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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.52 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2020

 

ARTIGOS

 

Patologias sociais e a gestão ideológica do mal-estar

 

Social pathologies and the ideological management of malaise

 

Patologías sociales y manejo ideológico del malestar

 

 

Vinicius José de Lima SouzaI*; Pedro Sobrino LaureanoI**

IUniversidade Federal de São João del-Rei - UFSJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Na atualidade, uma questão nos parece fundamental para a psicanálise: como nossa época responde ao mal-estar? A tese freudiana da irredutibilidade do mal-estar afastou a psicanálise da ilusão progressista de que os avanços do conhecimento científico ou as novas modalidades de laço social nos garantiriam a ausência de sofrimento. Mas o mesmo não podemos afirmar em relação a outros discursos que circulam no seio da sociedade capitalista contemporânea. Acreditamos que um caminho interessante para apontar uma das principais modalidades de resposta ao mal-estar em nossa época é demonstrar como os diagnósticos psiquiátricos produzem subjetividades alinhadas com os discursos sociais. Para tanto, o objetivo do presente ensaio teórico foi apontar como o estabelecimento de patologias sociais é sustentado por uma fantasia ideológica que busca recobrir a irredutibilidade do mal-estar. Dessa forma, acreditamos ter demonstrado como a produção de patologias sociais através de diagnósticos psicopatológicos é uma gestão ideológica que tenta neutralizar as possibilidades de se posicionar criticamente em relação à racionalidade dominante em um determinado contexto, e acima de tudo, um processo de naturalização de discursos que tenta anular o potencial transformativo presente no mal-estar.

Palavras-chave: mal-estar, patologias sociais, categorias diagnósticas, gestão ideológica.


ABSTRACT

Nowadays, a question seems to be fundamental for psychoanalysis: how does our time respond to malaise? The Freudian thesis of the irreducibility of malaise removed psychoanalysis from the progressive illusion that advances in scientific knowledge or new forms of social bond would guarantee us the absence of suffering. But the same cannot be said for other discourses that circulate within contemporary capitalist society. We believe that an interesting way to point out one of the main ways of responding to malaise in our time is to demonstrate how psychiatric diagnoses produce subjectivities aligned with social discourses. To this end, the objective of this theoretical essay was to point out how the establishment of social pathologies is supported by an ideological fantasy that seeks to cover the irreducibility of malaise. Thus, we believe we have demonstrated how the production of social pathology through psychopathological diagnoses is an ideological management that tries to neutralize the possibilities of critically positioning itself in relation to the dominant rationality in a given context, and above all, a process of naturalizing discourses. that tries to nullify the transformative potential present in the malaise.

Keywords: malaise, social pathologies, diagnostic categories, management ideological.


RESUMEN

Hoy en día, una pregunta parece fundamental para el psicoanálisis: ¿cómo responde nuestro tiempo al malestar? La tesis freudiana de la irreductibilidad del malestar sacó al psicoanálisis de la ilusión progresiva de que los avances en el conocimiento científico o las nuevas formas de vínculo social nos garantizarían la ausencia del sufrimiento. Pero no se puede decir lo mismo de otros discursos que circulan dentro de la sociedad capitalista contemporánea. Creemos que una forma interesante de señalar una de las principales formas de responder al malestar en nuestro tiempo es demostrar cómo los diagnósticos psiquiátricos producen subjetividades alineadas con los discursos sociales. Para ello, el objetivo de este ensayo teórico fue señalar cómo el establecimiento de patologías sociales se sustenta en una fantasía ideológica que busca cubrir la irreductibilidad del malestar. Así, creemos haber demostrado cómo la producción de patología social a través de diagnósticos psicopatológicos es una gestión ideológica que intenta neutralizar las posibilidades de posicionarse críticamente en relación a la racionalidad dominante en un contexto dado, y sobre todo, un proceso de naturalización de los discursos. que intenta anular el potencial transformador presente en el malestar.

Palabras clave: malestar, patologías sociales, categorías de diagnóstico, gestión ideológica.


