SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.36 número2O banquete de psique índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Junguiana

versão impressa ISSN 0103-0825

Junguiana vol.36 no.2 São Paulo jul./dez. 2018

 

RESENHA

 

Morte e luto - a psiquiatria sem drogas e as enfermidades míticas no cinema

 

 

Sylvia Mello Silva Baptista

Psicóloga, membro analista da SBPA/IAAP. Mestre em psicologia clínica (PUC-SP). Professora, supervisora clínica e coordenadora do Núcleo de Mitologia e Psicologia Analítica (MiPA) na SBPA e do Núcleo de Mitologia no Areté - Centro de Estudos Helênicos. Autora de O arquétipo do caminho (Casa do Psicólogo), entre outros. E-mail: sylviamellobaptista@gmail.com

 

 

SOUZA, Ana Célia Rodrigues de. Curitiba: Appris Editora, 2018.

Morte & Luto - A Psiquiatria sem Drogas e as Enfermidades Míticas no Cinema, o livro de Ana Célia Rodrigues de Souza, começa com uma citação de Thomas Moore já anunciando o novo olhar da autora ao tema, num convite inescapável à noite escura da alma: o da experiência da depressão como processo e do luto como etapa para o autoconhecimento. Sob o paradigma junguiano/arquetípico da psique como imagem, Ana Célia vai buscar nos filmes - pontuando seu texto com poesia e música -, expressão para sua tese de que a depressão - palavra muitas vezes citada entre aspas - é uma experiência natural da vida, cuja investida pode levar a um importante caminho de transformação. Cita Edgar Morin para dar fundamento à sua escolha - "a literatura, tal como o cinema, pode tornar-se uma escola 'da descoberta de si' [...]" - de uma alternativa para exemplificar suas afirmações que não a partir das histórias de seus pacientes. Quer que penetremos em seus pensamentos em três dimensões e viajemos com ela pelos campos míticos e psicológicos. Porque Ana Célia deseja falar de sua prática, intenciona trazer o testemunho em primeira pessoa de um fazer psíquico, um fazer de alma que sensibilize o leitor e o faça enxergar-se no espelho das imagens, refletido e refletindo.

Divide seu livro em quatro partes, a saber: "Da morte e do morrer", "Dos símbolos e dos mitos", "Dos lutos e dos filmes" e "Considerações finais e minha prática", arrematando tudo com uma primorosa lista de filmes sugeridos. Além da psicologia analítica, toma como panorama para seu olhar boa parte da obra de James Hillman - analisada cuidadosamente livro a livro -, autor que ladeia C. G. Jung, Joseph Campbell, Karl Kerényi, Patricia Berry entre muitos outros. Busca em Phillipe Ariès subsídios para entender a morte como fenômeno na História, e as referências canônicas da mitologia grega acrescentam a esse banquete de ideias o sabor dos mitos e das divindades.

A presença da ausência, a morte na Grécia Antiga, no Ocidente, na Idade Média, na pós-modernidade, os deuses que habitam o mundo dos mortos, os castigados, os heróis, o desejo de imortalidade, os "hospices", a morte interditada e a morte escancarada, todas essas abordagens vão tramando um chão para a concepção de morte simbólica e do luto enquanto "processo de elaboração das vivências de perdas simbólicas sem o qual se torna impossível a adaptação às novas demandas que nossos destinos trazem no dia a dia".

Ao lado dessa pesquisa, há definições de conceitos da psicologia analítica que se farão alicerce para afirmar sobre o divino mítico como metáfora psicológica. Ana escolhe alguns deuses cuja intimidade com o mundo dos Ínferos será o critério para que sirvam de expressão à sua reflexão. Dessa maneira, estarão ali Crono-Saturno, Deméter, Core-Perséfone, Dioniso e Hades com suas narrativas e respectivas leituras simbólicas a partir das quais fará um levantamento de possíveis patologias, lembrando sempre que, como disse Jung, o sintoma é a primeira tentativa natural de cura, e portanto, de conscientizar as demandas de transformação.

Parte, então, para a análise de cinco filmes relacionados aos cinco deuses elencados, tendo como perspectiva o entendimento de que os lutos simbólicos nos ocorrem diariamente, bem como o convite a compreender as vivências de perda e da assim chamada depressão como infirmitas do arquétipo. Este termo remete a uma patologia no arquétipo, uma espécie de enfermidade ou tema patológico contido no mito e que não pode ser dele eliminado sem que com isso se viole a sua totalidade. E a autora empresta a voz de Hillman para concluir: "Uma vez que a infirmitas dos deuses é essencial para a configuração plena deles, necessária ao modo de ser destas figuras, decorre que nossas patologias também são necessárias à nossa completude". Ao lado dessas afirmações, surge a dura e contundente crítica à forma como a psiquiatria vem sendo praticada segundo o modelo americano em que a medicalização dos sentimentos tem ganhado espaço, modelo esse ao qual se opõe veementemente.

Desse modo, a morte e o luto recebem status de oportunidades, sendo os mitos pano de fundo constante. Toda a construção de um conhecimento complexo e rico em símbolos se desenha nesse livro entretecido de representações plásticas da própria autora. São colagens, desenhos e pinturas que pontificam os capítulos e fazem do texto algo ainda mais vivo, dando-nos a certeza de que foi escrito a partir de um centro.

Morte & Luto constitui-se, portanto, num importante instrumento de reflexão para o psicólogo, o psiquiatra ou qualquer pessoa interessada na psique e em seus mistérios. Tal como a terra que recebe a chuva boa e criadeira, deixando-se inundar pela água fresca que fará brotar as sementes escondidas, assim Ana Célia nos oferta poesia e provocações, música e questionamentos, imagens e testemunhos, fazendo a ida à escuridão da noite escura se acompanhar de dádivas preciosas. Boa descida!

São Paulo, 19 de outubro de 2018

 

 

Recebido em: 20/10/2018
Revisão em: 12/12/2018

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons