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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.40 no.2 São Paulo jul./dez. 2022

 

A questão do sentido no mundo do acaso1

 

La cuestión del sentido en el mundo del azar

 

 

Ana Lia B. Aufranc

Psicóloga, membro analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA) e da International Association for Analytical Psychology (IAAP). Supervisora e coordenadora de seminários do Instituto de Formação de Analistas da SBPA. Conselheira do Conselho Ético, Fiscal e Administrativo (CEFA) da SBPA. <e-mail: ana-lia@uol.com.br>

 

 


RESUMO

O artigo enfoca a confluência dos princípios fundamentais que norteiam a física quântica e a psicologia analítica. Destaca a questão de estarmos habituados a lidar com as aplicações práticas decorrentes de ambas as abordagens e a dificuldade de integrarmos suas implicações no que concerne a nossa visão de mundo. Compreende a experiência da sincronicidade como sendo a experiência humana da interconexão quântica e elabora a questão do sentido envolvida nessa vivência, a percepção de fazermos parte integrante de uma ordem mais ampla, a vivência paradoxal da unicidade e do cósmico.

Palavras-chave: física quântica, arquétipo psicoide, sincronicidade, sentido.


RESUMEN

El artículo se centra en la confluencia de los principios fundamentales que orientan la física cuántica y la psicología analítica. Destaca la cuestión de que estamos habituados a tratar con las aplicaciones prácticas derivadas de ambos abordajes y la dificultad que tenemos de integrar sus implicancias en lo que concierne a nuestra visión del mundo. Comprende la experiencia de la sincronicidad como la experiencia humana de interconexión cuántica y elabora la cuestión del sentido intrínseca en esa vivencia, la percepción de formar parte integrante de un orden más amplio, la vivencia paradojal de la unicidad y de lo cósmico.

Palabras clave: Física cuántica, arquetipo psicóide, sincronicidad, sentido.


 

 

A natureza psicoide do arquétipo contém bem mais do que pode ser incluído em uma explicação psicológica. Ela aponta para a esfera do unus mundus, do mundo unitário, em direção ao qual o psicólogo e o físico atômico estão convergindo a partir de caminhos separados (JUNG, 1981a, par. 852).

Essa frase de Jung tem 64 anos agora e, de fato, há um potencial revolucionário em descobertas, tanto da física quântica quanto da psicologia analítica, que aproxima essas duas perspectivas. No entanto, esse potencial não pôde ainda ser suficientemente assimilado pela consciência coletiva. A tendência tem sido, a meu ver, deixar de lado aspectos fundamentais em ambas as abordagens. Lidamos assim somente com as aplicações práticas e evitamos as implicações decorrentes.

A física quântica trouxe impressionantes aplicações, como o desenvolvimento do microchip, do laser, da ressonância magnética, além de possibilitar a descoberta do DNA. A psicologia analítica, por sua vez, com o desenvolvimento de conceitos como os de arquétipos, complexos, individuação, tem se mostrado riquíssima em sua aplicação na prática clínica.

Tendemos então a ignorar o que essas abordagens têm de novo, de verdadeiramente revolucionário e que, inevitavelmente, nos faria rever nosso paradigma científico, nossa visão de mundo, bem como nossa inserção no mundo. Estamos muito habituados a olhar o mundo através dos parâmetros da física newtoniana e da divisão cartesiana entre mente e matéria e tomamos esses parâmetros como verdades últimas. Vou rever alguns princípios básicos aos quais estamos muito acostumados:

Determinismo materialista: o universo é composto de matéria e regido pelas leis de causa e efeito. Tudo é determinável; se conhecemos as forças que atuam e as condições iniciais, estamos habilitados a conhecer seus efeitos. O nosso conhecimento só é limitado, eventualmente, por falta de instrumental adequado.

Objetividade: como mente e matéria estão separadas, temos como consequência a objetividade, que é, aliás, um dos pilares de nossa pesquisa científica.

Localidade: objetos separados no espaço ou no tempo são independentes entre si. Ou seja, os objetos podem estar distantes, mas é preciso que haja tempo suficiente para que a energia possa fluir de um ponto para o outro a fim de garantir a comunicação; caso contrário, os objetos são independentes uns dos outros.

Reducionismo: os sistemas complexos devem ser reduzidos às suas partes elementares. Essa é a maneira que temos de apreender e pesquisar os fenômenos.