 

 

Introdução

Frente ao contexto social e político da atualidade, uma questão nos parece fundamental para a psicanálise: como nossa época responde ao mal-estar? Ou quais seriam os tratamentos dispensados ao mal-estar pelos discursos sociais dominantes? A tese da irredutibilidade do mal-estar, presente em O mal-estar na civilização (1930/2011), afastou, de uma vez por todas, a psicanálise da ilusão progressista de que os avanços do conhecimento científico ou as novas modalidades de laço social nos garantiriam a ausência de sofrimento. Mas o mesmo não podemos afirmar em relação a outros discursos que circulam no seio da sociedade capitalista contemporânea. Embora os processos de socialização atuais sejam diferentes daqueles da época de Sigmund Freud, a tentativa de eliminar o mal-estar ainda se faz presente.

Acreditamos que um caminho interessante para apontar uma das principais modalidades de resposta ao mal-estar em nossa época é demonstrar como os diagnósticos psiquiátricos produzem subjetividades. Se o diagnóstico psicopatológico já foi bastante temido em função dos processos de exclusão que produzia, "agora ele parece ter se tornado um poderoso e disseminado meio de determinação e reconhecimento, quando não de destituição da responsabilidade de um sujeito" (Dunker, 2015, p. 33). É inegável que as categorias diagnósticas da psiquiatria desempenham uma função determinante na socialização de sujeitos na atualidade, pois elas estabelecem, entre outras coisas, modalidades de participação social. Para muitos sujeitos, a "etiqueta" do diagnóstico psiquiátrico é a única forma de ter o sofrimento reconhecido e tratado em instituições sociais. Mas não só isso. É também uma identificação central a partir da qual muitos estabelecem vínculos sociais.

Pensando nisso, Vladimir Safatle (2018, p. 09) vai defender que as sociedades são produtoras e gestoras de patologias sociais, pois "não se socializa apenas levando sujeitos a internalizarem disposições normativas positivas, mas principalmente ao lhes oferecer uma gramática social do sofrimento, ou seja, quadros patológicos oferecidos pelo saber médico de uma época". Ao estabelecerem os termos para o reconhecimento de narrativas de sofrimento, as categorias diagnósticas produzem subjetividades, modos de laço social.

O que nos interessa destacar é como a tradução do sofrimento em patologias, através do discurso psiquiátrico, produz subjetividades em conformidade com os ideais culturais da atualidade. O estabelecimento de patologias sociais por meio de categorias diagnósticas, como aquelas apresentadas no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), é sustentado por uma fantasia ideológica que busca recobrir a irredutibilidade do mal-estar. É o que buscaremos demonstrar no presente ensaio teórico.

 

Desenvolvimento

O mal-estar na cultura

A suspeita de Freud quanto ao desacordo entre o sujeito e as exigências de conformação da civilização aparece em muitos momentos de sua obra por ocasião de suas pesquisas clínicas e do exame da cultura de sua época realizado por ele. Mas há um momento em que essa suspeita se coloca mais evidente e começa a ganhar contornos de uma constatação. É a partir da primeira década do século XX, no período que compreende a Primeira Guerra Mundial, que Freud começa a elaborar em suas produções a ideia de que o progresso da civilização não implica necessariamente na produção de um bem-estar ou de uma solução harmoniosa entre o sujeito e a organização social. Em "Considerações atuais sobre a guerra e a morte" (1915/2010, p. 215), Freud mostra-se dividido entre sua esperança no progresso da civilização e a desilusão causada pela guerra ao afirmar que:

A guerra na qual não queríamos acreditar irrompeu, e trouxe a... desilusão. Não é apenas mais sangrenta e devastadora do que guerras anteriores, devido ao poderoso aperfeiçoamento das armas de ataque e de defesa, mas pelo menos tão cruel, amargurada e impiedosa quanto qualquer uma que a precedeu.

A desilusão anunciada por Freud é quanto ao insucesso das instituições sociais, e principalmente dos Estados, em evitar um confronto armado de tamanhas proporções. A guerra feria violentamente as normas morais que fundamentavam as próprias nações civilizadas e frustrava a expectativa de Freud e seus contemporâneos, que acreditavam que, embora uma guerra pudesse ocorrer, esta não perturbaria as relações éticas entre os povos e não destruiria as instituições sociais erguidas em tempos de paz nas nações civilizadas: "esperávamos que soubessem resolver por outras vias as desinteligências e os conflitos de interesses" (Freud, 1915/2010, p. 212).

