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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.43 no.2 Rio de Janeiro dez. 2011

 

SEÇÃO LIVRE

 

A bibliofilia contra a bibliometria

 

Bibliophily against bibliometry

 

 

Antonio Teixeira

Professor associado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), médico psiquiatra, mestre em filosofia contemporânea (FAFICH-UFMG), Doutor em psicanálise (PARIS VIII), membro da Associação Mundial de Psicanálise, da Escola Brasileira de Psicanálise e da Sociedade Internacional de Psicanálise e Filosofia

 

 


RESUMO

O autor propõe uma abordagem crítica das práticas de avaliação de produtividade na universidade. Para tanto, ele opõe a relação amorosa ao saber avessa aos critérios de mensuração, que a psicanálise evidencia no fenômeno clínico da transferência, ao que seria a transformação do saber em mercadoria padronizável relativa ao discurso do capitalista, estruturado, por sua vez, através da recusa da dimensão amorosa.

Palavras-chave: psicanálise lacaniana; bibliofilia; bibliometria; discurso do capitalista.


ABSTRACT

The author proposes a critical discussion concerning evaluating practices of scholarly productivity. In this way, he shows the opposition between the love relationship with knowledge averse to measurement's criteria, known by psychoanalysis in the clinical phenomenon of transfer, and the transformation of knowledge into a standardized commodity by a capitalist discourse structured by the refusal of a love dimension.

Keywords: Lacanian psychoanalysis; bibliophily; bibliometry; capitalist discourse.


 

 

Ao vir falar, no Rio de Janeiro, sobre o tema da produção mensurável do saber nas instituições universitárias de ensino e pesquisa, ocorreu-me contrapor a prática de sua avaliação quantitativa ao que seria, no meu entender, o valor propriamente incalculável da suposição amorosa de saber sobre a qual se sustenta a experiência da psicanálise. Minha hipótese é que haveria uma divergência entre o próprio uso da noção de medida e a vivência subjetiva do amor, conforme tive ocasião de discutir recentemente em congresso dedicado ao tema no início do ano em Belo Horizonte.

Naquela ocasião, havíamos proposto intitular esse congresso com a expressão "A bibliofilia contra a bibliometria: o incomensurável da pesquisa em psicanálise", mas de saída a escolha do título levantou um problema relativamente imprevisto que nos obrigou a um rearranjo. Vários estudantes nos confessaram certa dificuldade em compreender o que estava sendo divulgado nessa estranha expressão: "a bibliofilia contra a bibliometria", de sorte que a solução foi substituí-lo pelo subtítulo: "o incomensurável na pesquisa em psicanálise".

Por felicidade, entretanto, a parte inicial do título ainda assim foi preservada na forma enigmática, de difícil leitura, de um grafite postado abaixo da fotografia sugerida para o pôster. Se afirmo que, por felicidade, esse enigma foi mantido, é porque interessa-me enfatizar que a transmissão da psicanálise frequentemente se alia ao efeito enigmático que ela traz como elemento desestabilizador dos mecanismos usuais da compreensão. Não devemos, enfim, deplorar que aquilo que a psicanálise enuncia não seja imediatamente compreendido. Na verdade, haveria um efeito de enigma inseparável da intervenção analítica, na medida em que ela procede através da colocação em suspenso dos sentidos previamente codificados que normalmente circulam no discurso usual.

O problema é que dificilmente podemos esperar no ambiente de saber exposto do ensino universitário um interesse por essa suspensão enigmática da compreensão que a psicanálise coloca em valor. Muito pelo contrário, a primeira pergunta que nos é dirigida, quando expomos alguma coisa na universidade, diz quase invariavelmente respeito ao conceito ou ao sentido codificado do que estamos falando. Explique-nos, professor, o que significam os termos de bibliofilia e de bibliometria que dão o título a sua conferência? Qual é o significado contido nessa relação opositiva? São perguntas, como vocês veem, que tratam o significado de um termo, ou de uma relação entre termos, como se fosse um conteúdo dado ou um conjunto de propriedades previamente listadas, mas que deixam de lado a tática subjetiva de quem os profere com vistas a produzir efeitos circunstanciais de significação.

