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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.52 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2020

 

DOSSIÊ

 

Um lugar ético para o adulto na relação com crianças e adolescentes: Bernfeld e o para além da patologização

 

An ethical place for adults in their relationship with children and adolescents: Bernfeld and beyond pathologization

 

Un lugar ético para los adultos en su relación con niños y adolescentes: Bernfeld y más allá de la patologización

 

 

Cristiana CarneiroI*; Mariana ScrinziII**; Perla ZelmanovichIII***

ISociedade de Psicanálise Iracy Doyle - SPID - Brasil
IIUniversidad Autónoma de Entre Ríos - Argentina
IIIFacultad Latinoamericana de Ciencias Sociales - FLACSO - Argentina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Siegfried Bernfeld foi um psicanalista, discípulo de Freud, e um pioneiro na articulação entre educação e psicanálise. Além disso, fundou a Colônia Infantil de Baumgarten, uma experiência educacional de ponta na qual deu as boas-vindas aos órfãos de guerra. Neste artigo resgatamos seu trabalho no sentido de refletir sobre o mal-estar do psicanalista e educador diante da criança ou adolescente que não corresponde ao que se espera. Advertindo-nos que o mal-estar do adulto diante da criança e adolescente fora do esperado pode instaurar defesas autoritárias e patologizantes, Bernfeld advoga um outro lugar, ético e expectante, na relação adulto-criança. Resgatar as concepções desse pioneiro objetiva incrementar a reflexão sobre o crescente movimento de patologização no cenário contemporâneo. Na atualidade, à medida que o diagnóstico passa a ser prioritariamente concebido pelo neurobiológico e pelo comportamental, a escola também passa a ocupar a função de identificar a soma dos comportamentos desviantes, encaminhando rapidamente a criança ou adolescente para serviços de saúde mental. Em outro sentido, menos imediato, tolerar algo sobre não saber em relação à criança exigiria que o adulto assumisse parcialmente sua própria estranheza constitutiva. O "não querer saber", marca de todo adulto, poderia, assim, abrir algumas lacunas no querer saber sobre o mal-estar e a inquietação que a criança e o adolescente não modelares nos causam. Tanto o psicanalista quanto o educador não têm certeza, nem podem prever os resultados de suas intervenções. Bernfeld nos ensina que somente quando o educador reconhece e aceita seus próprios limites será possível criar uma nova pedagogia, uma pedagogia dos limites contra a onipotência dos pedagogos.

Palavras-chave: educação, psicanálise, patologização, crianças, adolescentes.


ABSTRACT

Siegfried Bernfeld was a psychoanalyst, a disciple of Freud and a pioneer in the articulation between education and psychoanalysis. In addition, he founded Baumgarten Children's Colony, a cutting-edge educational experience in which he welcomed war orphans. In this dossier we recall his work to reflect on the uneasiness of the psychoanalyst and educator towards the child or adolescent that does not correspond to what is expected. Warning us that the malaise of the adult in front of the child and adolescent outside of what is expected can establish authoritarian and pathological defenses, Bernstein advocates another place, ethical and expectant in the adult-child relationship. Rescuing the conceptions of this pioneer aims to increase reflection on the growing movement of pathologization in the contemporary scenario. Nowadays, as the diagnosis becomes primarily conceived by the neurobiological and behavioral, the school also starts to occupy the function of identifying the sum of deviant behaviors, quickly referring the child or adolescent to mental health. In another, less immediate sense, tolerating something about not knowing about the child would require the adult to partially assume his or her own constitutive strangeness. The "not knowing", a mark of every adult, could thus open some gaps in wanting to know about the uneasiness and restlessness that the child and adolescent do not model on us. Both the psychoanalyst and the educator are not sure, nor can they predict the results of their interventions. Bernfeld teaches us that only when the educator recognizes and accepts his own limits will it be possible to create a new pedagogy, a pedagogy of limits against the omnipotence of pedagogues.

Keywords: education, psychoanalysis, pathologization, children, teenager.


