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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.86 São Paulo jun. 2014

 

DIÁLOGO COM UM JOVEM COLEGA

 

Sofrimento narcísico: diálogo com um jovem colega

 

Narcissistic suffering: dialogue with a younger colleague

 

Sufrimiento narcisista: diálogo con un joven colega

 

 

Marion Minerbo

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP

 

 


RESUMO

Na forma de diálogo com um jovem colega, a autora procura apresentar o sofrimento narcísico tanto de um ponto de vista clínico quanto teórico. Entende que esse sofrimento está ligado às dificuldades na constituição do eu, que se fragiliza porque é obrigado a recorrer a defesas primárias - clivagens e identificações com o agressor - para sobreviver ao trauma precoce. Para além das definições clássicas de trauma, a autora sugere que este pode se originar em um vínculo primário com características tanáticas: a figura materna ataca inconscientemente o eu da criança por meio de identificações projetivas. Por fim, mostra como a fragilidade narcísica se manifesta na clínica por meio de um funcionamento psicótico, no qual se articulam falhas diversas na constituição das funções egoicas, dificuldade em manter a integridade das fronteiras do eu e ataques do supereu cruel contra o eu.

Palavras-chave: sofrimento narcísico, fragilidade narcísica, transferência narcísica, funcionamento psicótico, trauma precoce


ABSTRACT

In this paper, written as a dialogue with a younger colleague, the author presents narcissistic suffering both from a clinical and theoretical point of view. She understands that this suffering relates to problems in the constitution of the ego, which is weakened by primary defenses - splitting and identification with the aggressor - used for surviving early trauma. In addition to classical definitions of trauma, the author suggests that it may originate within a primary bond with tanatic features, when mother communicates with her child through projective identifications. Finally, she shows how narcissistic fragility manifests in the clinic by means of psychotic functioning, in which we can recognise impaired ego functions, difficulty in maintaining ego boundaries, and cruel superego attacks against the ego.

Keywords: narcissistic suffering, narcissistic fragility, narcissistic transference, psychotic functioning, early trauma


RESUMEN

En forma de diálogo con un joven colega, la autora visa presentar el sufrimiento narcisista tanto desde el punto de vista clínico como teórico. Considera que este sufrimiento está vinculado a las dificultades en la constitución del yo, que se debilita porque se ve obligado a recurrir a defensas primitivas para sobrevivir a un trauma precoz. Además de las definiciones clásicas de trauma, la autora sugiere que éste puede originarse en un vínculo primario con características tanáticas donde la figura materna ataca inconscientemente el yo del niño a través de identificaciones proyectivas. Finalmente, muestra como la fragilidad narcisista se manifiesta en la clínica a través de un funcionamiento psicótico en el cual se reconoce la articulación entre defectos en la constitución de las funciones egoicas, dificultad de mantener la integridad de las fronteras del yo y ataques del superyo cruel contra el yo.

Palabras clave: sufrimiento narcisista, fragilidad narcisista, transferencia narcisista, funcionamiento psicótico, trauma precoz


 

 

Olá, caro amigo! Quando nos despedimos depois daquele nosso primeiro diálogo sobre transferência (Minerbo, 2013b), eu disse que estava feliz por ter sido útil, e que poderíamos conversar sobre outros temas. Sobre o que você gostaria de conversar hoje?

Esta semana fiquei perplexo com uma situação clínica, e senti que me faltavam instrumentos teóricos para compreendê-la e para intervir de uma maneira mais produtiva.

Vamos lá! Aprecio essa atitude de ir atrás de novos instrumentos teóricos para dar conta das questões que surgem na sua clínica.

Regina e sua melhor amiga se conheceram na faculdade. As duas trabalharam um tempo depois de formadas e depois pararam para se dedicar aos filhos. Recentemente, a amiga voltou a trabalhar fora de casa. Diante disto, minha paciente desmoronou. Falou em desistir da segunda faculdade na qual está quase se formando, porque de repente sua pretensão de voltar ao mercado de trabalho lhe parece ridícula; quase cancelou a festa que estava organizando para comemorar seu aniversário; não tinha mais forças para sair da cama de manhã. Ao mesmo tempo, ela percebe perfeitamente o absurdo de tudo isso e está assustada com o que ela mesma chama de "surto". Nem tem mais vontade de se encontrar com a amiga, que agora se veste como uma executiva.

Podemos descrever esse tipo de experiência emocional como um estado psicótico ou funcionamento psicótico da mente. É um nome genérico. Neste caso específico prefiro falar em colapso narcísico, porque diz exatamente o que é: o eu (ou ego, dependendo da tradução) desmoronou.

O eu começa a nascer como instância na teoria psicanalítica de Freud com o texto "Introdução ao narcisismo" em 1914. Quase dez anos depois, após ter trabalhado com as então chamadas neuroses narcísicas - hoje falaríamos em funcionamento psicótico -, Freud (1923/1975b) propõe um segundo modelo do aparelho psíquico formado por eu, isso e supereu. Neste, o eu vai constituído, seja como diferenciação do isso, seja como precipitado de identificações.

