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Junguiana
versão impressa ISSN 0103-0825
Junguiana vol.36 no.2 São Paulo jul./dez. 2018
Estudo sobre sonhos de pacientes da oncologia pediátrica
Estudio sobre sueños de pacientes de la oncología pediátrica
Gabriela Perna de MendonçaI; Ivelise FortimII
IPsicóloga graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail: <gabiperna@uol.com.br>
IIPsicóloga graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP e Doutora em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Estudos Junguianos. Professora nos cursos de graduação em Psicologia e de Tecnologia em Jogos Digitais da PUC-SP. Coordenadora do Janus (Laboratório de Estudos de Psicologia e Novas Tecnologias). E-mail: <ifcampos@pucsp.br>
RESUMO
Este artigo pretendeu realizar uma breve revisão de literatura da psico-oncologia sobre os efeitos do diagnóstico e tratamento de câncer na vida do indivíduo para, em seguida, relacionarmos com a teoria analítica sobre sonhos, trauma e a doença como símbolo. O objetivo deste trabalho é estudar os sonhos desses pacientes, entre 10 e 12 anos, estejam eles ainda em tratamento ou não, a fim de relacionar os elementos e/ou temáticas comuns aos sonhos deste grupo, com a experiência com a doença, suas sequelas e a teoria analítica. Foram realizadas entrevistas com o paciente e seu responsável, além da coleta dos relatos de sonhos das crianças. A análise do material nos aproximou da situação psíquica dos sujeitos, na qual, a partir dos elementos e estruturas oníricas, foi possível perceber uma fragilidade emocional intensa e a possibilidade de dissociação psíquica. Os temas oníricos remetem à doença e ao seu tratamento apontando para uma tentativa de elaboração dessas vivências.
Palavras-chave: Câncer infantil, sonhos, psicologia analítica, oncologia pediátrica, símbolo.
RESUMEN
Este artículo pretendió realizar una revisión de literatura de la psicooncología sobre los efectos del diagnóstico y tratamiento de cáncer en la vida del individuo, para luego relacionarse con la teoría analítica sobre sueños, trauma y la enfermedad como símbolo. El objetivo de este trabajo es estudiar los sueños de estos pacientes, entre 10 y 12 años, estén ellos todavía en tratamiento o no, a fin de relacionar los elementos y/o temáticas comunes a los sueños de este grupo, con la experiencia con la enfermedad, sus secuelas y la teoría analítica. Se realizaron entrevistas con el paciente y su responsable, además de la recolección de los relatos de sueños de los niños. El análisis del material nos acercó a la situación psíquica de los sujetos, donde, a partir de los elementos y estructuras oníricas, fue posible percibir una fragilidad emocional intensa y la posibilidad de disociación psíquica. Los temas oníricos remiten a la enfermedad y su tratamiento apuntando hacia un intento de elaboración de esas vivencias.
Palabras clave: cáncer infantil, sueños, psicología analítica, oncología pediátrica, símbolo.
1. Introdução
A infância é uma fase de extrema importância na vida de qualquer indivíduo. Neste momento, a maior preocupação é o seu desenvolvimento e, por isso, um diagnóstico de câncer causa um grande impacto no paciente e em sua família. Toda a rotina daquela criança mudará e os hábitos terão de ser colocados de lado, dando lugar a tratamentos invasivos e dolorosos, medo da morte, além de possíveis hospitalizações, em alguns casos, até em alas isoladas, restringindo o contato com os familiares. Essas novas vivências tendem a causar "sentimentos de culpa, punição, medo da despersonalização e regressão no seu desenvolvimento psicológico e cognitivo" (ALVES; FIGUEIREDO, 2017, p. 61).
O apoio emocional ao paciente e sua família é essencial durante todo o tratamento. Para a criança, existem diferentes trabalhos dentro do contexto hospitalar para lhe fornecer acompanhamento psicológico, tais como: grupos de apoio psicológico, grupo de expressão criativa e de histórias contadas, atividades lúdicas na brinquedoteca e o uso de desenhos. Entretanto, foi verificado por Bigio (2005) o fato de ainda ser comum que criança não tenha conhecimento sobre a doença, seu tratamento e prognóstico, fazendo com que tenha compreensões distorcidas a respeito de sua condição, ficando, assim, impossibilitada de se apropriar de sua realidade. Essa falha na comunicação e na relação paciente-família acaba por provocar sentimentos de abandono e fragilidade emocional. Com isso, além de se sentir distante dos pais, o paciente acaba reprimindo suas angústias, medos e fantasias, podendo apresentar pobreza de recursos internos para lidar com a condição que está enfrentando, como foi verificado pela autora citada.
As experiências vividas a partir do diagnóstico são carregadas por um intenso afeto, fazendo com que todos os elementos perceptivos e mentais associados a essa experiência se acumulem em torno desse afeto, configurando o que conhecemos como complexos. Como explica Jung (1984), os complexos são parte fundamental do material onírico, que se manifestam em sonhos como personagens, cenários, atitude do ego, clima do sonho etc.
O presente artigo se propôs a estudar sonhos de quatro crianças, entre 10 e 12 anos, diagnosticadas com câncer, visando fazer um paralelo entre o conteúdo onírico e a experiência com a doença. Vemos, neste estudo, como a riqueza deste material possibilita, através das imagens e símbolos, uma aproximação da situação psicológica dos sujeitos.
Por estarem submetidos a experiências muito carregadas emocionalmente e potencialmente traumáticas - tais como separação da família, sintomas físicos, intervenções cirúrgicas, quimioterapia, sentimento de impotência, entre outros -, podemos utilizar a análise dos sonhos como forma de procurar compreender como a psique está sendo afetada e como ela reage a essas vivências.
Kalsched (2013) alerta para o risco de fragmentação psíquica da criança em decorrência de experiências traumáticas. Tipicamente, quando isso acontece, "uma das partes do ego regressa ao período infantil e outra parte progride, isto é, cresce rápido demais e se torna precocemente adaptada ao mundo exterior, com frequência como um 'falso eu'" (p.15). Nestes casos, a personalidade que regride é geralmente apresentada nos sonhos como um eu vulnerável, inocente e vergonhosamente oculto. Enquanto a parte que progrediu, apresenta-se nos sonhos como um ser poderoso, que protege ou oprime seu duplo, podendo ser representado por um anjo ou um animal selvagem. A dissociação é parte das defesas normais da psique contra o impacto do trauma: ela permite que a vida exterior prossiga, porém a um grande custo interior. Mesmo quando o evento traumático termina - o que poderia equivaler, no caso deste estudo, ao encerramento das intervenções cirúrgicas, das quimioterapias ou até mesmo do câncer em si -, as sequelas psicológicas continuam a assombrar o mundo interior através de figuras interiores opressoras.
Alguns aspectos gerais do sonho devem ser levados em consideração para realizar este estudo. Jung (2001) compara o sonho a um drama, explicitando três aspectos estruturais que devem ser examinados: primeiro, a introdução, composta pelo cenário, personagens e o problema ou questão; segundo, a peripécia ou desenrolar da história; e, por fim, a solução final ou desfecho.
Cada um desses três aspectos estruturais nos revela informações importantes relacionados ao conteúdo inconsciente, ao ego do sonhador e até mesmo sua personalidade. Já na situação inicial do sonho, é possível que aconteça a introdução do tema arquetípico central. No decorrer do desenvolvimento da ação, surgem aspectos importantes sobre a relação atual do ego com os complexos constelados e padrões arquetípicos ativados que compõem o sonho. Ainda no nível da peripécia, aparecem elementos coadjuvantes, considerados como aspectos da personalidade do sonhador em contato com o ego onírico. O modo como essa relação se dá nos sugere "a função defensiva, protetiva, propulsora ou impeditiva que tais elementos desempenham na dinâmica atual da psique" (PENNA, 2014, p. 123).
A atitude do ego onírico nos ajuda a compreender as potencialidades à disposição do ego, ou seja, as capacidades que já estão, praticamente, disponíveis a ele. Quando o ego onírico assume uma posição ativa no sonho, como comandante da ação, é apontada uma relação produtiva do ego em relação aos complexos. Já uma atitude passiva, quando ele sofre as ações dos outros, ou ausência de ego, colocando-o numa posição de observador, podem denunciar uma "atitude defensiva de vitimização e/ou projeção da responsabilidade pela sua vida nos outros ou nas situações externas" (PENNA, 2014, p. 124). Finalmente, o modo como o sonho termina, ou até onde a memória do sonhador alcança, nos revela sobre o sentido prospectivo da psique, ou seja, o rumo que está sendo delineado na dinâmica psíquica.
2. O câncer como símbolo
Através do teste de associação, Jung pôde observar que, quando complexos são ativados, são provocadas alterações no nível fisiológico e psicológico. Em outras palavras, complexos muito carregados de energia psíquica podem provocar sintomas no nível da psique, como uma psicose ou, no nível do corpo, como um câncer. Quanto maior a energia num complexo específico, maior a probabilidade de ele ser constelado, ou seja, maior a sintomatologia (RAMOS, 1996)
Jung (1982) compreende que os conteúdos sintomáticos são, em parte, simbólicos e representam indiretamente os estados ou processos inconscientes. Entende-se, portanto, que o próprio sintoma é a representação simbólica de uma desregulação no sistema psíquico, podendo mostrar-se no corpo (como doença física) ou na psique (como doença mental). Da mesma maneira, Oliveira et al (2006) compreendem o sintoma como uma falha na elaboração psíquica naqueles que não possuem recursos internos capazes de elaborar e integrar determinado trauma.
Nesse sentido, Lima, Botelho & Silvestre (2011) encontram, nos sujeitos da pesquisa, ligações entre o histórico de vida e a emergência do câncer. As autoras identificaram que as crianças sofriam decepções emocionais crônicas, como negligência, conflitos familiares, privação afetiva desde pequenas, o que as tornam "suscetíveis à doença, desprotegidas de sua defesa natural" (p.150).
Já Oliveira et al. (2006) levantam algumas hipóteses sobre o câncer como a manifestação de algo não simbolizado. Colocam a manifestação somática como um possível pedido de socorro ou atenção; também observam que, em muitos pacientes hospitalizados, o câncer surgiu após um intenso trauma ou sofrimento psíquico, como um acidente, a morte de um parente, uma separação, entre outros.
Ramos (2006) também afirma que há relação entre eventos psicológicos, o grau de expressividade emocional e o sistema imunológico. Em outras palavras, a não expressão de uma emoção negativa e impactante é potencialmente um fator para a alteração do funcionamento do sistema imunológico.
Compreende-se que a doença surge "como um recurso de compensação, um recurso simbólico de auto-regulação de polarizações conscientes, através da integração de conteúdos inconscientes" (SERINO, 1999, p. 43). Ao permitirmos a conscientização e elaboração dos processos inconscientes via o trabalho com sonhos, favorecemos o fluxo de energia psíquica do inconsciente para a consciência, evitando a desregulação ou estado de unilateralidade, que poderiam afetar o sistema imunológico ou expressar-se simbolicamente no corpo.
3. Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa com pacientes da oncologia pediátrica que residiam temporariamente em uma instituição filantrópica ou "casa de apoio" em São Paulo, SP.
Serão usados nomes fictícios a fim de preservar a identidade dos participantes. São eles: Maurício, sexo masculino, 10 anos, em tratamento de leucemia aguda, que esteve internado durante 6 meses para quimioterapia; Melina, sexo feminino, 12 anos, em tratamento para tumor ósseo; Nádia, sexo feminino, 12 anos, manutenção dos efeitos colaterais de um tumor cerebral e da consequente retirada da hipófise, esteve em coma durante 2 anos e foi submetida a diversas cirurgias na cabeça; e Carolina, sexo feminino, 12 anos, que recebeu alta do tratamento de câncer hepático e renal há 10 anos, mas continua em acompanhamento endócrino, nefro e oncológico, passou por quimioterapia e radioterapia, além de ter a suprarrenal removida. A participação foi voluntária e não houve determinação prévia de tipo específico de câncer, o mesmo em relação a gênero, origem étnica e sintomatologia.