RESUMEN

Siegfried Bernfeld fue un psicoanalista, discípulo de Freud, y un pionero en la articulación entre educación y psicoanálisis. Además, fundó la Colonia Infantil de Baumgarten, una experiencia educativa de vanguardia en la cual amparó a los huérfanos de la guerra. En este artículo rescatamos su trabajo para reflexionar sobre el malestar del psicoanalista y educador delante del sujeto que transita la infancia o la adolescencia y que no guarda correspondencia con lo esperado. Advirtiéndonos que el malestar del adulto delante del sujeto que transita la infancia o la adolescencia por fuera de lo esperado puede instaurar defensas autoritarias y patologizantes, Bernfeld aboga un otro lugar, ético y espectante en relación al adulto. El objetivo es rescatar las concepciones de este pionero para incrementar la reflexión sobre el creciente movimiento de patologización en el escenario contemporáneo. En la actualidad, en la medida que el diagnóstico pasa a ser prioritario, desde una concepción neurobiológica y comportamental, la escuela también pasa a ocupar la función de identificar la suma de comportamientos desviados, derivando rápidamente a la niña, niño o adolescente para ser medicalizado/patologizado. En otro sentido, menos inmediato, tolerar algo del no saber en relación a ese sujeto que transita la infancia o la adolescencia exigiría que el adulto asuma parcialmente su propia extrañeza constitutiva. El "no querer saber", la marca de todo adulto, podría abrir así algunas lagunas de querer saber sobre la inquietud y malestar que suscita nuestra extrañeza actualizada por la niña, niño o adolescente que no condice con el modelo. Tanto el psicoanalista como el educador no están seguros, ni pueden predecir los resultados de sus intervenciones. Bernfeld nos enseña que solo cuando el educador reconozca y acepte sus propios límites será posible crear una nueva pedagogía, pedagogía de los límites contra la omnipotencia de los pedagogos.

Palabras clave: educación, psicoanálisis, patologización, ética, infancia, adolescentes.


 

 

Introdução

O presente trabalho foi produzido a partir da parceria entre a Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, o NIPIAC ( Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas) e duas redes de pesquisa que convergem para pensar o diálogo entre psicanálise e educação. A rede INFEIES (Estudios e investigaciones Psicoanalíticas e interdisciplinares en infancia e instituciones) e rede RUEPSY (Rede Interuniversitária de Estudos de Psicanálise na Educação). Essas redes pretendem convergir para a colaboração internacional da articulação psicanálise e educação e congregam pesquisadores do Brasil, França, Espanha, Argentina, Luxemburgo, Uruguai e Colômbia. No presente trabalho, mais especificamente, uma psicanalista brasileira e duas argentinas convergem suas pesquisas no intuito de refletir sobre o lugar do adulto ante a criança e/ou o adolescente que não correspondem ao idealmente esperado, seja este adulto um educador ou um psicanalista. Em que pesem as profundas diferenças entre os dois ofícios, Freud (1937/1980) os aproxima quando os chama de profissões impossíveis, juntamente com o governo. Essa impossibilidade estaria ligada ao todo saber do adulto sobre a criança, do governante sobre o governado e do psicanalista sobre o analisando, inviabilizando o controle ideal dos efeitos das suas práticas. Não há garantias, nem controle preditivo, algo que questiona profundamente o "fazer do outro a imagem ideal que se tem na cabeça" (Bernfeld, 1973, p. 90: Tradução nossa). O sujeito é sempre discordância de um estabelecido, sempre mais, menos, não tanto, não ainda... Entre o ideal e o real a distância se instaura e as relações humanas passam a ser fonte privilegiada de mal-estar (Freud, 1930/1980).

Seguindo esse rastro da psicanálise, temos que o mal-estar entre os ideais culturais e os agulhões egoístas do universo particular é algo esperado. Portanto, partimos do mal-estar para tentar fazer com ele, a partir dele. Mas, se a psicanálise nos adverte da impossibilidade de uma existência sem conflito, como se guiar num contemporâneo que patologiza o mal-estar e o compreende como algo passível de ser sumariamente evitado ou descartado? É, então, nesse cenário atual onde crescem as patologias e desvanece o subjetivo que escolhemos retomar os escritos de um pioneiro da psicanálise: Siegfried Bernfeld. Teórico que pensou a articulação entre psicanálise e educação e nos incita a refletir sobre uma postura ética do adulto em relação à criança e ao adolescente para fazer frente a lógicas autoritárias e patologizantes.