Depois, a constituição do eu continuou a ser estudada por outros autores, com o foco na qualidade das relações intersubjetivas, já que o objeto é também um sujeito, dotado ele mesmo de um inconsciente. Esse processo pode ter sido marcado por situações traumáticas que obrigaram o eu, desde muito cedo, a lançar mão de defesas que o fragilizam, como parece ser o caso de Regina. Aliás, aproveito para lhe contar algo precioso que aprendi recentemente. Um dos elementos mais importantes na constituição do eu é uma forma específica do prazer arcaico: a satisfação recíproca e compartilhada por mãe e bebê na "coreografia" e "conversação" primitivas (Roussillon, 2004). Quando bem-sucedidas, o bebê se sente belo e bom, de bem com a vida, bem na própria pele; e quando fracassa, ele começa a se sentir feio, mau e portador de um mal-estar, de um mal em ser, em existir. Satisfação recíproca compartilhada: grande sacada, não é?

Você me pediu para ajudá-lo a formular o tema de hoje. Sua vinheta traz uma situação de sofrimento narcísico, no qual o sentimento de ser e de existir não está assegurado. É o sofrimento ligado às falhas na constituição do eu e à tarefa cotidiana de sobreviver frente a situações vividas como um ataque à sua integridade.

Associei isso que você disse com uma cena que presenciei neste fim de semana. Minha sobrinha de um ano estava chorando. Minha cunhada não entendia o que mais a menina queria. Começou a berrar com ela: "você está me deixando louca!". Fiquei pensando em como essa cena, que deve se repetir todos os dias, seria registrada no psiquismo em formação. E que consequências poderia ter quando ela fosse maiorzinha.

Sua associação é importante, porque nos remete às origens históricas do sofrimento narcísico. Vamos imaginar que sua cunhada, em função de suas próprias questões inconscientes, se sinta acusada pelo choro da criança. Ou que se angustie porque não sabe mais o que fazer para acalmar a filha. Seja como for, o narcisismo dela está ameaçado pelo choro, e então ela se defende atacando o narcisismo da criança. Percebe que não há satisfação recíproca compartilhada?

Eu me senti mal quando presenciei a cena.

Você se identificou com a criança. Imagino que tenha se angustiado por perceber que a mãe estava evacuando seus elementos-beta no psiquismo da filha. Você registrou corporalmente o ódio inconsciente e o ataque contra o eu da criança contidos nesse tipo de identificação projetiva.

Como tudo isso está ligado ao inconsciente da própria mãe, sua sobrinha não tem como dar qualquer sentido ao que está acontecendo. Mas ela registra o conjunto dessa experiência emocional: a intensidade do ódio da mãe contra ela; as palavras que a acusam de alguma coisa; a percepção de que seu desconforto manifestado como choro é vivido pela mãe como um ataque; o próprio terror de ser destruída por aquela pessoa de quem depende para viver; enfim se sente mal na própria pele.

Diga-se de passagem que a experiência traumática vivida por sua sobrinha ficará registrada, mas não simbolizada, constituindo o próprio material psíquico inconsciente que, mais tarde, será transferido para novos objetos ou situações de vida, incluindo-se aí a situação analítica. Ou seja, quando falamos em transferência - estou falando especificamente da transferência narcísica (Minerbo, 2012a) -, trata-se da transferência dessas inscrições precoces, o que produz estados alucinatórios e/ou atuações violentas. A transferência narcísica, também chamada de transferência psicótica, nos conta a história do sofrimento que a criança experimentou na relação com seus objetos primários - tudo isso antes que ela pudesse dar sentido ao vivido.

Gostei da ideia de que a transferência ligada ao sofrimento narcísico pode ser entendida como tentativa de contar uma história que ficou sem palavras. Mas qual é o destino que minha sobrinha vai dar à experiência emocional traumática de ser alvo das identificações projetivas da mãe? Suponho que ela vai precisar se defender desse excesso que a invade.

Para responder de modo rápido, vou me basear na metapsicologia freudiana para dividir artificialmente a experiência de ser alvo de identificações projetivas da mãe em duas vertentes, cada uma ligada a um tipo de defesa.

Uma vertente econômica, pulsional, a dos afetos em estado bruto que foram berrados, evacuados pela mãe e atacaram o eu da criança (a fúria que a criança percebe na mãe). A defesa que a criança vai usar para alojar essa carga tóxica em seu psiquismo é a cisão ou clivagem (Freud, 1938/1975f). Esses afetos clivados passarão a fazer parte do isso. Quando forem repetidos na transferência, irão retornar na forma de violência, destrutividade e impulsividade - a assim chamada pulsão de morte - encontradas em certas formas de funcionamento psicótico.

E uma vertente dinâmica: a criança irá se defender da identificação projetiva identificando-se àquilo que está sendo forçado para dentro dela através da mensagem "você está me deixando louca!". Embora contenha elementos-beta que, na verdade, refletem o funcionamento mental da mãe, a mensagem será internalizada como se dissesse respeito à criança. A experiência deixará como resíduo duas identificações complementares: com o agressor e com o agredido. Ambas irão constituir o supereu.

O termo identificação com o agressor saiu de moda, mas acho que ele é muito útil para entender como se dá a internalização do vínculo tanático que instala a relação com o objeto traumatizante no seio do aparelho psíquico. Segundo o Vocabulário da psicanálise (Laplanche & Pontalis, 2001) o termo foi cunhado em 1932 por Ferenczi e descrito por Anna Freud em 1936, que observou como nas brincadeiras de criança o agredido se transforma em agressor.