Seguindo a perspectiva reducionista e materialista da ciência, nossa visão de mundo pode ser exemplificada na pirâmide da Figura 1 (ROSENBLUM; KUTTNER, 2006, p. 36).

 

 

Dessa maneira, devemos buscar explicações para os fenômenos psíquicos na biologia, no funcionamento cerebral. O fenômeno biológico, por sua vez, pode ser visto como essencialmente químico. Estudamos então os neurotransmissores e, em última instância, a química pode ser reduzida à física. Ou seja, em última instância o ser humano também passa a ser visto como uma máquina. A metáfora atual, aliás, é a do computador.

Toda essa perspectiva científica que nos levou a uma visão do mundo como sendo uma máquina, como um mecanismo de um relógio, teve início no século XVII. Lord Kelvin, matemático e físico do final do século XIX, estava tão satisfeito com os resultados da pesquisa científica que acreditava que os mistérios da natureza já haviam sido desvendados, ficando apenas pequenos detalhes a serem esclarecidos. Embora isso não tenha se mostrado verdadeiro, os novos parâmetros científicos permitiram um enorme desenvolvimento do conhecimento e da tecnologia.

Mas a questão do sentido não cabe no reducionismo causal. O sentido está associado com a procura de totalidades, o que demanda uma visão mais ampla. A questão do livre-arbítrio também não se coloca, visto que somos determinados, seja geneticamente, seja pelas condições ambientais.

Antes da era científica vivemos um período em que a cosmovisão era religiosa; a questão do sentido estava então associada a Deus e a seus desígnios. Agora, o indivíduo encontra-se só em um mundo sem sentido. A razão e o conhecimento científico passaram a ocupar o lugar de Deus, e a matéria, o lugar do espírito (AUFRANC, 2004).

No início do século XX, no entanto, esses parâmetros foram profundamente questionados pela física quântica, de um lado, e pela psicologia analítica, de outro.

Niels Bohr, um dos grandes físicos quânticos e o responsável, junto com Werner Heisenberg e Max Born, pelo conjunto de princípios da física quântica conhecido por Interpretação de Copenhagen, dizia: "Aquele que não se choca com a teoria quântica é porque não a compreendeu" (BOHR apud MORGAN, 2000, p. 110).

Vamos repassar rapidamente alguns princípios básicos da física quântica:

Princípio da Incerteza de Heisenberg: não podemos medir com precisão ao mesmo tempo a velocidade (momentum ou quantidade de movimento) e a posição de um objeto quântico. Por exemplo, podemos descobrir onde um elétron está, mas quanto mais precisamente medirmos sua posição, mais incertos estaremos quanto à sua velocidade. E, vice-versa, quanto mais precisa for a medição de sua velocidade, mais incertos estaremos quanto à sua posição. O interessante dessa situação é que ela se trata de uma impossibilidade ontológica, e não se deve à falta de instrumental adequado.

Princípio de complementaridade de Bohr: qualquer objeto quântico, seja um fóton, um elétron ou um átomo, é onda e partícula. Onda e partícula são duas maneiras complementares, embora mutuamente excludentes, de um objeto quântico se apresentar a um observador. Ou seja, em vez de determinismo, temos incerteza, complementaridade.

Outro princípio:

Não existe realidade objetiva independente da interferência da consciência. Qualquer objeto quântico encontra-se em um estado indefinido que consiste apenas de probabilidades até que uma observação seja feita. Antes da medição, ou seja, da observação, o objeto encontra-se em uma superposição de todos seus estados possíveis, que Erwin Schrödinger descreveu como a equação de onda. Quando é feita a medição, observa-se o objeto em apenas um estado possível, nunca em uma mistura deles. A isso se dá o nome de colapso de função de onda. Ao ser observado, o objeto deixa de estar numa superposição de todos os estados possíveis, uns mais prováveis do que outros, e define-se por um único estado. Antes da observação, um átomo é uma função de onda, ou seja, apenas probabilidade. Aqui é preciso fazer uma diferenciação muito importante: quando tratamos da probabilidade quântica, falamos da probabilidade de encontrarmos um objeto em alguma região, e não da probabilidade de ele estar naquela região. Isso significa que o objeto não estava lá antes de ser observado. Átomos e moléculas não são reais, apenas potencialidades.