É importante ressaltar que os sujeitos dessa pesquisa são de baixo poder aquisitivo, o que já configura uma vulnerabilidade social por si só. Essa condição pode ser um complicador no processo de adoecimento, uma vez que dependem dos serviços públicos de saúde, podendo sujeitá-los a longas filas de espera, escassez de medicamentos, necessidade de locomoção para cidades maiores, entre tantas outras dificuldades vivenciadas pelos entrevistados. Além disso, as crianças e seus respectivos responsáveis vieram de diferentes lugares do Brasil para São Paulo, em busca de um melhor tratamento médico. Essa mudança implica numa quebra brusca da rotina e dos hábitos e, principalmente, no abandono do núcleo familiar, da escola, do trabalho e de todo um suporte emocional indiscutivelmente importante tanto para a criança quanto seu acompanhante
O material foi coletado em um encontro individual com o responsável e com a criança, separadamente. Os encontros ocorreram na instituição onde os sujeitos moravam durante o período da coleta de dados. Através de entrevistas semiestruturadas individuais, gravadas mediante autorização prévia dos entrevistados e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido conforme Resolução no 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), foram abordados o contexto de vida da criança e seus sonhos.
O método de análise dos dados coletados consiste na categorização dos elementos e temas oníricos, possibilitando identificar similaridades entre os sonhos coletados e relacioná-los com o contexto de vida dos sujeitos.
O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com número CAAE 61884216.9.0000.5482.
4. Resultados e discussão
A partir dos sonhos coletados, foi possível observar algumas semelhanças, tanto no que diz respeito ao conteúdo quanto à estrutura onírica. O que nos propomos a fazer é analisar as características em comum entre os sonhos, embasados na leitura teórica apresentada anteriormente, a fim de relacionar o material onírico coletado e a experiência de adoecimento.
As vidas das crianças deste estudo têm sido atravessadas por várias decepções emocionais e traumas como privações afetivas, conflitos familiares violentos, cuidadores com sérias questões psiquiátricas ou de dependência química, assédios verbais, entre outros. Vemos que as mesmas crianças que hoje enfrentam internações, quimioterapias e cirurgias já passaram por diversos impasses e dificultadores do seu desenvolvimento e da sua relação com o mundo. Neste sentido, podemos dizer que, assim como observado por Lima, Botelho & Silvestre. (2011), a instabilidade marcada por esse contexto social pode ter contribuído para uma escassez de recursos de enfrentamento de situações conflitantes, o que resulta numa alteração do sistema psíquico e corporal, surgindo o sintoma.
5. Pesadelos
No que diz respeito aos elementos dos sonhos, pudemos observar a frequente presença de figuras agressoras, que colocam o ego onírico em risco ou de fato atuam de maneira violenta em relação ao sonhador.
De acordo com Kalsched (2013), nos sonhos de vítimas de trauma precoce, a figura daimônica interior ataca ativamente o ego onírico. Neste material onírico, é ilustrado o caráter violento desses processos dissociativos que se autoatacam, nos quais "a figura diabólica traumatiza o mundo objetivo interior a fim de impedir a retraumatização no exterior" (p. 33):
"Vinha um homem e me amarrava dentro de um saco. Ele me encontrava no quarto" (Nádia, 12 anos).
As figuras parecem representar um perigo iminente e constante que atuam em relação ao indivíduo, fazendo com que não consiga se proteger ou evitá-lo. Segundo o autor supracitado, sonhos desse tipo acontecem para evitar que o ego onírico vivencie o afeto associado ao trauma, interferindo violentamente e dissociando a psique, tirando o ego de cena.
Observamos que, frequentemente, a figura agressora porta ou faz uso de facas, o que é facilmente relacionável com os procedimentos médicos e cirúrgicos que a população em questão está e/ou esteve sujeita.