 

Sobre Bernfeld

Scrinzi (2019), apoiada na obra da pedagoga Violeta Núñez (2005), faz uma pergunta muito importante para os psicanalistas e educadores: poderíamos dizer que a obra de Bernfeld é um patrimônio silenciado da humanidade? Acreditando na pertinência desse questionamento faremos uma brevíssima apresentação desse autor pouco lido no Brasil, ainda que pioneiro da psicanálise. Membro da primeira geração de psicanalistas, foi caracterizado por Roudinesco e Plon (1998) como grande conhecedor das origens do movimento freudiano. Fez parte do grupo das quartas-feiras juntamente com Alfred Adler, Wilhelm Stekel, Sandor Ferenczi, Otto Rank, Paul Federn, Hermann Nunberg, Hanns Sachs, Theodor Reik, Max Eitingon, Karl Abraham, Ernest Jones e Carl Gustav Jung.

Siegfried Bernfeld nasceu no dia 7 de maio de 1892, em Lemberg, numa família judia de comerciantes instalada nos arredores de Viena. Como primeira formação estudou botânica e zoologia para depois se orientar para psicologia e pedagogia (Roudinesco, & Plon, 1998). A partir de 1914, fez parte de movimentos juvenis tendo sido um militante sionista e socialista. Desde 1914, ao entrar em contato com a obra de Maria Montessori, voltou seu interesse para a psicanálise, fazendo parte da corrente intelectual denominada freudomarxismo que marcou a história do pensamento freudiano entre 1920 e 1975 (Roudinesco, & Plon, 1998). No ponto de vista doutrinário, o movimento articulou freudismo e marxismo e, no ponto de vista politico, comunismo e psicanálise. A importância de Bernfeld para o campo da psicanálise se condensa nas palavras do próprio Freud que o situa, juntamente com Pfister e Hug-Hellmuth, como pioneiros da articulação psicanálise e educação (Freud, 1925/1992).

Em 1919, Bernfeld cria a Comunidade Infantil de Baumgarten que tinha como finalidade amparar os filhos de judeus órfãos pela guerra, dando-lhes educação para emigrarem à Palestina. Bernfeld apostava em condições institucionais que não fossem nem do orfanato e nem da escola, mas que justamente propusessem "um espaço, meios necessários e forças suficientes para formar uma comunidade de muitos órfãos como um organismo vivente" (Bernfeld, 1919/2005, p. 48; tradução nossa). A razão dessa empreitada era fazer laço, por isso a metáfora do organismo com suas relações vitais: externas e internas. O uso da expressão vital no contexto mortífero e mortificante da guerra e da orfandade vale a pena destacar. Nesse ponto, a experiência institucional que propôs era subversiva, pois ia num sentido contrário das coordenadas políticas internacionais da época.

Em 1922, ele se instala em Viena e se consagra como um membro importante da Associação Psicanalítica Vienense. Preocupado com a infância e a adolescência desamparadas, Bernfeld luta pela educação sexual, emancipação das mulheres, articulação da doutrina freudiana e questões sociais. Faz parte de um grupo de psicanalistas formado por Wilhelm (Willi) Hoffer (1897-1967), Anna Freud (1895-1982) e August Aichhorn (1878-1949).

Em 1925 (1975), publicou uma obra que questionava os métodos educativos alemães apontando para o risco de favorecerem a instauração de regimes ditatoriais: Sísifo e os limites da educação. Peter Paret, enteado de Bernfeld, define o livro como "uma trombeta de advertência para os professores autoritários e também para a geração de educadores que proclama o evangelho do amor" (Paret, 1925/1975, p. 9-10; tradução nossa).

Nesse mesmo ano, Anna Freud cria o Kinderseminar (Seminário de Crianças) a fim de formar terapeutas capazes de aplicar a psicanálise na educação infantil.

