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Junguiana
versão On-line ISSN 2595-1297
Junguiana vol.38 no.2 São Paulo jul./dez. 2020
Subjetividade na pesquisa em psicologia analítica: uma perspectiva ética
Subjetividad en la investigación en psicología analítica: una perspectiva ética
Liliana Liviano WahbaI; Sofia Marques Viana UlissesII
IDoutora em Psicologia e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica.e-mail: lilwah@uol.com.br
IIPsicóloga, mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).e-mail: sofiamarquesulisses@gmail.com
RESUMO
A pesquisa em psicologia analítica está ancorada no paradigma da subjetividade. A reflexão proposta aborda o processo de construção do conhecimento de acordo com a perspectiva epistemológica que considera a transformação concomitante do pesquisador e do objeto investigado. O percurso adotado parte da noção de equação pessoal, por meio da qual Jung considerou diferentes tipos e modos de conhecer que são inerentes à prática e investigação psicológica. Recorre-se nesta reflexão a autores pós-junguianos que propuseram um paralelo entre a produção do conhecimento científico e o processo de individuação, reconhecendo que a pesquisa e a produção do conhecimento estão atreladas a uma perspectiva ética que considera a subjetividade do pesquisador. A pesquisa em psicologia analítica há de se pautar na premissa de responder ao desenvolvimento em prol da completude e da dignidade humana, inserindo-se a ética como fator central no processo de pesquisar, essencial à atualidade. ■
Palavras-chave: Pesquisa, psicologia analítica, subjetividade, equação pessoal, ética.
RESUMEN
La investigación en psicología analítica está anclada en el paradigma de la subjetividad. La reflexión propuesta aborda el proceso de construcción de conocimiento de acuerdo con la perspectiva epistemológica que considera la transformación concomitante del investigador y el objeto que investiga. El camino adoptado parte de la noción de ecuación personal, a través de la cual Jung consideró diferentes tipos y formas de conocimiento inherentes a la práctica y a la investigación psicológica. Esta reflexión utiliza autores post-junguianos que proponen un paralelo entre la producción de conocimiento científico y el proceso de individuación, reconociendo que la investigación y la producción de conocimiento están vinculadas a una perspectiva ética que considera la subjetividad del investigador. La investigación en psicología analítica debe basarse en la premisa de responder al desarrollo en favor de la integridad y la dignidad humana, con la ética como factor central en el proceso de investigación, imprescindible en la actualidad. ■
Palabras clave: Investigación, psicología analítica, subjetividad, ecuación personal, ética.
Conhece alguém as fronteiras à sua alma, para que possa dizer - eu sou eu?
Mas sei que o que eu sinto, sinto-o eu.
Quando outrem possui esse corpo, possui nele o mesmo que eu? Não. Possui outra sensação.
Possuímos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que somos, como sabemos nós o que possuímos?
Se do que comes, dissesses, 'eu possuo isto', eu compreendia-te. Porque sem dúvida o que comes, tu o incluis em ti, tu o transformas em matéria tua, tu o sentes entrar em ti e penetrar-te. Mas do que comes não falas tu de 'posse'. A que chamas tu possuir?
(PESSOA, 2018, p. 300)
O não-saber acompanha o pesquisador ao longo do desenvolvimento de uma pesquisa científica; o conhecimento se dá aos saltos, cada apreensão constitui uma conquista, por vezes, derrubada a seguir. Pesquisar envolve a consciência do pesquisador de que existe uma lacuna entre linguagem e experiência, um abismo entre aquilo que é dito e descrito e aquilo que escapa à capacidade de descrever. Essa lacuna é por excelência o espaço para a criação e desenvolvimento da pesquisa com alma.
O pesquisador ancorado no paradigma positivista de objetivação e explicação pode sentir, por vezes, que tem o domínio e compreensão completa acerca do objeto investigado, chegando a pensar que o possui. Cabe, contudo, indagar conforme inquiriu Fernando Pessoa (2018, p. 300) em linguagem poética: "Possuímos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que somos, como sabemos nós o que possuímos?". Em linguagem científica essa noção se traduz nas ideias do proeminente pensador da filosofia da ciência Karl Popper, o qual destacou que a descoberta científica (o novo) contribui para a construção do conhecimento de duas maneiras: uma delas, quando explica novos fenômenos, e a outra, quando reconhece aquilo que não consegue ainda explicar. Assim, a constatação do não- saber é igualmente importante ao saber no processo de construção do conhecimento científico (POPPER, 1974 apud BYINGTON, 2019).