Como eu dizia, essa divisão é artificial, pois, na prática, quando o supereu primitivo se manifesta - você certamente já viu isso na sua clínica -, ele o faz de forma impulsiva, violenta e destrutiva, justamente porque suas raízes são pulsionais. É um supereu pulsional, também chamado pelo fundador da psicanálise de supereu severo e cruel.

Entendo que essas defesas que você acaba de descrever, a clivagem e a identificação com o agressor, são intrínsecas ao processo de constituição do aparelho psíquico. Só que, quanto mais o eu incipiente precisar se defender, mais fragilizado ficará. Acho que algo assim deve ter acontecido com Regina.

Provavelmente. Aliás, retomando a sua vinheta, como foi que ela viveu o fato de a amiga ter arranjado um emprego?

Ela viveu isso como uma evidência de que é uma pessoa incapaz.

Ah, então foi isso que produziu o colapso narcísico! O eu dela sofreu um ataque fulminante do supereu pulsional. Percebe o efeito mortífero desse supereu? Primeiro ele a acusa de ser incapaz, o que já desorganiza o eu. Depois vem o golpe de misericórdia, quando afirma que pessoas assim não são dignas de viver. Não é à toa que ela não tinha mais forças para sair da cama. Tem gente que pula pela janela em situações desse tipo.

Você me perguntou sobre o destino do trauma precoce na constituição do eu. É interessante pensar na sua sobrinha e em Regina ao mesmo tempo. Numa ponta podemos observar a criança tendo que mobilizar defesas custosas para sobreviver às identificações projetivas da mãe e, na outra, o preço deste processo defensivo: a constituição de um supereu severo e cruel que, ao menor pretexto, ataca o eu de Regina, levando-o ao desespero.

O sofrimento narcísico está ligado às falhas na constituição do eu e à ferocidade do supereu. Ambos estão relacionados à extensão e precocidade das defesas que o eu incipiente foi obrigado a usar para lidar com o trauma precoce. A criança é submetida a identificações projetivas tóxicas por parte de uma figura materna frágil - por isso falei há pouco em vínculo tanático. Para defender seu próprio narcisismo, ataca o eu da criança, o que irá originar um núcleo psicótico, também chamado de não neurótico (Minerbo, 2010).

Por falar em eu, quais são, afinal, as funções dessa instância no aparelho psíquico?

Essa pergunta é fundamental para entendermos as manifestações clínicas do sofrimento narcísico, que são muito variadas.

O eu é responsável, em primeiro lugar, pelas funções egoicas: a capacidade de perceber e avaliar situações para tomar decisões; memória e criatividade; mobilização dos mecanismos de defesa; capacidade de pensar, simbolizar e realizar a função alfa. Talvez sua função mais importante seja a capacidade de gestão da angústia através da função simbolizante, porque quando ela não é lá essas coisas o sujeito é invadido, se desorganiza psiquicamente e surta, como Regina.

Além dessas, há outro tipo de função egoica: o eu é responsável também pela capacidade de sustentar o investimento em suas fronteiras, mantendo a separação dentro/fora e a diferenciação eu/não eu. Naturalmente, quando as funções egoicas falham, as fronteiras do eu vacilam. E quando o sujeito precisa investir uma energia enorme para manter suas fronteiras minimamente íntegras, as funções egoicas ficam prejudicadas.

Por fim, uma parte do eu que chamamos self funciona como imago ou objeto interno que permite ao sujeito se relacionar consigo mesmo. Tem a ver com a imagem que o sujeito tem de si, a qual lhe é dada pelas identificações e constitui o que ele chama de si mesmo - sua identidade. Não podemos esquecer que a imagem de si deve muito à presença do outro-em-si na forma dos ideais e do supereu, incluindo as temíveis identificações com o agressor. Geralmente há uma "homeostase" narcísica, com pequenas oscilações da autoestima para cima e para baixo. Mas há situações de colapso, como vimos com Regina.

Quer dizer que o sofrimento narcísico decorre de falhas nas funções egoicas, da dificuldade em manter a integridade dos limites e fronteiras do eu e dos ataques do supereu ao eu? É por isso que o sentimento de ser e de existir está sempre vacilando? É daí que vêm as angústias de fragmentação e aniquilamento? É isto que está em jogo nos movimentos de integração e desintegração?

Exatamente! Note que a distinção entre funções egoicas, fronteiras do eu e self é meramente teórica. Na prática, quando a função simbolizante falha, o sujeito é invadido por angústia, as fronteiras do eu vacilam. Quando o supereu ataca o eu, as funções egoicas ficam prejudicadas porque o sujeito está tentando sobreviver. Em todas essas situações, o eu mobilizará novas defesas para tentar salvar sua integridade narcísica, originando manifestações clínicas muito diferentes entre si: o transbordamento pulsional para dentro (somatizações) e para fora (atuações), a desobjetalização (patologias do vazio) e defesas comportamentais (adições e compulsões). Vou falar disso mais adiante.

O amor ao próprio eu é, sem dúvida, fundamental para a vida. Por outro lado, Freud usa o mito de Narciso para falar do amor pela própria imagem que leva à morte. Certos pacientes "muito narcísicos" sofrem porque não conseguem se relacionar de forma satisfatória com as outras pessoas. Afinal, o narcisismo é "bom" ou "ruim" (risos)?

Essa é uma questão que confunde muitas pessoas. A noção de narcisismo já nasceu com as ambiguidades que você aponta. Confrontado com a questão da paranoia no caso Schreber (Freud, 1911/1975e), e depois, em Introdução ao narcisismo (1914/1975d), Freud faz duas afirmações diferentes em relação ao narcisismo.

Primeiro, diz que é uma fase intermediária entre o autoerotismo e o amor de objeto. Nesse plano, que é metapsicológico, o narcisismo diz respeito ao nascimento do ego e faz parte da evolução normal da libido. Esta, que no autoerotismo se satisfaz de forma anárquica e fragmentária, se unifica tomando o próprio ego como objeto de amor para, depois, se dirigir aos demais objetos do mundo.

Mas Freud entende também que as então chamadas neuroses narcísicas (demência precoce, melancolia e paranoia) são narcísicas justamente porque seus sintomas podem ser entendidos como regressão da libido a essa fase intermediária de unificação em torno do eu. Passamos, de repente, para o plano da psicopatologia! Por investirem toda a libido no ego, esses pacientes perdem o contato com a realidade.

Assim, nos primórdios da psicanálise, o termo narcisismo tanto se refere à evolução normal da libido e à constituição do ego quanto a um problema nessa mesma evolução, a um distúrbio na constituição do eu. Em outros termos - e temos que conviver com esse paradoxo - o narcisismo é tanto uma pré-condição para a relação de objeto quanto algo que se opõe à relação de objeto.

Ah, isto esclarece bastante a confusão que eu fazia com relação ao termo narcisismo. Por isso, confesso que o próprio conceito de sofrimento narcísico não fazia muito sentido para mim.

Voltando à clínica do sofrimento narcísico, o que você disse a Regina quando ela respondeu que passou a se sentir uma incapaz no dia em que a amiga arranjou um emprego?

Eu disse que ela não via lugar para duas mulheres capazes, só para uma. E que isso a deixava com muita raiva da amiga, a ponto de não ter vontade de se encontrar com ela.

Essa interpretação mostra que a sua teoria implícita é a da rivalidade edipiana. Você está pensando em termos de núcleo neurótico, no qual afloram questões ligadas ao prazer e às suas interdições: só uma - a amiga/figura materna - pode "realizar o desejo", enquanto a outra está excluída, chupando dedo. Mas veja, o colapso narcísico mostra que, nesse momento, a questão está longe de ser edipiana. Ela não quer mais encontrar a amiga, não por raiva, nem por inveja, nem por rivalidade, mas por vergonha! Ela está se sentindo humilhada por ser uma simples dona de casa diante de uma grande executiva. Teme que a amiga/ supereu passe a desprezá-la. Esses afetos nos levam para outra teoria implícita: a da ferida narcísica e ao sofrimento ligado às falhas na constituição do eu.

Não tinha pensado nisto. Sua hipótese me ajuda a entender o que está acontecendo. Seria demais perguntar o que você diria a ela? (risos)

Claro que não! Eu diria algo como "você está com medo de perder sua amiga. E para você, perder o amor de uma pessoa tão importante, seria o fim".

É verdade, ela começou a falar dessa amiga faz pouco tempo, e parece ser a única pessoa em cujo olhar ela de fato se reconhece. Regina diz que adora estar com ela porque as duas se entendem.

Pois é. Uma interpretação na linha que eu sugeri poderia trazer alívio e ajudá-la a restaurar seu narcisismo por duas razões. A primeira é que lhe permite dar sentido ao seu surto. Se a amiga é vivida, transferencialmente, como fonte de todo o reconhecimento narcísico, dá para entender que ela se desorganize psiquicamente com a perspectiva de perdê-la. Além disso, essa interpretação propicia uma experiência emocional no aqui e agora de que há um objeto, a analista, sintonizada com o sofrimento da criança-nela. Não é preciso explicitar nada, ela percebe isso nas entrelinhas da interpretação. Pois a amiga e a analista, nesse momento, representam o mesmo objeto interno: um novo objeto, atento às necessidades do eu e que "se entendem".

Essa interpretação seria um exemplo do que você chamou, naquela nossa primeira conversa, de interpretar a transferência na transferência?

Exatamente. Tudo isso é importante porque, como estamos vendo, o supereu severo e cruel - que quase aniquilou o eu de Regina - é herdeiro de um vínculo precoce inadequado e traumático. Quando o objeto primário não foi suficientemente sintônico; quando não respondeu às necessidades do eu de forma adequada; quando a coreografia e a conversação primitivas (Roussillon, 2004) fracassaram; e quando o vínculo precoce apresentou características tanáticas no lugar da satisfação compartilhada, então o sujeito é obrigado a lançar mão de defesas primárias - a clivagem e a identificação com o agressor - que irão fragilizar o eu.

Acontece que as defesas primárias não são estáveis nem definitivas. Conforme as situações de vida, elas podem falhar. Aquilo que foi excluído por clivagem, ou que foi incorporado na condição de corpo estranho, pode retornar com força total, retraumatizando o eu. Novas defesas, dessa vez secundárias, tornam-se necessárias para tentar minimizar o sofrimento narcísico, como eu já tinha adiantado há pouco.