John von Neumann, em Fundamentos Matemáticos da Mecânica Quântica, de 1932, mostra que a teoria quântica torna inevitável o encontro da física com a consciência. Segundo esse autor, poderíamos tomar um aparelho de medida - um contador Geiger, por exemplo - e imaginar que o aparelho se encontra em uma caixa, isolado do resto do mundo, mas em contato com um sistema quântico, como um átomo. O contador deveria, então, estar programado para disparar um alarme quando o átomo aparecesse no topo da caixa e não o disparar caso o átomo aparecesse na base da caixa. Von Neumann demonstrou que, uma vez que o contador é um sistema físico governado pela mecânica quântica, ele entraria no estado de superposição de onda com o átomo e simultaneamente disparado e não disparado. Se um segundo aparelho de medida, um dispositivo eletrônico, por exemplo, entrasse em contato com o contador Geiger para verificar o que está acontecendo com este e registrar quando o contador dispara, ele também se uniria ao estado de superposição e registraria ambas as situações como existindo simultaneamente. Essa chamada "cadeia de von Neumann" poderia continuar indefinidamente. Von Neumann, portanto, demonstrou que nenhum sistema físico, obedecendo às leis da física quântica, poderia fazer o colapso de função de onda de um estado de superposição produzindo um estado particular. No entanto, ao olharmos para um contador Geiger, sempre veremos um resultado particular, nunca uma superposição de estados. Von Neumann concluiu que somente um observador consciente, fazendo algo que a física não abrange, é capaz de promover o colapso de função de onda (ROSENBLUM; KUTTNER, 2006).

Dois anos depois, Erwin Schrödinger, um grande físico quântico que estava muito intrigado com as consequências da física quântica, criou a chamada metáfora do gato. Trata-se de um experimento mental em que um gato imaginário é colocado em uma caixa selada. Dentro da caixa há um emissor radioativo que tem 50% de chance de um decaimento radioativo a cada hora; isso ocorrendo, irá acionar um mecanismo que, por sua vez, irá liberar um veneno que, consequentemente, deverá matar o gato. Existe, portanto, depois de uma hora, 50% de probabilidade de o gato estar vivo e 50% de probabilidade de ele estar morto. Pela teoria quântica todas as probabilidades são reais até que seja feita uma observação. Assim, depois de uma hora, sem que ninguém tenha observado, o gato deve estar vivo e morto. Não se trata de um gato doente ou zumbi, mas de um gato que está igualmente vivo e morto. Só quando alguém abre a caixa para ver o que acontece é que se dá o colapso da função de onda, e o gato estará vivo ou morto.

Levada às últimas consequências, a teoria quântica parece absurda, uma vez que nega a existência de um mundo fisicamente real. A observação cria a realidade.

Embora a equação de onda de Schrödinger se aplique à escala atômica, a teoria quântica está na base de toda ciência natural, da química à cosmologia, governando o comportamento de tudo.

Todos os objetos grandes, sejam cadeiras ou galáxias, são feitos de uma coleção de átomos. Assim, se um átomo não observado não tem realidade física, o mundo real também seria criado pela observação.

Saímos da objetividade para não existência da realidade objetiva independente da interferência da consciência.

Vejamos outro princípio:

Não localidade: no nível quântico, os objetos não existem independentemente uns dos outros; trata-se de uma verdadeira teia de interconexões, como foi desenvolvida pelo teorema de John Bell em 1964 e posteriormente demonstrada pelo experimento de Alan Aspect em 1982, na França, e pelos experimentos de Nicholas Gisin em 2004, na Suíça.

Einstein, que se preocupava com as implicações das teorias científicas e não apenas com suas aplicações práticas, chamou a isso de spooky action at a distance, a fantasmagórica ação a distância, e junto com Podolsky e Rosen criou um experimento mental, conhecido como EPR, em que demonstrava que a não-localidade não poderia estar correta. Pelo experimento mental, dois elétrons seriam emitidos a partir de um mesmo átomo e desviados em direções opostas a muitas milhas de distância um do outro, então um deles seria observado. Pela teoria quântica, os spins (uma espécie de rotação) dos elétrons emitidos a partir de uma mesma fonte devem ser complementares, ou seja, opostos. A direção do spin é aleatória e só será definida a partir da observação. Assim, ao observarmos um dos elétrons, um spin se definiria e automaticamente o outro se definiria pelo spin oposto. A observação de um faria com que instantaneamente houvesse o colapso de função de onda do outro. Ficaria então demonstrado que a não-localidade seria inviável visto que estaria violando duas leis da teoria da relatividade especial: a de que nada pode ser mais rápido do que a velocidade da luz e a da independência dos objetos espacialmente distantes.

No entanto, os experimentos de Aspect e Gisin confirmaram o teorema de Bell. Não se trata, porém, de comunicação, portanto a lei da teoria da relatividade especial, que diz que nada pode ser mais rápido do que a velocidade da luz, mantém-se; mas a segunda lei não se mantém, os objetos são interdependentes mesmo a distância (RADIN, 2006). Em vez de localidade, temos então não-localidade.

Por último:

Propriedade de totalidade de Pauli: o fenômeno quântico tem uma nova propriedade de totalidade, de forma que não pode ser decomposto em fenômenos parciais sem que com isso o fenômeno como um todo se transforme de uma maneira essencial. Em vez de reducionismo temos totalidade.

Os princípios científicos ficariam modificados a partir da física quântica como na Figura 2.

 

 

A pirâmide reducionista que vimos poderia ser substituída por um círculo, conforme visto na Figura 3.

 

 

As implicações da física quântica parecem assombrosas! Mas a física quântica descreve o mundo atômico e subatômico, ou seja, o mundo microfísico e o mundo ao qual nossa consciência está habituada é o mundo macrofísico, tão bem descrito pela física newtoniana. Como é impossível fazer experimentos com objetos grandes, então, para todos os propósitos práticos, não há razão para nos preocuparmos com a realidade das coisas grandes, pois elas obedecem às leis da física clássica. Para todo propósito prático, luas, cadeiras e gatos são reais. Dessa maneira, fazemos um recorte, ocupamo-nos apenas com as aplicações práticas da física quântica e ignoramos as implicações decorrentes.

A questão do sentido na física quântica parece mais grave; o processo básico da natureza gera probabilidades ou tendências. Qualquer esperança de sentido é inviável pela entrada do puro acaso. Dessa maneira, o que traria um potencial revolucionário pode ser deixado de lado, o que, aliás, tem de fato muitas vezes ocorrido.

Einstein, que não se conformava com essa questão do puro acaso e que se preocupava com as implicações das teorias científicas, em carta a Born (1971) disse que Deus não joga dados.

Jung (1981b, par.1187), referindo-se a Einstein, escreveu: "Ele não entende que se Deus não jogasse dados Ele não teria escolha a não ser criar (do ponto de vista humano) uma máquina sem sentido [...] O sentido não vem da causalidade mas da liberdade, isto é, da acausalidade".

Poderíamos dizer que Einstein, por outro lado, tinha razão. Não se trata de acaso, mas do sentido contido no acaso. À física quântica falta a noção do arquetípico, do sentido.

Ao mesmo tempo em que se davam as descobertas da física quântica, Jung, pela observação clínica, foi descobrindo e conceituando a existência do inconsciente coletivo. A consciência passa a ser compreendida então como o produto desse inconsciente, cuja existência nos precede e é comum a toda humanidade. O inconsciente coletivo, ao contrário do pessoal, não deve sua existência à experiência individual, não é uma aquisição pessoal. A consciência vai desenvolver-se a partir do inconsciente que é coletivo e comum à espécie humana.

O conceito de arquétipo é inerente ao de inconsciente coletivo. Podemos compreender os arquétipos como sendo centros neuropsíquicos que têm a capacidade de iniciar, controlar e mediar os comportamentos característicos comuns e as experiências típicas de todos os seres humanos. Jung (1981c) desenvolveu a noção de arquétipo desde 1912, quando fala em imagens primordiais. Em 1919, conceituou o arquétipo como sendo a autopercepção do instinto (JUNG, 1981d). Esse conceito foi sendo seguidamente elaborado até atingir sua forma final, em 1946. O arquétipo passa a ser compreendido como um fator de organização bipolar, psíquico e físico, que se expressa por meio de símbolos (JUNG, 1981e). É preciso compreender os símbolos como a expressão de algo totalmente novo para a consciência e, portanto, com um grande potencial transformador.