Eu tive um sonho que me arrancavam os dentes todos. Eu ficava sem dente e tinha que usar chapa. E nisso aqui, saía tudo sangue ó (apontando para os dentes). Aí levavam meus dentes para um lugar, aí eu não sei mais. Eu tava toda amarrada atrás no meu braço, meu olho tava todo tampado. Aí me pintaram toda disso aqui, de preto. Depois de colocar a chapa, pintaram de preto, aí colocaram uma vasilha assim na minha boca e saiu um bocado de sangue. Aí quando sai um bocado de sangue, quando parou, aí veio o gosto de sangue preto, aí quando eu abri o olho eu desmaiei, foi isso. Colocaram um bocado de coisa assim por aqui, por aqui, me "negoçaram", cortaram minha bochecha, cortaram meus braços, minha mão, meu pé… eu também não tinha sobrancelha (Nádia, 12 anos).
No relato, o sangue aparece como um dos elementos principais, que simbolizaria, de acordo com Chevalier (2003), o veículo da vida e princípio da geração, entretanto, ele aparece preto, o que indica um sentido de algo morto ou podre. De acordo com o autor, o preto é a cor do luto opressivo, sem esperança, "como um nada sem possibilidades" (p. 740). Já os dentes são compreendidos como potencial agressivo, são "as armas de ataque mais primitivas e expressão das atividades" (CIRLOT, 1984, p. 201) e constituem o muro e a defesa do homem interior. Neste sentido, podemos pensar a perda ou a retirada deles como um simbolismo negativo, pois remete à inibição, à passividade, ao medo da derrota, assim como a perda dos mecanismos de defesa e ataque. A passividade e a fragilidade encontram-se em tal nível que o ego não reconhece qualquer possibilidade de ação ou contra-ataque.
A própria vivência de estar imóvel, com os olhos vendados e sendo cortada diversas vezes parece ser análoga ao que viveu durante os dois anos em que esteve em coma, sendo submetida a cirurgias na cabeça.
Esses sonhos reforçam o sofrimento psicológico e fragilidade emocional que essas crianças parecem estar passando, assim como o sentimento de insegurança e medo já mencionados. Não só as ações desenvolvidas nos sonhos, como o desmembramento, a imobilidade e a ausência de visão, mas os símbolos presentes representam a passividade e a experiência de quase morte vivenciadas por ela.
É também verificável de que maneira as figuras interiores opressoras continuam a assombrar o mundo interno do indivíduo, formando verdadeiras sequelas psicológicas das experiências traumáticas.
Os materiais oníricos parecem apontar uma tentativa de reelaborar e ressignificar a violência sofrida pelas intervenções médicas, representada pela morte física concreta nos sonhos. Estes relatos levantam a possibilidade de atuação do que Kalsched (2013) chamou de um "sistema autodestrutivo" (p. 52); o mundo interior é transformado em um pesadelo de opressão e autoagressão. O agente opressor é apresentado por imagens de seres titânicos que ameaçam aniquilar o ego imaturo, continuando a traumatizar o mundo interior.
uma vez apareceu minha prima, que ela tava assim, no armário ali. Esse armário aqui (levanta da mesa e vai pra frente do armário), só que o armário aqui era branco, e a minha prima tava sentada aqui na cadeirinha dela segurando com o boneco dela, aí eu passei a minha cama aqui, daí eu olhei e ela não estava mais… Não consegui ver o rosto dela, não sei o que estava fazendo lá (Melina, 12 anos).
É importante ressaltar que Melina aponta a criança como a imagem principal de seus pesadelos, o que nos leva a pensar na possibilidade de ser a imagem da parte de sua personalidade que foi encapsulada no processo de fragmentação da psique. No sonho, a criança está dentro de seu quarto - seu mundo interior - e encontra-se em uma posição retraída, sentada em um canto virada para o armário. Podemos entender esses aspectos como constituintes da parte frágil e vulnerável do paciente que foi separada dissociada e impedida de ingressar na realidade do tempo e espaço.
A razão pela qual essa imagem é tão assustadora para o ego se embasa no fato de que "a integração ou 'totalidade' é inicialmente vivenciada como a pior coisa imaginável" (p. 56). Em outras palavras, entrar em contato com essas imagens e os afetos associados a elas constitui um uma ameaça à sobrevivência do eu.