Em 1937, Bernfeld e uma parte da família passam a morar em São Francisco, outra parte foi exterminada em Auschwitz. Em 1941, funda nos Estados Unidos a Sociedade de Psicanálise de São Francisco. Junto a Fenichel, militou a favor da análise leiga na American Psychoanalytic Association (APsaA), lamentando o caráter "mecanicista" da psicanálise à americana (Roudinesco, & Plon, 1998). Um pouco antes de sua morte, em 1953, criticou as normas de análise didática da International Psychoanalytical Association (IPA), reafirmando a postura crítica e antiautoritária dela. Como afirma Moyano Mangas (2007), no livro A psicanálise e a educação antiautoritária, Bernfeld propõe uma prática pioneira e libertária. Nesse sentido, a partir de Roudinesco e Plon (1998), pode-se dizer que Bernfeld conservou durante toda sua vida um espírito vienense contestador e profundamente marcado pela teoria das pulsões diferentemente de outros imigrantes que adotaram facilmente o pragmatismo do freudismo norteamericano.

 

A patologização como possível resposta do adulto ante o mal-estar

Nuñez (2005) aponta a importância de recuperarmos a obra de Bernfeld justamente porque, mesmo antigos, os textos trazem invenções e interrogações pertinentes à práxis educativa. Pensamento crítico que nos permite reescrever as práticas "muitas vezes fragmentadas, banalizadas e estandarizadas pelo discurso hegemônico do blablablá neopositivista (nos seus diversos matizes e formulações cognitivistas)" (Nuñes, 2005, p. 11). No presente artigo, entretanto, não iremos nos centrar nas práticas educativas ou clínicas, mas na reflexão da relação adulto-criança também atravessada, no contemporâneo, por um discurso neopositivista dos diagnósticos baseados em evidências. Mais especificamente, nos referimos à posição do adulto educador e clínico quando diante da criança que não corresponde ao esperado. Esse adulto é atravessado pelos discursos de seu tempo que, longe de serem neutros, engendram ideais, formas de ver, práticas. Indo nessa direção, podemos dizer que em nossos tempos assistimos a uma grande mudança em relação às compreensões diagnósticas.

No contemporâneo encontramos modelos diagnósticos pautados na observação direta, definindo o objeto como um fato publicamente observável, o que minimizaria a centralidade do fator etiológico. O transtorno, nome que aparece ao longo dos manuais diagnósticos, é considerado um déficit de uma substância neuronal e a medicação entra em cena de modo compensatório (Dunker, 2014, p. 93). Outra diferença contemporânea em relação aos diagnósticos é a mudança na ferramenta de escuta, justamente do conteúdo discursivo, pois nessa nova lógica a escuta é pautada numa orientação apenas do reconhecimento dos sintomas. De acordo com Dunker (2014, p. 92), ao excluir as relações entre os sintomas e o funcionamento psíquico dos sujeitos, o enfoque é voltado apenas para o relato descricional do sintoma. Numa lógica atravessada pelo mercado, a vida pessoal passa a ser compreendida em setores isolados, tal uma loja de departamentos, cuja administração do mal-estar os transforma em sintomas. O principal dessa nova visão é que a categoria sofrimento, fundamental na acepção psicanalítica, desaparece. Na compreensão mais neurobiológica atual, o sofrimento parece correspondente à dor, logo, uma mera secreção orgânica dos neurônios (Dunker, 2014, p. 94).

Na medida em que o diagnóstico passa a ser concebido predominantemente pelo neurobiológico e comportamental, a escola também passa a ocupar a função de identificar a soma de comportamentos desviantes e características biológicas, encaminhando a criança/adolescente para a saúde mental (Carneiro, & Coutinho, 2015, p. 186). A expansão do discurso diagnóstico ao domínio escolar pode estar articulada ao incremento significativo de encaminhamentos da escola à saúde mental, o que vem crescendo ainda mais nesta segunda década do século XXI no Brasil (Boarini, & Borges, 1998; Collares, 2013; Carneiro, & Coutinho, 2015).

