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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.53 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2021

 

ARTIGOS

 

Expressões contemporâneas do mal-estar na universidade: temporalidade e escritas da experiência

 

Contemporary expressions of uneasiness at the university: temporality and experience writings

 

Expresiones contemporáneas del malestar en la universidad: temporalidad y escrituras de la experiencia

 

 

Gabriela Oliveira GuerraI*; Taís Fim AlbertiI**; Camilla Baldicera BiazusII***

IUniversidade Federal de Santa Maria - UFSM - Brasil
IIUniversidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente ensaio parte de uma pesquisa construída a partir de inquietações referentes ao sofrimento psíquico no contexto universitário, produzidas a partir da experiência de escuta da pesquisadora enquanto psicóloga em instituições da rede federal de ensino. Foi tecida no desejo de construir, a partir da escuta-flânerie, espaços-tempo de reflexão sobre as expressões contemporâneas do mal-estar na universidade. Em sua especificidade, objetivou problematizar a dimensão sociopolítica do sofrimento, suas expressões e formas de reconhecimento no território universitário; bem como refletir sobre os fenômenos sociais do nosso tempo, os processos de subjetivação e as estratégias de inscrição no laço social na contemporaneidade. A abordagem metodológica define-se por uma pesquisa em psicanálise. O delineamento desse método sustenta-se na proposta ético-metodológica tecida por Gurski (2008; 2012; 2014; 2019), na qual se articulam o referencial e a escuta psicanalítica com as construções dos escritos de Benjamin sobre o tema da experiência e a posição do flanêur em Baudelaire. Os participantes da pesquisa - técnicos, docentes e discentes ligados às atividades e projetos em Psicologia Clínica e Escolar Educacional na universidade - construíram escritas da experiência. Também foram incluídos neste estudo alguns fragmentos discursivos de expressões midiáticas em reportagens atuais de sites de notícias na internet, recolhidos como restos do discurso social acerca do tema. A problematização quanto aos efeitos dos discursos que organizam o laço social nas vivências universitárias encontrou tensionamentos sobre nossos modos de ser e de viver, modos de produção e de circulação dos afetos. O desamparo, a velocidade, a estagnação, a sobrevivência, o esgotamento, a indiferença, o silenciamento. Precipitados da experiência que decantam de narrativas diversas, significantes que constituem formas de nomear o mal-estar, de fazer registro e inscrição do que inquieta, do que produz sofrimento, nos limiares da escrita. Passagens constitutivas de experiências e de subjetividades.

Palavras-chave: Psicanálise, mal-estar, universidade, temporalidade, escritas da experiência.


ABSTRACT

The present essay is based on research built from concerns regarding psychological suffering in the university context, produced from the researcher's listening experience as a psychologist in institutions of the federal education network. It was done in the desire to build, from the listening-flânerie, spaces-time for reflection on contemporary expressions of uneasiness in the university. In its specificity, it aimed to problematize the socio-political dimension of suffering, its expressions and forms of recognition in the university territory; as well as reflecting on the social phenomena of our time, the processes of subjectivation and the strategies of inscription in the social bond in contemporary times. The methodological approach is defined by research in psychoanalysis. The design of this method is based on the ethical-methodological proposal made by Gurski (2008; 2012; 2014; 2019), in which the referential and psychoanalytical listening are articulated with the constructions of Benjamin's writings on the theme of the experience and flanêur's position in Baudelaire. The research participants - technicians, teachers and students linked to the activities and projects in Clinical and Educational School Psychology at the university - built writings of the experience. Also included in this study were some discursive fragments of media expressions in current news reports on internet news sites, collected as remnants of social discourse on the topic. The problematization as to the effects of the discourses that organize the social bond in university experiences found tension on our ways of being and living, ways of production and circulation of affections. Helplessness, speed, stagnation, survival, exhaustion, indifference, silence. Coming from the experience that flows from diverse narratives, signifiers that constitute ways to name the uneasiness, to register what is restless, what produces suffering, on the writing threshold. Transitions made of experiences and subjectivities.

Keywords: Psychoanalysis, uneasiness, university, uemporality, experience writings.


RESUMEN

Este ensayo se basa en una investigación construida a partir de preocupaciones sobre el sufrimiento psicológico en el contexto universitario, producida a partir de la experiencia de escucha del investigador como psicóloga en instituciones de la red educativa federal. Se tejió en el deseo de construir, desde la escucha-flânerie, espacios-tiempo para la reflexión sobre las expresiones contemporáneas de malestar en la universidad. En su especificidad, pretendía problematizar la dimensión sociopolítica del sufrimiento, sus expresiones y formas de reconocimiento en el territorio universitario; además de reflexionar sobre los fenómenos sociales de nuestro tiempo, los procesos de subjetivación y las estrategias de inscripción en el vínculo social en los tiempos contemporáneos. El enfoque metodológico está definido por la investigación en psicoanálisis. El diseño de este método se basa en la propuesta ético-metodológica hecha por Gurski (2008; 2012; 2014; 2019), en la que la escucha referencial y psicoanalítica se articula con las construcciones de los escritos de Benjamin sobre el tema de la experiencia y la posición del flanêur en Baudelaire. Los participantes de la investigación, técnicos, docentes y estudiantes vinculados a las actividades y proyectos en Psicología de la Escuela Clínica y Educativa de la universidad, elaboraron escritos sobre la experiencia. También se incluyeron en este estudio algunos fragmentos discursivos de las expresiones de los medios en los informes de noticias actuales en sitios de noticias de Internet, recopilados como restos del discurso social sobre el tema. La problematización de los efectos de los discursos que organizan el vínculo social en las experiencias universitarias encontró tensión en nuestras formas de ser y vivir, modos de producción y circulación de afectos. Impotencia, velocidad, estancamiento, supervivencia, agotamiento, indiferencia, silencio. Precipitados de la experiencia que decantan a partir de diversas narrativas, significantes que constituyen formas de nombrar el malestar, registrar y registrar lo que es inquieto, lo que produce sufrimiento, en los umbrales de la escritura. Pasajes constitutivos de experiencias y subjetividades.

Palabras clave: Psicoanálisis, malestar, universidad, uemporalidad, escrituras de la experiencia.


 

 

Importa que na psicanálise hoje se faça a discussão, se trata do homem contemporâneo lidando com o corpo, o gozo, a dor, a vida e a morte e tudo o que se acha no saber-fazer, lida com o Real. E com o Outro. E entre os outros. O desafio vai ao extremo - como não recuar nos limiares, não se ausentar da passagem, transmissão do que por vezes é da ordem do inenarrável? [...] não se pode desistir de constituir experiência; pois trata-se da mesma matéria, podemos dizer, do exercício do desejo (Pereira, 2012).

O presente ensaio parte de uma pesquisa construída a partir de inquietações referentes ao sofrimento psíquico no contexto universitário, produzidas a partir da experiência de escuta da pesquisadora enquanto psicóloga em instituições da rede federal de ensino. O desejo de construir, a partir da escuta-flânerie, espaços-tempo de reflexão sobre as expressões contemporâneas do mal-estar na universidade encontrou na temporalidade das escritas da experiência a potencialidade da construção de limiares, de intervalos de precipitação dos sujeitos e de construção simbólica. As interlocuções do que se observa como demanda institucional referente ao sofrimento psíquico do estudante universitário, às vulnerabilidades, à exclusão social e às violências vivenciadas por estes, bem como o adoecimento de docentes e servidores, juntamente com as expressões recolhidas no cenário social acerca do tema compõem as reflexões aqui inscritas.

A abordagem metodológica define-se por uma pesquisa em psicanálise. O delineamento desse método sustenta-se na proposta ético-metodológica tecida por Gurski (2008; 2012; 2014; 2019), na qual se articulam o referencial e a escuta psicanalítica com as construções dos escritos de Benjamin sobre o tema da experiência e a posição do flanêur em Baudelaire.

Gurski (2012) apresenta a figura do flâneur - recolhida por Benjamin da obra de Baudelaire - como uma personagem de resistência poética do século XIX, uma espécie de testemunha da desmoralização da experiência que ocorria por obra do ritmo, inspirado no tempo industrial: "personagem híbrido, o flâneur questionou a fugacidade e a vivência do tempo, buscando, na flânerie, um outro modo de percepção, passível de incluir o inesperado na construção da experiência" (Gurski, 2014, p. 175). A postura do flâneur é associada pela autora à posição da escuta em psicanálise, no que concerne à atenção flutuante, que caracteriza o trabalho do psicanalista. Outra personagem que se destaca na obra de Walter Benjamin, segundo Gurski e Strzykalski (2018), é o catador de restos: "figura que perambulava pelas cidades modernas em busca daquilo que grande parte da sociedade considerava inútil: lixo, sucata, migalhas, materiais descartáveis" (p. 411).