Nunca tinha pensado nesses termos. Que tipo de defesas secundárias?

Quando a capacidade de gestão da angústia pelo eu é insuficiente, os afetos em estado bruto podem ser evacuados para fora dos limites do aparelho psíquico. Green (1988a) reconhece dois tipos de transbordamento pulsional: "para dentro", no soma, levando a quadros psicossomáticos. E "para fora", como atuações mais ou menos impulsivas e violentas que encontramos no borderline. Esse termo se refere à patologia dos limites/fronteiras do eu, mas o fracasso maior ou menor das funções egoicas também é patente nessas formas de funcionamento psicótico.

O sujeito pode se defender do sofrimento narcísico, não por transbordamento, mas por um desinvestimento pulsional generalizado. As vivências são de vazio, tédio e apatia, que para Green (1988b) são formas de angústia branca e estão ligadas ao processo de desobjetalização. Ao contrário da depressão, em que o sujeito perde a esperança de realizar o desejo, nas patologias do vazio o próprio desejo é abolido. O retraimento produzido pela desobjetalização pode se aparentar também a estados autísticos.

O terceiro recurso defensivo que o eu pode usar para atenuar o sofrimento narcísico pode ser descrito como comportamental (Minerbo, 2012b). Esse recurso tende a ser mais aceito socialmente do que o transbordamento e o desinvestimento pulsional, pois o comportamento se confunde com modos de ser culturalmente esperados e o sintoma fica camuflado. Refiro-me à adição a estímulos sensoriais autocalmantes e à compulsão que visa produzir próteses identitárias.

Isso me lembra um paciente que eu tive, que era viciado em sexo.

Pois é, a sensação corporal de excitação sexual pode ser usada para atenuar a angústia de fragmentação do eu. Eu tive uma paciente anoréxica que buscava, não a magreza, mas a sensação de fome, pois essa sensação era usada para manter o seu eu minimamente integrado. Você certamente já ouviu falar de pacientes que se cortam: a dor também pode funcionar como uma espécie de pele psíquica sensorial que dá algum contorno ao eu.

O vômito nas pacientes bulímicas também?

A alternância entre duas sensações, a plenitude gástrica e o esvaziamento, pode ter a mesma função. Da mesma maneira, a movimentação incessante e frenética que conhecemos como hiperatividade.

E como você pensa as várias compulsões contemporâneas, como comprar coisas de grife, malhar para ter um corpo sarado, navegar na internet, passar horas nas redes sociais?

Estas são um pouco diferentes. Todas essas atividades são buscadas porque, de alguma forma, sustentam a autoestima. Elas funcionam como próteses identitárias. Seu objetivo não é manter o eu coeso graças a estímulos sensoriais que funcionam como pele psíquica, mas amparar uma identidade claudicante. De qualquer forma, adições e compulsões são formas diferentes, mas muitas vezes complementares, de atenuar o sofrimento narcísico.

Quer dizer que todos esses quadros têm em comum o sofrimento narcísico, mas diferem entre si pelo tipo de defesa secundária utilizada para lidar com ele? Eu não tinha uma ideia tão clara e organizada a respeito disso. Este referencial teórico me ajuda a reconhecer essa dinâmica em alguns dos meus pacientes - e também em mim mesmo (risos)!

Acho que parte da confusão se deve ao fato de que, depois de Freud, cada autor fez seu recorte e interpretou a obra do fundador da psicanálise à sua maneira. Não por capricho, mas para dar sentido à sua própria experiência clínica. Por isso é tão importante conhecer como, e por que, determinado conceito surgiu; como se transformou; qual é seu alcance e quais são seus limites. Tudo isso nos ajuda, não apenas a situá-lo melhor, mas a ter um olhar crítico sobre ele e sobre seu uso na clínica.

Como vimos brevemente, depois de ter proposto na "Introdução ao narcisismo" (1914/1975d) a unificação das pulsões em torno de um primeiro objeto, o eu, esse novo conceito começou a se impor a Freud, o que o levou a propor em "O eu e o isso" (1923/1975b) um segundo modelo para o aparelho psíquico: eu, isso e supereu. Já no fim da vida, em "A cisão do eu no processo de defesa" (1938/1975f), Freud reconhece como é difícil trabalhar com esses pacientes, cujo eu foi precocemente deformado por mecanismos defensivos primários.

Como Klein vê o narcisismo? É uma etapa necessária ao desenvolvimento psíquico? Ou uma forma de recusa da relação com o outro?

Sua concepção de narcisismo é psicopatológica: ela usa o termo estado narcísico e o descreve como uma retirada defensiva da relação de objeto para o objeto interno idealizado. Em função de um cortejo de afetos dolorosos que são despertados na relação com o objeto (medo de depender, ódio pelas inevitáveis frustrações, inveja, angústia de separação), o self pode recuar para uma posição narcísica. Segundo Hinshelwood, "o uso da identificação projetiva tornou-se quase sinônimo de narcisismo na literatura kleiniana" (1992, p. 376). Mas isso não significa que Klein tenha deixado de lado o plano metapsicológico do desenvolvimento do ego. As posições esquizoparanoide e depressiva descrevem, respectivamente, momentos de fragmentação/desintegração e momentos de maior integração do ego. Ela também mostrou como os mecanismos de defesa primitivos fragilizam o eu e empobrecem as funções egoicas (Klein, 1946/1991).