6. Figuras protetivas
Em oposição à presença frequente de figuras violentas, as imagens parentais - referências protetivas - tiveram poucas menções nos relatos de sonhos. Essa ausência de referências de proteção diz respeito ao sentimento de solidão e abandono, já verificado por Bigio (2005) como comum em crianças em condições de adoecimento. Entretanto, não é a frequência em que elas aparecem - ou a falta dela - que nos chama a atenção, mas a qualidade e o cumprimento da função protetiva esperada dessas imagens.
"Eu já sonhei que caí num buraco e eu gritava pela minha mãe e minha mãe não escutava" (Carolina, 12 anos).
É possível compreender a situação relatada como uma analogia ao adoecimento: a própria queda parece remeter à doença, que a coloca como sujeito sem possibilidade de ação ou escapatória, como o fim das potências, dependendo de outros para sair de sua condição. Neste lugar, pede e espera pela ajuda de sua mãe que, no imaginário infantil deveria protegê-la ou até mesmo impedir essa queda, mas ela não aparece para socorrê-la.
"Lembro de um rapaz me assaltando, levando uma faca, me assaltando do meu pai. Foi lá no hospital. Aí acordei correndo, assustei muito" (Maurício, 10 anos).
Nestes relatos, os pais apresentam-se passivos ou incapazes de cumprir as funções protetivas esperadas. Além de ilustrar o abandono, portanto, os sonhos também demonstram a percepção de que os pais não são onipotentes e passíveis de garantir integralmente a segurança e bem-estar da criança, o que, por sua vez, abala a confiança dela, repercutindo ainda mais na sensação de solidão.
O medo de uma separação iminente entre pai/mãe e filho(a) é ilustrado no sonho, apontando para a forma como a criança entende os riscos de seu tratamento. Podemos, desta maneira, verificar que há a associação da doença com a possibilidade dessa separação que é, no sonho, o conflito principal, exemplificando o que Di Lione (2001) afirma em relação à falta dos pais serem, às vezes, motivo de angústia maior do que a provocada pela perspectiva da morte em si.
Vemos, também, que é o espaço do hospital o lugar onde ocorre a separação entre pai e filho, ou seja, ilustra-se a ambiguidade apontada por Alves & Figueiredo (2017) em relação à imagem do hospital na psique infantil. Apesar de a criança, na vida consciente, saber que aquele espaço é o que permite uma possível cura, representa também o descontrole - tanto por parte dos pais quanto da criança - e o perigo da separação entre eles.
Os sonhos nos anunciam a possibilidade de um desfecho trágico e repentino, o qual não pode ser evitado pelos parentes ou pela própria criança, separando-os contra vontade. O ego onírico é passivo, ou seja, os conflitos os afetam e não há qualquer reação ou tentativa de evitá-lo. Podemos observar também o que Penna (2014) chama de projeção da responsabilidade por sua vida em outros. Este ponto é relacionável à condição atual dessas crianças, uma vez que, por não poderem ser responsáveis pelas decisões médicas que dizem respeito à manutenção de suas vidas, devem confiar nas decisões do corpo clínico e dos seus parentes, vendo-os como responsáveis pelo seu bem-estar.
Outro dia que eu tava dormindo assim, do lado assim perto da cozinha, aí na mesa tinha uma menininha desse "tamainho" assim [mostra uma altura um pouco menor que a sua], tava ali. Só que tava tudo branco, parecia que tava de dia, tudo branco… ela tava assim (apoia a cabeça nas mãos). O cabelo era desse tamanho, a roupa dela era branca, o vestidinho dela era branco. E quando eu acordei tava de noite [...] Eu pensei que era um anjo (Melina, 12 anos).
Neste sonho, a criança acorda em sua casa e não há sinais de seus familiares, entretanto, encontra uma imagem que identifica como um anjo. De acordo com Chevalier (2003), na tradição cristã, é comum que os anjos sejam representados por crianças remetendo a temas de proteção ou como guardiões. É possível que essa imagem apareça para compensar a sensação de insegurança, de estar em perigo, correspondendo a um resgate da proteção individual.