O tema da experiência (Erfahrung) é abordado por Benjamin (2017/1937) em contraponto ao conceito de vivência (Erlebnis), definindo este último como uma forma de experiência isolada, que não faz laço e não carrega nenhum valor coletivo. Destaca que um acontecimento pode decantar em experiência somente ao ser compartilhado, narrado, transmitido e denuncia o que chamou de esvaziamento da dimensão da experiência na modernidade (Benjamin, 2012/1933).

O percurso ético-metodológico do estudo foi tecido em três tempos1. O primeiro tempo caracteriza o percurso- flânerie na instituição, a partir dos registros da experiência da pesquisadora, construídos em diários de experiência. No segundo momento da pesquisa, foram realizados convites à produção de um registro de experiência. Os participantes - três docentes, duas servidoras e uma discente, que compõem a rede transferencial de trabalho da pesquisadora - compuseram uma escrita em associação livre. Buscou-se ofertar a produção escrita como um primeiro dispositivo de intervenção frente à temática estudada, trabalhando, no a posteriori, seus efeitos nos sujeitos. No terceiro e último tempo da pesquisa, a partir da reunião de todo o material construído, foram realizadas as leituras e análises dos diários de experiência, dos registros de experiência dos participantes e a análise do que decantou da escuta-flânerie. Nesse sentido, a travessia da pesquisa foi se costurando, nesses diferentes tempos, constituindo espaços, delimitando territórios da experiência, por meio de tecidos discursivos bordados nesta escrita.

O encontro com as fontes narrativas escolhidas - as expressões midiáticas em reportagens acerca do tema e os registros escritos de experiência dos participantes - bem como o movimento de leitura-escuta de cada uma e de escansão dos significantes (Iribarry, 2003), busca uma construção discursiva atenta aos elementos de repetição. É também na inspiração no estilo benjaminiano de escrita, colecionando citações e fragmentos de pensamento de seu tempo em seus "pequenos cadernos de notas", inscrevendo "o que a leitura e a vida diária lhe rendiam como pérolas" (Arendt, 2008, p. 216), que este ensaio é tecido.

Recolhendo as pérolas da experiência de cada fonte, os restos do que interpela os sujeitos. Deixando-se afetar pelas palavras, no singular de cada experiência, em uma operação de costura, entrelaçando os tensionamentos que emergem com o referencial teórico, sem a pretensão de construir explicações ou determinações para o fenômeno estudado, respeitando sua complexidade, bem como as diversas questões que se abrem. Retomamos as elaborações de Rickes (2006), quando associa o movimento de corte/costura com a escrita, evocando também o trabalho psíquico que está em jogo na escrita da memória, pelo fio da palavra:

Falar de corte/costura evoca a imagem da agulha que faz passar a linha, esburacando os tecidos, inaugurando um traçado singular rumo ao ponto que se deseja fazer aproximar, na tentativa de articular a união entre as fazendas. Uma união, um laço que não deixa de denunciar a descontinuidade entre os planos. A agulha que desenha um traçado no ar. A linha que deixa como rastro no tecido o desenho de um trajeto. A costura que denuncia uma descontinuidade: pequena cicatriz nos tecidos (Rickes, 2006, p. 18).

Nesse sentido, a inspiração na figura do catador de restos buscou situar os diferentes discursos em seus detalhes, recolher testemunhos, cenas, histórias, memórias, fragmentos discursivos, elementos do tempo atual. O movimento de flanar pelas narrativas e espaços, sem buscar notar algo específico, atento às redes significantes e repetições que emergem do encontro com as narrativas, percebendo a potência dos restos no cotidiano do trabalho institucional, a partir do que decanta da experiência, do que causa estranhamento. Esse movimento leva-nos ao encontro do que Benjamin descreve em seu escrito "O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov", tomando a narrativa como uma forma artesanal de comunicação, imprimindo-se "na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso" (Benjamin, 2012/1936, p. 221).

A composição narrativa do percurso de pesquisa e de seus efeitos de reflexão também nos remete ao proposto por Larrosa (2018, p. 26) quando trabalha o conceito de experiência, inicialmente como um lugar de encontro, de travessia, de passagem, de um mais além: "o sujeito da experiência se expõe, atravessando um espaço indeterminado e perigoso". Tal espaço ocorre no encontro com a dimensão inconsciente da experiência, a qual associamos à questão lançada por Voltolini (2017, p. 312): "como considerar a presença ativa do indestrutível inconsciente no campo educacional"?

Nossa aposta parte da construção de espaços-tempo de circulação da palavra - e de seu registro pela fala ou escrita - que permitam a precipitação do sujeito da experiência, do sujeito do inconsciente e das inscrições narrativas que deles decantam. A proposta de tais espaços levou em conta o campo transferencial do cotidiano de trabalho da pesquisadora, as redes de relações tecidas e a intenção de tecer redes discursivas acerca do tema, partindo do local de atuação profissional, na busca de construção de dispositivos de intervenção frente às questões que se atravessam.

Assim, iniciamos com a enunciação dos contornos delineados na construção dos caminhos da pesquisa e de uma posição discursiva frente às experiências. Excertos dos diários de experiência da pesquisadora irão se entrelaçando às outras fontes narrativas e ao referencial teórico na tessitura da escrita, tendo como fios condutores o movimento da flânerie e a associação livre, bem como a construção de redes significantes acerca da temática. Importa destacar que, nesse sentido, as linhas de cada tecido discursivo irão se entrelaçando no texto, costurando-se pela via de seus elementos de repetição e tentativas de construção de sentidos, de bordeamento às questões que vão se lançando, dando a ver as marcas de um estilo na escrita.

Retomamos as considerações de Gurski (2019), quando ressalta a associação da flânerie como um dispositivo que "sustenta uma posição possível do pesquisador em psicanálise na instituição", bem como uma condição temporal comum à escuta psicanalítica e ao flâneur. A autora considera, dessa forma, a construção de possibilidades de oferecer "uma fala livre e mais implicada com o tempo de cada um, evocando o surgimento de uma narrativa mais próxima às questões do sujeito" (Gurski, 2019, pp. 166-167). Também nos remetemos à afirmação de Iribarry (2003), de que o pesquisador em psicanálise está implicado como primeiro sujeito de sua pesquisa, a fim de compor os primeiros traçados da narrativa, pelos fragmentos dos diários de experiência:

Os caminhos e descaminhos de um flanar pela instituição, deixando-se afetar pelas vivências, lançadas na forma de palavras e expressões soltas no caderno em branco, na intenção de que decantem em experiências a partir da escrita, forjando espaços e tempos. A associação livre da pesquisadora, os diários de experiência contornando o cotidiano institucional. Busco me deixar afetar, me percebendo no lugar de técnica, profissional da instituição, e pesquisadora, na aposta de que, a posteriori, os efeitos de uma investigação se manifestem na continuidade das práticas.
A problematização acerca das demandas estudantis frente ao sofrimento psíquico que, por muitas vezes, encontravam respostas burocratizadas ou patologizantes, nos nós de uma rede tecida com fios quase invisíveis, que demandam sempre novos laços. As experiências limites, as fronteiras, as crises, o ato. A ausência de limiares. O corpo frente ao insuportável, aos excessos. As demandas de suporte ao coletivo frente a vivência da morte autoprovocada. As incidências do acontecimento na instituição. A frequente repetição de tais acontecimentos nas instituições educacionais. A suspensão do tempo frente ao choque do real.As diversas tentativas de narrar e nomear o mal-estar e o sofrimento. A travessia que por vezes parte da sobrevivência, para o testemunho sobre a vivência e, por fim, para o registro simbólico da experiência. Os significantes sustentados pelo social na suposição de um frágil lugar de reconhecimento: a ansiedade e a depressão. As soluções mediadas pela lógica de mercado, de aceleração e de tamponamento de qualquer expressão do sofrer: a medicalização. A gestão do sofrimento e a administração do mal-estar. A expropriação do sujeito da experiência. A destituição de sua capacidade de narrar e de narrar-se. A desubjetivação. O desamparo discursivo. O sofrimento e sua dimensão sociopolítica.

Tais associações e inquietações impulsionam um percurso de pesquisa que busca tensioná-las por meio de um olhar para os efeitos dos discursos que organizam o laço social no nosso tempo nas vivências universitárias. De que formas estas vivências são interpeladas pelos fenômenos sociopolíticos atuais? Ao problematizar as demandas recolhidas no cenário educacional, surge o desejo pela pesquisa e a busca por autores que problematizam tais questões. Nesse momento, a tessitura se abre entre os fios da experiência e de operadores conceituais.