As mudanças sobre a pensabilidade diagnóstica contemporânea parecem, então, ir muito além do campo saúde, deixando traços também no cenário educativo. Se, por um lado, como já apontava Mannoni (1999), a escola abre, muitas vezes, uma segunda chance para a criança, ofertando um espaço outro, diferente da família, onde ela pode encontrar um novo lugar, por outro lado a oferta de nomeações patologizantes no seio da escola não é neutra. Muitas vezes os nomes dos transtornos circulam na escola com certa facilidade, quase como sinônimos de certas características. Nessa espécie de pseudodiagnóstico escolar, informal, não há delongas temporais, rapidamente características são resumidas em transtornos. Sem a noção de sofrimento, a narrativa do próprio sujeito quanto ao sofrer é descartada e a experiência de reconhecimento vista como um elemento transformador do sintoma é praticamente excluída.

Se, por um lado, reconhecemos que há toda uma expansão da nova cultura diagnóstica e um discurso que associa o comportamento fora da norma à patologia, podemos nos perguntar por que os adultos que educam e tratam as crianças estão prontamente aderindo e endossando esse discurso. Nossa hipótese é que, ante o mal-estar causado pela criança fora da norma, o adulto pode patologizar seu comportamento, por um lado o associando a um nome de doença/transtorno, por outro o localizando num funcionamento/disfuncionamento da própria criança. Ao fazer isso, o adulto endereça o mal-estar a outra área, médica, minimizando a angústia do não saber-fazer diante do que incomoda. Para Zelmanovich (2014), o sintoma social atual relativo ao "todo saber" sobre a criança/adolescente deixa desprovida de sua eficácia moderna a equação Família-Escola. A partir disso, a autora aponta para a necessidade de um trabalho com a família e com a escola visando reintroduzir o sujeito na cadeia significante e na ordem de um saber. Para poder funcionar como "outro lugar", a escola e a família, ambas, precisam aceitar a existência da alteridade e, inevitavelmente, do "não-saber" para que algo da experiência singular na relação com a criança possa ter lugar. Seguindo nessa direção de pensamento, podemos dizer que a patologização do mal-estar por parte do adulto que educa e/ou trata a criança, pode ser uma espécie de saída defensiva diante de um não saber que incomoda. Se, por um lado, há todo um discurso do sucesso e da eficácia possíveis e sem delongas temporais que vai num sentido contrário ao que se apresenta na prática, há ainda a relação do próprio adulto com sua infância evocada e atualizada na relação com a criança.

A psicanálise inaugura uma nova infância, que seria aquela para além do vivido de uma criança, já que nessa teoria entende-se o infantil como cerne também do adulto. Assim, não se trata da suposta infância cabalmente ultrapassada pelo adulto, mas de uma infância que resta, permanecendo no adulto através do desejo infantil (Carneiro, 2015). Como nos diz Lajonquiére (2010, p. 207), "Esse outro que não (se) foi é objeto de recalque e de retorno e, assim, torna-se nosso estranho familiar. É o infantil que nos habita, depois da infância, para todo o sempre". É a partir desse contexto que Freud pensa a sexualidade como sempre referida ao infantil. A questão é que a sexualidade incomoda, justamente naquilo que reenvia para um infantil indomado, que está em nós e nos suplanta mais do que gostaríamos. Numa releitura do mal-estar a partir da sexualidade infantil, Suchet (2018) situa o caráter desorganizativo e disruptivo do pulsional como principal fonte de repúdio ante a sexualidade infantil. A violência pulsional (Suchet, 2018, p. 51) seria justamente o ponto de mal-estar privilegiado naquilo que nos remete ao incontrolável. A partir disso poderíamos nos perguntar mais especificamente se a impossibilidade de domínio e controle definitivo do pulsional em nós não seria de certa forma relançada quando diante de uma criança que desafia o ideário de "criança perfeita"?

Tolerar algo do não saber em relação à criança requisitaria do adulto certa assunção da sua própria estranheza constituinte e do corpo pulsional como nunca passível de domesticação absoluta. O "não querer saber", marca de todo adulto, poderia assim abrir algumas brechas de querer saber sobre a inquietação e mal-estar que nossa estranheza reatualizada pela criança não modelar suscita. Isso sugere que, em algum nível, o excessivo de si mesmo também possa ser visto como legítimo. Portanto, que o adulto possa, de algum modo, acolher em si e no outro a angústia, a raiva, o medo, o sem sentido. O acolhimento diria respeito, então, a uma espécie de reconhecimento da legitimidade daquilo que se articula ao mal-estar.