O fato é que se quiséssemos adequar essa exposição às exigências de nosso arguidor universitário, reduzindo-a ao ponto de vista do puro enunciado, não nos restaria senão recorrer ao pai dos burros. Diríamos então, em referência ao velho e bom Houaiss, que a bibliofilia se define como amor ao livro, reservando, por outro lado, o termo de bibliometria à ideia de mensuração da produção bibliográfica. Mas, quando colocamos a bibliofilia contra a bibliometria, nos deparamos como uma oposição ausente dos dicionários, cuja inteligibilidade depende do modo de sua enunciação.

Ao deixar, assim, de lado o recurso ao dicionário, para adotarmos a perspectiva da enunciação, responderíamos com toda honestidade que simplesmente não sabemos o que os termos de bibliofilia e de bibliometria significam, sejam quais forem as definições listadas nos glossários, antes de nos colocarmos a falar deles. É preciso falar deles para saber o que eles significam. Mas como? - replica nosso inquisidor: o mínimo que se supõe de um expositor é que ele saiba de antemão do que está falando. Ao que lhe rogaríamos paciência, lembrando-lhe que tal suposição universitária do saber exposto, referido a um sujeito que sabe do que está falando, encontra-se desmentida pelo próprio princípio da experiência psicanalítica. A psicanálise somente possível pela razão contrária de que o sujeito que se insere, em sua experiência, não sabe do que está falando (Lacan, 1970-1971/2006). A hipótese do inconsciente supõe que o sujeito, por não saber do que está falando antes de dizê-lo, possa ser surpreendido por algo que ele mesmo enuncia.

Diríamos, ademais, que assim como, para Hegel, há um erro em restringir a verdade ao puro resultado de uma investigação, como se o caminho investigativo fosse um elemento acessório a ser depurado daquilo que por seu meio se alcança, para a psicanálise, por sua vez, existe uma necessidade estrutural da colocação em ato do saber para se alcançar o fluxo dinâmico da verdade, cuja essência se perde quando lhe podamos o movimento: o movimento do dizer é uma dimensão inseparável do efeito de verdade do que pode ser dito. É nesse sentido, aliás, que afirmamos a propósito do programa lacaniano de um retorno a Freud que este responde mais à necessidade de um retorno ao dizer de Freud do que a uma simples releitura de seus enunciados. Para não perdermos, portanto, de vista essa dimensão em ato do saber que não se sabe sem o movimento de seu dizer, referido por Lacan ao inconsciente freudiano, responderíamos enfim, ao nosso arguidor universitário, que há coerência em ainda não sabermos o que a expressão de nosso título significa. Somente saberemos dizer o que significa "Bibliofilia contra bibliometria" pela colocação em ato de nosso esforço em pensar o que por meio dela se diz, através da consideração do movimento que habita sua enunciação.

De onde, então, eis a boa pergunta, origina-se esse movimento que habita nossa enunciação? Que condição nos levou ao enunciar a bibliofilia contra a bibliometria? Se quisermos partir, para retomar a célebre orientação de Lênin, da análise da situação concreta que nos mobilizou, vale dizer que, ao proclamar a bibliofilia contra a bibliometria, tínhamos em mente dar ensejo a uma resistência política nas instituições universitárias a que pertencemos contra uma determinada condição. Bibliofilia contra bibliometria, longe de ser a mera correlação opositiva de dois verbetes do dicionário, era o nome de batismo de nossa resistência contra o triunfo, a olhos vistos, da avaliação bibliométrica enquanto critério de qualificação dos docentes nas universidades e nas agências de pesquisa, assim como dos demais índices hoje em voga de produtividade.