Em O mal-estar na Cultura, Freud (2020/1930) tece sua teoria da cultura e uma série de teses fundamentais. Comparecem os elementos que serão cruciais como operadores de análises sociais e uma concepção de poder e de desamparo. Neste escrito, Freud indica as três fontes de mal-estar, sofrimento e infelicidade para o ser humano: a partir do próprio corpo que, "destinado à decadência e à dissolução, não pode nem mesmo prescindir da dor e do medo como sinais de alarme"; a partir do mundo externo que, "com suas forças descomunais, implacáveis e destrutivas", pode voltar-se contra nós; e, por fim, das relações com outros seres humanos. O autor destaca que o sofrimento advindo desta última fonte talvez seja sentido de modo mais doloroso do que qualquer outro (Freud, 2020/1930, p. 321).

Assim, a fragilidade de nosso próprio corpo, a prepotência da natureza e a deficiência das disposições que regulam os relacionamentos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade, seriam as principais fontes de mal-estar. Freud (2020/1930) destaca ainda que na terceira fonte, a social, estão as disposições que nós mesmos criamos para nossa proteção contra o sofrimento, referenciando a natureza invencível de nossa própria constituição psíquica e a hostilidade da cultura. Suas proposições, nesse sentido, situam que a configuração do sofrimento é diferente em cada época histórica, bem como as disposições de respostas para o mesmo.

Seligmann-Silva (2017) ressalta a importância de pensarmos o significado do termo alemão Unbehagen, mal-estar: o termo behagen (que na palavra está precedido pela negação un-) refere-se ao "sentir-se protegido"; unbehagen remete a estar desprotegido, a uma falta de abrigo, a uma fragilidade. O autor destaca a proximidade do termo com outro de grande importância para a psicanálise: Unheimlich - o estranho, sinistro, inquietante - título de um ensaio de Freud, de 1919, tendo ele destacado como um dos sentidos justamente "o que provoca mal-estar".

Para Gurski (2014), desde Freud (1930; 1937) estamos advertidos de que o mal-estar é condição para a criação da cultura e da civilização, bem como reconhecemos os paradoxos do campo da educação, "cuja insatisfação constante deve ser tomada como efeito da impossibilidade enquanto condição permanente do ato de educar" (Gurski, 2014, p. 172). O mal-estar na educação contemporânea nos impõe reflexões acerca das condições do sofrimento atual de educadores e jovens, associadas às repetitivas listas de sintomas manifestos e às queixas de pais e professores.

Pereira (2017) constata que, no âmbito da educação atual, os sintomas transbordam. Relaciona tal fato à perda da efetividade interditiva dos possíveis reguladores sociais. Acompanhamos o delineamento da questão lançada pelo autor, que evoca o sintoma no âmbito educativo em seu caráter político, a contrapelo de psicologismos estigmatizantes, reconhecendo que "todo sintoma é propriamente social - mesmo sendo em si um descontínuo desse social - está inscrito num tempo e numa história e se apresenta sempre à espera de alguém que o induza a ser falado" (Pereira, 2017, p. 11). Atentando a essas dimensões, passamos aos possíveis enlaces dos restos-retalhos da experiência da pesquisadora com as experiências que decantam de outras narrativas recolhidas neste percurso.

 

Acerca dos espaços-tempo forjados e das inscrições das experiências

Na continuidade dos trilhamentos do percurso de pesquisa, a vinculação, enquanto profissional do ensino superior público, também sustentou o desejo pelo compartilhamento de experiências com os profissionais, docentes e discentes que vivem o cotidiano da instituição. Dessa forma, um dos tecidos narrativos deste estudo foi recolhido a partir do convite à produção de uma escrita da experiência em associação livre sobre como o tema da pesquisa interpela as suas vivências universitárias. Tal produção foi entregue em um momento posterior a um primeiro encontro com a pesquisadora, o qual não foi determinado inicialmente, mas procurou respeitar o tempo de cada participante.

A temporalidade da produção escrita dos participantes fomentou reflexões sobre como o convite foi recebido por cada um e os efeitos que se colocar a escrever sobre suas vivências provocou. Alguns participantes entregaram sua produção escrita logo no encontro seguinte, em que se propunha uma roda de conversa que incluía o tema da pesquisa e a experiência da escrita. Percebeu-se que a resposta imediata ao convite fez com que algumas escritas tomassem a forma de uma produção quase acadêmica, com alguns escritos iniciando, inclusive, por um histórico curricular, o que ao mesmo tempo transparece as formas singulares de se voltar para as experiências universitárias. O pedido realizado por um dos participantes, de uma escrita do convite da pesquisa na forma de um e-mail, que detalhasse seus objetivos, também permitiu a reflexão sobre os imperativos de uma forma de produção que muitas vezes exclui o que é da ordem da subjetividade, da autoria e da criação, por meio de delimitações do que se considera uma escrita digna de reconhecimento nesse espaço.

Já outros participantes solicitaram à pesquisadora um tempo maior para a sua produção, sendo este associado à necessidade de um intervalo na rotina acadêmica para que pudessem se deter na reflexão sobre suas experiências, a qual precisou ser elaborada por muitos no período de férias. Observou-se que tal escrita tomou a forma de uma narrativa menos formalizada, mais próxima ao movimento de associação livre. Assim, a travessia da escrita permitiu a inclusão subjetiva frente aos registros de cada acontecimento, em um movimento de rememoração. Como bem situa a escrita de umas das participantes da pesquisa: "apassagem a outro domínio temporal" e a "suspensão de um condicionamento acadêmico" permitem a assunção de uma autoria, abrem as possibilidades de inscrições aos "ousados(as) escritores(as) de suas próprias linhas".

Tais reflexões precipitaram as produções a partir dos trilhamentos pelos primeiros territórios deste trabalho, pensando a produção escrita como uma experiência de passagem, como uma experiência limiar. Nos remetem às construções de Sousa (1999) a respeito dos determinantes das condições de enunciação e a necessária condição de exílio implicada no ato de escrever, convocando a um descentramento subjetivo, bem como, muitas vezes, a necessidade de se colocar em "uma posição de estrangeiro para que neste intervalo criado entre o familiar da língua e o desconhecido de um sujeito produzido pelo texto, um estilo possa se constituir" (Sousa, 1999, n.p).

O autor associa a inibição da escrita a uma impossibilidade de instaurar para o sujeito um lugar de exílio, a qual só volta a ser possível se o sujeito conseguir suportar esse lugar de ausência produzido pelo ato de escritura. Refletimos também sobre como, na atualidade, as condições de nosso laço social impossibilitam esse descentramento subjetivo. Alguns trechos das produções dos participantes são bastante representativos dessas questões, como o retratado por uma discente:

Registro aberto,
Primeiro desafio: fazer livre as associações que já conheceram o silêncio de um cárcere.
Abrir um registro. Forjar uma válvula que dê escape ao que nem sempre é dito.
Deixar que o acúmulo de vivências transcorra em vazamento de experiências e inunde minhas palavras sem medo de ser, por elas, levada ao desconhecido.
Como pode se esperar de um registro, o sentido do relógio desfavorece minha fluidez. O tempo universitário, adepto ao empilhamento cronológico de vivências, em nada me surpreende ao barrar minha escrita até a passagem a outro domínio temporal, o do recesso acadêmico. Pausa - ainda institucional - ao comum excesso de movimentações e respostas institucionais mais ágeis do que seu próprio processo de elaboração. Não me surpreende ter realizado um esforço para me reencontrar em um escrito sobre a experiência universitária e por esse reencontro apenas ter sido facilitado pela suspensão, ao menos temporária, do condicionamento universitário (e não da condição universitária). Diante do tema "expressões contemporâneas do mal-estar na universidade: temporalidade e escritas da experiência" só alcanço a possibilidade de me inscrever após uma torção do tempo em sentido anti horário. E assim, dispara-se a corrente de significações que até então vivia seu próprio recesso. E agora? Por onde começo?
Perguntas sinceras mas que - sem querer - acabam por me orientar em parte cotidiana da experiência universitária. A alta demanda por atividades e exercícios na formação profissional por (muitas) vezes gera justamente essa incerteza sobre os próximos passos a seguir, sobre a posição de cada demanda na fila auto renovável de atribuições no intervalo auto consumível do tempo. Enquanto uma dimensão se estende, outra se encurta e é em meio a esse vai e vêm que se parece tecer a normativa de uma rotina muito bem ajustada a atordoantes aspectos da contemporaneidade (...).