A revolução da consciência que acompanhou o mundo moderno permitiu-nos modular uma perspectiva científica diferenciada que considera a subjetividade, aliando à atitude científica rigorosa a filosofia e a exploração do irracional e do desconhecido (WAHBA, 2019). É nesse campo que a psicologia analítica como atividade científico-clínica se insere, constituindo um campo do saber que é produto e produtor de subjetividade.
O processo de construção do conhecimento é marcado, de um lado, pelo acréscimo ao campo científico e social de um novo produto que permite a ampliação do aprendizado a respeito de determinado fenômeno e, de outro, por um processo de transformação e autoconhecimento do próprio pesquisador, o qual se defronta com conteúdos (pessoais e coletivos) até então desconhecidos ou vagamente conhecidos, mas nunca antes confrontados. Wahba (2019, p. 6) aponta que "pesquisar é indagar: quem somos, como e onde estamos, como afetamos os demais e como por eles somos afetados, o que sonhamos e aspiramos, para onde nos dirigimos e como o fazemos", trata-se da criação de "uma nova forma de sensibilidade para compreender nossa inserção no mundo, as relações com os outros, as tessituras da interioridade".
O objetivo deste artigo é refletir sobre o fazer pesquisa e a construção do conhecimento no âmbito da psicologia analítica, destacando o processo de transformação concomitante do pesquisador e do campo científico e social nos quais a pesquisa se insere. Esta é imbuída necessariamente de uma perspectiva ética a respeito do fazer no campo da psicologia, entendendo, como referido por Romanyshyn (2007), que o pesquisador está a serviço do trabalho inacabável da alma da pesquisa, daqueles para quem a pesquisa se destina e da sua própria alma que se cria e se transforma ao pesquisar.
1. A equação pessoal no paradigma junguiano de pesquisa
O paradigma de pesquisa junguiano segundo o qual conhecimento e autoconhecimento são inseparáveis, foi enunciado por Jung ao participar de debates sobre o alcance e sentido da psicologia como ciência - basicamente uma ciência da subjetividade que busca parâmetros para o alcance de objetividade apenas possível até certo ponto. O pesquisador é inevitavelmente imerso em uma equação pessoal, dotado de um olhar peculiar dirigido ao objeto a ser conhecido. Na obra Tipos Psicológicos Jung busca responder ao dilema do universal e do individual em ciência, descrevendo a multiplicidade de apreensão dos fenômenos psicológicos de acordo com os diferentes tipos e modos de conhecer (SHAMDASANI, 2005).
Jung (2011a, par. 421) reconheceu a dificuldade de se estabelecer uma psicologia complexa no campo das ciências naturais, pois ao tentar apreender os processos inconscientes "estabelecendo, observando e classificando fatos reais, descrevendo relações causais e funcionais", um emaranhado de reflexões se estendia além dos limites das ciências naturais, englobando os domínios da filosofia, da teologia, da ciência das religiões comparadas e da história do espírito humano. A própria observação psicológica do fenômeno, o ponto de partida, recebe essas influências - o contexto - assim como deriva da experiência e da personalidade do pesquisador, o que constitui sua equação pessoal. Jung ainda destaca que a psique, objeto de estudo, é ao mesmo tempo objeto e sujeito do conhecimento.
A psique observa-se a si própria e só pode traduzir o psíquico em um outro psíquico. [...] A Psicologia não tem outro meio onde se referir, a não ser em si mesma. Ela só pode retratar-se a si mesma e só pode descrever a si própria. (JUNG, 2011a, par. 421)
A singularidade do pesquisador, ainda que se trabalhe em grupos ou a eles se esteja vinculado, o transforma em artífice e modelagem; ele se faz e se transforma de maneira sincrônica ao fenômeno pesquisado. A produção do conhecimento científico é plasmada pelo processo de busca, inerente ao que se entende por processo de individuação - o qual implica em ampliação de consciência -, como destaca Penna (2004; 2014), pois ocorrem sucessivas e contínuas dinâmicas interativas entre a consciência e o inconsciente durante a aquisição de conhecimento.
A autora refere que segundo a epistemologia e o método da psicologia analítica a construção de conhecimento se dá mediante a ampliação da consciência, num processo gradual e constante de integração de aspectos do inconsciente e do mundo na consciência, movimento que tem como finalidade a integração do indivíduo à comunidade humana e consigo mesmo. De acordo com Penna (2014, p. 78), na perspectiva junguiana a possibilidade de conhecimento "é potencialmente infinita do ponto de vista do desconhecido a ser conhecido", contudo, a consciência é limitada por duas fronteiras, de um lado pelo inconsciente e, de outro, pelo mundo.