Não entramos em contato com os arquétipos, mas sim com suas manifestações simbólicas. Os arquétipos, por meio dos símbolos, expressam-se na polaridade psíquica bem como na polaridade biológica. O símbolo pode manifestar-se na polaridade psíquica do indivíduo por imagens oníricas, fantasias, projeções, transferências ou sintomas psíquicos. No coletivo, a expressão simbólica dá-se nos mitos, nas lendas, nas religiões ou na arte. A polaridade biológica, por sua vez, tem como veículo simbólico as vivências corporais ou os sintomas físicos. No arquétipo está, portanto, o potencial para o desenvolvimento psíquico e físico. O arquétipo implica potencialidades psíquicas e físicas que poderão ser atualizadas desde que haja condições condizentes, por isso podemos dizer que, na perspectiva arquetípica, o desequilíbrio químico-cerebral e a patologia psíquica não podem ser vistos nem como causa nem como efeito um do outro, mas sim como diferentes manifestações de um todo que engloba a psique e a matéria. Por essa razão, temos observado que muitos estados patológicos respondem melhor quando tratados concomitantemente por medicação e psicoterapia.

Jung chamou a essência irrepresentável do arquétipo de psicoide, uma vez que vai além da esfera da psique e forma a ponte para a matéria em geral.

Bem, até aqui já temos um referencial novo e criativo. Podemos trabalhar com os símbolos em suas diferentes vertentes, podemos abordar os sonhos, as projeções, as fantasias, a transferência, fazer amplificações simbólicas; podemos olhar os símbolos não apenas em seus aspectos redutivos, ou seja, referidos à história pessoal do paciente, mas também nos prospectivos, isto é, para onde esses símbolos apontam, posto que temos um referencial arquetípico.

No entanto, quando chegamos à questão da natureza psicoide do arquétipo, muitos de nós, junguianos, tendemos a não considerar este conceito, uma vez que ele não é facilmente assimilável pela nossa consciência.

Jung usa o termo unus mundus, do alquimista Gerardus Dorneus, para descrever a existência de uma realidade potencial unitária subjacente à dualidade psique e matéria. Nessa realidade potencial unitária encontram-se as pré-condições arquetípicas que vão determinar o fenômeno empírico, seja ele físico ou psíquico. Os arquétipos são, portanto, fatores mediadores desta potencialidade unitária. Ao operarem na esfera psíquica, são organizadores de imagens; na esfera da matéria dão origem aos princípios ordenadores de padrões da matéria e da energia. A natureza psicoide do arquétipo está na origem da psique e da matéria e, portanto, na origem da estrutura básica do universo (AUFRANC, 2006).

Diríamos que, quando os arquétipos operam simultaneamente e ambas as esferas, a da psique e a da matéria, dão origem ao fenômeno da sincronicidade. Aqui entramos em uma área delicada. Jung evitou tratar desse assunto durante muito tempo. Refere-se pela primeira vez a sincronicidade em 1929, na introdução ao Segredo da Flor de Ouro, e em 1930 em seu In Memoriam a Richard Wilhelm.

Em 1930, Wolfgang Pauli, Prêmio Nobel de Física, procurou Jung para análise. Jung ficou impressionado com o material arquetípico que o jovem cientista referia em seus sonhos e optou por reencaminhá-lo a uma colega, Erna Rosembaum, então uma analista iniciante, com pouco conhecimento de material arquetípico. Seu propósito era o de vir a ter acesso a esse material sem correr o risco de influenciá-lo (JUNG, 1981f). De fato, Jung (1981g) veio posteriormente a trabalhar, a partir de 400 sonhos de Pauli, em sua obra Psicologia e Alquimia. Mas, talvez mais importante do que isso, foi o fato de, dois anos depois desse encontro, Jung e Pauli iniciarem uma correspondência riquíssima, que durou 26 anos e culminou na publicação conjunta, em 1952, de A Interpretação da Natureza e da Psique, que contém o artigo de Pauli - "A influência das ideias arquetípicas nas teorias científicas de Kepler" - e o de Jung - "Sincronicidade, um princípio de conexão acausal". Foi Pauli o grande incentivador de Jung para trabalhar com a questão da sincronicidade e, portanto, assumir a tarefa de se aventurar em um campo revolucionário e de difícil assimilação.

Na Figura 4 vemos o esquema descrito por Jung com auxílio de Pauli (JUNG, 1981h, par. 963).