A produção do inconsciente frente ao convite de escrita e a construção de um espaço- tempo enunciativo foram explicitados por uma das servidoras participantes:

Me questionei o porquê da resistência em responder à questão de pesquisa, por quais razões um registro de experiência em associação livre me tomaria num ponto de esquecimento, produção inconsciente. Também me questiono acerca na necessidade de estar fora, estar longe para poder escrever, como se algo da queixa me tomasse em necessidade, como se não pudesse escrever de dentro, de dentro de onde ainda posso produzir, criar.
Então me vejo envolta dos primeiros ensejos acerca do mal-estar, a crítica desmedida, crítica pela crítica, reação sem ação, sem criação. Entendo que um dos mal-estares contemporâneos que nos acomete na universidade diz respeito à dupla: velocidade-estagnação. Os imperativos contemporâneos de produção almejam: corra! Ao mesmo tempo, como sintoma, produzem-se as estagnações, paralisações, por vezes inibições. São respostas a um tempo em que o intervalo não é permitido, aquele intervalo necessário a todo percurso simbólico, às próprias inscrições das matrizes simbólicas, balizas necessárias para que, na falta e diante da falta, o sujeito se posicione. Como produzir falta, intervalo, num tempo em que os holofotes evidenciam a correria? É neste contexto que, também na Universidade, não há olhares, não há vozes que se entremeiam. A produção do sofrimento universitário parece dizer respeito à lógica dos números, do mais um. Ao mesmo tempo em que inúmeros são aqueles que vencem, o sujeito inexiste, cada um é apenas mais um. [...] Destaco o contexto em que me encontro, na urgência de responder sem perder a serenidade de estar "fora", dentro-fora, caro à psicanálise, mas mais caro àqueles que pretendem se sustentar dentro de um contexto que pode sugá-lo para dentro, engolfar...

A impossibilidade de inscrição sem uma torção do tempo em sentido anti-horário. A corrente de significações disparada após seu próprio recesso. A necessidade de estar fora, estar longe para poder escrever. A potencialidade destas construções nos remete ao escrito de Fonseca et al. (2018, p. 180), o qual discute o resgate das experiências liminares no cotidiano, entendendo-as "como zona de passagem entre um estado e outro, de acordo com Benjamin". Junto aos autores, nos voltamos ao conceito de experiência liminar, presente no Livro das Passagens, de Benjamin (2009/1927-1940), acompanhando suas reflexões:

Entendemos que as experiências liminares correspondem àquelas que pertencem a zonas menos definidas que as fronteiriças. Lembram fluxos e contrafluxos que, em nossa atual sociedade, são como que apagados pela diminuição da nossa percepção aos ritmos e tempos diferenciados de transição. As transições, nos dias de hoje, encurtaram. Não podemos perder tempo, abolimos o tempo das passagens e seus ritos, já não experienciamos momentos de indecisão, de indecidibilidade com afago e acolhimento para uma outra experiência do tempo e da memória. O encurtamento das experiências liminares em nosso atual contexto social e individual manifesta-se como um diagnóstico de nosso intolerável presente: já não podemos sair do mesmo lugar, os limiares tornaram-se tão espessos que viraram lugares de detenção que não levam a lugar nenhum. Foram vampirizados pela biopolítica do capital. Diante disso, questionamo-nos: como podemos acessar a experiência liminar para produzirmos um cotidiano a contrapelo das tendências biopolíticas, massificantes e formalizadas do contemporâneo? (Fonseca et al., 2018, p. 181)

Acompanhamos a questão proposta pelos autores e buscamos construir passagens junto aos tensionamentos produzidos pelos cortes e costuras no traçado dos tecidos discursivos das experiências e suas narrativas.

 

Sobrevivência. Sobre a vivência. Experiência. Construindo posições enunciativas frente às expressões contemporâneas do mal-estar

O silêncio enclausurante das associações. O que dá escape ao que nem sempre é dito. Vivências, experiências, palavras, desconhecido. É no recorte da associação escrita que nos tomamos por uma reflexão. Dentre os convidados a participar da pesquisa, cinco eram estudantes e apenas uma respondeu ao convite. O que pode suscitar tal silenciamento? O que ele pode comunicar? Percebemos que tal condição aparece frequentemente como expressão do mal-estar contemporâneo, o que nos remete a algumas associações quando relacionadas à juventude e suas condições de nomeação da experiência. Também nos perguntamos se o convite à escrita não foi tomado pela via de mais um imperativo ou exigência à produção, diante da "fila autorrenovável de atribuições no intervalo autoconsumível do tempo".

Tal inibição também pode ser relacionada ao medo de ser, pelas palavras, levado ao desconhecido. A construção da alegoria sobrevivência, sobre a vivência, experiência, parece enlaçar uma rede significante que enreda as condições de necessidade, desamparo, da falta, para um possível caminho de assunção do desejo, de uma posição discursiva. O movimento de deixar que o acúmulo de vivências transcorra em vazamento de experiências depende do atravessamento desses limiares, dessa passagem pelas palavras, pela indeterminação, pelo desconhecido.

Em associação a tais reflexões, Gurski (2012; 2014) destaca a descartabilidade e o tom fugidio das relações no tempo social atual, a constante promessa de gozo na relação com os objetos e o prazer fugaz, em que o novo, como novidade, importa mais que qualquer tradição de pensamento. Afirma a necessidade de interrogarmos a transmissão que o mundo adulto faz em direção aos jovens nos dias de hoje, pois os impasses apresentados pela juventude, em cada época, apontam o que está em jogo no cenário social. Caracteriza como "erosão da adultez" (Gurski, 2012) as dificuldades em que os mais velhos se encontram para ocupar a posição de quem tem algo a transmitir às gerações futuras, encantados que estão pelas promessas de gozo atribuídas à juventude.

Gurski e Pereira (2016, p. 430) enfatizam a impossibilidade de pensarmos em constituição psíquica sem a relacionarmos ao laço social que a enseja, pois "é na estreita relação com as pautas de cada época que os sujeitos vão se produzindo e construindo seus modos de constituição e de sofrimento psíquico". Os autores afirmam que, na adolescência, as condições do laço social tornam-se ainda mais impactantes, em função das travessias entre o familiar e o social, em que são buscados novos traços passíveis de se representar e sustentar em um novo lugar psíquico na relação com o Outro. Dessa forma, o adolescente sofre com os efeitos advindos da desmoralização da experiência, do empobrecimento das narratividades, da ausência de diferença geracional, respondendo a essas condições através das manifestações sintomáticas.

Rickes (2007, p. 15) trabalha as condições de possibilidade que sustentam a emergência do lugar sujeito, refletindo acerca das posições enunciativas produzidas pelas diferentes articulações sociais estabelecidas, sustentando-se na teoria freudolacaniana para afirmar que "é impossível pensar o singular desarticulado das condições do laço social que o determina". Aponta a necessária condição de assujeitamento que a constituição do sujeito implica, na impossibilidade de separá-lo do Outro, estabelecendo o lugar sujeito como uma posição que só se desenvolve e se difunde em laços sociais que guardam determinadas características.

Para a autora, nas sociedades tradicionais, de estruturas sociais mais estáveis, a filiação constituía um lugar permanente na trama social, onde a divisão característica da posição sujeito não se configurava. Tal experiência psíquica só pode se estabelecer quando as estruturas que respondem ao homem sobre qual seu lugar nessa trama perdem a consistência e indicam como resposta uma provisoriedade:

A perda de um destino traçado no nascimento não se faz sem o trabalho de luto impulsionado pela ausência do amparo que um destino decidido na origem propicia - destino decidido pela filiação, ou ainda, ditado pelos desígnios do tirano. O indivíduo, ocupante de uma posição social estável, está amparado no traçado de uma trajetória de vida que não lhe reserva surpresas e que depende muito pouco de sua ação uma vez que já está escrita nas tramas do tecido que ele habita. [...] O sujeito, dividido, desamparado de uma origem que lhe antecipe seu trajeto no mundo, tenta fundar os argumentos que respondem por suas escolhas no eu. Este sujeito experimenta a cada passo a precariedade de seu ser, não encontrando nas organizações sociais a estabilidade que poderia conduzir-lhe às respostas sobre os caminhos que deve ou quer percorrer em vida (Rickes, 2007, p. 16).