Que outros autores contribuíram para esse debate?

Historicamente, Federn (1952), contemporâneo de Freud, foi o primeiro a falar na importância de investimento libidinal nas fronteiras do eu. Só muitos anos depois, na França, com Didier Anzieu (1988) e seu conceito de eu-pele, o estudo das patologias ligadas às fronteiras do eu foi retomado. Green (1988a) dá continuidade a esse tema com seus estudos sobre as patologias dos limites do eu e os estados-limite da subjetividade. São dele os termos narcisismo de vida, para falar do necessário amor de si; e narcisismo de morte, para falar da ação da pulsão de morte produzindo a desobjetalização (1988b). Roussillon, que foi analisando de Anzieu e colega de Green, dedicou-se ao estudo do que denominou sofrimento narcísico-identitário. Quando entrei em contato com suas ideias achei que eram contribuições tão importantes para o pensamento clínico contemporâneo que até escrevi um texto sobre elas (Minerbo, 2013a).

Na Inglaterra, na esteira da obra de Melanie Klein, foi o campo das funções egoicas que mereceu mais atenção. Winnicott (1955/2000) percebeu claramente um grupo de pacientes cujo eu não pode ser considerado como plenamente constituído como nos neuróticos, e falou em falso self. Bion (1962), por sua vez, estudou a constituição de uma função egoica fundamental: a função alfa. Apesar das divergências, cada um à sua maneira se debruçou sobre questões ligadas ao sofrimento narcísico e aos distúrbios na constituição do eu.

Nos Estados Unidos foi Kohut (1988) que percebeu, mais ou menos na mesma época que Winnicott, a importância do investimento libidinal da mãe no ego da criança. Para ele, o narcisismo é uma etapa normal na constituição do eu (as crianças são sempre "narcísicas"), mas quando esse investimento não é suficiente, surgem os distúrbios narcísicos de personalidade ou de personalidades narcísicas. Essas pessoas vivem famintas de reconhecimento, ou então se comportam, defensivamente, como se fossem a última bolacha do pacote. Ou seja, continuam se comportando "narcisicamente" como na primeira infância.

E na sua opinião, quem tem razão (risos)?

Essa pergunta é muito importante, pois me permite fazer um pequeno, mas fundamental, parêntese epistemológico. A obra do fundador da psicanálise é tão rica que possibilita muitos recortes. Quero deixar claro que considero todas essas contribuições relevantes para o conhecimento psicanalítico. Mas por ser, sempre, e necessariamente, um recorte, qualquer teoria terá o seu alcance - quer dizer, o tipo de questões clínicas que ela permite entender e trabalhar - e também seus limites: um recorte é um recorte, é uma parte, e não pode dar conta do funcionamento psíquico como um todo. Aliás, isso vale para todas as áreas do conhecimento.

Os autores escrevem para dar conta de problemáticas psíquicas distintas. A psicopatologia psicanalítica é extremamente variada. Por isso, quanto mais teorias conhecemos, mais "afiamos" o gume de nossa sensibilidade clínica, e mais nos capacitamos a sintonizar com, e a apreender, uma grande variedade de problemáticas psíquicas. Claro que cada um de nós vai ter suas preferências e vai se dedicar mais ao estudo de alguns autores. Por isso mesmo não podemos esquecer que qualquer teoria, por melhor que seja, está sempre aquém da complexidade da clínica.

Este nosso diálogo, por exemplo, tem a ver com muitos dos autores citados. Li mais uns do que outros, metabolizei o que pude em função da minha experiência clínica e tenho um jeito próprio de falar disso. Provavelmente, se conversarmos sobre esse tema daqui a um ano, eu terei novas coisas a lhe dizer. A gente se renova, não é mesmo?

Pelo menos é o que se espera, especialmente de analistas que têm um papel importante na nossa formação! Voltando ao nosso tema. Em muitas situações você usa o termo sujeito. Como ele se relaciona com o eu?

Boa pergunta. Alguém que morre em decorrência de uma greve de fome está numa posição subjetiva muito diferente de uma anoréxica que morre de inanição. O primeiro está disposto a morrer por um ideal. Há um eu-sujeito capaz de fazer escolhas e de se responsabilizar por elas. Já uma jovem anoréxica não quer morrer. A anorexia é um sintoma, ou melhor, um modo de ser sintomático, o que mostra que algo não está subjetivado. E se não está subjetivado, não dá para falar em escolha. Ela recusa comida, não apenas porque quer se manter magra, mas também porque precisa se manter faminta; a sensação de fome é necessária para dar a ela alguma coesão a um Eu "desmilinguido". Se, nessa tentativa radical de ser/existir, isto é, de constituir um Eu, ela chega a morrer, é por acidente. Nesse sentido, não há um eu-sujeito capaz de se responsabilizar pela própria morte, como no caso da greve de fome. Na verdade, preciso relativizar minha afirmação: é claro que esta jovem tem, também, setores de eu-sujeito bem constituídos, mas o modo de ser sintomático que a leva à morte tem a ver com os setores do eu que não conseguem nascer, vir à luz, se constituir.