Para Herzog e Farah (2005, p. 54), "frente ao impacto da guerra, nasce a dúvida se o aperfeiçoamento poderia garantir o desenvolvimento civilizatório". Que a violência do conflito armado irrompesse justamente de instituições que representavam o projeto civilizatório e suas exigências de renúncia pulsional parecia, no mínimo, contraditório para Freud. Mas, embora a guerra tenha levantado nele uma suspeita quanto ao desenvolvimento civilizatório, a expectativa no aperfeiçoamento da civilização ainda aparece em seu texto quando menciona a possibilidade de transformação dos "maus instintos" através da educação (Freud, 1915/2010). Nessa altura, Freud parece, mais do que nunca, dividido entre as promessas de harmonia do projeto civilizatório e a irredutibilidade do registro das pulsões.

Ainda em 1915, uma ruptura com o tom progressista que ainda resistia nos textos freudianos começa a se operar. Se em "A desilusão causada pela guerra" (1915a/2010), Freud se mostra dividido entre a desilusão provocada pela guerra e a esperança de que através da educação ou das exigências culturais o progresso civilizatório possa ainda ocorrer, em "Nossa atitude perante a morte" (1915b/2010) ele questiona se não deveríamos aceitar a inevitabilidade da guerra e nos adaptar a ela. Mas não só isso. Freud (1915/2010, p. 246) também questiona se "não seria melhor dar à morte o lugar que lhe cabe, na realidade e em nossos pensamentos, e pôr um pouco mais à mostra nossa atitude inconsciente ante a morte, que até agora reprimimos cuidadosamente?". São questões que apontam para o abandono de uma expectativa progressista e a assunção de uma perspectiva trágica nos escritos freudianos (Birman, 2001).

Será em O mal-estar na civilização (1930/2011) que Freud defenderá a tese de que o conflito entre o registro da pulsão e o registro da cultura é insolúvel. O texto gira em torno da impossibilidade de a civilização produzir formas de vida que garantam a felicidade ou a ausência de sofrimento entre os sujeitos. De forma clara, Freud enfatiza que os avanços e as transformações sucedidas na civilização não implicaram no fim do sofrimento para os sujeitos, mas sim na produção de novos impasses. "Parece fora de dúvida que não nos sentimos bem em nossa atual civilização, mas é difícil julgar se, e em que medida, os homens de épocas anteriores sentiram-se mais felizes, e que papel desempenharam nisto suas condições culturais (Freud, 1930/2011, p. 33).

Freud parece constatar que os avanços em vários seguimentos da civilização não livraram os sujeitos do sofrimento - o adoecimento neurótico é uma das provas disso. Mas sua constatação é também ilustrada de maneira simples em exemplos que o mesmo fornece em seu texto e que tratam de progressos em várias áreas da organização social, em seu tempo, como a construção de ferrovias que possibilitam a realização de viagens mais longas, mas que, ao mesmo tempo, permite o afastamento do filho da cidade natal (Freud, 1930/2011).

O que as reflexões freudianas vão delineando é que, se a civilização repousa sobre as finalidades cruciais de proteger o homem contra a natureza e regulamentar os vínculos entre os homens, o alcance desses fins não se faz sem um preço a pagar. E esse preço é a parcela de felicidade de que o sujeito precisa abrir mão nos processos de socialização, pois é fundamentalmente sobre a renúncia pulsional que o projeto civilizatório é erigido. Temos, então, que, ainda que mudem as condições sociais, políticas e econômicas, o mal-estar persiste.

É interessante também observar como a tese da irredutibilidade do mal-estar, ou da permanente condição de desamparo do sujeito, aponta para a importância de pensar as formas de socialização dominantes em cada contexto social e político em função do mal-estar. Como cada época busca responder ao mal-estar através dos processos de subjetivação? Quais tratamentos os discursos sociais buscam oferecer ao mal-estar?