 

 

Aqui é interessante observar que o princípio da sincronicidade é colocado como complementar ao da causalidade, e não como princípios excludentes.

Em seu sentido mais restrito, a sincronicidade seria a coincidência de um estado psíquico subjetivo com um evento externo objetivo, trazendo à consciência uma vivência significativa. Muitos de nós devem conhecer o exemplo clássico da paciente de Jung que era extremamente racional e praticamente inacessível ao tratamento analítico. Em uma consulta, ela contava sobre um sonho em que alguém lhe dava uma joia de ouro em forma de escaravelho. Nesse momento, Jung, que estava sentado de costas para a janela, ouviu algo tocando o vidro. Tratava-se de um escaravelho de brilho dourado que estranhamente batia no vidro na tentativa de entrar na sala escura. Jung abriu então a janela, pegou o inseto no voo e entregou-o à sua paciente dizendo: "aqui está o seu escaravelho" (JUNG, 1981i, parág. 982). Evidentemente, essa experiência foi extremamente significativa, e a análise pôde fluir e se aprofundar a partir daí.

Pauli preferia o termo correspondência significativa a sincronicidade, uma vez que a ênfase deve ser dada à questão do sentido, visto que esse fenômeno pode ocorrer no mesmo tempo e espaço, como é o exemplo clássico do escaravelho. Mas pode ocorrer também em espaços diferentes, como na telepatia, ou em tempos diferentes, como na precognição e na clarividência.

As sincronicidades obrigam-nos a considerar fenômenos rejeitados pela ciência vigente, como é o caso das percepções extrassensoriais. Estamos acostumados a ignorar esses fenômenos e a considerá-los crendices sem sentido, visto que não cabem em nosso paradigma científico. No entanto, existem sim pesquisas sérias nessa área, e os físicos têm se mostrado bem mais corajosos do que nós, para se envolverem nesse campo (JAHN; DUNNE, 2011; MALIN, 2012; RADIN, 1997; TARG; PUTHOFF, 2005; TART et al., 2002).

O fato de os arquétipos funcionarem nas esferas psíquica e física, dando origem a conexões acausais, é de difícil assimilação dentro de nossos parâmetros tradicionais baseados em localidade e causalidade. É interessante notar que as conexões acausais, não locais, surgiram de forma independente na pesquisa do fenômeno quântico. A física precisou incorporar o elemento subjetivo do observador em sua pesquisa, até então supostamente objetiva, enquanto a psicologia, ao estudar a natureza subjetiva da psique, chegou à realidade objetiva dos arquétipos (CARD, 1991).

A sincronicidade, no seu sentido mais amplo, fala-nos da equivalência dos processos psíquicos e físicos em uma ordem geral acausal. Os arquétipos seriam os mediadores dessa ordem. Portanto, a natureza psicoide dos arquétipos estende-se além de uma base neurofisiológica para padrões dinâmicos gerais da matéria e energia.

O fascinante de uma vivência de sincronicidade está no fato de ela ser um evento único e individual e, ao mesmo tempo, ser a manifestação de uma ordem universal (PEAT, 1988). Daí advir, na experiência da sincronicidade, a vivência do numinoso (OTTO, 1992), a vivência do sagrado.

A experiência da sincronicidade permite-nos a vivência de um sentido mais amplo, a percepção de que somos parte integrante de uma ordem mais ampla, a vivência paradoxal da unicidade e do cósmico. A partir de nossa visão determinista materialista, o indivíduo se encontra só em um mundo sem sentido. É o arquetípico que traz a evidência de uma ordem geral cósmica que inclui a psique e a matéria e que nos permite a vivência numinosa.

Jung costumava contar uma história que Richard Wilhelm, sinólogo que trouxe para o ocidente o I Ching, havia vivenciado na China. Em um povoado chinês, não chovia havia muito tempo. Não suportando mais a seca, os moradores locais resolveram trazer, de uma outra província, um fazedor de chuva. Este, quando chegou, pediu que o deixassem só, e por três dias ficou fechado em uma cabana, recebendo apenas água e comida. No quarto dia choveu; na verdade, nevou em abundância, o que não seria normal naquela época do ano. Wilhellm foi então conversar com o fazedor de chuva e perguntou a ele como fizera para fazer nevar. O velhinho então respondeu que de nenhuma maneira havia produzido a neve, que não era responsável por ela. Então Wilhelm perguntou-lhe o que havia feito nos últimos três dias, o velhinho explicou que ele viera de outro lugar, onde as coisas estavam em ordem. Ao chegar ali percebera que as coisas estavam fora de ordem, fora do TAO, e ele também ficara fora da ordem natural das coisas, uma vez que estava em um lugar desordenado. Então ele precisara esperar três dias para voltar ao TAO, aí naturalmente a chuva viera (SABINI, 2002). É muito difícil para nós, que nos baseamos em princípios de causalidade e localidade, compreendermos uma história como essa, a não ser que pensássemos em uma causa mágica.