Sim, agora ficou bem claro o que seria um eu-sujeito. Quando conversamos sobre transferência (Minerbo, 2013b) você falou de uma paciente chamada Marcia que ficava com ódio do marido e atirava um prato nele. Imagino que ela esteja agindo por instâncias psíquicas não subjetivadas, o que nos dá notícias do sofrimento narcísico. Aspectos não simbolizados e não integrados da própria história emocional estão sendo atuados.

Exatamente. Você tem boa memória. Quando ela diz "eu odeio meu marido", será que é um eu-sujeito que está dizendo isso? Acho que não, porque ela dizia que não sabia de onde vinha tamanha irritação, e que não conseguia se controlar. E de fato, essa mulher fina e educada não atira pratos em qualquer um. Na ausência de ameaças seu eu se mantém integrado e num funcionamento "evoluído". Mas ela se sente ameaçada na relação com o marido, especialmente quando ele evacua nela suas angústias na forma de acusações injustas. Quando isso acontece, o eu-sujeito é temporariamente desalojado pela invasão do psiquismo por elementos que estão clivados e entra num funcionamento dito "primitivo", isto é, não integrado.

E por que ela não tolera ser acusada injustamente?

Marcia não nasceu com "intolerância a acusações"! (risos). Temos que supor que algo, na história emocional com o seu objeto primário, a tornou hipersensível a isso. Talvez ela tenha tido uma mãe como a sua cunhada, que quando fica perseguida pelo choro da criança, a acusa, injustamente, de estar tentando deixá-la louca. Seja como for, Marcia ficou com esse nervo exposto em função do trauma precoce, isto é, de experiências emocionais que excederam a capacidade de simbolização da criança na época em que aconteceram. Algo dessa relação traumática inicial está sendo revivido e atuado com o pobre do marido, que não consegue entender por que em tantos momentos a esposa o odeia tanto.

Ao atuar ela evacua a experiência de dor psíquica.

Sim, mas volto a insistir: de que experiência dolorosa se trata?

Que tipo de experiência reedita o sofrimento narcísico? Por que ela não consegue transformar essa experiência mas consegue transformar tantas outras?

Eu acho que não dá para responder a essas questões sem tentar imaginar quais podem ter sido as marcas deixadas pelos elementos traumáticos da história emocional. Escute só. Teresa1 procura análise aos 18 anos porque não consegue mais ir para a faculdade, estar com os amigos, e se isola em seu quarto e só chora. Nas primeiras sessões, conta que tem nojo de limpar o aquário com seu peixinho. Ganhou de presente, mas não queria de jeito nenhum. Agora fica estressada porque não sabe cuidar dele. Tem medo de dar comida demais ou de menos e que ele morra. Em outra ocasião fala do nojo que tem do suor - do seu, e mais ainda o dos outros. Mais adiante está falando dos sobrinhos, e de repente o tema volta: ela tem nojo das fraldas.

O que está sendo transferido para coisas que dão nojo? Lembra-se de nossa primeira conversa? Na ocasião tentei recuperar uma das dimensões do conceito de transferência: a de deslocamento de intensidade do material psíquico inconsciente para o pré-consciente, tal como Freud propõe na Interpretação dos sonhos (1900/1975c). Três historinhas diferentes - o peixe, o suor e as fraldas - funcionam como restos diurnos. Como você vê, o inconsciente insiste, algo se repete.

Além disso, aparecem várias figuras que têm que arcar com tarefas que ultrapassam suas capacidades. Começa com a história de dar comida para o peixinho. Mas em outra ocasião ela conta que não conseguiu dizer não para a mãe e acabou aceitando produzir a festa junina do prédio junto com alguns vizinhos. Na hora, todos deram para trás e ela teve que enrolar sozinha uns mil brigadeiros. Há também referências a uma avó com quem se identifica. Os netos são "descarregados" na casa dela no fim de semana, e ela acaba tendo que cuidar deles, o que a deixa exausta. Novamente, são três historinhas que contam a mesma história: há uma figura - provavelmente a figura materna - que tem que dar conta de tarefas que estão acima de suas forças.

A escuta analítica parte dos elementos que se repetem e procura reconhecer, ou pelo menos antecipar, um sentido em potencial, um sentido de algo que ainda está por vir e que vai organizar e dar inteligibilidade a este material.

A repetição do tema do nojo sugere que houve algum problema com o corpo.

Também acho. E, certamente, esse problema não veio do nada. Ele tem uma história. Encontrei num texto de Roussillon uma ideia que me foi particularmente útil para entender esse caso. Ele infere, a partir de sua clínica com adultos, que certas crianças conheceram um tipo particular de rejeição: a rejeição corporal primária.

A criança rejeitada corporalmente, ou aquela cuja mãe desenvolve uma fobia ao toque, por exemplo, constrói uma primeira representação de si na qual ela aparece como um "dejeto", uma "merda" para ser ainda mais preciso, e a violência observada se desenvolve como uma reação a esta representação de base. (Roussillon, 2008, p. 182)

Como você vê, nesse caso o sofrimento narcísico está ligado a um tipo muito particular de situação traumática.

Mas será que a mãe de Teresa tinha mesmo algum tipo de fobia com relação ao corpo de seu bebê? Será que ela tinha mesmo nojo de trocar suas fraldas?