Se há algo que o percurso de Freud na clínica das neuroses nos mostra é que não há clínica da cultura sem clínica do sujeito. Já no início de seus estudos, quando os sintomas histéricos o inquietavam, Freud vai recorrer a um exame da cultura a partir do conflito pulsional que marcava a histeria. "Moral sexual 'cultural' e o nervosismo moderno" (1908/2015) é inegavelmente um trabalho, já nos primeiros anos do século XX, que expõe nitidamente uma articulação entre o sofrimento neurótico e o exame da cultura. Nos casos de histeria, Freud identifica a presença de um conflito pulsional, que se exprime na repulsa das pacientes às representações sexuais reprimidas, e que será conceitualizado por ele através da oposição entre pulsões sexuais e pulsões de autoconservação (Freud, 1910/1996).

O mesmo esforço de pensar a cultura a partir dos impasses ou respostas dos sujeitos aos processos de socialização pode ser visto em textos como "Psicologia de grupo e análise do ego" (1921/1996) e "Totem e tabu" (1913/1996), quando Freud trata de problemáticas muito presentes em casos de neurose obsessiva, principalmente a ambivalência afetiva vivenciada pelo obsessivo na relação com o pai ou aquele que sustenta a lei. Ao situar os investimentos libidinais no centro de sua análise, Freud mostra como a clínica é indissociável de uma crítica do social.

A tese do mal-estar enquanto inadequação radical do sujeito ao processo civilizatório nos leva a defender que uma crítica dos processos de subjetivação a partir da psicanálise não passa pela expectativa de que uma mudança na configuração do laço social elimine o mal-estar. Ou seja, não se trata, como pretendia Durkheim (2007) com sua noção de patologia social, de localizar os males que colocam em risco o organismo social para poder combatê-los. O mesmo pretendemos apontar nas categorias diagnósticas do discurso médico-científico que produzem subjetividades na atualidade. Realizar uma crítica do social a partir da tese do mal-estar é não ter garantias de que as mudanças na configuração social irão pôr fim ao mal-estar. Muito pelo contrário, trata-se de apostar no próprio mal-estar para que transformações se realizem.

O que pretendemos demonstrar é que toda tentativa de determinar os desvios da normalidade social como resposta ao mal-estar partilha de uma fantasia ideológica fundamental: a fantasia de um corpo originalmente homeostático. O que isso implica em termos de consequências éticas e políticas para a clínica psicanalítica é que o mal-estar deve ser pensado a partir das formas de subjetivação produzidas na cultura, em cada contexto histórico, nos cabendo considerar como as respostas sintomáticas dos sujeitos apontam para impasses produzidos a partir dos discursos dominantes em nosso tempo. Pois, como bem salientou Lacan (1953/1998, p. 322): "Que antes renuncie a isso [à prática psicanalítica] quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época".

Patologias sociais e a gestão ideológica do mal-estar

Pretendemos agora demonstrar como o mal-estar pode aparecer de forma excessivamente determinada através de categorias diagnósticas, produzidas pelo saber médico, que estabelecem quais narrativas de sofrimento serão consideradas legítimas e receberão um tratamento específico. Chamaremos a essa determinação excessiva de gestão ideológica do mal-estar nos valendo da noção de ideologia enquanto "uma 'ilusão' que estrutura nossas relações sociais reais e efetivas e que, com isso, mascara um insuportável núcleo real impossível" (Zizek, 1996, p. 323), ou seja, uma ilusão que mascara o mal-estar insolúvel no sujeito entre o registro pulsional e o projeto civilizatório.

É interessante pensarmos como ocorre esse deslocamento da noção de ideologia, se buscamos pensá-la dentro da perspectiva psicanalítica. De fato, Zizek é um dos autores, na contemporaneidade, que tem realizado uma leitura do social através do conceito de "fantasia ideológica", buscando expressar a junção entre certas categorias do marxismo e da psicanálise. Da psicanálise Zizek retira a ideia da fantasia fundamental do sujeito como elemento estruturador de suas relações primordiais com a realidade. A fantasia, para a psicanálise, não mascara, portanto, a realidade positiva, não se trata de um véu que nos cega para o real, mas sim de uma tela apta a ocultar justamente as fissuras da realidade. Ou, como já se encontrava articulado na obra de Freud, a fantasia fundamental é uma forma através da qual o sujeito mascara seu desamparo, seu mal-estar intrínseco. Tal mascaramento toma a forma na articulação entre fantasia e identificação, já que, ao identificar-se com tipos ideais, o sujeito procura escamotear os indícios de seu mal-estar.