Os processos de individuação - continua a autora - e de produção de conhecimento se inserem, portanto, no limiar transitório das relações consciente-inconsciente, indivíduo-sociedade, sujeito-objeto, eu-outro. Há de se entender que o outro configura o mundo externo, mas também a interioridade inconsciente ou parcialmente consciente (o outro "interno"), e o ego transita nos limiares dessas polaridades. Portanto, a validade do conhecimento científico é imbuída daquilo que faz sentido em um determinado contexto e, no âmbito da psicologia analítica, daquilo que tem valor e função de símbolo para o indivíduo e/ou para a comunidade na qual se insere.
Byington (2019) pondera que a condição imprescindível para o exercício da ciência é a atitude da consciência para relacionar o ego e o outro de maneira dialética e criativa. Em sua teoria denominada de Psicologia Simbólica Junguiana essa atitude se desenvolve à medida que a consciência se estrutura, percorrendo os ciclos arquétipos que regem esse desenvolvimento, os quais ele reconheceu como padrões básicos de funcionamento da consciência: matriarcal, patriarcal, alteridade e cósmico. A atitude científica coincidiria com o terceiro ciclo, a alteridade, pois é preponderantemente nele que a consciência ultrapassaria o narcisismo inerente aos ciclos parentais, estando apta a relacionar o ego e o outro, bem como as coisas entre si, com pujança criativa.
2. A pesquisa como processo e espaço de criação
Pode-se, portanto, entender a pesquisa como possibilidade ou "espaço" para a individuação, entendido por Stein (2006, p.143) como um propulsor de uma atitude psicológica que permite uma consciência mais ampla, inclusiva e integrada. Esse espaço não é literal e abarca psique e mundo "como dois lados de uma mesma moeda". Seria o locus de transição e flexibilidade para a abertura da criatividade e emergência do novo.
Stein referiu-se metaforicamente ao deus Hermes para representar a função psicológica de fluidez entre consciência e inconsciente, dentro e fora, conhecido e desconhecido. Segundo esse autor, Hermes pode simbolizar a tendência psíquica à diferenciação, à definição de espaços e delimitação de fronteiras, não demarcando uma rigidez, mas um estado de permeabilidade que, embora fluido, é delimitado e diferenciado. Assim como no processo de individuação, a atitude psicológica de fluidez se contrapõe à fixação. Com seus movimentos de separação (discriminação) e união (síntese), o pesquisador delimita, mas não se apropria, coagula aquilo que descobre e transmite em linguagem científica, pronto para fluir em direção a novos conhecimentos.
De maneira semelhante, Romanyshyn (2007) descreve a atitude do pesquisador como alguém que habita a sua pesquisa como habitante de uma casa, não como morador fixo, mas como peregrino.
[...] isto é, como quem vem e vai, alguém que sabe, então, que os 'lares' que construímos para a alma a partir de nossas ideias são abrigos temporários, que, embora transitórios, são, no momento, o suficiente. (p. 11, tradução nossa)
Neumann (1959), que em sua renomada obra dedicou-se a explorar o tema do desenvolvimento da consciência e da criatividade, enfatiza no indivíduo criativo a capacidade aguda de sustentar a tensão entre separação e síntese, conservando certa fluidez e permeabilidade, o que se aplica ao pesquisador perante a tarefa de seu opus.
Propõe-se, portanto, a transformação do objeto conhecido e do sujeito conhecedor, operando a função transcendente, noção que Jung (2011a) operacionalizou para descrever esse processo de transformação e reajustamento da atitude psicológica em direção à completude por meio da confrontação e aproximação de opostos da consciência e do inconsciente, ou seja, do perceptível, conhecido e do desconhecido a ser revelado. Essa aproximação é possível mediante os símbolos, os quais constituem a melhor representação de algo que ainda não foi completamente compreendido pela consciência (JUNG, 2011a).
A discriminação como processo essencial ao desenvolvimento da consciência e do conhecimento científico foi abordada por Byington (2019) ao elaborar a noção de ciência simbólica. Para o autor, diante de situações novas o ego atravessa estados de menor discriminação, a partir dos quais se desenvolve à medida que adquire conhecimento. Assim, relaciona a posição do não-saber com a indiferenciação do ego no processo de transformação e desenvolvimento da consciência, postulando que, mediante a operação simbólica, objetivo e subjetivo se complementam.
3. A responsabilidade ética na pesquisa em psicologia analítica
Toda ampliação de consciência, segundo Jung, nos confronta com uma responsabilidade ética: o que fazer com o conhecimento adquirido a respeito de si e do mundo. A liberdade de ação se depara com decisões de como aplicar a descoberta, e esta é uma premência de todo pesquisador, particularmente pungente ao se tratar da psique de indivíduos e comunidades. Um exemplo imediato são as consequências terríveis para a segregação de grupos pertencentes a etnias diversas quando se estipulou que haveria inteligências morfologicamente constituídas por raças. Infelizmente, exemplos desse porte abundam quando se escamoteia a premissa ética.