A nova perspectiva à qual não estamos habituados é a de que fazemos parte de uma rede dinâmica interligada. Na realidade potencial arquetípica ou na potencialidade quântica, esta interligação aparece mais claramente. As dimensões de tempo e espaço que nos separam e que fazem parte da realidade consciente não existem nesse mundo potencial. O processo quântico é surpreendentemente semelhante ao processo de sincronicidade. Ambos são acausais, isto é, violam o princípio da causa local, e ambos manifestam estruturas holísticas em um domínio que vai além da diferença entre o físico e o psíquico (STAPP, 2004).

Poderíamos dizer que a experiência da sincronicidade é a experiência humana da interconexão quântica.

Estamos perante um campo, ainda muito novo do conhecimento humano, um campo a ser explorado. Como disse um grande físico da atualidade, Henry Stapp (2004, p. 183): "[...] se os processos quânticos e os sincronísticos são de fato essencialmente o mesmo processo, então uma janela empírica pode ter se aberto no processo que tem sido pensado pelos teóricos quânticos como jazendo além do alcance do conhecimento científico".

A conscientização do material simbólico arquetípico traz para o indivíduo a possibilidade de optar, recoloca a questão do livre arbítrio e de, portanto, alterar aquilo que se constela como probabilidade.

Não podemos pensar em um destino predeterminado; forjamos nosso destino, bem como o destino da humanidade, a partir da conscientização das probabilidades arquetípicas (AUFRANC, 2006, p. 10).

Os arquétipos representam probabilidades. No inconsciente coletivo existem "n" arquétipos, "n" possibilidades. Com o desenvolvimento da consciência, constelam-se algumas probabilidades e, num sistema de feedback, algumas vão se atualizando na realidade consciente, enquanto outras vão se formando no inconsciente. Desta forma, o destino vai se forjando, uma mudança na consciência altera o encaminhamento das probabilidades consteladas no inconsciente.

As condições sociais, políticas, econômicas e religiosas afetam o inconsciente coletivo (JUNG, 1981j). As grandes transformações históricas não podem ser atribuídas somente a causas externas. A nova realidade está sendo preparada como potencial no inconsciente. Uma mudança na consciência altera o encaminhamento das probabilidades consteladas no inconsciente. Citando o físico brasileiro Rocha Filho (2003, p. 70):

Como a hipótese mais aceita sobre o surgimento do universo envolve um estado inicial muito denso, no qual interações ocorreriam com violência, a uma taxa incomensurável, é provável que nenhuma partícula possa ser considerada absolutamente independente de qualquer outra, e as consequências advindas daí acabam por moldar um cosmo totalmente interconectado.

Ou seja, uma escolha aparentemente isolada, significa, na realidade, uma mudança global.

Saímos, portanto, de uma visão de mundo em que o indivíduo está só em um mundo sem sentido, na qual a questão do livre-arbítrio não se coloca, posto que somos determinados, para uma visão de mundo significativa, em que fazemos parte integrante de um todo, em que o próprio processo fundamental da natureza nos coloca a questão da responsabilidade ética para com o outro e para com o todo.

Os paradigmas funcionam como lentes através das quais vemos e nos inserimos no mundo. A psicologia analítica, bem como a física quântica, através de caminhos separados, confluiu para formar um novo paradigma. A conscientização desses novos parâmetros, a percepção de que estamos interligados e de que nossas ações repercutem no todo, promove uma enorme alteração no nosso modo de estar no mundo. Entendo que estamos passando por profundas transformações e que a própria sobrevivência de nossa espécie depende da transformação de nossa consciência.

 

Referências

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Recebido: 07/08/2022
Revisado: 15/10/2022

 

 

1 Publicado originalmente na Revista Junguiana nº 27, 2009, p. 41-50.

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