Dessa forma, ao propor o conceito de "fantasia ideológica", Zizek o desloca do sentido tradicional do marxismo, na medida em que o que se encontra oculto pelo fantasma não seria, na verdade, a realidade produtiva (como na interpretação tradicional do marxismo), mas sim os impasses imanentes a essa mesma realidade; ou, se quisermos colocar através das categorias freudianas, seu mal-estar.

A partir do conceito de "fantasia ideológica", defendemos a tese de que as patologias sociais são produtos de uma gestão ideológica do mal-estar que objetiva a conformação do sujeito aos ideais culturais de nosso tempo através do estabelecimento do patológico enquanto um desvio desses mesmos ideais. Trata-se de pensar, através da noção de patologia social, como o mal-estar é alvo de uma gestão que busca determinar suas formas de expressão por meio da eleição de narrativas de sofrimento específicas.

A noção de patologia social já está presente no horizonte da crítica social desde o século XIX. Nesse contexto, a noção surge com o intuito de descrever desvios da normalidade social a partir da perspectiva de que a sociedade é um organismo que, assim como o corpo de um indivíduo, necessita combater patologias que ameaçam o seu funcionamento. Trata-se de um paralelismo entre o desenvolvimento dos indivíduos e o desenvolvimento das sociedades através de analogias entre a biologia e a sociologia. É com Émile Durkheim (2007, p. 669) que vemos a noção de patologia social surgir dentro dessa perspectiva: "para as sociedades como para os indivíduos, a saúde é boa e desejável, a doença, ao contrário, é a coisa má que deve ser evitada".

O surgimento da noção de patologia social é indissociável do desenvolvimento da medicina social, no século XIX, e a profusão de modalidades de administração da vida e gestão dos corpos. A medicina social produziu saberes que fundamentaram uma biopolítica das populações, que se manifestou através de técnicas de controle social e políticas higienistas (Foucault, 2012). Dentro dessa perspectiva, identificar patologias sociais representa a tentativa de estabelecer os males que colocam em risco o organismo social para poder combatê-los.

Segundo Dunker (2015), nem toda forma de sofrimento é imediatamente traduzível em patologia. Mas como se processaria essa tradução? Dentro da perspectiva das categorias diagnósticas de manuais como o DSM-5, ou seja, a partir do que estamos chamando de patologias sociais com Safatle (2018, p. 09), "um sofrimento patológico é um sofrimento socialmente compreendido como excessivo e, por isso, objeto de tratamento por modalidades de intervenção médica que visam permitir a adequação da vida a valores socialmente estabelecidos com forte carga disciplinar". Nessa noção apresentada por Safatle, devemos enfatizar dois pontos: (1) que o sofrimento patológico seja um sofrimento socialmente compreendido como excessivo, temos, nessa perspectiva, que o patológico é estabelecido como desvio de uma normalidade esperada; e (2) que a intervenção médica - e por que não dizer psicológica também? - visa à adequação da vida a valores socialmente estabelecidos, temos aqui uma modalidade de intervenção que busca a restauração da suposta normalidade perdida. Ou seja, parte-se do pressuposto de que a saúde corresponde à medida exata de adequação do sujeito aos ideais culturais. Isso porque devemos entender por normalidade as disposições de conduta exigidas dos sujeitos nos processos de socialização, que, por sua vez, são marcados pelas racionalidades dominantes no cenário social e político.

Segundo Georges Canguilhem (2009), o patológico, quando entendido como uma experiência quantitativa de déficit ou excesso em relação à normalidade, resulta da pressuposição de uma continuidade qualitativa entre a experiência da normalidade e a experiência da doença. Continuidade esta que, segundo ele, não existe, "pois a vida no estado patológico não é a ausência de normas, mas a presença de outras normas" (Canguilhem, 2012, p. 182). O que essa presunção de continuidade e a diferença quantitativa entre os estados sustentam é a ilusão de que o quadro normativo com o qual o patológico rompeu é sem fissuras. Ou seja, trata-se de uma fantasia ideológica por excelência.