A fim de perceber como o tema do mal-estar universitário é situado no laço social, tomado como laço discursivo a partir da teoria lacaniana, buscou-se associar ao movimento da flânerie, a observação do que se manifesta no discurso social acerca do tema, por meio de expressões midiáticas de reportagens jornalísticas que tentam explicitar a dimensão do fenômeno estudado, utilizando-se de diferentes formas narrativas. Em algumas delas encontramos um olhar atento e cuidadoso à complexidade e mutifatorialidade do fenômeno que se propõe a analisar, na construção de reflexões que não impõem determinações casuais. Em outras encontramos a busca clara pela determinação dos fatos, os quais surgem "impregnados de explicações", o que nos remete às construções benjaminianas acerca da forma de comunicação informativa, a qual, segundo o autor, é estranha à narrativa e incompatível com seu espírito e suas formas tradicionais por demandar uma verificabilidade imediata, precisando ser "compreensível em si e para si" (Benjamin, 2012, p. 219).

Parte das reflexões que deram lugar ao tema desta pesquisa foi tensionada pelas questões construídas por Brum (2018)2, em um artigo jornalístico em que trata de recentes casos de suicídio entre jovens, os quais repercutiram em instituições escolares. Nesse sentido, propõe uma torção nos questionamentos, reposicionando as perguntas ao campo do coletivo: no lugar de se problematizar o porquê mais jovens se suicidam hoje, sugere pensarmos em por que não haveria mais adolescentes interrompendo a própria vida nos dias atuais do que no passado, destacando as condições atuais de um mundo distópico, que dificulta o encontro de sentidos diante do desespero. Refere que a dimensão coletiva não apaga a singularidade de cada caso, mas tal singularidade deve ser situada no contexto de seu tempo histórico: "quando adolescentes se matam, eles dizem algo sobre si mesmos, mas também dizem algo sobre a época em que não viverão". Ressalta, ainda, que não é possível desconectar qualquer doença da época em que ela é produzida.

Sobre as configurações de nossa época, Brum (2018) aponta as dificuldades de se imaginar um futuro que não seja uma distopia, as expressões ilusórias de um mundo de relações virtuais e da impossibilidade de desconexão, do excesso de estímulos, da impaciência dos segundos e da sobreposição e aceleração dos tempos, em que não há espaço nem tempo para elaborar nenhuma experiência, pois em seguida outra se apresenta. Para a autora: " o mal-estar do nosso tempo é alimentado pela nossa impossibilidade de enxergar uma vida possível logo ali na frente. Como os adultos também não enxergam, o desamparo é total".

Rosa (2015) assinala que a naturalização do desamparo social apaga a força discursiva dos sujeitos que estão submetidos, de forma que, aliado a estes, deparamo-nos com o desamparo discursivo, o qual lança o sujeito ao silenciamento que, muitas vezes, acomete alguns segmentos da população e que pode ser orientador na análise de vários fenômenos. Pujó (2000) constrói a noção de desamparo discursivo para tratar da fragilização das estruturas discursivas que suportam o vínculo social. Refere-se à sensação de desproteção que se apodera progressivamente de nós nesta etapa avançada da modernidade, momento em que o discurso rege a "circulação dos valores e ideais, crenças e tradições, preferências e satisfações aceitas em determinada cultura, interpondo a malha protetora dos semblantes que resguardam o sujeito das emergências do real" (Pujó, 2000, p. 6).

Retomando as construções das produções escritas, destacamos a associação de uma servidora acerca da concepção de mal-estar:

Mal-estar, posição freudiana acerca do sujeito na cultura. Que todos tenhamos um mal-estar em relação a estar, estar com os outros, com os Outros, eis uma das questões fundamentais de toda neurose. A resposta ao mal-estar interpela então cada sujeito desde uma posição singular: da queixa à crítica, do ato à criação.

As respostas ao mal-estar são tensionadas por Kehl (2002) quando afirma que a sociedade contemporânea pensa a cura do sofrimento como eliminação de todo mal-estar: "o homem contemporâneo quer ser despojado não apenas da angústia de viver, mas também da responsabilidade de arcar com ela; quer eliminar a inquietação que o habita em vez de indagar seu sentido" (Kehl, 2002, pp. 8-9). Aponta que o sentido ou significado de um ato, uma experiência ou uma vida inteira se revela na interface entre o que é mais singular, mais particular, e sua inscrição simbólica na cultura. Também nos adverte de que os discursos atrelados às razões de mercado constituem cadeias metafóricas muito pobres, que vão do objeto ao sujeito e se encerram na promoção da ilusão de um encontro entre os dois, por se apoiarem cada vez menos em razões filosóficas.

Recolhendo alguns restos das escritas de experiência, vamos tecendo algumas reflexões. "Os atordoantes aspectos da contemporaneidade." O mal-estar universitário manifesto pela dupla: velocidade-estagnação. Os imperativos contemporâneos de velocidade em contraponto à produção de sintomas: estagnações, paralisações e inibições. Um tempo que não permite o "intervalo necessário a todo percurso simbólico, às próprias inscrições das matrizes simbólicas, balizas necessárias para que, na falta e diante da falta, o sujeito se posicione".

As produções dos participantes remetem a elaborações acerca da singularidade da experiência no nosso tempo, que suscitam algumas construções benjaminianas. Fonseca et al. (2018) destacam que nossas experiências em meio a um cotidiano acelerado acabam atravessadas por um ritmo de vida que forja tempos e espaços muito diferentes dos experimentados pelos antigos contadores de história: " as vivências que se acumulam, uma após a outra, não deixam sobrar tempo para a elaboração necessária para que algo que solidifique em nossa memória como experiência, para que um fragmento se transforme em pérola" (p. 182).

Buscamos novamente as construções de Kehl (2007), a qual também ressalta que a experiência do tempo na contemporaneidade resume-se à experiência da velocidade e ao tempo urgente do capital. A imersão do homem contemporâneo nessa temporalidade urgente, conforme a autora, já não permite conceber outra forma de estar no mundo que não seja a da velocidade, da pressa, das sensações fugazes e das percepções instantâneas que conduzem a decisões urgentes. O tempo, enquanto uma construção social, "talvez seja a face mais invisível e mais onipresente do poder" (Kehl, 2007, p. 258):

O controle do tempo é um aspecto do discurso, no sentido lacaniano, que ultrapassa o puro domínio do significante; a inclusão da dimensão temporal, sob forma subjetiva da espera de satisfação, marca o nascimento do sujeito psíquico. O tempo é instituído, para cada sujeito, no intervalo entre demanda e a satisfação; ou entre a demanda do Outro e a possibilidade do sujeito de responder a ela. Dito de outra maneira: o sujeito do desejo, em psicanálise, é um intervalo que pulsa entre o tempo próprio da pulsão e o tempo urgente da demanda do Outro (Kehl, 2007, p. 258).

Nesse sentido, ainda acompanhando as reflexões da autora, a temporalidade, como forma de organização e percepção do tempo, caracteriza um dos modos de regulação social da pulsão, no que tange ao ritmo que se imprime às modalidades de satisfação, de procrastinação, de gozo. As modalidades de satisfação às exigências pulsionais, manifestas pelas diferentes formas de se vivenciar a passagem ou duração do tempo, são diversas em diferentes culturas.

A problematização dessa questão também é explicitada em reportagens acerca do tema. Em sua nona edição, a revista Arco (2018) trabalhou a temática da saúde mental no ambiente universitário, relacionando-a às atuais transformações no cenário sociopolítico e econômico e às lógicas de trabalho e produção instituídas. O adoecimento mental e suas formas de reconhecimento são relacionadas ao contexto de incertezas, exigências e também de falta de tempo, bem como à pressão acadêmica e ao estresse.

Destacam-se a normatização das lógicas de produtividade e a competitividade do sistema acadêmico, constituindo um ambiente muitas vezes hostil, o que se manifesta em formas de relação permeadas pela intolerância, pelo preconceito e pela segregação. As constantes privações impostas pela rotina, as necessidades econômicas que impõem a divisão do tempo entre estudo e trabalho, bem com a idealização da academia, a individualização e padronização nas práticas de ensino também são pontuadas. Além disso, a estrutura fragmentada com que as instituições se organizam também é associada aos fatores estruturais que contribuem para o adoecimento.

A respeito das lógicas e discursos instituídos no sistema acadêmico, encontramos consonância entre a reportagem e a produção escrita de uma profissional participante:

Uma lógica um tanto paranoica se instaura nos corredores. Na disputa por ser mais que um número, os números, um número, as pessoas se perdem. As relações de alteridade tomam outras frentes, o discurso persecutório se institui. Então é preciso estar um pouco fora, para olhar ao invés de enxergar [...].Temos recebido estudantes atordoados, engolidos pela necessidade de resposta aos imperativos categóricos de nossa época. Respondemos com a escuta, um espaço-tempo lógico que possa ser exterior à cronologia. Ao mesmo tempo, nos vemos imersos aos calendários acadêmicos, às portarias e leis que tentam regimentar o mais rigidamente possível os passos de cada funcionário público. Não sou pública, isto é fato. E cada vez que o cargo que ocupo me fizer sentir pública, sei que estou no lugar errado, sei que estou exatamente onde o mal-estar interpela em grupo, é aí que me perco enquanto sujeito.