Veja, não dá para provar nem que sim, nem que não. Mas a (re)construção de uma história na qual sim, a mãe tinha dificuldades com o corpo de seu bebê, e, sim, isto funcionou como um elemento tanático no vínculo precoce, faz com que várias peças se encaixem. A (re)construção não ambiciona a verdade dos fatos, e, sim, ter valor heurístico, isto é, nos ajudar a imaginar de onde vêm as historinhas que se repetem - e que, como vimos, são sempre a mesma história.

Veja, graças a esta (re)construção mais um fato se encaixa: Teresa adora dançar. No enquadre proporcionado pela coreografia, o corpo pode ser vivido como algo vivo e prazeroso. É como se ela tentasse compensar alguma falha na libidinização do seu corpo com um "autoinvestimento" corporal através da dança. A harmonia dos movimentos e do ritmo lhe dá, talvez, uma sensação de harmonia corporal e alguma coesão egoica - lembra-se de quando lhe falei de sensações corporais que funcionam como pele psíquica?

Não por acaso, Teresa diz que atualmente só gosta de duas coisas: a dança e a análise. Podemos escutar a dança também como uma representação da análise, em que analista e paciente estão, apesar de alguns tropeços, conseguindo sustentar uma coreografia emocional suficiente para ela se sentir bem refletida e mais harmônica consigo mesma. Tenho incentivado nossa colega a não ter medo de se manter aberta e permeável a seu próprio inconsciente e atenta às imagens e associações que surgem no contato com a paciente.

Do jeito que você coloca, o conceito de construções em análise de Freud e o de rêverie de Bion parecem ter pontos em comum.

Eu acho que sim. Em ambos temos um analista permeável e receptivo a seu próprio inconsciente, e que usa sua imaginação clínica "ativada" pela transferência. A rêverie tem a ver com um estado de espírito no qual o analista capta, muitas vezes através de imagens, o estado emocional do paciente ou da dupla em sessão. Ogden (2007) descreve muito bem esse tipo de trabalho. Já na construção o analista imagina, a partir da repetição transferencial - por exemplo, a repetição das historinhas -, que tipo de objeto primário aquela criança pode ter tido; ou que tipo de situação traumática ela pode ter vivido no vínculo primário.

Mas eu não duvidaria de que Teresa tenha tido mesmo uma mãe com nojo das secreções e excreções de seu bebê. É só você lembrar da sua sobrinha: sua cunhada de fato sente um ódio inconsciente pela menininha que chora; ela de fato a acusa, aos berros, de "estar me deixando louca"; sua sobrinha de fato não tem condições de digerir tudo isso. Mesmo assim, o valor da construção em análise não é a verdade factual, mas servir de instrumento para o analista sintonizar com o sofrimento da criança-no-adulto no vínculo primário, que se expressa através da repetição das historinhas.

E, do jeito que você usa esse recurso, passa muito longe daquela ideia que eu tinha de construção como algo intelectualizado e até meio caricato, do tipo "quando você tinha dois anos...". Pelo que estou entendendo, há também outra diferença: a rêverie até pode ser comunicada ao paciente, mas a construção é para uso exclusivo do analista.

Sim, serve para que ele tenha uma mínima compreensão do que está em jogo no sofrimento narcísico de Teresa, que é necessariamente diferente do de outros pacientes. Voltando à sua sobrinha, ela não tem uma mãe com fobia ao corpo do bebê, mas tem uma que parece ter um núcleo paranoico. Nos dois casos, a criança está tendo que alojar elementos-beta que provêm da figura materna. Embora sejam muito diferentes entre si, eles têm em comum o fato de que, de uma maneira ou de outra, atacam o eu da criança - por isso eu os chamo de tanáticos (Minerbo, 2010). O sofrimento narcísico, que é sempre indício das falhas maiores ou menores na constituição do eu, terá "caras" diferentes em cada caso. Será preciso encontrar palavras que deem sentido à experiência traumática que foi vivida, mas não simbolizada, em cada um deles. Enfim, é trabalho da análise permitir que "o eu advenha", como dizia Freud.

Estudei muito sobre a importância do psiquismo materno na constituição do eu, mas nunca pensei que a mãe pudesse evacuar elementos-beta na criança. Realmente, faz todo o sentido pensar nisto, já que a mãe também tem um inconsciente. Com certeza ela usa, como todos nós, mecanismos de defesa para lidar com suas próprias angústias primitivas. É claro que a mente em formação não tem como metabolizar nem integrar esses elementos. Só que quando trabalho, não costumo relacionar o sofrimento psíquico que traz o paciente à análise, com a história da constituição do eu. Tento me disciplinar no sentido de observar o que está acontecendo entre mim e o paciente. Admito que há certa contradição nisso. Na verdade, é como se teoria e clínica não tivessem nada a ver uma com a outra. Preciso pensar melhor nesse assunto.

Bem, espero que nossa conversa sobre o sofrimento narcísico tenha sido útil. Continuo à sua disposição para novos temas.

 

Referências

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Recebido em: 18/3/2014
Aceito em: 25/3/2014

 

 

Marion Minerbo marion.minerbo@terra.com.br
1 Agradeço à minha supervisionanda, que gentilmente autorizou a publicação deste material.

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