Mas o que nos leva, então, a sustentar a filia contra a metria, em meio a esse contexto crítico das avaliações quantitativas? Por que motivo a proclamação do amor pela leitura e pela pesquisa desinteressada poderia nos servir de arma contra a prática arbitrária e obscurantista das medidas avaliativas? Pelo fato concreto, que a psicanálise evidencia, no nível de sua prática clínica, de que amor e medida - ou filia e metria - são dimensões que se opõem por razões de estrutura.

Eu poderia, decerto, ilustrar esse argumento a partir do caso de uma jovem que recebo em análise, que se viu inteiramente tomada de desencanto pelo casamento simplesmente porque seu esposo lhe propôs uma divisão das despesas conjugais em termos percentuais de 30 e 70%. O que estava em questão para ela não era a justeza ou não da divisão proposta, aliás bem razoável, mas o simples fato de uma colocação de medida na realidade conjugal, quando seu amor era por ela proclamado como algo incomensurável.

Mas é preciso reconhecer, a bem da verdade, que a descoberta de tal oposição entre medida e amor não é um fato específico da pesquisa psicanalítica; a filosofia, de certa forma, já há muito se dera conta disso. Há interesse em se retomar, a esse propósito, a leitura dedicada por Lacan (1960-1961/1992), no Seminário 8, ao Banquete de Platão, que pode ser considerado como o primeiro grande texto filosófico construído em torno do tratamento temático da questão do amor. Vocês ali encontram, no capítulo intitulado "A psicologia do rico", um instigante comentário do discurso produzido pelo personagem de Pausânias, que é quem se coloca o problema relativo à instauração de um padrão de medida referido à experiência da escolha amorosa.

Todo o esforço de Pausânias ali converge, observa Lacan, para uma tentativa de definir essa escala de valor conforme a distinção entre o amor representado pela Afrodite uraniana, engendrada pela castração de Urano por Zeus e sem relação, portanto, com a diferença dos sexos, por oposição à Afrodite Pandêmia, oriunda da união sexual de Zeus com Dione. À primeira Afrodite, uraniana, corresponderia o amor próprio aos filósofos ao qual se impõem regras que justifiquem o investimento amoroso do amante (érastes) sobre o seu objeto (éromenos). Já a segunda Afrodite, a Pandêmia, seria a deusa do amor suscitado pela contingência do encontro sexual, alheio às considerações sobre o mérito do objeto amado.

No dizer de Lacan, se a chave dessa passagem do Banquete se encontra na crise de soluços que teve Aristófanes logo após a fala de Pausânias, conforme lhe sugeriu Alexandre Koyré em conversa privada, é porque Aristófanes teria sofrido uma crise de riso ao ouvir o discurso de seu antecessor. O risível, aqui, diz justamente respeito ao esforço de Pausânias em estabelecer uma escala métrica do investimento amoroso, em função de uma cotação de valores relativa a uma aplicação dos fundos de investimento libidinal. O que se desmente, portanto, no impasse dessa avaliação do investimento erótico, comicamente celebrado pelo riso de Aristófanes, é a miragem de toda medida relativa ao amor. Pois a filia, distintamente da admiração, não se deixa determinar pelos predicados variavelmente mensuráveis da beleza, do desempenho, da riqueza; é antes o próprio amor que se coloca como causa das qualidades e autoriza que elas operem algum efeito.

Por isso dizemos, a propósito do furor contemporâneo das escalas avaliativas, que sua expansão requer a extinção do amor: a metria germina no deserto da filia. Nossa hipótese é que sua emergência em contexto historicamente datado, distante do diálogo platônico, deve-se à ascensão propriamente moderna do capitalismo enquanto modo de organização política estruturalmente avessa à dimensão amorosa. Pois é fato que se a burguesia, como desde cedo viram Marx e Engels, rasgou o véu do sentimentalismo feudal ao reduzir os vínculos humanos às simples relações monetárias, fazendo da dignidade humana um simples valor de troca, foi porque o discurso do capitalista que a suporta se define como recusa do amor através da foraclusão da castração. É o que se lê no diagnóstico de Lacan, em seminário inédito sobre o saber do psicanalista: "O que distingue o discurso do capitalista é isso: a Verwerfung, a rejeição, para fora de todo campo simbólico, de quê? Da castração. Toda ordem, todo discurso que derivado do capitalismo deixa de lado o que chamamos simplesmente de coisas do amor, meus bons amigos" (Lacan, 19711972; aula de 06/01/1972).