"Estudantes atordoados, engolidos pela necessidade de resposta aos imperativos categóricos de nossa época". Mais recentemente, em matéria publicada no dia 16 de agosto de 2019, o jornal gaúcho Zero Hora tratou da ascensão de problemas de depressão e ansiedade e de episódios de suicídio de universitár ios em sofrimento psíquico, ocorridos nas instituições de ensino. Relaciona tal fenômeno e as estatísticas implicadas à sua dimensão mundial e destaca as ações institucionais de suporte. A partir de entrevistas com estudantes, são expressos relatos de isolamento e depressão. Colocamos o trecho a seguir em destaque, a fim de problematizá-lo:

Esse cenário tornou-se mais visível após uma revolução no Ensino Superior, que colocou o sonho de cursar a universidade ao alcance de grupos tradicionalmente excluídos. Nos últimos anos, houve a ampliação das vagas, a interiorização dos cursos, a adoção de políticas de cotas e a possibilidade de ingresso com a nota do Enem, por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Essas mudanças criaram uma mobilidade acadêmica inédita, com estudantes espalhando-se pelo Brasil. Alunos e professores ouvidos por GaúchaZH acreditam que essa bem-vinda transformação, responsável por democratizar o acesso e promover a igualdade, pode ter tido um efeito colateral imprevisto. A escassez de estruturas e recursos de apoio aos ingressantes pode ter favorecido casos de depressão nos campi.

De que efeito colateral imprevisto se trata? Refere-se a um efeito frente a uma mobilidade física ou se quer tratar de uma mobilidade social? O caminho discursivo tomado pela reportagem parece trilhar curvas sinuosas ao associar um processo de democratizaçãodo acesso a um efeito inesperado, o qual tem uma relação mais estreita com as condições de permanência dos alunos nas instituições, com a escassez de ações de assistência estudantil e com a precarização do ensino público, que instauram uma condição de desamparo social.

Nos propomos a pensar tal colocação a partir de alguns tensionamentos: o risco de tal associação direta cair em uma patologização de uma condição de vulnerabilidade social, bem como a possibilidade de incursão na exclusão da condição sociopolítica do sofrimento. Tais reflexões nos aproximam das advertências propostas por Dunker (2015) a respeito da expansão do âmbito patológico, contemplando atitudes inadaptadas, estilos de vida, comportamentos de risco, disfunções cerebrais, propensões genéticas e até mesmo vulnerabilidades sociais, o que configura uma "revitalização expansiva da diagnóstica psiquiátrica sem comparação com outras áreas da medicina" (p. 22).

Colocamos em questão também o próprio termo democratização, o qual, reposicionado frente ao contexto histórico da universidade enquanto instituição e de uma reforma universitária, iniciada nas proximidades da década de 1970, nos remete às reflexões de Chauí (2014) a respeito da implantação de um sistema universitário estruturado no modelo administrativo e organizacional da grande empresa capitalista. Conforme a autora, a massificação do ensino universitário, com o aumento de estudantes, baixou o nível dos cursos, a partir da desproporção entre corpo docente e quantidade de alunos, bem como pelo estado de degradação do ensino médio. Tal ideia de massificação, conforme a autora, pressupõe uma concepção elitista do saber, em que "está implícita a ideia de que para a 'massa' qualquer saber é suficiente, não sendo necessário ampliar a universidade de modo a fazer com que o aumento da quantidade não implicasse diminuição da qualidade" (Chauí, 2014, n.p.).

A violência dos discursos produzidos no capitalismo avançado é problematizada por Rosa (2015), indicando um modo de laço em que o sujeito é convocado violentamente ao gozo, sob a forma de consumo e lucro, ou na forma de sofrimento. Destaca a necessidade de abordarmos os fenômenos socioculturais e políticos da contemporaneidade e a problematização de sua incidência no sujeito, a qual produz, muitas vezes, efeitos de alienação e de destituição subjetiva. A leitura da autora é convocada pelo escrito da discente:

A tal empilhamento soma-se a instabilidade e a insegurança sociopolítica de não saber sobre a continuidade do solo em que piso enquanto profissional e cidadã e sobre a segurança de corpos como o meu e de corpos portadores de outros marcadores sociais. Política essa dos direitos que vão e vem e dos corpos que cada vez mais vão e jazem nas trincheiras de uma existência não reconhecida na podridão de um sistema de classes e de cores. O movimento desleal entre o ser tomada ou pela desesperança ou pela alienação. Isso também é expressão de mal estar. [...]

É nesse sentido que, junto a Rosa (2016), entendemos que os sintomas manifestos precisam de ser relacionados ao campo do social, fazendo-se necessária a escuta do sofrimento em sua dimensão sociopolítica, bem como a reflexão sobre os efeitos do desamparo discursivo nos sujeitos. Destacamos a proposta de psicanálise implicada construída pela autora, implicação com a noção de laço social e discursivo como produtor e indutor de subjetividades. A autora também aponta a necessidade de construção e fundamentação de dispositivos de intervenção que incidam no discurso que rege o laço social, bem como de estratégias clínicas coletivas que criem formas de elaboração simbólica do vivido, resgatando a experiência compartilhada.

A expressão do mal-estar e sofrimento discente também é destacada na escrita de uma professora:

[...] o sofrimento dos alunos. Isso tem me feito repensar muitas coisas e também tentar compreender o que estamos fazendo que nossos alunos estão adoecidos. Diagnosticados, medicalizados, apáticos, sem brilho no olhar. Um olhar perdido tentando entender "o que vim buscar na universidade".

Propomos a reflexão acerca do que se manifesta nesses discursos aliada às construções de Dunker (2015), quando demarca a impossibilidade de compreender as configurações históricas do sofrimento psíquico sem partirmos da reconstrução prévia de seus vínculos com a experiência social. Dessa forma, o sofrimento é indissociável de uma experiência narrativa que mobiliza sistemas sociais de valores e expectativas fracassadas de reconhecimento.

O autor define racionalidade diagnóstica no contexto de articulação entre mal-estar, sofrimento e sintoma, a qual "opera cifrando, reconhecendo e nomeando o mal-estar em modos mais ou menos legítimos de sofrimento e, estipulando no interior destes, as formas de sintoma" (Dunker, 2015, pp. 20-21). Adverte que a nomeação normativa de um sintoma incluída em classificações é fortemente redutiva em relação ao domínio de experiência que ela comprime e generaliza, operando uma neutralização do potencial crítico que dos sintomas psicológicos e do papel que sempre tiveram, de produzir novas modalidade de laços sociais.

É nesse sentido que nos questionamos acerca das construções da gramática de sofrimento manifesto no cenário educacional e de uma racionalidade específica nesse âmbito, institucionalizando formas de gestão do sofrimento e de administração do mal-estar, atreladas às formas de laço social na contemporaneidade, bem como aos modos atuais de estruturação do sistema universitário e suas lógicas de produção.

A busca por um ideal na formação, relacionado à demanda de mercado como objetivo a ser atendido, nos aproxima das reflexões de Chauí (2014) sobre a universidade administrada, a ideologia neoliberal e as formas atuais de gestão da educação. Tais questões são explicitadas na escrita de um docente participante: "Além disso, acompanhei os primeiros alunos ingressantes até a graduação, podendo, desta forma, visualizar e monitorar o "produto" que estávamos entregando ao mercado".

A partir destes recortes, recolhemos as construções da autora acerca do conceito de ideologia da competência, o qual se caracteriza pela afirmação de que a divisão social se realiza entre os competentes e os incompetentes: os primeiros, especialistas que possuem conhecimentos científicos e tecnológicos, em contraponto aos que executam as tarefas comandadas pelos especialistas. Destaca que o discurso competente é aquele proferido pelo especialista, que ocupa uma posição determinada na hierarquia organizacional:

Creio que a universidade tenha hoje um papel que alguns não querem desempenhar, mas que é determinante para a existência da própria universidade: criar incompetentes sociais e políticos, realizar com a cultura o que a empresa realiza com o trabalho. [...] Se a universidade brasileira está em crise, é simplesmente porque a reforma do ensino inverteu seu sentido e finalidade - em lugar de criar elites dirigentes, está destinada a adestrar mão de obra dócil para um mercado sempre incerto. E ela própria ainda não se sente bem treinada para isso, donde sua "crise". (Chauí, 2014, n.p.)