 

O adulto e a posição expectante

Justamente num sentido contrário à pressa diagnóstica do contemporâneo e à rápida patologização do mal-estar pelo adulto, Bernfeld nos diz da importância de um adulto que pode esperar, que observa os pequenos detalhes, que suporta o tempo. Sem dúvida ele escreveu sobre essa temática num pós-guerra ainda não tão marcado pela inflação diagnóstica de nossos tempos, mas que já assistia a uma patologização dos órfãos de guerra que não correspondiam ao esperado. Fazendo uma severa crítica da analogia entre o educador e o jardineiro, bastante usado na época em associação ao termo "jardim de infância", vai contra a predominância da acepção biológica de desenvolvimento. A biologização dos corpos justamente não os compreende como políticos e pulsionais.

Fazendo uma espécie de comparação entre o "novo educador" e o tradicional, Bernfeld vai dizer que a diferença entre ambos não reside nas medidas particulares de uns e outros, mas na atitude e posição geral do educador (Bernfeld, 1973, p. 122). Essa nova posição, justamente, favoreceria a abertura de novas possibilidades filiativas para os alunos, rompendo com as nomeações já fixadas de órfãos, desajustados, ladrões, ineducáveis. Seguindo essa visão de Bernfeld, Brignoni (2012) ressalta a importância da não insistência na eliminação do sintoma, justamente porque esse excesso de insistência só levaria o sujeito a se fixar mais ainda no sintoma. A nova posição do educador proposta pelo autor rechaçaria "a chata autossuficiência e segurança de si mesmo, não sobrevalorizando narcisicamente sua própria pessoa e seus próprios atos" (Bernfeld, 1973, p. 122). Para Bernfeld, a relação afetiva com as crianças e jovens deveria vir em primeiro plano, tendo como pano de fundo o respeito fundamental às crianças. Ressalta ainda que apenas as convicções, o estilo e o respeito dos educadores pode viabilizar uma vida cotidiana para além do cenário monstruoso imposto pelo nazismo. O estilo foi considerado o produto do vínculo singular que cada educador estabelece com o objeto do seu ensino, a partir de sua própria história como criança e aluno, e seu desejo. García Molina (2003, p. 122), retomando Bernfeld, reafirma a proposição de que não há como se educar sem desejo. Um desejo antes, durante e depois do ato educativo que poderia ser traduzido por um desejo de ser ensinante, de sustentar o ato e ter uma certa esperança no depois. A ação educativa põe, então, em jogo a questão temporal. A posição expectante é aquela que toma em consideração os detalhes e os pequenos incidentes implicando em uma atitude de espera, observando com curiosidade e interesse o que vem depois. Justamente a mudança de lugar a partir do ato educativo, bem como na clínica, só é possível no tempo e requer que alguém suporte esse tempo.

A dimensão temporal na posição expectante aqui é apresentada por nós como indo em um sentido contrário da rapidez diagnóstica como resultado da medicalização do mal-estar dos adultos em relação à criança e ao adolescente que não correspondem ao esperado. Bernfeld (1973, p. 90; tradução nossa) vai dizer que "o educador é confrontado muito rapidamente à impossibilidade de fazer do outro a imagem ideal que tem na cabeça. Essa descoberta se articula com a impossibilidade dos efeitos controláveis do fazer". Tanto o psicanalista clínico quanto o educador não têm certeza, nem resultados previsíveis, em relação às suas intervenções. Justamente por isso que o interesse e curiosidade nos detalhes que se sucedem à intervenção são tão importantes, dando subsídios à trajetória a construir.

Em uma nota de rodapé Garcia Molina (2003) cita Bernfeld:

Nunca sei com exatidão como irá se comportar uma criança numa situação pedagógica planejada; ignoro como esta situação a impactará, quanto durará seu efeito, qual será seu resultado definitivo dentro de trinta anos. E o conhecimento da história do indivíduo tampouco modificará consideravelmente a segurança do prognóstico (Bernfeld, 1929, citado por García Molina, 2003, p. 90-91; tradução nossa).