Dali se explica, nas palavras ainda de Marx e Engels, que a burguesia tenha despedaçado impiedosamente todos os antigos vínculos humanos, para deixar subsistir somente o frio laço do interesse contábil. Amor e negócio não se misturam, atesta o velho adágio mercantil. Distintamente do sujeito produzido pelo discurso do mestre, que ali se encontra subtraído do objeto de gozo ao ser representado na cadeia significante, é próprio ao sujeito determinado pelo discurso capitalista não se deixar tocar pela questão do amor, uma vez que sua falta se encontra constantemente suprida pela relação ao mais-gozar, na forma do objeto mercadoria:

 

 

Dessa lógica resulta que ao capitalista interessa menos a natureza do objeto de sua transação do que a medida da quantidade, custo e margem de lucro da mercadoria lançada no lugar do mais-gozar. Para que ele possa ter a medida do excedente que lhe retorna na forma da mais-valia, é necessário impor ao produto assim constituído os padrões de equivalência relativos ao valor de sua demanda no mercado. É fato, em contrapartida, que não se encontra nenhum exemplo de cálculo energético da parte do mestre antigo no uso dos escravos. Diríamos, então, que no caso da produção acadêmica atual submetida ao modo de funcionamento desse discurso, a pergunta pela razão de ser ou pela natureza do saber produzido cede igualmente lugar à medida de equivalência que permite tratar o saber como mercadoria. O que explica, portanto, o triunfo da avaliação, na atual mercantilização do ensino universitário, é a exigência de se criar sistemas de equivalência para a padronização e quantificação de um produto de saber comercializável.

Padrões de medida, aliás, já há muito tempo não faltam, como se atesta no caso dos trabalhos destinados à apresentação em nossos encontros científicos, aos quais sempre se impõe o limite ultrajante dos infames "seis mil caracteres, corpo 12, espaço incluído"1. Mas, sejam esses limites quais forem, por mais arbitrários que possam ser, o que está efetivamente em questão, nessa transformação do saber em mercadoria mensurável, diz invariavelmente respeito à exigência de um padrão de equivalência. Pois da existência desse padrão depende o exercício de avaliação próprio ao regime contratual que ganha força com o capitalismo, o qual permite ao adquirente de um produto verificar se aquilo que ele obteve corresponde ou não ao que ele de fato queria ter obtido na formulação de sua demanda (Miller & Milner, 2004).

Satisfação garantida, ou seu dinheiro de volta. Fica evidente que a relação contratual supõe, no sentido contrário à condição que sustenta a experiência psicanalítica, que o sujeito desde sempre saiba do que está falando. É a esse fim, aliás, que se destinam as inumeráveis cláusulas das relações contratuais: para que o sujeito saiba do que está falando, é preciso suturá-lo no nível de uma demanda codificada em que tudo fique bem escrito numa linguagem isenta de equívocos. Senão, não haveria controle. Não haveria como verificar o grau de satisfação, nem tampouco saber o que fazer para fazer corresponder sua demanda ao produto fornecido.

Por esse mesmo motivo, J.-C. Milner (2005) está coberto de razão ao dizer que a avaliação somente funciona em relação ao antes de ontem. Ao passo que a verdadeira atividade de pesquisa se encontra estruturada ao modo do depois de amanhã - no sentido em que a investigação somente vale pela proposição, ainda desconhecida, a ser formulada não amanhã, como consequência, mas no depois de amanhã, como o que abala as consequências -, a avaliação necessita funcionar ao modo do antes de ontem. Somente se pode controlar o grau de satisfação dos adquirentes do saber mercadoria, que supostamente sabem do que falam, se ela trouxer o que inequivocamente dela se espera. Uma vez que apenas o passado é certo, a avaliação deve se limitar a chancelar aquilo do qual já se sabe.