Em algumas escritas de docentes participantes são expressas as incidências deste sistema na produção de sofrimento e mal-estar. A confrontação dos sujeitos com um ideal imposto parece constantemente atualizar as exigências para um mais além, revelando também a ambivalência entre a satisfação pela produtividade e o reconhecimento do lugar em que todos esses imperativos os colocam:

A oferta de diversas disciplinas fora da área de domínio de conhecimento é frequente nas instituições privadas. Este fato é favorável na ampliação do conhecimento, porém exige um empenho muito grande para o domínio do conteúdo e oferta das aulas, demandando muito estudo e tempo de preparo e capacitação para o desempenho dessa função. Por outro lado, essa condição gera um estresse muito grande devido ao empenho e organização do tempo de preparo e oferta das aulas.

Na pesquisa realizada por Pereira (2016) acerca do mal-estar docente, são expressos um crescente esgotamento, absenteísmo e hipermedicalização, além de queixas acerca das precárias condições de trabalho, de uma paralisia profissional, depressão e fenômenos associados, como estresse, transtorno bipolar, alimentar, pânico, bem como consumo de álcool. Para o autor, as constantes demandas a que estão submetidos relacionam seu êxito profissional ao êxito de todos, expondo sua vulnerabilidade. Ao avaliar o aluno, o que se avalia é o próprio trabalho do professor, colocando em suspeita sua competência, podendo produzir sentimentos de impotência e culpa, colocando à prova seu narcisismo. Afirma ainda que, na crença da responsabilidade pela transmissão do saber e tomado pelos ideais pedagógicos do nosso tempo, o docente vive o fracasso como algo muito próprio.

Além disso, encontramos a expressão de algumas dessas questões apontadas pelo autor na escrita de uma docente:

A caminhada vai se consolidando, você começa a se desvendar também nas suas possibilidades. Digo isso, pois a vida acadêmica é perversa, egóica, competitiva. O lattes passa por cima de todos. Você acha que não dará conta, que não publica o suficiente... Enfim, vai observando como cada colega também lida com isso. Depois da maternidade, você precisa de terapia para entender que a vida acadêmica não terá mais o mesmo ritmo. Sua produção é outra e você descobre que é possível, que você sobrevive.

Charczuk (2017) destaca que o sofrimento docente também pode estar relacionado a práticas, arranjos escolares e situações educacionais em que o professor é destituído de sua subjetividade em seu exercício, de sua singularidade. Para a autora, determinadas situações podem transformar a relação educativa em palco para a objetificação dos sujeitos, expropriando-lhes seus saberes e reduzindo a possibilidade de criação e invenção. Dessa forma, formula apostas em espaços de fala e também de formação de professores, onde estes possam dizer de si, de seu trabalho e de seu sofrimento.

Por meio da escrita, a narrativa dos excessos institucionais parece encontrar espaço de inscrição, de registro de uma multiplicidade de funções assumidas que se enumeram:

[...] Dessa forma, o grande estresse encontra-se nessa habilidade de exercer todas essas atividades de forma satisfatória. [...] Essa multifuncionalidade ativa me coloca em uma situação de movimento frenético, que ora se constitui em diversos cenários de atuação ampliando minhas habilidades e competências e ora me coloca em posição de fadiga. [...] A classificação docente nos órgãos de pesquisa, por produção docente, é um fator estressante, pois a elaboração de pesquisas estruturadas que despertem a classificação e investimento no projeto de autoria é insano. Esse fato contribui com a ansiedade docente [...].

A produção escrita do docente encontra-se com as reflexões de Costa (2017), ao questionar a investida neoliberal em prol do desmonte das instituições públicas, com sua lógica meritocrática, de produtividade e de concorrência quanto ao financiamento de pesquisas e classificação em ranqueamentos. Para o autor, diante deste cenário, retorna-se à ideia de moderação, impondo aos sujeitos a criação de estratégias de sobrevivência, diante da necessidade de "que fôssemos mais ou menos competitivos, mais ou menos empreendedores, mais ou menos ávidos para que nos tornássemos merecedores de sobrevivências acadêmicas mais ou menos compensatórias" (Costa, 2017, p. 23).

Ao tensionar as formas de gestão desse sistema, o autor evoca a dimensão micropolítica na construção de modos criativos de resistência, como formas de resposta do desejo à experiência da desestabilização e mal-estar provocados. Convoca-nos a traçar, com nossas pesquisas, nossas escritas e modos de viver-junto, cartografias capazes de construir possibilidades de trânsito no ambiente acadêmico, diante das forças que colonizam nossa experiência imediata.

A construção desses espaços possíveis, a contrapelo das imposições deste cenário obscuro, na produção de encontros que buscam os sujeitos da experiência, é evocada pela narrativa da docente:

Atualmente, percebo que nossos alunos precisam de um olhar atento, de alguém que escute suas angústias, suas questões, seus medos, anseios... alguns precisam ou buscam um abraço, um olhar, um "oi, tudo bem"? Coisa mínimas no relacionamento interpessoal diário. Mas para querer/poder ouvi-los preciso querer e saber que serei afetada por isso. Que de alguma forma preciso me envolver. Construímos um grupo que não é só de pesquisa, ensino ou extensão. É um grupo de afeto, de cuidado.

Junto a estas construções, recolhemos um trecho da escrita de uma profissional, a qual também aponta a construção de espaços criativos e de resistência:

O que hoje realmente me toma experiencialmente são as possíveis projeções futuras. Como sustentar uma ética que muitas vezes é contrária à lógica universitária? Neste espaço que habito, ainda me é possível e por isto permaneço. Convivo com pessoas que respeitam o tempo, produzimos laços interessantes e um respiro àqueles que chegam à clínica submersos. Como são possíveis estas produções? Serenidade e sinceridade. Não cair num discurso óbvio sempre me pareceu recomendável, não reproduzir queixas, mesmo que às vezes, me veja envolta delas (...).

Dessa forma, a tessitura de tais redes discursivas acerca das formas de expressão contemporâneas do mal-estar na universidade, pela narrativa das experiências do percurso deste estudo, busca alinhavar seus últimos traçados. Estes vão se entrelaçando no reconhecimento da existência de muitos fios soltos pelo caminho, bem como de alguns nós impossíveis de desatar, que nos remetem à dimensão de incompletude, de intransmissibilidade e dos limites da linguagem. O indeterminado. O desconhecido. O bordado dessa trama também mostra um desenho descontínuo em seus avessos, que transparecem a dimensão impossível do educar e seus restos, no não-saber que buscamos contornar pela palavra.

Nesse sentido, retornamos às provocações do fragmento que abrem este ensaio: "como não recuar nos limiares, não se ausentar da passagem, transmissão do que por vezes é da ordem do inenarrável"? Insistimos na constituição da experiência, no exercício do desejo, pela circulação da palavra. Na busca pelos limiares, a livre associação da discente encontra na produção artística possibilidades de elaboração de um tempo. Sobre viver e experenciar - re (existir), (re) sentir, (re) significar. Criar:

Mal estar é perceber que existem mais cicatrizes sob o sol do que os espaços de escuta dentro de uma instituição interessados em conhecer. É doloroso saber que essa limitação também serve a algo, afinal, como a letra de uma música que tanto marca a experiência de 2019, ao tanta dor roubar nossa voz, o que resta de nós? Alvos passeando por aí. No sinal AmarElo do percurso de narrar a si mesmo, pode-se ler escrito:
"Se isso é sobre vivência, me resumir a sobrevivência é roubar o pouco de bom que vivi."
(Emicida, 2019)3.

 

Restos-retalhos: tecituras da experiência em tempos sombrios

Ao final desta travessia, algumas falas e escritas insistem em ecoar. Significantes que inscrevem algumas expressões contemporâneas do mal-estar na universidade e, por que não dizer, no cenário social do nosso tempo. Precipitados da experiência que decantam de narrativas diversas. O desamparo, a velocidade, a estagnação, a sobrevivência, o esgotamento, a indiferença, o silenciamento. A destituição subjetiva. A ausência de limiares. São restos-retalhos da tecitura desse percurso de pesquisa que constituem formas de nomear o mal-estar, de fazer registro e inscrição do que inquieta, do que produz sofrimento, nos limiares da escrita. Elaborações que criam formas de dar escape aos não-ditos, produzindo encontros destemidos com o desconhecido, disparando correntes de significação.