Voltemos então a Freud e Zizek para perceber como essa perspectiva acerca do patológico é fruto de uma gestão ideológica do mal-estar. Vimos com Freud (1930/2011) como o mal-estar é a expressão de um desacordo permanente entre o sujeito e os ideais da cultura. Em cada contexto sócio-histórico busca-se estabelecer soluções de compromisso em resposta ao mal-estar através da legitimação das formas de laço social consideradas normais. Com Zizek (1996), podemos afirmar que toda forma de laço social produz sintomas, pois, segundo ele, o sintoma é a classe particular não incluída no universal do qual ela faz parte, ou seja, o sintoma é o ponto de emergência da verdade sobre uma dada situação: a verdade do mal-estar insolúvel que precisou ser recalcado para que o quadro normativo de uma situação pudesse se constituir.

Dentro da noção de sofrimento patológico das categorias diagnósticas do discurso psiquiátrico, o mal-estar é desconsiderado na medida em que o saber médico vai estabelecer categorias diagnósticas que determinam o sofrimento humano como desvio ou perturbação da normalidade instituída pelos discursos ideológicos de uma determinada situação. Temos, então, duas perspectivas radicalmente distintas acerca do sofrimento: a tese do mal-estar na civilização nos leva a considerar as formas de sofrimento como manifestações de um mal-estar constitutivo e que retorna através dos impasses produzidos pelas tentativas de conformar o sujeito aos discursos; e já nas categorias diagnósticas que constituem patologias sociais, as modalidades de sofrimento aparecem como déficits de conformação dos sujeitos aos ideais culturais, estabelecendo o patológico como desvio de uma normalidade determinada socialmente.

Pensando em nosso contexto atual, o DSM é um exemplo de como o mal-estar pode ser gerido através de categorias diagnósticas. Nas últimas edições do DSM, há um "rompimento do nexo com os discursos psicanalíticos e social, que faziam a patologia mental depender dos modos de subjetivação e socialização em curso, em um dado regime de racionalidade" (Dunker, & Kyrillos, 2011, p. 618). O que não implica que esses modos de subjetivação não estejam presentes implicitamente na produção das categorias diagnósticas do manual, já que a construção histórica do mesmo aponta para uma dependência do campo da psicopatologia em relação ao campo filosófico quando a psicopatologia se coloca a pergunta acerca da universalidade das formas do patológico e da evolução de quadros patológicos (Dunker, & Kyrillos, 2011).

Busquemos então desenvolver como o quadro normativo de nossa época pode ser fortalecido através da produção das categorias diagnósticas do DSM. Segundo Dunker (2015), o sofrimento é uma experiência compartilhada, no sentido de que ele depende do reconhecimento ou do não reconhecimento que lhe é dado. É o que faz do sofrimento uma categoria política. Mas quem tem a primazia no estabelecimento desses atos de reconhecimento? Como nos apontou Safatle (2018), é o saber médico de uma época, produzindo categorias diagnósticas performáticas, no sentido de que estabelece os modos pelos quais o sujeito deve narrar seu sofrimento para que este seja reconhecido e possa ser tratado.

O que as últimas edições do DSM produziram foi uma verdadeira individualização da patologia mental ao buscar no funcionamento cerebral a causa determinante do sofrimento psíquico. Dessa forma, ao localizar no indivíduo a causa do sofrimento psíquico, oculta-se o contexto social em que esse sofrimento é considerado uma patologia. Quem nos ajuda a entender como discursos ideológicos produzem categorias diagnósticas supostamente científicas e ateóricas é o filósofo da ciência Ian Hacking (2006, p. 308), ao tratar do efeito looping em classificações de seres humanos. "As pessoas e sua classificação estão numa situação de plena interação e evolução bilateral".