Segundo Barreto (2009, p. 93), o "fator moral" está no centro da concepção psicológica e terapêutica de Jung constituindo um dos seus "fundamentos irrenunciáveis". A essa ideia pode se acrescentar que o fator moral fundamenta a episteme da teoria e método científico junguiano, constituindo também uma noção indispensável à pesquisa nesse campo. Jung (2011b, par. 423) referiu à integração de conteúdos inconscientes na consciência como operação principal da psicologia analítica, a qual representa uma "alteração de princípios", pois elimina a supremacia da consciência do eu confrontando-a com conteúdos do inconsciente coletivo. Assim, a psicologia se depara com o problema ético/moral referente ao conhecimento adquirido, o qual afetará o entendimento do mundo e os efeitos nele. Jung enfatiza a noção de dignidade da psique, que requer do pesquisador a capacidade de levar em conta o irracional menos visível ou aceito, mas poderosamente atuante.
A despeito dessa premissa, Penna (2014) reconhece, retomando o enunciado pelo próprio Jung (2013), que há no cenário científico atual uma concentração de poder na racionalidade humana conferindo certa idolatria à ciência e seu progresso, como se este se desse de maneira apartada do desenvolvimento da comunidade humana ao qual deveria estar destinado. Barreto (2009, p. 93) corrobora essa ideia e afirma que o atual clima civilizacional é marcado por uma "crise ética sem precedentes, que apresenta suas credenciais sob a forma do relativismo moral dominante, e que molda o espaço humano de maneira indelével".
Byington (2019) já enfatizara a abstenção do fator ético da consciência e da produção de conhecimento científico quando se separa artificialmente objetividade e subjetividade, eu e outro, e destaca que o pesquisador tem a responsabilidade de se pautar por uma atitude que corresponda aos anseios individuais e da coletividade. Omitir-se de fazê-lo resulta no cenário com o qual nos deparamos na atualidade: uma imensa aquisição de conhecimento - a exemplo do domínio das diversas tecnologias -, se sucedem indiferentes ao destino da comunidade humana que cresce em fome e miséria, devastação e desequilíbrio ecológico, uso progressivo de psicotrópicos, envenenamento alimentar, exaustão progressiva das reservas e contaminação da atmosfera, entre outros produtos colaterais da dissociação patológica da pesquisa e da responsabilidade moral do emprego do conhecimento adquirido.
Talvez a problemática ética seja um dos maiores desafios impostos ao pesquisador, que no processo de fazer pesquisa no âmbito da psicologia analítica, é instado a se posicionar frente ao outro e a si mesmo. O resultado de uma pesquisa subjetiva é, portanto, a obra (opus) que acrescenta à realidade social e coletiva novos elementos aptos a transformá-la e a ampliar o bojo de conhecimentos acerca dela. Mas, sobretudo, a pesquisa com alma é a obra que transforma o próprio pesquisador, que transforma e é transformado, na dinâmica infindável de apreender e aprender de forma despossuída.
4. Considerações finais
A pesquisa e a produção de conhecimentos nas ciências humanas e sociais estão atreladas a uma perspectiva ética do pesquisador que, por meio do estudo, observações e experimentações pautadas em princípios epistemológicos bem definidos, busca atender às demandas de sua época e contexto, procurando, conforme destaca Wahba (2019, p. 6), "soluções para o bem viver comunitário e individual". A pesquisa em psicologia analítica estaria situada no espaço de interseção do individual e universal, do pessoal e coletivo. Uma perspectiva ética de pesquisa refere-se, portanto, à consideração da limitação do próprio conhecimento, de sua aplicabilidade e do reconhecimento dos limites de si e do outro.
O pesquisador é constituído pelos significados de sua cultura, ao passo que, simultaneamente, é produtor dela, conferindo, per si, um dos mais pungentes dilemas éticos da ciência psicológica com que se depara. Cabe, aqui, mencionar o lugar da ciência na atualidade, cuja premência há de considerar o desregulamento de crescimentos unilaterais e perniciosos que adoecem e desviam do que se pode entender por desenvolvimento em prol da completude e da dignidade humana de todos os indivíduos.
Por fim, a pesquisa desenvolvida no campo da psicologia analítica propõe a entrega do pesquisador reconhecendo-se como parte integrante da realidade que investiga, pois conhecemos o mundo e a realidade viva por meio das imagens que formamos subjetivamente a seu respeito - esse in anima. ■
Referências
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Recebido em: 14/09/2020
Revisão: 05/12/2020