O branco aparece em ambos os sonhos de Melina, sendo especialmente ressaltado neste segundo relato. A cor simboliza uma passagem, um momento de transição, de mutações do ser. "Em todo pensamento simbólico, a morte precede a vida, pois todo nascimento é um renascimento. Por isso, o branco é primitivamente a cor da morte e do luto" (CHEVALIER, 2003, p. 141). Este simbolismo pode se remeter a duas transições nas quais a sonhadora em questão está sujeita: a primeira é a transição para a adolescência, marcado pela puberdade. As imagens arquetípicas que anunciam as transformações naturais do processo de desenvolvimento, normalmente, remetem o tema da morte e renascimento. (VON FRANZ, 1988). É também possível interpretar que a passagem indicada pela imagem arquetípica do branco, anuncie uma transformação orgânica.
7. Sonhos compensatórios
Alguns sonhos relatados parecem exercer a função compensatória no sentido de estarem compensando a situação atual consciente, de forma a fornecer imagens de esperança e felicidade. Esse tipo de sonho visa uma compensação que possibilita o fluxo de energia necessário para enfrentar a vida consciente.
Por exemplo, no sonho abaixo, há a realização de um desejo consciente da criança de morar em São Paulo, cuja explicação era de morar mais perto do hospital - o que a faria se sentir mais segura - e para o pai arrumar um trabalho. Vemos a esperança de um futuro melhor e mais seguro para ela e sua família.
"Sonho que eu tenho uma casa bonita e grande em São Paulo e tem um bocado de carro" (Nádia, 12 anos).
Os sonhos compensatórios também exercem sua função através da apresentação de uma experiência saudável da infância:
eu sonhei brincando muito animado hoje, aí encontrei com a família que tava lá, aí cheguei lá, tava rolando churrasco lá. Aí depois a gente foi pra praia e, também, acho que a gente foi jogar bola, isso foi num campo. Aí depois a gente veio aqui, a gente brincava um monte aqui. Aí teve uma festa muito legal, foi numa outra casa, aí cheguei lá, aí as pessoas tavam lá comemorando, era aniversário de um menino lá. Aí cheguei lá, brinquei de novo, comi um monte de doce lá, né? Aí depois levaram a gente pra passear, tudo isso (Maurício, 10 anos).
Esses sonhos exercem a função compensatória no sentido de estarem compensando a situação atual consciente, de forma a fornecer imagens de esperança e felicidade, seja por meio de realizações de desejos ou pela apresentação de um futuro melhor e mais prazeroso.
8. Desfecho onírico
No que se refere à estrutura desses sonhos, foi possível observar a predominância de desfecho desfavorável e desfecho ausente. Por finalizarem o sonho de maneira trágica, impactam o sonhador fortemente, assustando-o.
O pesadelo comum é caracterizado pelo desfecho desagradável, no qual o encerramento da questão é dado de modo sofrido e destrutivo. Vejamos o exemplo:
"Eu sonhei também que me esfaquearam todinha e me colocaram dentro de um caixão" (Nádia, 12 anos).
Como vimos anteriormente, essa característica nos aponta de que forma o ego lida com as situações perigosas ou desfavoráveis ao desenvolvimento. A partir deste relato, podemos considerar que o ego ainda se encontra extremamente vulnerável, passível de fragmentação. Através das revivências dos procedimentos cirúrgicos, o sonhador volta a experimentar a iminência da morte, a impotência e a fragilidade. É como se o ego ainda ocupasse esse lugar, submetido a um perigo constante e real de morte.
Da mesma maneira, o sonho apresentado anteriormente no qual Carolina cai num buraco e sua mãe não ouve o pedido de socorro, é um exemplo de desfecho ausente, uma vez que ela não consegue sair do buraco. De acordo com Von-Franz (1993), essa característica se aponta no fato de que o próprio inconsciente não apresenta ou considera uma solução para o conflito.
O predomínio desses tipos de desfechos oníricos é exemplo da fragilidade da psique dos sujeitos, apresentando-nos egos enfraquecidos e com poucos recursos para lidar com os conflitos. A passividade e a impotência do ego onírico de solucionar as problemáticas do sonho parecem refletir a atitude consciente do sonhador, ou seja, os sonhos não apresentam a função prospectiva, apresentada por Jung (1984), na qual o inconsciente apresentaria um esboço de solução do conflito.
9. Atitude do ego onírico
A atitude do ego no sonho nos revela as possibilidades ou potenciais que o sonhador dispõe ou que está em vias de desenvolver para lidar com o conflito abordado no sonho, ou até mesmo nos mostra a atitude que tende a prejudicá-lo.
Em praticamente todos os relatos, o ego onírico era passivo, ou seja, sofria as ações de outros elementos do sonho, em vez de ser o protagonista. Por estarem em tratamento ou acompanhamento de uma doença grave como o câncer, essas crianças se encontram numa situação de grande vulnerabilidade e fragilidade emocional e física, além de estarem sujeitos a intervenções médicas causadoras de dor e medo. Os pacientes encontram-se numa condição de grande passividade; muitas vezes sem ter o conhecimento integral sobre sua condição, prognóstico e tratamento; não têm participação nas decisões que dizem respeito ao tratamento; além de estarem submetidos a tratamentos que abalam a integridade física e emocional, muitas vezes sem serem informadas sobre os procedimentos e seus efeitos (LIMA, BOTELHO & SILVESTRE., 2011; BIGIO 2005; MONTEIRO, 2009). Esse contexto contribui para que a criança fique impossibilitada de entrar em contato com as experiências subjetivas com a doença, o que prejudica sua expressividade emocional e o desenvolvimento, potencialmente interferindo no funcionamento de seu sistema imunológico, como citado por Ramos (2006).
Uma vez que o sonho nos demonstra a possibilidade e a disponibilidade do ego para lidar com o material em questão, podemos compreender a predominância da atitude passiva por parte do ego onírico como um sinalizador de uma falta de recursos internos para enfrentar as situações dadas pela sua condição atual.
10. Conclusão
Os sonhos usados como material para este estudo nos aproximam da situação psíquica dessas crianças. Através dos elementos e estruturas oníricas e a análise dos mesmos, foi possível perceber uma fragilidade emocional intensa sustentada por sentimentos de solidão, abandono, insegurança e passividade, já identificados por Bigio (2005), Monteiro (2009) e Lima, Botelho & Silvestre. (2011).
Os temas mórbidos e elementos relacionáveis com a doença e seu tratamento, como facas, hospitais e sangue, nos apontam para uma tentativa de elaboração dessas vivências dolorosas e invasivas. Assim como a frequente presença de figuras agressoras e a ausência de referências protetivas apontam para uma sensação de abandono e de medo constante, na qual o perigo é incontrolável e inevitável tanto pela criança quanto por seus pais - o que parece ter uma óbvia relação com o processo de adoecimento e o sentimento de impotência provocado no paciente.
Características estruturais do sonho como ego onírico passivo e desfecho desagradável ou ausente foram predominantes nos relatos apresentados. Fundamentalmente, esses aspectos nos indicam que o ego não está conseguindo desenvolver recursos para lidar com o conflito, sendo a sua posição passiva um grande prejudicial para o desenvolvimento das suas potencialidades. Apesar de a passividade imposta pela doença ser inevitável, tornar a criança um sujeito ativo no processo de enfrentamento do adoecimento, a possibilita se apropriar da sua condição real, além de desenvolver recursos internos para lidar com o sofrimento físico e psíquico.
Em acréscimo, há indicativos de fragmentação da psique, ou seja, de que algumas das crianças tenham possivelmente sofrido dissociação psíquica devido a experiências traumáticas - relacionadas ou não com a patologia. Este fato levanta ainda mais a urgência do acompanhamento psicológico desses pacientes, não só com terapia verbal, mas também com o trabalho com artes criativas, uma vez que a integração é ameaçadora para a psique, demandando técnicas terapêuticas mais suaves do que as usuais da análise.
Referencias
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Recebido em: 30/08/2018
Revisão em: 12/12/2018