Hacking (2006) parte da consideração de que a concepção realista da ciência é dominante em nosso mundo e, conforme ela, o conhecimento das coisas se produz através de separação e classificação minuciosa, num esforço de produzir um retrato fidedigno do mundo. Dessa forma, vivemos em um mundo repleto de classificações nos mais diversos campos do conhecimento. Contudo, há diferenças entre o ato de classificar fenômenos, animais ou coisas e o ato de classificar pessoas. Diferentemente dos primeiros, as pessoas podem reagir às classificações que lhes são impostas e produzir comportamentos. O efeito looping ocorre quando uma classificação produz um tipo interativo (Hacking, 2006), ou seja, quando uma categoria diagnóstica determina o comportamento de um sujeito e o comportamento do sujeito termina por produzir um estereótipo da classificação. A interação entre o classificado e a classificação pode ocorrer tanto através de feedback positivo (quando o sujeito se identifica com a caracterização que lhe é feita) e através de feedback negativo (quando o sujeito rejeita a caracterização).

A classificação interativa costuma ocorrer com frequência nas ciências médicas quando comportamentos indesejados socialmente são associados a causas biológicas duvidosas. Ou seja, um conjunto de sintomas comportamentais ou sintomas isolados sofrem uma biologização que implica em uma resposta por parte do sujeito classificado. Podemos afirmar que essa resposta é, em boa medida, de feedback positivo ou de identificação do sujeito com o conjunto de sintomas comportamentais que lhe são atribuídos. Como vimos com Dunker (2015), o sofrimento é uma experiência compartilhada uma vez que se estrutura como narrativa que solicita reconhecimento social. Como aponta Safatle (2018), o saber médico possui a primazia nesses atos de reconhecimento e é a partir das categorias diagnósticas por ele produzidas que os sujeitos interagem na busca por terem suas narrativas reconhecidas e para que um tratamento possa a elas ser dispensado. É nisso que reside o caráter claramente performático das classificações produzidas por manuais como o DSM: elas determinam como o sofrimento deve ser experienciado. E mais: como em larga medida os transtornos são produzidos a partir da consideração implícita de comportamentos ou condutas consideradas indesejáveis no contexto social e político, o DSM pode ser considerado um instrumento de manutenção dos discursos ideológicos vigentes na situação atual.

 

Considerações finais

Acreditamos ter mostrado, ainda que brevemente, como o mal-estar na civilização pode ser gerido através da produção de patologias sociais. Quando o mal-estar se manifesta em narrativas de sofrimento, ele só é considerado legítimo se essas narrativas entrarem em conformidade com os critérios diagnósticos dos manuais biomédicos. E é na imposição dessas categorias diagnósticas, nas quais o sofrimento é traduzido em patologia através da biologização de comportamentos considerados anormais, que a inadequação entre o sujeito e as formas de subjetivação produzidas na cultura pode ser gerida. Ao individualizar o sofrimento através da explicação neurofisiológica, naturalizam-se os discursos a partir dos quais determinadas condutas puderam ser classificadas como patológicas.

Dessa forma, acreditamos que a produção de patologia sociais é um processo ideológico que tenta neutralizar as possibilidades de se posicionar criticamente em relação à racionalidade dominante em um determinado contexto, assim como tenta anular o potencial transformativo presente no mal-estar.

Lembremos como, para Freud, o sintoma sempre constitui-se como uma "tentativa de cura", isto é, como uma reposta possível que o sujeito confere a seu mal-estar; é justamente quando existe a falha do recalque em condicionar o sintoma e o subsequente advento da angústia, que, através da desestruturação subjetiva inerente a essa falha, o sujeito confrontaria seu mal-estar. O sintoma, como tentativa de cura, jamais deixará de ser um parceiro do sujeito, e se é verdade que a psicanálise se propõe como um processo terapêutico, ela não possui uma visão moral sobre o patológico. Trata-se apenas de propor para o sujeito a possibilidade de outras "soluções de compromisso" que não passem pelo custo psíquico inerente à lógica do sintoma. Forma de tratamento, portanto, que não busca eliminar o mal-estar, mas manejá-lo, direcioná-lo.

 

 

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Artigo recebido em: 15/04/2019
Aprovado para publicação em: 10/06/2020

Endereço para correspondência
Vinicius José de Lima Souza
E-mail: viniciuslimarn@gmail.com
Pedro Sobrino Laureano
E-mail: pedro@laureanopsi.com.br

 

 

*Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).
**Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).

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