Bernfeld (1975/1925) considera que o educador é um Sísifo, cujos esforços se diluem continuamente devido a limites externos, socioculturais por exemplo, e internos, como os psíquicos. Ele sustenta que, só na medida em que esses limites sejam reconhecidos e aceitos, será possível criar uma nova pedagogia. Pedagogia dos limites que iria, justamente, à contrapelo da onipotência dos pedagogos (Scrinzi, 2019, p. 35). Pensando ética como investigação dos princípios que orientam o agir, esse novo lugar que o adulto poderia ocupar teria, então, o limite como um valor.

O pioneirismo de Bernfeld consistiu justamente em postular que para se tornar educador era preciso estar advertido dos limites da educação, ato político que vai no sentido oposto da onipotência autoritária (Scrinzi, 2019, p. 37). Essa onipotência estaria profundamente entrelaçada com uma pedagogia idealizante, pois o papel do educador estaria articulado a salvar e transformar a humanidade. Ainda que perca o amor do aluno, vai merecer a gratidão da humanidade por seu trabalho em favor da felicidade humana (Filloux, 2001, p. 82).

Temos, então, que tanto o educador quanto o psicanalista estariam às voltas com ofícios em que a previsibilidade é posta em questão e, de maneiras distintas, o adulto corre permanentemente o risco de autoritariamente saber sobre a criança e o adolescente. Indo em outra direção, um lugar ético para os adultos que educam e clinicam seria aquele de suportar o não saber, tolerando certo tempo e atentando aos detalhes das respostas, fragmentos de linguagem que esses sujeitos lhes dirigem. Ainda que Bernfeld (1976) se refira predominantemente ao educador, podemos dizer que ao clínico de crianças e adolescentes também participam da cena interventiva três atores: a criança/adolescente que se ensina/trata, a criança/adolescente que está no adulto e o eu do adulto. Se, como nos diz Filloux (2001), as diferenças se situam no nível do eu, o campo pulsional e desejante aproxima profundamente esses participantes.

 

À guisa de conclusão

Como nos fala Dunker (2014), no contemporâneo encontramos modelos diagnósticos pautados na observação direta. Definir o objeto como um fato publicamente observável minimiza as questões referentes à etiologia e maximiza o descricionismo sintomatológico. Esse modelo atual acaba por facilitar uma expansão diagnóstica para além do campo mais estrito da saúde mental, invadindo os consultórios dos especialistas e escolas com uma miríade de novos nomes de transtornos. Se, nessa lógica, o adulto observa direta e prontamente comportamentos compreendidos como "deficitários" nas crianças e adolescentes são associados a sintomas de patologias, estaríamos mais afeitos à lógica da doença do que do mal-estar subjetivo. Numa direção oposta à pressa diagnóstica, Bernfeld (1973) nos sublinha a importância da posição expectante do adulto, que no redemoinho cotidiano instala outro tempo, tempo da espera e observação. Trabalhando com um público mal visto e excluído do pós-guerra, esse pioneiro da psicanálise nos indica como uma posição ética do adulto em relação à criança e ao adolescente pode fazer frente à onipotência autoritária e excludente que nós, adultos, estamos constantemente inclinados a exercer.

 

 

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Endereço para correspondência
Cristiana Carneiro
E-mail: cristianacarneiro13@gmail.com
Mariana Scrinzi
E-mail: marianscrinzi@yahoo.com.ar
Perla Zelmanovich
E-mail: zelmanovichperla@gmail.com

 

 

*Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil. Coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência contemporâneas - NIPIAC; Coordenadora do GT da ANPEPP - Psicanálise e Educação. Membro Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle. Membro Rede INFEIES e RUEPSY.
**Universidad Autónoma de Entre Ríos - Argentina. Práctica profesional supervisada en Infancia y Familia. Facultad de Humanidades, Artes y Ciencias Sociales. Membro Rede INFEIES e RUEPSY.
***Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales - FLACSO - Sede Argentina. Programa de Psicoanálisis y Prácticas Socio-Educativas. Área Educación. Integrante de Red INFEIES (Red Internacional Inter-universitaria de Estudios en Infancia e Instituciones). Trabaja en la Formación y supervisión de Equipos de Orientación Escolar. Codirectora de la revista INFEIES RM (Revista multimedial). Membro Rede INFEIES e RUEPSY.

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