É, aliás, por estar a serviço do controle que a avaliação se embaraça diante da questão do padecimento mental. Não há expertise possível do sofrimento psíquico, porque não existem meios de se exigir do sujeito que sofre de seus pensamentos que ele saiba do que está falando, a fim de lhe ofertar o produto demandado na forma padronizável da mercadoria. Tem seu interesse constatar, a esse respeito, que se a aliança da ciência com a tecnologia, a serviço do modo de produção capitalista, frequentemente resulta do esforço em estabelecer medidas de padrão codificáveis na execução controlada de seu produto, tais inovações tecnológicas importam pouco ou quase nada à clínica psicanalítica. Pois é fato que, a despeito de toda a pressão mercadológica de produzir novidades, a indústria ainda não ousou lançar o divã high-tech. Não existe divã high-tech porque não é possível codificar, partindo do parâmetro científico-tecnológico, o que seja, empiricamente falando, um tipo clínico para a psicanálise. Nenhuma tecnologia nos permite distinguir o que vem a ser para nós o caso típico, no sentido em que o típico se define como elemento incluído numa coleção de casos que exibem um comportamento previsível e controlável.

Muito pelo contrário, nada há mais distante disso do que aquilo que se apresenta na clínica do sofrimento mental, mesmo em situações abordadas com medidas padronizáveis, como no caso do uso de psicofármacos. Todos sabem que os efeitos de um tratamento dependem de uma conjunção complexa de fatores que de longe ultrapassam as transformações físico-químicas que um medicamento produz no corpo do paciente, num leque que se estende desde o sentido que tem, para determinado sujeito, estar fazendo uso de uma substância até o modo de relação transferencial que ele mantém com quem o prescreve.

Diante da impossibilidade de se definir, mediante uma doutrina de saber consistente, o que seria o tratamento do caso tipificável para fins de avaliação padronizável no mercado da saúde mental, a solução proposta, que todos vocês conhecem, foi a de criar uma codificação arbitrária. A nosologia hoje prevalecente, iniciada pelo DSM e finalmente adotada pelo CID, apoia-se numa tipologia de convenções pautadas por uma abordagem pretensamente descritivista, que termina por dissociar a classificação de todo esforço de teorização. E do momento em que está em questão ofertar um produto tipificável a uma queixa típica, a atual nosologia se permite, entre outras coisas, ampliar a significação psicopatológica dos fenômenos subjetivos da angústia e da tristeza, por serem dados universais, relativos ao desamparo inerente à condição humana. Disso se explica a transformação desses sintomas em doença, ao se constituir as amplas categorias clínicas dos transtornos de ansiedade e da depressão.

Não é, decerto, meu propósito criticar o uso aberrante que esses manuais fazem das categorias clínicas. Mas do momento em que seus autores se permitem tratar o sintoma da tristeza como uma doença, na forma do assim chamado transtorno depressivo, eu vou revidar observando que tais classificações são, por sua vez, estruturalmente tristes ou depressivas. Para tanto, devemos ter em mente que a tristeza, do ponto de vista da psicanálise, encontra-se concebida não como um estado de alma ou de tensão psicológica, mas enquanto efeito de uma recusa da tensão lógica do pensamento que se manifesta na forma de uma incúria, de uma apatia subjetiva decorrente da atitude de não querer saber.