Continuamos a deparar-nos com os atordoantes aspectos da contemporaneidade. A suspensão do tempo frente ao choque do real. No momento em que escrevo estas linhas, estamos envoltos em um acontecimento que interpela a todos, sem distinções de qualquer ordem. A expressão do mal-estar toma-nos a partir de um mesmo lugar. Isolados, reclusos no combate a um inimigo invisível. Uma condição contingente de saúde pública, uma pandemia, que nos impôs uma paragem, um intervalo frente ao emaranhado de vivências cotidianas. Uma pausa de tempos indeterminados. A vivência que forja reflexões, ainda mais urgentes, sobre a constituição de experiências limiares cotidianas. Muitos de nós ainda respondem espelhados aos imperativos de nossa época: produzir fazeres neste intervalo, tirar proveito deste tempo.

A condição de exílio, para além do que nos convoca o ato de escrita, conforme nos suscitaram as construções desta pesquisa, se torna uma necessidade real, no isolamento social. Porém, um descentramento subjetivo já nos demanda um esforço maior, pois as novas informações e novos acontecimentos nos convocam constantemente, denunciando riscos. Estamos no tempo de testemunho sobre a vivência, buscando recursos narrativos, formas de nomear o mal-estar e o sofrimento que encontrem um registro simbólico de tal experiência, frente ao real que não cessa de interpelar. Impotência, incertezas, fragilidade, vulnerabilidades...

Uma vivência que nos coloca frente ao novo, que certamente nos tornará outros. Um intervalo que impõe tensionamentos sobre nossos modos de ser e de viver, modos de produção e de circulação dos afetos. Tensionamentos também precipitados a partir das inquietações que originaram esta pesquisa. Tais acontecimentos constituirão fronteiras ou limiares? Voltaremos silenciados deste combate, como refere Benjamim (2012/1933) acerca dos soldados frente ao choque da experiência de guerra? Percebemo-nos como minúsculos e frágeis corpos humanos frente a um campo destrutivo de forças, em aproximação à narrativa do autor acerca daquela experiência, fazendo frente ao desamparo. Insistimos: não se pode desistir de constituir experiência; trata-se da mesma matéria, do exercício do desejo.

As formas de gestão do sofrimento e administração do mal-estar mostram sua face mais perversa, propondo-nos escolhas entre a vida ou o capital, entre formas de sustento e de renda ou a preservação da saúde. Um paradoxo perverso. Um "estado suicidário", como bem nos descreve Safatle (2020), na construção de uma denúncia ao que caracteriza como "um novo estágio nos modelos de gestão imanentes ao neoliberalismo. Agora, é sua face a mais cruel, sua fase terminal" (Safatle, 2020, p. 4).

De alguma forma, as leituras e escutas construídas a partir deste percurso de pesquisa recolhem o mal-estar proveniente do confronto dos sujeitos com estas lógicas. Racionalidades neoliberais. Muitas vezes violentas, intolerantes, segregadoras. Os condicionamentos e as sobrevivências acadêmicas. O aluno-produto entregue ao mercado. Lógicas que também sustentam uma gramática de sofrimento no cenário educacional. A escrita que flui no movimento das livres associações denunciando o mal-estar. A escrita que o bordeia, contorna, para dele não dizer. A escrita impossível. As inscrições em ato. São recortes de alguns efeitos dos discursos que organizam o laço social nas vivências universitárias e nas nossas formas cotidianas de fazer laço.

Lembramos Agamben (2005, pp. 21;23) quando afirma que o homem contemporâneo foi expropriado de sua experiência e a incapacidade de fazê-la e transmiti-la "talvez seja um dos poucos dados certos de que disponha sobre si mesmo". O autor também aponta o insuportável de nossa incapacidade de traduzir em experiências nossa existência cotidiana. Porém, constatando tal realidade, ainda insiste - na esteira da herança benjaminiana - na possibilidade de existência de "um germe de experiência futura", em hibernação, apostando no escrito como um lugar lógico para que possa atingir a maturação.

Como não recuar frente ao inenarrável? Como sustentar-se como sujeito em meio a contextos engolfantes? Como sustentar uma ética muitas vezes contrária à lógica universitária?

Torna-se impossível pensar a respeito do final de um percurso de pesquisa sem ser interpelada pelas expressões mais atuais do mal-estar, nos limites entre a vida e a morte, nas condições de sobrevivência. Significante que insiste por entre os traçados desta pesquisa, relacionado ao cenário educacional. As associações em meio a esta rede significante nos remetem às condições de enunciação dos sujeitos na atualidade, muitas vezes destituídos da possibilidade de narrar-se. Sem espaços e tempos de elaboração.

O silenciamento de muitos estudantes em resposta à proposição deste estudo nos faz refletir sobre formas não convencionais de escuta e intervenção, implicadas com estas incidências dos fenômenos sociopolíticos nos sujeitos e na criação de formas de elaboração simbólica do vivido. A percepção de alunos adoecidos, a apatia, o olhar perdido. O adoecimento, a medicalização como estratégia para suportar, a falta de brilho no olhar. Caracterizações que nos remetem, mais uma vez, às produções de Agamben (2008), ao enunciar que o biopoder contemporâneo reduz a vida à sobrevida, elimina o corpo e o mantém em uma zona intermediária entre a vida e a morte, produzindo sobreviventes. Referenciando as construções do autor, Pelbart (2013) aponta que tal condição de sobrevivente caracteriza um efeito generalizado do biopoder, não mais restrito apenas aos regimes totalitários, mas incluindo "a democracia ocidental, a sociedade de consumo, o hedonismo de massa, a medicalização da existência, em suma, a abordagem biológica da vida numa escala ampliada" (Pelbart, 2013, p. 27).

Como produzir passagens do mal-estar ao ato criativo? Como fazer frente ao desamparo discursivo? Aqui, encontramos na escrita uma possibilidade de fazer a experiência falar, de produção narrativa, advertidas de tantas outras possíveis, na aposta em nossa responsabilidade cotidiana enquanto profissionais e na potencialidade de nossas práticas criativas. A ética da psicanálise convoca-nos ao encontro com a transitoriedade nos limiares, com a transitoriedade de nossas vidas. Passagens constitutivas de experiências e de subjetividades. Brechas, fendas, deslocamentos, esses lugares-do-entre que se abrem, em suspensões temporais por onde os sujeitos possam emergir. Intervalos. Lugares de ruptura, de rompimentos com o estabelecido, de aberturas para o novo e de avessos produtivos de traçados singulares.

A construção de espaços-tempo de circulação da palavra, de precipitação do sujeito da experiência, situa sua aposta nas experiências limiares nomeadas por Benjamin: o despertar, a conversação e o sonho como passagens, zonas de transição criativas e transformadoras, que constituem novas posições enunciativas. Não recuemos frente à travessia indeterminada e perigosa da experiência. Pelo fragmento recortado da música evocada pela estudante, buscamos lampejos frente a tanta obscuridade:

"Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes (...)
Pra que amanhã não seja só um ontem
Com um novo nome."

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 12/02/2021
Aprovado para publicação em: 01/07/2021

Endereço para correspondência
Gabriela Oliveira Guerra
E-mail: gabrielaoliveiraguerra@gmail.com
Taís Fim Alberti
E-mail: tfalberti@gmail.com
Camilla Baldicera Biazus
E-mail: camillabiazus@yahoo.com.br

 

 

*Psicóloga na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS). Graduada em Psicologia pela UFN-2009 e especialização em Atendimento clínico: Abordagem Psicanalítica pela ULBRA/SM. Mestre em Psicologia pela UFSM/RS.
**Professora Associada do Departamento de Psicologia, no Centro de Ciências Sociais e Humanas (UFSM). Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Mestrado e Doutorado. Graduada em Psicologia pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, mestre em Educação pela UFSM e doutora em Educação pela UFRGS.
***Docente no Curso de Psicologia da URI. Graduada em Psicologia (UFN -2009), mestrado em Psicologia Clínica pela UNISINOS e Doutorado em Linguística pela UFSM. Pós-doutora (PNPD - CAPES) pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSM.
1Importa destacar que, durante a realização desta pesquisa, foram considerados todos os procedimentos éticos necessários. O estudo passou por análise e aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da instituição. Foi solicitada autorização institucional e, para participação na pesquisa, foram previamente esclarecidos seus objetivos e apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, estando garantidos o sigilo, a privacidade e a confidencialidade.
2Eliane Brum é jornalista, escritora, documentarista e colunista do jornal El País.
3Referência ao álbum AmarElo e à música de mesmo título, composto pelo rapper brasileiro Emicida.

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