata da transitoriedade da vida, Freud afirma: "[...] contestei a visão do poeta pessimista, de que a transitoriedade do que é belo implica a perda de seu valor. Pelo contrário, significa maior valorização" (p. 353).

Já no final do livro, Jassanan Pastore faz uma feliz síntese de sua tese a respeito do que seria a visão freudiana da tragédia da existência humana:

No universo trágico, a meta da existência é a morte daquilo que se fez vida, mas, até que o fim se imponha é possível lutar pela nossa existência mesmo com todo o conflito, sofrimento e morte que ela comporta. Ao anunciar o horizonte da travessia psicanalítica vazada pela pulsão de morte, pelo imponderável, pelo irrepresentável, Freud nos deixa como legado uma nau à deriva e o risco de nos aproximarmos dos limites do indeterminado. (p. 357)

Nessa afirmação, a autora elenca os elementos que permitem dizer que Freud pertence a uma tradição trágica, mas considera que a luta pela existência é no mínimo interessante e que vale a pena. Se para Schopenhauer a única saída seria restringir os desejos e se resignar, para Freud a aceitação da morte, sem subterfúgios, sem consolos imaginários, valoriza a vida, que deve ser vivida de forma significativa até o fim.

No parágrafo final do livro está a letra de uma música de Vanzolini, muito conhecida, que salienta exatamente esse aspecto que acabamos de mencionar. Se a morte é inevitável, se as quedas são inexoráveis, o que se deve é ser feliz e cantar entre os desastres e antes que o fim aconteça.

Diz Jassanan: "Já é hora de nos retirarmos na companhia de um adágio trágico de nossos poetas Vinicius de Moraes/ Toquinho (1971): 'A gente mal nasce, começa a morrer'; ao lado de um verso de Paulo Vanzolini (1962): 'Um homem de moral não fica no chão/ Nem quer que mulher/ Venha lhe dar a mão/ Reconhece a queda e não desanima/ Levanta, sacode a poeira/ E dá a volta por cima'" (p. 357).

Esse é um livro que deve ser lido por todos aqueles que se interessam em situar Freud no contexto do conhecimento humano e ao mesmo tempo compreender a originalidade de sua genial contribuição. Se a existência humana é trágica, justamente por isso é fascinante!

 

 

Endereço para correspondência:
CLAUDIO ROSSI
Rua Diogo Moreira, 132/2105
05423-010 - São Paulo - SP
tel.: 11 3095 9120
clrossi@terra.com.br

Recebido 24.05.2015
Aceito 13.06.2015

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