Se concebermos, então, a lassidão mental da tristeza como resultante dessa demissão da tensão lógica2, temos motivos para considerar o que hoje se transmite nos manuais classificatórios de psiquiatria como uma doutrinação essencialmente triste. O que subjaz à passividade bocejante com a qual os estudantes abordam as divisões classificatórias dos atuais compêndios de psiquiatria, cujas listagens agrupam fenômenos sem conexão entre si, resulta do abandono deliberado de todo esforço de se situar, logicamente, o sintoma como resposta singular do ser falante ao mal-estar que o aflige. Interessa somente reter o que se deixa codificar, segundo os parâmetros de uma prática que cada vez mais deve se submeter a avaliações de produtividade, para prestar contas aos poderes que a subvencionam.

Como vocês percebem, no lugar que deveria pertencer por direito à bibliofilia, nas práticas de pesquisa, a bibliometria termina por instalar a bibliofobia. Essa bibliofobia se manifesta nas formas atuais de tédio e desinteresse teórico que hoje afetam estudantes e profissionais de saúde mental obrigados a se submeter a essas condições. Mas, embora não caiba ficar indefinidamente dissertando sobre a influência, decerto preocupante, dessa crescente submissão do ensino universitário aos parâmetros de avaliação e produtividade, tem seu interesse averiguar que a psicanálise, tão avessa, por sua própria natureza, aos atuais critérios obscurantistas de avaliação, continue a suscitar uma adesão entusiástica de boa parte dos estudantes e pesquisadores. Vale, enfim, meditar sobre como a transmissão da psicanálise consegue se opor, na forma de um gaio ensinamento, às doutrinações essencialmente tristes do DSM e das TCC, verificável no fato de que os alunos, que a ela se dirigem, o façam movidos por um entusiasmo que parece dispensá-los do reconhecimento pelos poderes avaliadores.

Pois é nesse ponto que se coloca a importância de se sustentar, contra as doutrinações tristes das práticas codificadas que hoje ganham espaço nas universidades, a possibilidade de engendrar o amor transferencial pela psicanálise, através de um gaio ensinamento que restaure a bibliofilia no lugar da bibliometria. Não nos parece casual, a esse respeito, que a Freud tenha sido atribuído o prêmio Goethe de literatura, ainda que muitos possam considerar a dimensão estética de sua obra como um suplemento retórico acessório. Em realidade a psicanálise, por mais que ela se apoie no discurso da ciência, jamais deixou de manter com a literatura uma relação que, longe de ser contingente, em vários aspectos revela-se determinante para a transmissão de sua experiência. A psicanálise necessita se valer dessa provocação estética para suscitar o amor como disposição afetiva favorável à constituição de um desejo transferencial de saber.

Situada entre o matema e o poema, a psicanálise habita uma zona de convergência entre a invenção literária e a exposição cientifica que nos leva a perceber a criação no seio da própria exposição. O que faz de sua transmissão um gaio ensinamento é justamente a necessidade de se situar no ponto de convergência entre o modo da criação literária, orientada pelo cuidado estético da forma, e o modo da exposição científica, guiada pela demonstração lógica.

Distintamente do que se espera da transmissão universitária, na qual o expositor deve saber a priori o que diz, o ensinamento da psicanálise explicita que o sujeito que fala, a um suposto saber, por não saber o que na verdade expõe, termina por se perceber como criador ficcional de uma verdade distinta daquela que acreditava em princípio estar expondo objetivamente. Mas isso ele somente alcança ao fazer a experiência de sua enunciação. Podemos inclusive dizer que o ensinamento da psicanálise se aproxima da forma de argumentação ensaística, em razão justamente dessa primazia dada ao campo da experiência (Bense, 1991). Pois se o ensaio, como experimentação, é uma tentativa de operar transformações sobre um domínio de conceitos para pôr em evidência, a partir de um novo ângulo perceptivo, algo que até então não tinha visibilidade, a experiência psicanalítica, por sua vez, é uma tentativa de fazer emergir, na fala do sujeito, um efeito significante distinto do sentido codificado pelo discurso. Tanto ao ensaísta, como ao psicanalista, interessa menos conhecer o objeto, tal como ele se encontra determinado em seu campo conceitual, do que encontrar uma nova maneira de exibi-lo através de uma infração significante dos códigos de significação.

Daí se infere que tanto o ensaio quanto o ensino da psicanálise reivindiquem, em sua dimensão experimental, uma singularidade própria, por meio da qual se traduz a fidelidade do pensamento ao ponto de vista onde ele se ancora. Ambos se colocam em posição inegociavelmente contrária à metalinguagem, ao modo de uma recusa veemente de tudo que se pretenda como verdade última, assim como de qualquer tentativa de codificação a priori do sentido. Seu intuito é criar, mediante uma arte combinatória, condições nas quais o objeto, surgido sob uma nova luz, desperte no leitor bibliófilo uma transferência positiva, uma tendência que o torne sensível a sua configuração. Tal é, aliás, o sentido da forma de apreensão que Pascal nomeia, em seu escrito sobre a Arte de persuadir, de conhecimento pelo coração: é preciso seduzir o desejo para produzir a adesão da crença aos princípios propostos por um saber inovador. Os princípios, por serem justamente principiais, não podem ser objeto de uma dedução. Por isso, o autêntico ensaísta sempre faz uso de frases elementares de enlevo poético, que ali funcionam como "fragmentos de um discurso sensível elevado à perfeição" (Bense, 1991: 24).

Mas seria, contudo, um erro confundir o ensaio com o escrito poético, o qual almeja na forma estética o destino de sua narrativa. A forma estética no ensaio se coloca enquanto princípio, mas jamais como fim de sua destinação. É preciso que, no fim, o ensaio rompa o seu envelope estético, para fazer finalmente surgir o engajamento ético sobre o qual ele se constitui como proposta de transformação. Do mesmo modo, diríamos, então, para finalizar, seria também um grave erro sustentar que a suposição transferencial de saber constitui a finalidade da análise, sua consequência última. Se, de fato, o mínimo que se pode esperar de uma análise é que ela promova, pela via do amor transferencial, a verdade do inconsciente como falta a ser, ali ficar é permanecer, como diz Lacan, no mero "deixar rolar" da experiência. A indeterminação do sujeito como falta a ser não pode ser o saldo da análise; ela é algo a ser perdido no seu fim. Embora não forneça diplomas, como na universidade, a psicanálise nem por isso deixa de atribuir um título a quem é capaz de testemunhar de seus problemas cruciais, mediante a aquisição de um saber não suposto ao Outro que encontramos nos testemunhos do passe.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bense, M. (1991). L'Essai et sa prose. Trafic, 20, 134-142.         [ Links ]

Lacan, J. (1960-1961/1992). Le Séminaire, livre 8: le transfert. Paris: Seuil.         [ Links ]

Lacan, J. (1970-1971/2006). Le Séminaire, livre 18: d'un discours qui ne serait pas du semblant. Paris: Seuil.         [ Links ]

Lacan, J. (1971-1972). Le savoir du psychanalyste. Inédito.         [ Links ]

Milner, J.-C. (2005). Politique des choses. Paris: Navarin.         [ Links ]

Miller, J.-A. & Milner, J.-C. (2004). Évaluation: entretiens sur une machine d'imposture. Paris: Agalma.         [ Links ]

 

NOTAS

1 A razão é de ordem prática, dir-nos-ão os organizadores de encontros: é preciso ter uma medida de duração das intervenções para a organização das mesas, dos horários, etc. Mas, a despeito da validade desse argumento, a primazia da gestão se dá em detrimento da dimensão epistêmica, à qual os encontros científicos estariam, pelo menos em princípio, destinados...

2 Eu me permito remeter o leitor a meu artigo "Depressão ou lassidão do pensamento? Reflexões sobre o Espinosa de Lacan", disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pc/v20n1/02.pdf>. Acesso em: 12/12/2011.

 

 

Recebido em 23 de março de 2011
Aceito para publicação em 20 de outubro de 2011

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